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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

DIÁLOGOS

As mulheres na História e nas histórias

Irene Pimentel1e Wassyla Tamzali2

Historiadora e feminista

Escritora e feminista


Um encontro em Lisboa, a 2 de Dezembro de 2013, reuniu no mesmo palco Wassyla Tamzali e Irene Pimentel: “Les Femmes dans l'Histoire et dans les histoires: du Féminisme comme une idéologie de la Libération?”, título que abraçou o debate, suscitou um diálogo a duas vozes, que aqui vos deixamos. Um agradecimento especial ao Institut Français du Portugal que nos proporcionou e ao público ali presente, este “tête­‑a­‑tête” entre as duas humanistas. Apontados os microfones, eis que começa a sessão…

 

Irene Pimentel

Como sabem, até 25 de Abril de 1974 a situação das mulheres em Portugal era baseada no Código Civil napoleónico de 1867, que, por exem­plo, colocava a mulher numa situação de obediência face ao marido, que era o chefe de família. Isso aconteceu até 1974.

Enfim, em 1876 houve um novo Código Civil, mas que na prática seguiu o de 1867; tinha uma cláusula que se chamava “O Depósito da Mulher Casada”. O que é isto? Se a mulher, por qualquer razão, quisesse sair – por maus tratos, por exemplo – da casa conjugal, o marido podia recorrer ao juiz, e o juiz obrigava essa mesma mulher a retornar à casa conjugal, onde tinha dever de obediência ao marido. Como devem imaginar, isto era uma coisa absolutamente inacreditável, impensável hoje. Sempre que falo disto nas escolas, as jovens a partir de determinada altura ficam de boca aberta. E eu acho que essa questão é fabulosa, porque é outro mundo – não tem nada a ver com o que se passa hoje.

Por outro lado, como sabem, havia outras regras: as mulheres não podiam afiançar, não podiam fazer comércio, não podiam exercer direitos de autor, não podiam sair do país, sem o consentimento do marido. Havia também uma lei muito complicada, essa foi abolida em 1959, que era a Lei da Nacionalidade – uma portuguesa que se casasse com um estrangeiro ficava automaticamente com a nacionalidade estrangeira; ou uma estrangeira que se casasse com um português ficava automaticamente com a nacionalidade portuguesa. E portanto sujeita às leis do Código Civil e do Código Penal português.

A Constituição de 1933 – é a constituição de Salazar, que vigorou até 1976 – tinha uma cláusula que dizia, como tudo, aliás, no Estado Novo, que não poderia haver preconceitos ou privilégios consoante a religião, a raça (usava­‑se o termo “raça”) e o sexo. E depois tinha uma pequena cláusula, que era a excepção a esse princípio de igualdade constitucional, que dizia “excepto nas mulheres, em razão de natureza e do pai de família”. Ou seja, uma razão biológica, e uma razão ideológica – que era a lei de família e o direito de família – fazia com que as mulheres não tivessem os mesmos direitos que os homens.

Salazar, aliás, consciente disto, tem muitas frases, muitos discursos, em que tenta dourar esta pílula, dizendo que as mulheres em Portugal não têm razão para se queixar, porque têm um papel de utilidade social – que era qualquer coisa interessante na altura, porque muitas das feministas do início do século lutaram muito por isso, para que houvesse o reconhecimento da função social da mulher no seio da família. Salazar dizia então que o papel dela era muito mais bonito que o do homem, porque justamente tratava das crianças e tratava do seu marido em casa.

Por causa destas leis, por causa desta norma na Constituição – como sabem muito bem, só para dar alguns exemplos – as mulheres não podiam ser magistradas judiciais, nem diplomatas. Isto é curioso porque existem hoje [mais] magistradas judiciais do que homens, por exemplo – o que é muito interessante porque até 1974 era proibido...

Por outro lado, havia outras leis também: a professora primária tinha de pedir autorização ao Ministério da Educação se quisesse casar­‑se, e tinha de provar que o marido com quem se iria casar era da mesma classe social, ao fim e ao cabo, era adaptado àquela função de professora primária; e por outro lado, além de ser uma ideologia que queria que a mulher retornasse ao lar, após anos de decadência do regime republicano e liberal, como se dizia, apesar disso havia normas que pareciam bastante contraditórias. Por exemplo, as telefonistas não podiam casar­‑se; em 1939 houve um grande movimento, até da Igreja Católica e de alguns elementos do regime, para que elas pudessem casar; e as enfermeiras dos Hospitais Civis também não podiam casar­‑se – pode depois perguntar­‑se porquê: era uma contradição numa ideologia que afirmava que o objectivo da mulher era precisamente o casamento, não é? E só a partir de 1962 as enfermeiras dos Hospitais Civis puderam casar­‑se.

