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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.48 Lisboa dez. 2023

https://doi.org/10.22355/exaequo.2023.48.15 

Recensões

Assédio: aproximações sociojurídicas à sexualidade, de Ana Oliveira. Lisboa: Imprensa de História Contemporânea, 2022, 527 pp.1

*Universidade Aberta, 1250-100 Lisboa, Portugal tjoaquim@uab.pt

Assédio: aproximações sociojurídicas à sexualidade. Oliveira, Ana. Lisboa: Imprensa de História Contemporânea, 2022. 527 pp.p.


O livro Assédio: aproximações sociojurídicas à sexualidade resulta da tese de doutoramento de Ana Oliveira em Estudos Feministas na Universidade de Coimbra. Não pretendo retraçar o que ele encerra, convoca e provoca, dado que é um trabalho denso e extenso dividido em 3 partes e 7 capítulos, para além da introdução e das últimas considerações, cujo título é “Não-lugar-de ser”, que aparecem após as “notas finais” (p. 439).

Ao pensar na apresentação deste trabalho, esta veio-me sob a forma de takes, como no cinema:

  • Take 1. sobre a criação da área de Estudos sobre as Mulheres e também, nela, das questões sobre o assédio enquadrado neste trabalho no âmbito do ”Feminismo de Estado” (vd. parte II, cap. 4);

  • Take 2. que incide sobre as questões que se colocam na relação dos feminismos com o sexo, a sexualidade, a prostituição, a pornografia;

  • Take 3. sobre as questões da vulnerabilidade.

Take 1

Ao ler este trabalho devo mencionar que me senti bastantes vezes numa posição ambivalente, desconfortável, como um novelo com diversos fios à semelhança da capa do livro na forma intrincada como as imagens se ligam e desligam. Sensação de ambivalência sobre questões levantadas sobre o assédio (em particular), sobre o sexo e a sexualidade, que advém provavelmente de uma geração que assistiu ao aparecimento dos primeiros trabalhos sobre este tema em Portugal (vd. Botão 1989; Amâncio e Pedroso Lima 1994) e o contexto em que surgiram. Tenho também, por isso, alguma dificuldade em entender a noção de “feminismo de Estado" a partir da minha experiência num mecanismo para a igualdade (CCF/ CIDM) e da forma como vi essa instituição como “um sujeito deslocado”, questionante, vulnerável, frágil, feito de dedicação a causas e movimentos, mesmo tendo de cumprir diretivas políticas vindas de instituições nacionais e internacionais. Esta noção de “sujeito deslocado” dificulta-me talvez a adesão à noção de “governamentalização do assédio” (vd. Parte II, cap. 4). Feitas estas ressalvas, a minha leitura deste trabalho passa por outros contornos que não os que acima enunciei e que têm a ver com a afirmação da Ana Oliveira de que este é um livro desassossegado : “perante o sexo, não tanto face à existência de mulheres [...] mas perante a aparente necessidade de que haja mulheres” (p. 85). Ideia de desassossego de que gosto muito e que se liga com esta interrogação de Adriana Bebiano: ”supondo que se pode ensinar a indisciplina, não se tornará assim a indisciplina disciplinada?” (cit. p. 87). Pergunta pertinente e que não posso deixar de associar ao próprio projeto de constituição da área de Estudos sobre as Mulheres, de Género e Feministas e à necessidade de diferendo (no sentido de Lyotard) e que tem a ver com a noção de desassossego que referi anteriormente e talvez porque se habita, nas palavras da autora, “o tempo do Ainda-Não” (p. 85).

Por outro lado, deve ser afirmado que a configuração “nós, as mulheres” é fluida e que foi o próprio feminismo, na minha perspetiva, que permitiu a sua existência, mesmo se no trabalho de Ana Oliveira a abordagem aponta para “em que medida é que a feminilidade, que justifica o papel de proteção, se torna a matriz que permite sustentar que um discurso é falso ou verdadeiro?” (p. 82) ou “Em última instância, este argumento sustenta pistas sobre o modo como a normação do assédio sexual (e dos crimes sexuais, em geral), ao constituir-se um dispositivo de veridicção da feminilidade, revela-se um aparato do patriarcado” (p. 83). Penso que se pode afirmar, de forma lata, que é em torno desta problematização que se elabora o percurso deste longo trabalho.

