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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

ESTUDOS

Antónia Gertrudes Pusich e a defesa da instrução feminina no século XIX

Antónia Gertrudes Pusich in defence of female education in the nineteenth century.

Sónia Coelho*, Susana Fontes*

* Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Departamento de Letras, Artes e Comunicação, Centro de Estudos em Letras, 5001-801 Vila Real, Portugal, ccoelho@utad.pt| sfontes@utad.pt


 

RESUMO

Antónia Gertrudes Pusich (1805-1883) foi uma mulher de elevada cultura, tendo deixado escritos sobre diversos domínios e temáticas. Foi no campo do jornalismo que mais se distinguiu, sendo pioneira nestas funções. Colaborou em diversos jornais e fundou três periódicos, dos quais foi proprietária e diretora. Nestes escreveu sobre variados temas, expressando os seus pensamentos sem preconceitos e possibilitando a outras mulheres a expressão da sua voz. Neste artigo, pretendemos dar destaque ao seu carácter pioneiro, analisando as suas ideias, expressas nos textos publicados em A Assembléa Litteraria (1849-1851), sobre a ilustração dos portugueses e, em particular, das mulheres.

Palavras-chave: Antónia Gertrudes Pusich, educação feminina, A Assembléa Litteraria (1849-1851).


 

ABSTRACT

Antónia Gertrudes Pusich (1805-1883) was a very literate woman, having published several texts on different domains and issues. She collaborated with several newspapers and founded three newspapers of which she was the owner and director,being a pioneer in these roles. In these newspapers she wrote on a variety of topics, expressing her thoughts without prejudice and enabling other women to express their voices. In this article, we intend to highlight Pusich’s pioneering character, analysing her ideas expressed in the texts published in A Assembléa Litteraria about the state of Portuguese education in general and, in particular, about the state of female education.

Keywords: Antónia Gertrudes Pusich, Female education, A Assembléa Litteraria (1849-1851).


 

INTRODUÇÃO

No número 4 de A Assembléa Litteraria, Antónia Gertrudes Pusich (1805- 1883) chama a atenção para a necessidade da instrução das meninas, área extremamente carenciada no século XIX, em Portugal, fazendo o seguinte apelo: “Eduquem-se pois, instruam-se convenientemente as meninas, aproveitem-se as excelentes disposições do espirito de nossas jovens compatriotas, e as gerações futuras serão mais felices que a presente” (Pusich, 1849a, n.º 4, p. 28).

Na verdade, a educação das mulheres é um tema que já no século XVIII tinha suscitado interesse em Portugal e levado alguns teóricos a posicionarem-se a seu favor, como foram os casos de Luís António de Verney (1713- 1792) e António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), que tiveram por base as ideias modernas de tratadistas franceses, como François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715) e Charles Rollin (1661-1741).

No século XIX, o acesso da mulher à educação continuou a ser um tema controverso, dado que, se alguns o defendiam, muitos outros se lhe opunham. Neste sentido, o ensino feminino ficou marcado por avanços e recuos, com a promulgação de decretos a favor da educação feminina, a que se seguiam leis que os anulavam, havendo assim uma distância clara entre o que se propunha na teoria e o que se aplicava na prática.

Houve, no entanto, durante este século medidas importantes indiciadoras de uma mudança de mentalidades. Foi no seu início que se aplicou a Resolução Régia de 31 de maio de 1790, promulgada no reinado de D. Maria I, e se instalaram as 18 escolas de meninas previstas na cidade de Lisboa. Apesar da boa vontade governamental em colmatar a carência ao nível da educação feminina - como se pode confirmar pela leitura da Consulta sobre a criação destas escolas, em 25 de fevereiro de 1790 -, só em 1816 é que foram admitidas as primeiras mestras, o que se poderá explicar não só por razões de carácter financeiro, mas também pelo próprio preconceito existente em torno da educação da mulher (Fernandes, 1994). É nesta altura, portanto, que se nomeiam as três primeiras mestras régias de ler, escrever e contar. Assim, Margarida Jesus, Maria Procópia e Teresa Rosa de Jesus podem ser consideradas as três primeiras professoras do ensino primário oficial em Portugal (Nóvoa, 1987).

