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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.48 Lisboa dez. 2023

https://doi.org/10.22355/exaequo.2023.48.13 

Recensões

Diálogos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo, organizado por Márcia Santana Tavares e Ângela Maria Freire de Lima e Souza. Salvador: EDUFBA, 2022, 331 pp.

Flávia Nogueira Gomes* 
http://orcid.org/0009-0005-2694-1268

*Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia, Salvador - BA, 40210-909 Brasil flaviagomes.adv@gmail.com

Diálogos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo. Tavares, Márcia Santana; Lima e Souza, Ângela Maria Freire de. Salvador: EDUFBA, 2022. 331 ppp.


O livro Diálogos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo, publicado em 2022 pela Editora da Universidade Federal da Bahia, é uma primorosa coletânea de textos organizada pelas pesquisadoras Márcia Santana Tavares e Ângela Maria Freire de Lima e Souza. Conta com a colaboração de investigadoras/es de formação acadêmica diversificada, entre docentes, egressas/os e parceiras/os que mantêm algum vínculo com o Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM), cujos trabalhos integrantes têm como fio condutor os estudos de gênero e feminismos.

A obra reflete o protagonismo, a seriedade e o compromisso do PPGNEIM com um feminismo transformador. Propõe realizar a difusão de ideias e tramas feministas, integrando o teórico e o empírico em suas abordagens metodológicas, através do diálogo entre as temáticas tratadas, sob perspectivas e enfoques diversos.

Ao apresentar ao público um trabalho original e muito bem articulado em seus nove capítulos, utilizando uma linguagem acessível, mas nem por isso menos crítica e reflexiva, inter-relacionando teorias e vivências (práxis), a coletânea revela a “complexidade e heterogeneidade de determinados temas analisados no campo dos estudos feministas” (p. 10). A estrutura dos capítulos está organizada em eixos de análise específicos, e aborda temas como a trajetória da criação de um núcleo de estudo com viés interdisciplinar; o sexismo no ambiente acadêmico e de trabalho (contributos das áreas do Direito e Terapia Ocupacional); invisibilidades no mundo jurídico, nos movimentos sociais e feministas; as formas de violência contra as mulheres, no Brasil e além.

Logo no primeiro capítulo, as autoras Cecília B. Sardenberg e Márcia S. Macedo, ao analisarem a metodologia pertinente para a investigação e construção de saberes relativos aos estudos feministas, problematizam em torno das noções de disciplinaridade, interdisciplinaridade e abordagens multi e transdisciplinares. Defendem que os estudos feministas, “a partir da perspectiva de gênero, se voltam precisamente para a análise de processos multidimensionais e multifacetados, que transpõem os limites disciplinares” (pp. 22), rompendo com o paradigma da ciência moderna. Sustentam a necessidade de construção de novas epistemologias que reconheçam a “posicionalidade” dos sujeitos cognoscentes e a legitimidade de um conhecimento objetivamente construído a partir de questionamentos formulados aos diferentes saberes disciplinares, estabelecendo pontes entre os diversos campos do conhecimento. Ao situar, portanto, os estudos feministas em um campo do saber inter e trans disciplinar, discutem como a referida característica vem se manifestando na institucionalização desses estudos.

Neste sentido, e acompanhando o movimento de institucionalização dos estudos de mulheres e de gênero, ocorrido especialmente nas décadas de 1980/90, no Brasil, as autoras apresentam a história (trajetória) do NEIM - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher e sua fundamental contribuição para o desenvolvimento e “capilarização” dos estudos feministas. Destacam, ainda, como tal movimento resultou na criação de um programa audacioso de pós-graduação, um curso voltado para atender as demandas advindas das discussões sobre as problemáticas da mulher, configurando uma importante iniciativa voltada para o fortalecimento desse campo de estudo. É necessário, também, registrar o pioneirismo do PPGNEIM que, no início dos anos 2000, contava com o primeiro curso de mestrado do Brasil com a referida temática e o primeiro curso de doutorado da América Latina.

No segundo capítulo, o trabalho intitulado “Assédio sexual e moral contra mulheres no mundo jurídico: ‘esse silêncio todo me atordoa’”, de autoria de Salete Maria da Silva, Sônia Jay Wright, Rosalina Semedo de Andrade Tavares e Virgínia Cavalcanti Coelho, traz à baila a invisibilidade do assédio moral e sexual no mundo jurídico. O texto articula a análise de dados obtidos em uma pesquisa realizada sob coordenação da professora Salete Maria da Silva, revelando que, apesar do avanço no enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil, ainda há pouco debate sobre a violência sofrida pelas mulheres integrantes de carreiras jurídicas, fenômeno comumente não admitido ou não pronunciado publicamente, ensejando maior engajamento dentro do sistema de Justiça, com o enfrentamento da problemática a partir de uma perspectiva interdisciplinar, utilizando lentes de gênero.

