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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.Extra Lisboa out. 2019

 

ESTUDOS

Análise da produção poética das artistas Letícia Parente, Regina José Galindo e Andressa Cantergiani acerca dos conflitos de gênero

Analysis of the poetic production of Letícia Parente, Regina José Galindo, and Andressa Cantergiani on gender conflicts

Louize Bueno de Moura*

* Universidade Federal do Rio Grande, Instituto de Letras e Artes, 96201-900, Rio Grande, Brasil, louizeartivsimofem@gmail.com


 

RESUMO

Esta pesquisa objetiva analisar os desdobramentos de e sobre mulheres na contemporaneidade nos contextos político-sociais a partir da obra de três artistas visuais: Letícia Parente; Regina José Galindo e Andressa Cantergiani. Através da ótica cartográfica e afetiva sobre os corpos como territórios de domínio, são realizadas análises sob paradigma feminista das produções geopoéticas das artistas citadas e suas colaborações subjetivas acerca dos conflitos de gênero e construção identitária feminina no campo da história e da teoria da arte. A análise das produções poéticas das artistas permitiu identificar suas corpografias enquanto territórios existenciais expressos em seus trabalhos e as relações desses territórios com os conflitos de gênero.

Palavras-chave: crítica da arte; relações de gênero; feminismo; corpografia.


 

ABSTRACT

This research aims at analyzing the women unfoldings in the contemporaneity socio-political context from the work of three visual artists: Letícia Parente, Regina José Galindo, and Andressa Cantergiani. Through the cartographic and affective view of bodies as territorial domain, under a feminist paradigm, an analysis of the geopoetic art productions of these artists and their subjective collaborations on the discussion about gender conflicts and feminine identity construction in the field of history and theory of art is carried out. The analysis of the poetic productions of the artists allowed to identify their corpographies as existential territories expressed in their works and the relations of these territories with gender related conflicts.

Keywords: art critic; gender conflicts; feminism; corpography.


 

1. INTRODUÇÃO

Quando ingressei ao curso de bacharelado em Artes Visuais, comecei a refletir sobre determinados sujeitos - mulheres, negros e LGBTTI’s (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Intersexuais) - que estavam inseridos na instituição, e como as suas identidades, histórias e relações com “o outro” (branco e heteronormativo) eram estudadas nas poéticas visuais e na história da arte.

Necessitava de outro olhar para aquela mesma história, um que se desterritorialize. Esta pesquisa surgiu destes questionamentos, pois tentava buscar as identidades em que me sentia representada, as quais observei pouco inseridas naqueles territórios.

Na condição de mulher cisgênero, latina, feminista, da periferia, filha de mãe empregada doméstica/dona de casa e pai pedreiro, trilhei uma cartografia afetiva ao longo de minha formação com a produção de alguns trabalhos poéticos, acompanhando intersecções entre a história passada e contemporânea e com os feminismos com que tive afinidade durante a militância feminista e LGBTTI na universidade.

Desta forma, abordo o corpo como um território poético em um processo com diversas nuances, um corpo-território que pode ser individual ou coletivo, e se assemelha às fronteiras de um país. Neste caso, trata-se de um corpo que pode ser invadido, violado e se tornar pertencente a outro alguém ou a um sistema, que se denomina proprietário daquele corpo-espaço.

Frente às reflexões apresentadas e sob a ótica feminista decolonial analisarei as obras das artistas visuais: Letícia Parente, professora de química e artista brasileira, com a poética “Série casa” (1975); a guatemalteca Regina José Galindo, com a videoperformance “Tierra” (2013), e a artista performer brasileira Andressa Cantergiani, com a fotoperformance “Aterro” (2015).

Ao lançar o meu olhar afetivo sobre os seus trabalhos, traço uma cartografia política social acerca dos conflitos de gênero e dos territórios condicionados à mulher, tais como a dominação, a desumanização, as realocações nos territórios, a perda de identidade, a diáspora, o preconceito racial, a tortura/abuso e o feminicídio e, por meio de análises feministas sobre os trabalhos de e sobre mulheres nas artes visuais, realizo a identificação das Corpografias (Macedo, 2017, p. 93), que pode definir-se como estratégias de mulheres artistas em diálogo com os feminismos contemporâneos na representação do corpo como um mapeamento no mundo contemporâneo (Macedo, 2017, p. 93). Essas estratégias corpográficas estão apresentadas em três tópicos no desenvolvimento deste trabalho, cada tópico buscando desenvolver um mapa de conflitos desenhados pelas artistas trabalhadas e suas intersecções com o campo das artes visuais.