Havia muitas outras leis que eram para os homens e para as mulheres, mas dada a posição subalterna e de opressão da mulher no seio da família, eram muito piores para as mulheres. Por exemplo, a lei do divórcio. Como sabem, a partir de 1940 deixou de haver o divórcio como acto civil, passou a ser só religioso, e portanto as pessoas não se podiam divorciar, e portanto não se podiam casar de novo. O que significa que muitas destas famílias tinham muitos filhos ilegítimos de relações que não podiam legalizar. E ser filho ilegítimo em Portugal era uma coisa terrível, para quem ainda se lembra.

Quando chega o 25 de Abril, tudo isto muda. E podemos até – isto foi dito muitas vezes – garantir que as novas leis, a nova Constituição, o novo Código Civil de 1976, era melhor do que qualquer um num país europeu. É normal, quando há uma destruição de um regime com um processo revolucionário, há uma modificação que faz com que nós tenhamos saltado vários passos.

Ainda não falei, por exemplo, de que as mulheres, curiosamente – só digo isto porque não é muito conhecido – as mulheres durante a Primeira República, liberal, portuguesa, não podiam votar. Ou seja, havia uma lei em 1911 que dizia que só os chefes de família poderiam votar. E então há uma mulher, a Carolina Beatriz Ângelo, que era chefe de família porque era viúva, e disse “Eu estou nestas condições, de maneira que eu vou votar”. E votou. Bastou isso para que logo a seguir os homens da República mudassem a lei: em 1913, a lei passou a especificar que só os homens chefes de família podiam votar em Portugal.

Curiosamente, foi a ditadura militar de 1926 que atribuiu, ou concedeu, pela primeira vez às mulheres o voto para as Juntas de Freguesia. Não havia votos para as Câmaras Municipais, nem para a Assembleia Nacional. E foi em 1931. E depois foi o regime salazarista, o regime ditatorial, que concedeu o direito de voto a algumas mulheres, desde que pagassem um determinado imposto de contribuição predial – portanto, em função da sua fortuna, em função da chefia da família também, e em função da sua educação. Teria que ter um curso do ensino secundário e um curso do ensino superior. E porquê isto, a partir de 1933? E mais, a partir de 1934 as mulheres também podem ser eleitas e podem ser eleitas para deputadas. As primeiras mulheres da Assembleia Nacional, em 1934, são a Maria Guardiola, a Domitila de Carvalho e a Cândida Parreira. Isto porquê? Pelas mesmas razões que a República não tinha dado o voto às mulheres, nem aos analfabetos – sendo que as mulheres eram o grosso dos analfabetos. Porque considerava que os analfabetos e as mulheres iriam votar, se pudessem, automaticamente nos monárquicos, e seriam mais sensíveis à influência da Igreja Católica.

Evidentemente, com o 25 de Abril, passámos a ter sufrágio universal. Por acaso, houve uma [lei] que se esqueceu: só em 1976 foi abolida a autorização que os maridos tinham para abrir a correspondência das mulheres. Ficou esquecida, nitidamente. Mas, como sabem, a primeira manifestação foi desde logo a questão do divórcio: homens e mulheres foram para a rua, fizeram um grande comício no Pavilhão dos Desportos a exigir o divórcio. Foi a primeira grande questão. E todos os saltos qualitativos e todas as leis no sentido da igualdade foram sucessivamente promulgadas.