Nestas escolas, a educação das meninas assentava no ensino das primeiras letras, dos trabalhos manuais e da doutrina cristã, fornecendo-lhes as competências necessárias para se tornarem boas mães e donas de casa. Com efeito, em quase todos os projetos de educação havia uma diferenciação das matérias a lecionar aos dois sexos, vedando à mulher assuntos relacionados, por exemplo, com a vida política e económica. Privilegiavam-se os valores morais e sentimentais em detrimento do conteúdo intelectual, considerando-se que este último podia pôr em causa a feminilidade das senhoras.

Na verdade, esta ideia de que a mulher era intelectualmente inferior ao homem fica plasmada também nos manuais de civilidade da época que, muitas vezes, apresentavam o sexo feminino como um ser incapaz de acompanhar o homem em assuntos de maior profundidade: “Na conversaçaõ das senhoras, naõ devemos fazer ostentaçaõ de tudo quanto houvermos aprendido nos Collegios com grande custo por espaço de dez annos; porque ellas naõ nos entenderaõ, e por consequencia lhes seremos enfadonhos” (Elementos, 1801, p. 163).

No século XIX, a par do ensino oficial, outra forma de as senhoras acederem à instrução era através das casas de educação, modalidade de ensino que podia ser feita em regime de internato ou semi-internato, contemplando-se matérias como a religião, a língua materna, línguas estrangeiras (normalmente o francês e o inglês), trabalhos manuais e dança, preparando-as assim para a vida em sociedade. De entre as casas de educação de meninas existentes na época, gostaríamos de destacar, por ser diversas vezes publicitada no jornal A Assembléa Litteraria, a casa de educação de Catarina Douthat Álvares de Andrada (finais do século XVIII-1860). A sua proprietária era considerada uma senhora culta, tendo dirigido o periódico L’Abeille e colaborado em diversas publicações da época, entre as quais figurava A Assembléa Litteraria. A sua casa de educação, situada num dos bairros mais centrais de Lisboa, aceitava preferencialmente alunas internas, mas também discípulas externas, variando os preços consoante a modalidade escolhida. Na publicidade a este estabelecimento, discriminam-se as disciplinas aí ministradas, que contemplavam “a doctrina Christã, a historia sagrada e profana, a geographia, a grammatica geral e particular das linguas portugueza, franceza, e ingleza, a escripta e a arithmetica” (Ferreira, 1849, p. 51). Paralelamente, as meninas aprendiam também as prendas próprias do seu sexo, por forma a responder às diferentes necessidades e contextos de intervenção da mulher.

Apesar destes esforços para a criação de locais de instrução para o sexo feminino, esta área encontrava-se ainda bastante carenciada, abrangendo um reduzido número de meninas, principalmente as mais abastadas, como denunciará, entre outros aspetos, Antónia Gertrudes Pusich nos seus escritos acerca desta temática.

1. ANTÓNIA GERTRUDES PUSICH

Antónia Gertrudes Pusich nasceu a 1 de outubro de 1805, na ilha de São Nicolau, em Cabo Verde, sendo filha de D. Ana Maria Isabel Nunes e do almirante António Pusich (cf. Nóvoa, 2003, pp. 1127-1128; Stone, 2005, pp. 127-129; e Talan, 2005). O seu pai preocupou-se em fornecer-lhe uma educação esmerada, que lhe permitiu dominar várias línguas estrangeiras, como o francês, o inglês e o italiano, possuindo também sólidos conhecimentos no âmbito da música. Na sequência da segunda viuvez, ainda com dois filhos menores, Maria Antónia sentiu necessidade de se dedicar ao exercício das Letras de forma a sustentar a sua família. Foi uma mulher de elevada cultura, tendo deixado escritos sobre diversos domínios e temáticas, como a própria reconheceu no seu jornal A Cruzada:

Demos o testimunho […] de nossos escriptos ha 16 annos. Seis dramas - quatro comedias - um poemetto - um romance - varias produções em verso e prosa (tudo original) impressas avulso e em diversos jornaes - tres periodicos fundados e redigidos por nós - temos outras obras inedictas e a beographia de nosso virtuoso pae. (Pusich, 1858, n.º 1, p. 1)

É precisamente neste último âmbito, no campo do jornalismo, que Maria Antónia mais se distinguiu, iniciando-se na Revista Universal Lisbonense, dirigida por António Feliciano de Castilho, e colaborando em diversos periódicos. Nesta área, o seu maior legado foi a fundação de três periódicos, A Assembléa Litteraria (1849-1851), A Beneficencia (1852-1855) e A Cruzada (1858), dos quais foi proprietária e diretora, funções que estavam associadas ao universo masculino. Nestes jornais escreveu sobre variados temas, expressando os seus pensamentos sem preconceitos e possibilitando a outras senhoras a expressão da sua voz, fazendo-a chegar ao público-leitor dos jornais. O seu carácter pioneiro revelou-se também na defesa da condição da mulher e da ilustração feminina, expondo a sua opinião em diversos artigos acerca da necessidade e dos benefícios desse tipo de educação.