Procurei observar, em cada uma das artistas, o seu pioneirismo e a potência das suas produções subjetivas, suas estratégias de evidenciar por meio da arte os conflitos de gênero e os territórios condicionados ao qual as mulheres, num contexto latino e coletivo, se encontram. Além disso, quanto artista visual, resalto também a necessidade de pautar e compartilhar o olhar das vivências e da afetividade de uma sujeita que estava à margem, e que hoje por estar em espaços institucionais, tem como dever e ato político visibilizar as artistas referenciadas e na esperança futura de ver mais mulheres sendo mapeadas em seus fazeres artísticos, nas demais epistemologias da história da arte.

2. LETÍCIA PARENTE E O “CORPO-CASA”

As relações do corpo se hibridizam com a divisão sexual do trabalho, construindo-o como extensões da casa, dessa forma, esse corpo pode ser então percebido como “corpo-casa” quanto mais é relacionado com o território condicionado ao feminino, que é o doméstico.

Diante dos móveis, quartos e rotinas, a artista Letícia Parente - mulher, nordestina, mãe, professora de química por formação e artista visual por libertação - compreendia e vivia os conflitos do cotidiano doméstico, transitando em jornadas de múltiplas identidades. Em seus trabalhos Letícia pretendia expor os embates experimentados por ela ao falar sobre a condição da mulher na sociedade brasileira das décadas de 1970 e 80. Em especial a “Série casas” (1975), é uma das produções da artista que representa esse território condicionado ao gênero feminino como parte constituinte da construção do espaço territorial do corpo da artista.

 

 

André Parente, seu filho, também artista visual e pesquisador, diz que “não se tratava (...) para ela de representar a realidade preexistente, mas de usar as imagens para produzir um efeito de realidade.” (2007, p. 31). Realidade esta que a artista, que transitava pela arte conceitual e relacionava à produção subjetiva do corpo até onde os hábitos e desejos a conseguiam libertar e aprisionar nestes territórios naturalizados, visto que a partir de happenings e performances nos anos 1960, o corpo passou a ser protagonista das ações dos artistas, revelando as estratégias e processos de produções dos desejos e de suas subjetividades (Rolnik, 2006; Parente, 2011).

Pode-se afirmar que, diante desta realidade, o corpo da mulher-performer e da artista performer tornaram-se dispositivos político-poéticos e que se relacionam com as mudanças sociopolíticas da época.

Especificamente sobre a artista-performer, seu corpo é utilizado como ferramenta para trazer uma nova ótica sobre mídias para arte ao trazer consigo ações performáticas em vídeo, uma plataforma amplamente difundida e bem recebida na atualidade, de forma a permitir que a artista esteja mais perto do olhar afetivo do espectador. Assim, é possível traçar outros paradigmas conceituais de como o artista está inserido na sociedade.

A artista, através dos seus poemas confessionais e visuais, buscava um diálogo mais próximo com o público comum e assim chegava mais próximo da Outra: a mulher e as condições domésticas de sua espectadora. Com tamanha interatividade, atingindo a sensibilização sobre os territórios que este corpo habita e transita.

3. REGINA JOSÉ GALINDO E AS INTERMITÊNCIAS SOBRE O CORPO-TERRA

Na segunda corpografia, trilhei relações entre a terra e a mulher e, discorro sobre os genocídios e corpos violados na América Latina - sobretudo na Guatemala, país que viveu uma ditadura (assim como o Brasil, porém por 36 anos) cuja política de Estado era exterminar o povo Maya, as suas mulheres, homens e crianças, conflito retratado na poética da vídeoperformance “Tierra”, até as relações dos testemunhos mudos no corpo de Regina José Galindo em confronto com o patriarcado capitalista que ceifou a vida de milhares de pessoas.

Diante do seu corpo nu, a violência da retroescavadeira que retira mecanimente ao seu redor a terra, em uma representação de valas comuns enormes, trás consigo a referência à guerra civil guatemalteca, um genocídio no qual estima-se que mais de 200.000 pessoas tenham sido mortas, dentre elas estudantes, ativistas políticos e sobretudo indígenas da etnia Maya.

 

 

A arte, assim como a cultura de um modo geral, obedece atualmente a uma tendência de afinar-se cada vez mais a uma expressividade transnacional. Quando falamos de uma poética ligada à memória coletiva de uma nação, aos choques e catástrofes vividas dentro de um espaço geográfico específico, e toda a posterior reverberação desses traumas através de sua necessária e controversa representação, nos vemos impossibilitados de escapar do lugar desde onde a fala injeta seu espaço no mundo.