Aqui, eu queria dizer só uma coisa: é que, de uma certa forma não se pode dizer que estas leis tenham sido reivindicadas de baixo para cima. Ou seja, foi qualquer coisa instaurada de cima para baixo. À partida, este é um tema que pode ser polémico e pode ser discutido. Por outro lado, ainda hoje a Wassyla Tamzali, da qual eu sou amiga no Facebook, publicou aí um texto maravilhoso da Maria Velho da Costa, que acabou de ganhar o Prémio Carreira da Associação Portuguesa de Escritores – é um texto maravilhoso sobre as mulheres na Revolução, e uma das partes justamente é isso: é que ela retrata a situação das mulheres no Estado Novo e na ditadura, e depois o grande salto que as mulheres deram, sobretudo em determinados campos. Ou seja, não foi a reivindicar igualdade. Foi ocupando casas, por exemplo – mulheres que viviam nos bairros de lata e iam ocupar casas; elas estiveram na dianteira, em muitas greves, nas fábricas. De repente, de facto há um preenchimento do espaço público pelas mulheres portuguesas. A grande frase que define o regime salazarista, quanto a mim, é “a cada um o seu lugar” – é uma frase do ministro da Educação Nacional em 1936 – que significa que ninguém muda de lugar na sociedade, não há mobilidade social, e as pessoas que nasceram para ser aquilo, vão ficar eternamente aquilo. E as mulheres evidentemente tinham o seu espaço, que era o espaço privado, e os homens o espaço público.

Eu agora vou parar com a minha conversa, porque estou desejosa de ouvir a Wassyla Tamzali falar justamente sobre outra perspectiva.

 

Wassyla Tamzali

Sim, essa é a história das mulheres um pouco em toda a parte. Em França houve porventura uma aceleração das coisas, mas poderia contar­‑se praticamente a mesma história.

Na Europa e no Ocidente, como aliás em todo o mundo, há poucos países, e grupos de países, que põem em causa a igualdade. Mesmo nos países em que ela não é aplicada, ela é pelo menos aceite, ainda que a contra­‑gosto, mas é aceite.

Ora, deve saber­‑se que, na região que me interessa, ou seja, a dos países do sul do Mediterrâneo – aos quais se chama árabes e muçulmanos, mas que não são realmente árabes nem são realmente muçulmanos – nesses países a querela da igualdade ainda não terminou. Ainda existe essa ques­tão de saber se os homens e as mulheres são iguais ou devem ser consi­de­rados iguais na sociedade. É esse o ponto em que estamos, essa querela.

Portanto, enquanto estava a ouvi­‑la, pensava que, apesar de tudo, essa legislação representava também a sociedade, e o nível de consciência da sociedade – portuguesa, mas também francesa, etc. Ora, lembrei­‑me da situação do meu país, onde há verdadeiramente um conflito aberto, uma separação, entre as leis e a consciência das mulheres, e até dos cidadãos homens, por vezes, e ao mesmo tempo um conflito entre diferentes grupos da população no interior desse país. Já não estamos na situação ocidental, que eu conheço bem, ao nível da história e da política. E é verdade que não podemos comparar a situação em que nos encontramos por lá, que são situações de conflito aberto e de violência frontal, com a situação ocidental. Eu sei que houve mulheres que foram presas, foram tratadas como doidas, foram internadas em sanatórios psiquiá­tricos, foram mortas, etc, e que por esse lado nem tudo foram rosas. Mas creio que esse conflito na sociedade não foi tão importante, nem foi tão forte em todo o caso, ou esteve tão presente, para explicar a situação das mulheres, que nós, que estamos do lado de dentro, não conseguimos compreender.

Portanto, apresentar a situação actual do mundo árabe que vocês vêem através da televisão – todas aquelas imagens dos Salafitas, aquelas mulheres veladas, aquela violência, etc, os casamentos de crianças, de meninas de oito anos, aquelas leis tão regressivas, eu hesito em dizer que seja um regresso à tradição. E como a Irene é historiadora, decidi aproveitar a sua presença para afinar um pouco o meu ponto de vista.

Essa violência contra as mulheres só pode explicar­‑se através de elementos da modernidade desses países, ou seja da época presente, da actualidade. Não é um regresso à tradição.

O que é claro na história das mulheres árabes e muçulmanas – ainda que eu tenha problemas com essa definição – é que as mulheres sempre foram moeda de troca para os diferentes poderes. O exemplo que eu mais gosto de contar é o da revelação do Profeta. A revelação do Profeta – o texto mais antigo que nós temos do Profeta, a bem dizer – distancia­‑se bastante da história de Adão e Eva e diz que o homem e a mulher foram concebidos ao mesmo tempo, pecaram ao mesmo tempo e serão expulsos do paraíso ao mesmo tempo. Mas abandona a ideia do pecado, abandona a ideia da pecadora, abandona a ideia de que a mulher foi concebida a partir de uma costela de Adão – o que apesar de tudo é um progresso ético bastante importante para as mulheres.