Aquando da sua morte, em 1883, os jornais da época noticiaram o acontecimento e reconheceram a notabilidade desta personalidade, que uniu em si qualidades de um escritor (ou seja, poeta), com as do dramaturgo, músico (pianista e compositor), crítico (literário, de teatro, de música, de arte), jornalista e chefe de redacção, pedagogo, político, teólogo, antropólogo, etnólogo, assistente social, lutador pelos direitos das mulheres, etc. etc., entregando-se a cada um destes “papéis” com uma paixão mesmo incrível. (Talan, 2005, p. 159)

2. A ASSEMBLÉA LITTERARIA, JORNAL D’INSTRUCÇÃO

Este jornal foi publicado pela primeira vez em 4 de agosto de 1849, sendo fundado por Antónia Gertrudes Pusich, a primeira mulher a desempenhar estas funções em Portugal. Foi igualmente a primeira a assumir explicitamente, no cabeçalho, a responsabilidade pelo jornal e a assinar os seus textos, rompendo com o anonimato ou os pseudónimos que eram frequentes nas colaborações femininas. Esta prática foi também seguida pelas suas colaboradoras.

Como o próprio título indica (AAssembléaLitteraria, Jornal d’Instrucção), estamos perante um periódico que tem como principal objetivo a instrução. Embora não se encontre na Biblioteca Nacional de Portugal o primeiro número de A Assembléa Litteraria, que poderia explicar a linha orientadora adotada, percebemos os objetivos deste jornal através de um texto da colaboradora Antónia Luísa Cabral de Teive Pontes. Enaltecendo o trabalho da redatora, refere que esta, “espancando as trevas em que pertendem submergir a illustração feminil, surge atravez de innumeras difficuldades a levantar seu brado a favor da nossa liberdade intellectual ” (Pontes, 1849, p. 28-29). Como esta colaboradora destaca, o jornal visa contrariar a opinião comum de que a instrução feminina não é útil à sociedade, demonstrando “as vantagens que a humanidade colhe da nossa illustração” (Pontes, 1849, n.º 4, p. 28).

Com a publicação deste jornal, rompia-se com o modelo de periódico feminino anterior, não só pelo objetivo explicitamente assumido no seu subtítulo, mas também pelos temas abordados e pelo público-alvo a que se destinava. Ao contrário dos periódicos antecedentes, dirigidos por homens e destinados a mulheres, como por exemplo O Correio das Damas (1836- 1852), este jornal não se dirigia exclusivamente às mulheres e, por isso, as temáticas não incidiam sobre os tradicionais temas femininos, como as modas, a beleza ou outros assuntos mundanos, que visavam confirmar o papel da mulher e o seu estatuto subalterno na sociedade. Entre as temáticas abordadas, encontravam-se textos sobre educação, religião, economia, política, beneficência, literatura, teatro, entre outros. Muitos destes textos eram da autoria da redatora, que pôde contar com um conjunto extenso de colaboradores que incluía homens, mulheres, jovens conhecidos ou desconhecidos da sociedade da época:

Todos os dias á Assembléa Litteraria se unem Collaboradores novos de ambos os sexos; tendo até a satisfação de ver ainda algumas meninas, que pareciam totalmente oppostas ás lettras, e inabeis a qualquer applicação litteraria, desvelarem-se a procurar uma ou outra obra moral para traduzir, e enviar ás columnas d’este jornal; empregando em publica utilidade gostosas o tempo, que tão longo e enfadonho lhes parecia em outros divertimentos, e desenvolverem nos conhecimentos de cousas uteis o espirito, que parecia ali não existir! (Pusich, 1849b, n.º 5, p. 35)

Todas estas características fazem de A Assembléa Litteraria um periódico inovador, fundado e orientado por uma mulher excepcional que soube rodear-se de colaboradores dedicados e talentosos, todos apostando no direito das mulheres à instrução, aceitando a sua capacidade de independência económica, acreditando que o acesso a esse direito e a essa capacidade passavam pelo conhecimento do país real de que eram parte e pela participação no esforço necessariamente lento e árduo que vá resolvendo simultaneamente, os problemas nacionais e as dificuldades específicas da condição feminina. (Leal, 1992, p. 64)