Diz Andreas Huyssen: “(...) ainda é importante enfatizar que, a despeito de sua codificação amiúde transnacional ou até universalizada, os discursos sobre as lembranças traumáticas também continuam ligados à história de um Estado ou uma nação específicos” (2014, p. 168).

A latinidade impressa no corpo de Regina José Galindo, artista política e poetisa das causas emergenciais, dos silêncios dos genocídios, trouxeram uma carga emblemática a esta pesquisa sobre violências que não podemos esquecer: não podemos esquecer que houve ditaduras, houve mortos e desaparecidos e que as mulheres foram as maiores vítimas. É como minha mãe sempre diz: “Se mata o mal pela raiz!”. Mas, neste caso, o mal estava/ está matando o bem pela raiz.

4. O CORPO E A IDENTIDADE SOTERRADA APRESENTADOS POR ANDRESSA CANTERGIANI

E na última corpografia, Andressa Cantergiani, que retrata a temática do soterramento às identidades das mulheres com forma de aterrar o corpo como elemento desviante. A performance, nesse nuance, é ferramenta para desterritorializar e resistir. O aterro identitário, de forma aterrorizante, também pode ser relacionado ao aterro real dos corpos femininos resultantes do feminicídio.

 

 

O espaço urbano também é um lugar que nos violenta de diferentes formas, que nossa terra a circunstâncias de medo e de conflitos com as relações que temos com a espacialidade urbana.

A cidade, por si só, deveria ser um espaço de acolhida, principalmente no que diz respeito ao espaço público que, como espaço de acolhida coletiva, independentemente de fatores como classe, raça/etnia, idade, gênero, sexualidade, condições físicas ou mentais, seria um território para todos. Porém, ela - a cidade - nos aterra em relações que nos colocam como animais presos e encaixotados em prédios, em casas e na falsa segurança do lar, enquanto outras pessoas são marginalizadas, impedidas de estar e ocupar determinados espaços, havendo uma grande segregação social.

A mulher está sempre em conflito com este território, ou com a falta dele, pois em um sistema patriarcal que está vigente há séculos, não temos o direito aos deslocamentos pela “nossa” cidade de forma segura, pois nosso corpo não é bem-vindo ou é alvo das violências promovidas por este sistema que enterra diariamente milhares.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As artistas referenciadas na monografia utilizam o corpo como um dispositivo político estratégico e artístico que se cruza entre as fronteiras da realidade e trazem representações coletivas de problemáticas em torno de si, dando voz e imagem às demais mulheres que ainda permanecem caladas em seus territórios.

Procurei assim, através desta investigação, subverter a cânone da arte ocidental para um olhar crítico feminista e afetivo sobre algumas das invisibilizações coletivas das mulheres de nosso continente, tendo em vista que esta pesquisa está voltada para experiências de ressignificação de territórios de condicionamento historicamente impostos a elas.

O corpo é um receptáculo de agenciamentos sensíveis, que subvertem nosso olhar e os nossos sentidos para testemunhos que, por séculos de colonialismo, foram silenciados e que talvez tenham ficado estrategicamente calados, deslocando sua energia para outros modos de resistência ao patriarcado, como as artes visuais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cantergiani, A. (2015). Performance “Aterro”, em dia internacional de luta pela saúde da mulher: Ponto de Cultura Feminista. Ponto de Cultura Feminista: corpo, arte e expressão. Disponível em: https://pontodeculturafeminista.wordpress.com/tag/andressa-cantergiani/         [ Links ]

Macedo, A. G. (2017). Who will make me real? Mulheres, arte e feminismos: Modos dever diferentemente. Vista: Revista de cultura visual, 1, pp. 93-107.

Machado, A. (Org.) (2007). Made in Brasil. São Paulo: Itaú Cultural.

Parente, A., & Maciel, K. (2011). Xerox e arte postal / Xerox and mail art. In A. Parente & K. Maciel (Orgs.), Letícia Parente, arqueologia do cotidiano: Objetos de uso (pp. 161-184). Rio de Janeiro: +2 Editora.         [ Links ]

Rolnik, S. (2014). Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS.         [ Links ]

Solomon, R. (2014). Video-performance “Tierra” vídeo digital colorido, com som, 33 min., 30 seg, New York: Guggenheim UBS MAP Purchase Fund, Collection Online - Regina José Galindo. Disponível em https://www.guggenheim.org/artwork/33096         [ Links ]