No início da nossa revolução argelina, nós não éramos feministas porque pensávamos que o trabalho também era para as mulheres. Essa era uma das grandes ideias. Na realidade pensávamos que o trabalho iria modificar a relação entre homens e mulheres. Em vez de o trabalho alterar a relação entre homens e mulheres, o que aconteceu foi o contrário: um patriarcado extremamente rígido, tanto mais rígido quanto nasceu numa região do mundo que certamente o inventou, ou seja, o Mediterrâneo. Os gregos, além de inventarem a filosofia, instauraram a religião fálica; e a religião fálica não era a religião dos berberes, era a religião oficial.

Quando visitei o museu de Herculanum, via­‑se diante das casas uns sexos de pedra – e não eram casas de lanterna vermelha, longe disso. Eram casas de notáveis, com um sexo sobre a entrada da porta. Ora, a Igreja Católica não alterou muito esta aproximação à mulher e no, digamos, espaço muçulmano – porque não tem a ver com a religião muçulmana – isso foi sacralizado. Ou seja, houve um desvio da religião muçulmana... Pode dizer­‑se o que se quiser, mas não há uma religião boa e uma religião má – a religião é aquilo que nós fazemos. A religião não é algo que venha do céu; ela vem da terra, é feita por homens, por mulheres, ela só existe da maneira como a fizeram.

Esse Islão terrível, horrível, que se vê hoje em dia é o Islão. Não se pode dizer que a Inquisição não é a religião católica. A Inquisição é a religião católica – é uma época, com uma história. É aí que é preciso fazer história, e é muito importante que se historicize algo, porque senão o entendermos no essencial, nunca chegaremos a compreender. A condição das mulheres é muitas vezes colocada numa base essencial, ou seja biológica, a­‑histórica. Isso não é verdade – ela não é biológica, nem a­‑histórica. Ela é trabalhada pela história, pela relação de forças.

Sobre a revolução, antes de mais devo dizer­‑vos que tenho muita esperança na revolução tunisina, sobretudo nesta, e de certo modo também na revolução egípcia, porque nada voltará a ser como dantes, mesmo que os militares sejam obrigados a permanecer no poder. Mas quando há seis milhões de pessoas na rua não se pode tomar o poder como se não houvesse ninguém.

A revolução tunisina interessa à feminista que eu sou, porque é a primeira revolução existencialista no mundo árabe. São países que se bate­ram pela libertação nacional, contra o colonialismo, contra o imperialismo, mas que nunca se bateram pela liberdade dos homens e das mulheres. Nunca. A guerra de libertação nacional conseguiu triunfar, mas foi obrigada no interior a fazer guerra contra a liberdade. A história ensina­‑nos isso, de uma certa maneira. Porquê? Porque para combater contra o outro, é preciso ser­‑se ele mesmo – não há homens, não há mulheres, não há ricos nem pobres, nem camponeses ou citadinos, só há o argelino combatente. E isso continua a fazer parte da matriz da nossa identidade.

A revolução é algo de diferente da revolta; a revolução é, como diz Alain Badiou, quando num mesmo espaço, num local, se encontram categorias sociais diferentes. Isto é, se tivermos somente estudantes a vir para a praça, é uma manifestação de estudantes; se vierem os operários, é uma manifestação de operários; mas se tivermos ao mesmo tempo, os estudantes, os operários, os médicos, etc, e se tivermos as mulheres, se vierem as mulheres, então há uma revolução. E é um pouco o que se viu nos países árabes. Quando se pensa no Bahrein, quem esperava uma revolução no Bahrein? E as mulheres vieram, completamente veladas.

Por isso, a revolta tunisina pôde transformar­‑se nessa revolução; há que compreender que foi porque a sociedade tunisina era uma sociedade preparada. Porque as revoluções árabes são surpreendentes, sim, mas é preciso saber que antes da revolução, durante 50 anos – quando eu digo 50 anos, refiro­‑me ao período da descolonização, o período pós­‑moderno, pós­‑revolucionário, pós­‑colonial – todos os países estavam libertados no final dos anos 1950/60. Portanto esses países vão pela primeira vez falar de liberdade e ter a adesão de grupos que resistiram durante 50 anos ao poder instalado. Porque é preciso saber­‑se que esse poder exercido pelos governos autoritários, e que aliás foram depois apoiados pelos governos ocidentais, fizeram passar a ideia de que eram laicos e de que eram um baluarte contra o islamismo. O que era completamente falso. A tal ponto falso que nos deixou em dificuldades.