2.1. Antónia Gertrudes Pusich e a educação em A Assembléa Litteraria. Como já foi referido, a defesa da educação é a grande bandeira por que lutam neste periódico a diretora e os seus colaboradores. Neste sentido, são vários os artigos dedicados a esta temática, cujo título inclusive apresenta esta designação, como por exemplo, “Educação” nos números 3 e 4, “Educação de meninas” e “Da educação” no número 7, “A instrucção dos Principes” no número 21 e ainda “A falta d’instrucção em Portugal” no número 26.

Pode dizer-se que esta é uma das grandes causas de Antónia Pusich, que abre o número 3 deste jornal com um artigo em que apela à educação dos adolescentes, chamando a atenção do Governo e de todos os que intervêm neste processo para a sua importância: “A educação dos adolescentes é um dos principaes objectos que deve chamar a attenção do Governo, e de todos aquelles em quem pesar tão alta responsabilidade” (Pusich, 1849c, n.º 3, p. 17).

De entre estes intervenientes, é à mãe que Pusich se dirige primeiramente, por considerar que a esta “cumpre em primeiro logar o desempenho de tão sagrado, e gostoso dever” (Pusich, 1849c, n.º 3, p. 17). Entende que nestes anos iniciais, até aos sete, a mãe deve preocupar-se com a formação moral da criança, funcionando como modelo e socorrendo-se do exemplo, da palavra e de contos morais para formar o espírito da criança. A fase seguinte, iniciada aos sete anos, diz respeito ao início da educação formal e a preocupação dos pais deve recair na escolha de bons mestres.

A propósito do estado da instrução em Portugal, Pusich constata que existe uma generalizada falta de formação do povo, contrastando com o que acontece em outros países do continente europeu. Neste campo, Portugal “move apenas os passos infantis, quando as outras Nações da Europa caminham com passos de gigante” (Pusich, 1850a, n.º 39, p. 58). Na sua ótica, a ilustração é a base do progresso do país e da sua prosperidade e, como tal, deve estar sob a alçada do Governo, defendendo uma educação pública, que abranja também os grupos mais desfavorecidos, privados do acesso à instrução.

Na verdade, em vários momentos do discurso de Maria Antónia fica claro que a instrução seria uma forma de evitar vários problemas sociais, uma vez que as crianças que então deambulavam pelas ruas poderiam dedicar o seu tempo à aprendizagem de ensinamentos úteis para a sua vida e para o seu país. Como a própria refere no número 26, “como poderão moralizar-se os povos sem instrucção?! Que se poderá esperar de tantos rapazes que vão crescendo como os abrólhos em campo inculto, abandonado?! Que não sirvam senão de fazer mal” (Pusich, 1850c, n.º 26, p. 201).

É, assim, notória a dedicação de Antónia Pusich à causa pública e à educação popular, ficando isso evidente também na tentativa de fundar uma escola onde lecionaria a título gracioso ou ainda quando oferece os serviços do seu filho mais velho para mestre régio na Vila de Vendas Novas, apesar dos constrangimentos associados a esta profissão. A este propósito, Pusich (1850c, n.º 26, p. 202) constata: “Dir-nos-hão, como já nos disseram. - Não ha quem queira ir para similhantes terras, pobres, e com um insignificante, e mal pago ordenado, qual o que tem os Professores Regios de primeiras lettras”. O seu espírito de serviço público revela-se quando prefere que o seu filho ocupe o lugar de mestre régio em vez de ser “empregado no Real Contracto do Tabaco aonde ganha muito mais ” (Pusich, 1850c, n.º 26, p. 202).

2.2. Pusich e a defesa da educação feminina em A Assembléa Litteraria. O espírito verdadeiramente pioneiro de Antónia Pusich verifica-se na sua apologia da educação feminina, luta que só em finais do século ganhará força, com personalidades como Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921), Ana de Castro Osório (1872-1935), Virgínia de Castro Almeida (1874-1945), entre outras, que intervieram ativamente na luta pelos direitos da mulher. Algumas destas mulheres empenharam-se fortemente na queda da monarquia e na implantação da República, acreditando que este sistema político lhes iria ser mais favorável e que através da educação as mulheres teriam um lugar mais justo na sociedade.