Percebe-se o questionamento a esse “nós, as mulheres” feito pela crítica feminista, pelo desassossego que ela provoca, pela desestabilização das categorias e dos essencialismos, pela abertura para a polifonia enunciada na noção de “feminismos hifenizados” (João M. de Oliveira, cit. p. 69) e, no entanto, não posso deixar de me confrontar no meu trabalho, na minha vida, com as mulheres do Irão, do Afeganistão, da Palestina e tantas outras. Com a violência doméstica. Com o valor do cuidado. Há pois uma história encarnada nesses momentos que o presente - na noção de como se escreve a história - não consegue transmitir ou dá-lhe configurações que não são as que, de certa forma, foram vividas e trabalhadas na descrição de momentos e acontecimentos: discrepâncias de tempos e de corpos.

Take 2

O 1º capítulo começa com a citação de Jane Gallop (1997) ”o feminismo inventou o assédio sexual” (p. 29) e o trabalho de Ana Oliveira tenta perceber a forma como se foi criando esta noção de “assédio”. Nas palavras da autora, “impulsionada pela disciplinarização académica e pela institucionalização política do feminismo” (ibidem), será a partir desta enunciação que o livro em análise vai percorrer não só “os regimes jurídicos da subordinação laboral e sexual” (cap. 2) como o seu cruzamento com o percurso que os mecanismos para a igualdade fizeram nesta área, a saber a CITE sobre as questões laborais, assédio no local de trabalho, maternidade, gravidez, etc., e a CCF, ambas tendo produzido documentos sobre o assédio.

A questão, parece-me, é como é que este percurso tanto científico como político e jurídico em torno do assédio se baseia no sexo e, não, na sexualidade, a partir de uma visão das feministas (segundo Ana Oliveira): a da mulher como vítima de discriminação e do homem como predador. Estas visões são teoricamente pensadas e longamente expostas no texto, em particular, a partir das obras de Andrea Dworkin (1989) sobre pornografia e de Catharine Mackinnon (1979), incidindo na dominação masculina e sexual (violação, incesto e pornografia). Parece-me que teria sido importante a noção de violência simbólica e dominação masculina de Bourdieu (1998).

Questões de Dworkin, de forma lata, sobre a pornografia: as mulheres vistas como objetos sexuais num contexto de “heterossexualidade compulsória” (Rich 1980) e em torno das questões sobre a prostituição que dividem até hoje as feministas. É, de certo modo, nesta leitura do ”sexo” como fundamento que muita da produção de estudos e de legislação se baseia, numa zona incerta que lida com a intimidade e também com a necessidade de confessar / confissão (de dizer a sexualidade, de a tornar clara …). Muitos dos indícios sobre a figura do assédio sexual e moral (Foucault 1994) têm aqui o seu fundamento.

Na minha leitura deste trabalho de Ana Oliveira, direi que ela passa dessa formação inicial pelas autoras antes citadas para uma outra configuração exposta em posições como a de Paul B. Preciado no corte entre homens e mulheres (altamente reforçado pelas Ciências Sociais) nas últimas considerações (p. 447), em que a autora explica que quis estudar o “assédio não como problema social, mas sociológico” ou, na designação de Preciado (2015), “essa ansiosa obsessão ocidental [...] de querer reduzir a verdade do sexo a um binómio” (p. 456) e questionando o sistema judicial como dispositivo de regulação da sexualidade e também a tradição feminista a partir dos seguintes pressupostos: a) A presunção da heterossexualidade - dominação; b) a essencialização da sexualidade; c) o biologismo da sexualidade; d) o regime totalitário do sexo (pp. 450-451). Estes pressupostos, a partir da leitura que Johanna Oksala (2012) faz da noção de governamentalidade de Foucault, acabam por a levar a concluir que “as mudanças operadas sobretudo em torno do sujeito feminino não são um triunfo do feminismo, mas do neoliberalismo” (p. 461).