Portanto, o que é muito interessante para as mulheres é que essa revolução libertária – os países árabes pela primeira vez ousam esse sentimento de liberdade, e os jovens, uma força formidável, porque eram julgados superficiais, pouco interessantes, não se interessavam pela política, e foram eles que pegaram na revolta – e esse sentimento de revolta, quando passa a revolução é dizer não ao rei, ao poder.

Mas para as mulheres é particularmente interessante. Eu deparei com o problema do feminismo enquanto ideologia da libertação, e é um pouco o defeito, a fraqueza, do movimento feminista magrebino em que participo. A fraqueza desse movimento é que nós lutámos pela igualdade – somente pela igualdade, não pela liberdade. Parece­‑me uma questão muito subtil e que ilumina o movimento feminista, ao qual estou muito ligada, porque o movimento feminista só se pode explicar por essas duas coisas: igualdade e liberdade.

E Simone de Beauvoir, que continuo a ler, foi ela que introduziu esse formidável esclarecimento de que o feminismo é antes de mais a libertação do sujeito, de si mesmo. E nós, as mulheres árabes e muçulmanas – mesmo que não sejam crentes, e mesmo que não sejam árabes – não ousámos pôr em causa a família. Mas não as culpo por isso. Penso que, se não o ousámos, foi porque a estratégia do poder nos países árabes foi de modo a deixar a família e o domínio privado a cargo dos homens; e é assim que se explica a perenidade da abominação das mulheres, porque são os homens da família que exercem pleno poder sobre as mulheres em nome do poder, e desse modo o poder tem pleno poder sobre a cidade. É uma troca. O poder mantém o controlo da cidade, ou seja, o poder político dá aos homens o poder sobre a família.

Houve uma expansão da violência no domínio público. O domínio público, na Argélia, na Tunísia, em Marrocos, é muito perigoso para as mulheres. É um meio perigoso – como deveria ser para uma mulher nas cidades da Idade Média. A mulher é verdadeiramente a presa. E creio que os governantes não fazem nada para melhorar isso – porque quanto mais violenta é a situação, mais eu posso justificar a imposição de costumes. Mas é bastante perigoso.

Durante 50 anos, se quisermos, os poderes instalados não tiveram nenhuma ideia senão a de destruir as ideias de liberdade, as ideias de modernidade, que foram transportadas pelos movimentos de descolonização. Porque [estes] foram mobilizados pelas elites colonizadas, que aprenderam nas escolas os elementos da democracia, da liberdade. A única obsessão do poder instalado é a de conservar o poder. E para isso era preciso, evidentemente, matar todas as veleidades de liberdade que pudessem nascer. Pelo menos na primeira geração, a de 1967. Em 1962 foram deslegitimadas todas as pessoas instruídas, etc. Mas depois eles fizeram filhos, enviaram­‑nos para a universidade e... para a prisão. Digamos que há mesmo essa vontade de matar a liberdade. E a revolução tunisina, quando eclodiu, foi uma exclamação.

 

Notas

1Irene Pimentel é historiadora e feminista, prémio Pessoa (2007), licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, mestre em História Contemporânea (Século XX) e doutorada em História Institucional e Política Contemporânea pela FCSH/UNL. Realizou vários estudos sobre o Estado Novo, o período da Segunda Guerra Mundial e a situação das mulheres em Portugal durante a ditadura. Da sua já vasta bibliografia, salientamos História das Organizações Femininas do Estado Novo (Círculo de Leitores, 2000), que obteve o prémio Carolina Michaëlis, e A cada um o seu lugar, A política feminina do Estado Novo (Temas e Debates, 2011).

2Wassyla Tamzali, escritora e feminista, nasceu na Argélia em 1941. Advogada, e funcionária da UNESCO, onde durante 20 anos foi responsável pela direcção dos direitos das mulheres, em 2001 regressou à Argélia onde utiliza o seu tempo entre a escrita e a participação em encontros internacionais sobre as questões da igualdade de género, da identidade, e do Islão. Da sua bibliografia, destacam­‑se Une femme en colère: Lettre d'Alger aux européens désabusés (Gallimard, 2009) e Histoires minuscules des révolutions arabes (Chèvre­‑feuille étoilée, 2012).