Neste sentido, pode afirmar-se que Pusich forma, juntamente com algumas das colaboradoras do seu jornal, como Catarina de Andrada, Antónia Luísa Cabral Pontes e Maria José da Silva Canuto (1812-1890), o grupo das pioneiras na defesa da instrução feminina, pois foram estas vanguardistas “que primeiro ergueram o brado da liberdade intellectual, e o pendão da illustração feminil, que termulará sobranceiro aos seculos, espancando até os ultimos vestigios das sombras da ignorancia” (Pusich, 1849a, n.º 4, p. 28). Apesar do número elevado de analfabetos existente na época, estas mulheres puderam fazer ouvir a sua voz, promover e tornar visíveis as suas ideias através do recurso à imprensa.

No tocante à educação feminina, Pusich preocupou-se particularmente com as meninas de uma classe média e baixa, porque eram as que existiam em maior número na sociedade e as mais necessitadas. Em seu entender, esta questão não se colocava em relação às meninas das classes nobres e abastadas, pois estas tinham uma maior facilidade em aceder a uma boa educação por interesse e possibilidades dos pais.

No geral, as senhoras continuavam a ser o sexo desfavorecido, carecendo de formação, e as poucas que a tinham aprendiam tudo à superfície, valorizando aspetos que estavam tradicionalmente mais associados à mulher, como a moda, a aparência e a vida em sociedade. Por outro lado, descuravam-se outros conteúdos que lhes permitiriam discutir diferentes assuntos e questões mais profundas, que implicassem conhecimentos mais teóricos. A própria Pusich dá-nos conta destas características das senhoras da época, referindo, em tom irónico, que:

Aparecem n’uma sociedade, ostentam uma brilhante conversação, fazem elegante figura… encantam os espectadores… seduzem… adquirem nomeada, estudam todas essas apparencias phosforicas; vae um sabio entrar com ellas em discurso… onde está o espirito d’essas fascinadoras beldades?… Evaporou-se! Nem sabem dar uma razão do que dizem!… (Pusich, 1849a, n.º 4, p. 26)

Atendendo a esta realidade, Pusich defende a necessidade de instruir o sexo feminino e, em vários momentos do seu discurso, apresenta as vantagens que daí podem advir para a sociedade. Por exemplo, no número 39 de A Assembléa Litteraria, aponta a mulher, no seguimento de Verney, como a primeira educadora do homem, sendo ela quem o forma e lhe transmite os primeiros ensinamentos. Neste sentido, é imperioso investir na ilustração feminina, até porque a influência da mulher no homem não se limita apenas à infância, mas estende-se ao longo da vida enquanto sua companheira: “directa, ou indirectamente são as mulheres que movem as acções dos homens (geralmente fallando) negal-o fora um sophisma inadmissivel, um absurdo intoleravel” (Pusich, 1850a, n.º 39, p. 58).

Esta ideia da mulher como a educadora por excelência será retomada alguns anos mais tarde por António da Costa de Sousa Macedo (1824-1892), o primeiro ministro da Instrução Pública, que se assumiu como um defensor da educação feminina no século XIX, lamentando a sua reduzida escolarização e defendendo inclusive que, “na duvida, a educação do sexo feminino seja preferida á do sexo masculino. Bastaria a rasão de que um homem educado póde deixar os filhos por educar; uma mulher, não os deixará de certo” (Costa, 1870, p. 127).

Outra importante vantagem que, na opinião de Antónia Pusich, a educação das meninas pode trazer à sociedade é o facto de diminuir a mendicidade e de retirar das ruas muitas jovens desprovidas de meios que lhes permitam o acesso à educação. Desta forma, evita-se que estas raparigas despendam a sua vida e o seu tempo em atividades impróprias e funcionem como um mau exemplo para as meninas honestas. A educação é vista, por Pusich, como uma causa social, ficando bem evidente a sua preocupação com os mais desfavorecidos e o seu carácter interventivo em prol da beneficência.