Take 3

Creio que se pode integrar esta investigação de Ana Oliveira na tarefa enunciada por Foucault (1994) de “desfazer o sexo” (p. 455) para abordar a noção de vulnerabilidade dos sujeitos (p. 466), em que, na perspetiva, por exemplo, de Butler (2004), existe uma deslocação de um sujeito autónomo, independente (como marcas de construção da noção de indivíduo na filosofia ocidental), para a noção de interdependência dos seres que a autora refere, defendendo “o sujeito vulnerável universal que permite destronar a família como instituição social primária, responsável por suprir a dependência dos sujeitos” (p. 469), ou ainda, na frase (quase) final do livro, “que os sujeitos se subjetivassem e se cumprissem de forma diferente nas suas relações sociais, laborais, de intimidade” (p. 469).

Para concluir, parece-me difícil dar a perceber a extensão do trabalho realizado por Ana Oliveira nesta sua investigação sobre o assédio e as formas de governamentalização do sexo, na oposição entre homens e mulheres, nos saberes e poderes que fundamentam as suas práticas. Quero ainda realçar a coragem teórica e cívica para questionar o discurso jurídico e as suas práticas, sabendo também as fragilidades que a área do Direito tem na sua visão dos corpos e da sexualidade como, nomeadamente, Teresa Beleza demonstrou (1993). A coragem de questionar ainda, e em simultâneo, as correntes feministas anti pornografia e anti prostituição, que confundem muitas vezes sexismo com sexualidade.

Questiono ainda a ideia de “sujeito vulnerável universal”, não só porque as vulnerabilidades são múltiplas, singulares e a sua universalidade é posta em causa, mas porque, na noção de sujeito definido como algo estável, o inconsciente traça linhas inesperadas: o desejo? Este seria outro trabalho ou um trabalho futuro de ainda não para um lugar de ser, utilizando a referência da autora (p. 455).

Estamos, pois, perante um trabalho desassossegado que busca interlocutores e interlocutoras e que talvez os e as encontre de forma inesperada. As Ciências Sociais, os Estudos sobre as Mulheres, de Género e Feministas só podem estar gratas a esta investigação e ao desafio que nela se diz.

Referências bibliográficas

Amâncio, Lígia, e Luísa Pedroso Lima. 1994. Assédio sexual no mercado de trabalho. Lisboa: CITE. [ Links ]

Beleza, Teresa. 1993. Mulheres, Direito, Crime ou a Perplexidade de Cassandra. Lisboa: AAFDL. [ Links ]

Botão, Maria Alice. 1989. Assédio sexual no local de trabalho. Lisboa: CCF. [ Links ]

Bourdieu, Pierre. 1998. La domination masculine. Paris: Éditions du Seuil [ Links ]

Butler, Judith. 2004. Undoing Gender. New York/London: Routledge. [ Links ]

Dworkin, Andrea. 1989. Pornography: Men Possessing Women. New York: Penguin Books. [ Links ]

Foucault, Michel. 1994. História da Sexualidade. Tradução de Pedro Tamen. Lisboa: Relógio d’Água. [ Links ]

MacKinnon, Catharine A. 1979. Sexual Harassment of Working Women: A Case of Sex Discrimination. New Haven, CT: Yale University Press. [ Links ]

Oliveira, João Manuel de. 2010. “Os feminismos habitam espaços hifenizados - a localização e interseccionalidade dos saberes feministas.” ex æquo 22: 25-39. [ Links ]

Oksala, Johanna. 2012. Foucault, Politics, and Violence. Evanston, Il: Northwestern University Press. [ Links ]

Preciado, Paul B. 2015. Manifesto Contrassexual. Tradução de Helena Lopes Braga, Pedro Feijó e Daniel Lourenço. Lisboa: Unipop. [ Links ]

Rich, Adrienne. 1980. “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence.” Women: Sex and Sexuality 5(4): 631-660. [ Links ]

1 Esta recensão baseia-se na apresentação do livro que tive o gosto de partilhar na Livraria Tigre de Papel, em Lisboa, no dia 18 de novembro de 2022, e tem a marca desse evento.

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