Também a área da Terapia Ocupacional apresenta suas reflexões e contribuições do pensamento feminista na formação de terapeutas ocupacionais mais engajados politicamente, com atuação socialmente responsável, em favor das demandas sociais e de saúde das mulheres e grupos LGBTQIA+, a partir do desenvolvimento de habilidades e competências que lhes permitam identificar situações de sexismo ocupacional, bem como de ações voltadas aos direitos humanos, em texto intitulado “Estudos Feministas e Terapia Ocupacional: uma articulação teórica e política de enfrentamento ao sexismo ocupacional”, assinado por Ângela Freire e Francisco Andrade, que compõe o terceiro capítulo da obra.

No quarto capítulo, Jesana Batista Pereira, Juliana Michaello Macêdo Dias e Walcler Lima de Mendes Junior tratam da invisibilidade da mulher egípcia, numa interessante abordagem sobre as expressões do feminino no signo dos países islâmicos, colocando em perspectiva algumas questões ligadas à construção da imagem do feminino pelos movimentos feministas no Egito, além do controle dessa imagem.

O texto “Somos mulheres, somos resistência: semeando a participação das mulheres no movimento sindical rural de Sergipe”, de autoria de Magaly Nunes de Góis e Márcia Santana Tavares, registra a história de resistência, lutas e mobilização das trabalhadoras rurais e analisa a Marcha das Margaridas no cenário contemporâneo, ilustrando a prática política das mulheres do campo, em busca de reconhecimento, autonomia, liberdade e justiça. A pesquisa tem por objetivo a reflexão sobre a participação das mulheres no movimento sindical rural, sob uma perspectiva de gênero, e analisar avanços, tensões e perspectivas das trabalhadoras rurais, no cenário brasileiro contemporâneo, que aponta para retrocesso de direitos conquistados e repressão às lutas e movimentos sociais (p. 144).

Na sequência dos eixos de análise, as pesquisadoras Vanessa Cavalcanti e Isabel Dias analisam, no sexto capítulo, a conexão entre violência e gênero com base na intersecção das desigualdades sociais, tomando o contexto comparado entre Portugal e Brasil. Destacam, sobremaneira, os movimentos ocorridos no âmbito de políticas públicas nas duas primeiras décadas do século XXI.

O sétimo capítulo, com assinatura de Iole Macedo Vanin, resgata a história da União Universitária Feminina (UUF) e a sua fundamental atuação para assegurar o acesso das mulheres na educação superior e o direito feminino ao exercício de atividades liberais, a partir da análise documental de notícias publicadas em jornais e periódicos, no início do século XX. Apesar do acesso à educação superior garantido pela Reforma Leôncio de Carvalho, as mulheres ainda encontravam resistência e crítica em uma sociedade permeada por valores patriarcais, que reservava o espaço acadêmico aos homens, sendo necessária a interlocução de certas entidades, como a UUF, para fortalecer a luta das mulheres. A mesma entidade teve uma participação determinante na reivindicação de reformas na legislação civil, assegurando conquistas para as mulheres no âmbito legal.

Em contexto além dos limites da realidade brasileira, também é possível encontrar dados alarmantes sobre a violência contra as mulheres. No oitavo capítulo, no trabalho intitulado “La Ley Integral Contra la Violéncia de Gênero al Pacto de Estado en España: Algunas Ideias Para Seguir Trabajando”, a pesquisadora Belén Blazquez Vilaplana apresenta a experiência da Espanha que, apesar de possuir uma legislação avançada para proteção das mulheres, não consegue conter o avanço da violência de gênero, demonstrando que é preciso mais do que aspectos legais/formais para assegurar a segurança das mulheres: é necessário transformar a estrutura da sociedade, ainda tão fortemente marcada por valores patriarcais.

Encerrando a obra, Laila Rosa e Norma Mogrovejo assinam o nono capítulo “Cuerpas, Sonoridades e Feminismos de Abya Yala: Interlocuções entre Brasil e México”. O texto retrata a experiência de interlocução entre os ativismos decoloniais, os feminismos de Abya Yala, mulheres, grupos LGBTQIA+ e a música entre os dois países.

É possível inferir, através da breve exposição sobre os capítulos que integram a obra, a diversidade, riqueza e potência dos temas abordados pelas/os investigadoras/es, que ora destacam aspectos teóricos, ora destacam aspectos empíricos, promovendo um diálogo instigante, que ultrapassa a experiência brasileira. A leitura acessível, mas crítica, como devem ser os estudos feministas, convida o/a leitor/a a conhecer o passado, analisar o presente e refletir sobre o futuro para, efetivamente, transformar a estrutura da sociedade patriarcal, sexista e misógina e combater a violência contra meninas e mulheres e grupos mais vulneráveis. Para tanto, é preciso mais do que garantias formais, é preciso propagar as ideias feministas e fazê-las circular, propósito cumprido com maestria por esta necessária obra.

Referências bibliográficas

Tavares, Márcia Santana, e Ângela Freire de Lima e Souza (orgs.). 2022. Diálogos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo. Salvador: EDUFBA. Todos os capítulos do livro estão disponíveis no SCIELO: https://books.scielo.org/id/33wpqLinks ]

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