A intervenção pública de Antónia Pusich não se limita à denúncia dos problemas existentes na sociedade; ela pensa também em soluções e vai mais além ao propor medidas. Por exemplo, no que toca à falta de estabelecimentos para o ensino feminino, Pusich defende que o Governo crie escolas próprias para este sexo, imputando-lhe a responsabilidade de intervir ativamente em favor da instrução feminina e, consequentemente, de assegurar a moral na sociedade. Como sugestão e de forma a rentabilizar os meios já existentes, defende que se convertam os conventos em colégios de educação, em vez de se extinguirem, propondo assim que o Estado assegure a educação das mais desfavorecidas. A sua intervenção vai mais longe e apresenta o caso concreto do Convento das Mónicas, que, estando em bom estado, poderia ser “uma excellente casa para educação de Meninas, sendo as mesmas Religiosas mestras! Parecia-nos que o estado lucraria muito mais em converter alguns Conventos em casas de educação, e faria um grande bem á sociedade” (Pusich, 1850b, n.º 39, p. 60).

Para além da necessidade de se criarem infraestruturas para assegurar a instrução feminina, é também fundamental refletir sobre os agentes deste ensino. Pusich não deixa de marcar a sua posição relativamente a este tema, entendendo que, no geral, as mulheres não dispõem de conhecimentos suficientes para assegurar a formação das meninas e que as poucas que os possuem não estão disponíveis para assumir esta função: “Poucas senhoras sabem escrever bem; não digo só do bem lançado, ou da bonita fórma da letra; mas da orthographia, e mais circumstancias precisas; poucas senhoras sabem fallar o patrio idioma, porque não aprenderam grammatica. E como hão de ensinar os outros?” (Pusich, 1849a, n.º 4, p. 26). Atendendo ao facto de não terem a formação literária necessária, sugere que estas senhoras não ensinem a ler, escrever e contar, limitando-se a ministrar conteúdos próprios do seu sexo, como coser, fiar, bordar e música.

Neste sentido, enquanto não houver mulheres capazes de assegurar o ensino das primeiras letras, Pusich considera que este deveria ficar a cargo dos homens, que ensinariam as meninas a “ler, escrever, Arithmetica, Grammatica, Historia, Geographia, Desenho, etc., e estas a quem eles hoje ensinam sejam as que ámanhãa os succedam” (Pusich, 1849a, n.º 4, p. 26). De entre os conteúdos ministrados, Pusich dá muita importância à educação moral, considerando que esta é a base da formação dos espíritos. No seu entender, as pessoas mais indicadas para ministrar a educação moral são as freiras, a quem ela se dirige no sentido de ensinarem a Religião pura e santa, incentivando-as ainda a escreverem sobre assuntos religiosos, matéria de grande utilidade para a sociedade.

A educação moral tem a vantagem de “abrandar os genios mais duros, e mudar muitas vezes, ou pelo menos modificar as mais ferinas e miseraveis condições” (Pusich, 1849a, n.º 4, p. 27), constituindo-se como uma alternativa ao tradicional castigo físico, que Pusich claramente condena: “Desejariamos ver de uma vez para sempre banido da sociedade o methodo só usado por ignorantes, e crueis, de castigar com pancadas, arruinando a saude, e o espirito dos adolescentes, que assim acostumados zombam da palavra, e não fazem caso da pancada” (Pusich, 1849a, n.º 4, p. 27).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antónia Gertrudes Pusich foi uma figura marcante no panorama cultural oitocentista, desempenhando um papel importante na defesa da instrução em geral e, particularmente, da instrução feminina. Tendo deixado uma obra diversificada nos domínios literário, jornalístico, pedagógico e musical, entre outros, a sua audácia é visível principalmente nas funções que assumiu no âmbito do jornalismo, ao fundar, dirigir e colaborar em diversos periódicos.

Enquanto jornalista e redatora, não hesitou em expressar claramente a sua opinião, demarcando-se de qualquer influência. Como a própria assumia, “para dizer-mos o que entendemos não consultamos jámais a razão alheia; dizemos apenas o que sentimos, sem formulas de eloquencia, mas com verdade, e consciencia erros de entendimento poderemos ter muitos: de vontade nenhum” (Pusich, 1850b, n.º 39, p. 61).

O pioneirismo de Pusich fica patente na defesa da educação popular, em especial, da educação feminina, terreno ardiloso, tendo em conta a visão da mulher que grassava na sociedade da época. Defendia um ensino público e gratuito e propunha a criação de escolas, pois entendia que a instrução era o caminho que conduzia à felicidade e à prosperidade dos povos.

Em suma, tendo em conta o seu legado, podemos afirmar que Antónia Gertrudes Pusich foi uma mulher à frente do seu tempo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recepção: 26/06/2018

Aceite para publicação: 15/10/2018