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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.48 Lisboa dez. 2023

https://doi.org/10.22355/exaequo.2023.48.02 

Dossier

Introdução. Discurso de ódio misógino: representações, impactos e intervenções

*Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras (FLUC), 3004-530 Coimbra, Portugal. Endereço postal: Largo da Porta Férrea, 3004-530 Coimbra, Portugal. Endereço eletrónico: rbasilio@fl.uc.pt

**Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras (FLUC), 3004-530 Coimbra, Portugal. Endereço postal: Largo da Porta Férrea, 3004-530 Coimbra, Portugal. Endereço eletrónico: ines.amaral@uc.pt

***Facultad de Ciencias de la Comunicación, Universidad Rey Juan Carlos, 28942 Fuenlabrada, Madrid, España. Endereço postal: Camino del Molino, 5, 28942 Fuenlabrada, Madrid, España. Endereço eletrónico: sonia.puente@urjc.es


Nos últimos anos, com a rápida expansão das plataformas de comunicação digital, vimos emergir com significativa robustez diferentes formas de política alternativa. Desde ativistas que constroem nas redes sociais campanhas contra a violência, o sexismo e o assédio, até vítimas que partilham online as suas experiências pessoais de injustiça, o contributo da digitalização para criar formas inovadoras de mobilização transnacional em torno de questões críticas feministas é assinalável. Justamente por oferecerem oportunidades de participação no espaço público, as tecnologias digitais têm, ao mesmo tempo, impulsionado novas formas de abuso online e de discurso de ódio misógino, restringindo e limitando o alcance das ações da nova política feminista emergente. Uma miríade de modalidades de discurso de ódio misógino ou sexista tem sido documentada em plataformas digitais, com frequência em resposta à maior expressão dos ativismos feministas (e.g. Ging e Siapera 2018, 2019; Vickery e Everbach 2018).

Seja focando-se nos limites do que conta como dano, no impacto nas vidas individuais, ou nas consequências culturais e democráticas mais amplas da misoginia online, a investigação neste domínio tem explorado a forma como os domínios socioculturais e socio-tecnológicos estão não apenas interligados, mas, mais importante, como são mutuamente constitutivos. Através deste entendimento, o que acontece online pode ser melhor articulado com os contextos sociopolíticos mais amplos, inscritos em estruturas patriarcais enraizadas, mas também marcados por fenómenos mais recentes, como o pós-feminismo, o antifeminismo, os movimentos masculinos ou as masculinidades tóxicas.

Apesar das crescentes preocupações com o aumento da prevalência do discurso de ódio misógino em diversas plataformas digitais populares, a pesquisa neste domínio é relativamente recente e tem resultado, principalmente, em evidências fragmentadas acerca da sua ocorrência, impactos individuais e consequências culturais e democráticas. Verifica-se que o ódio misógino se cruza frequentemente com outras manifestações de intolerância e formas de abuso tecnológico, incluindo assédio, perseguição, ameaças e ofensas verbais, que afetam de maneira desproporcional as mulheres (Duggan 2014; FRA 2014; EIGE 2017; Vogels 2021). Contudo, a compreensão das maneiras pelas quais o ódio é expresso e percebido permanece limitada e a atenção voltada para as estratégias de combate é ainda menos expressiva. A operacionalização desse conhecimento por atores sociais de destaque para conceber respostas adequadas é uma questão que, com algumas exceções (Free et al. 2017; Henry, Flynn e Powell 2018), tem sido igualmente pouco explorada. O trabalho científico neste domínio também não tem proporcionado elementos consensuais para sustentar uma definição amplamente aceite do problema na esfera jurídico-política. A expressão “discurso de ódio” tem sido utilizada de maneira indiferenciada para referir vários tipos de discurso negativo, englobando ódio e o seu incitamento, conteúdo abusivo e difamatório com base em características de pertença a um grupo social específico, incluindo formas extremas de discriminação e preconceito (Siegle 2020).

Além da complexidade na criação de um quadro definitório consensual, o frágil equilíbrio no reconhecimento de diferentes grupos sociais como vulneráveis ao ódio é também um desafio. Ao contrário do discurso de ódio racista, que é sempre considerado contrário aos padrões europeus e internacionais de direitos humanos, o discurso de ódio sexista não é, por vezes, avaliado da mesma forma, uma situação que alguns instrumentos internacionais têm procurado contrariar1, incentivando os Estados a garantir uma abordagem semelhante para lidar com o discurso racista e o discurso sexista, em particular no que diz respeito à intervenção jurídica.

Foi destas preocupações que partiu originalmente o dossier intitulado “Discurso de ódio misógino: representações, impactos e intervenções”, visando oferecer um espaço para aprofundar o conhecimento sobre os modos como o discurso de ódio sexista presente em ambiente digital é expresso, percebido e enfrentado a partir de uma multiplicidade de abordagens feministas e referenciável a diferentes contextos internacionais. Não havendo na roupagem final do número temático que aqui apresentamos uma qualquer pretensão de que constitua um repositório ilustrativo desse propósito vasto, há, todavia, a ambição de que os estudos nele reunidos confrontem e façam avançar o conhecimento, sempre com referência comum à problemática nuclear da ubiquidade do discurso de ódio misógino.

O primeiro artigo, “Busca, busca, perrita: comunidades digitales misóginas de difusión de imágenes sexuales sin consentimiento”, é de Jacinto G. Lorca e Elisa García-Mingo. O texto analisa a comunidade digital masculina Hispasexy para explorar um tipo específico de violência sexual: a criação e divulgação de ficheiros de nudez violenta. É particularmente interessante a forma como são analisadas as múltiplas possibilidades que estas comunidades misóginas têm de gerar violência. O autor e a autora salientam que a Hispasexy é um exemplo da forte competição homossocial ligada a estas comunidades digitais, que contribuem para a escalada da violência sexual no espaço digital. A forte misoginia que está na base da Hispasexy, assim como as possibilidades da própria plataforma, revelam os processos de construção de um tipo de comunidades colaborativas destinadas a tornar visível e a incitar aquilo que Lorca e García-Mingo denominam de cultura de exibição, que é praticada tanto pela estrutura da própria plataforma como pelos seus utilizadores.

Dirigido para a análise de vídeos protagonizados por adolescentes espanhóis que surgiram na plataforma TikTok durante o verão de 2022, em resposta à ratificação da Lei Orgânica 10/2022, de 6 de setembro, que posicionou o consentimento, e não a violência e intimidação, como elemento-chave da agressão sexual, o segundo artigo aqui reunido mostra como a desinformação se entrelaça, favorecendo o discurso de ódio misógino. No estudo intitulado “El bulo del ‘contrato sexual’ del Ministerio de Igualdad español en TikTok: un análisis de caso de posverdad antifeminista en redes sociales”, Ignacio Moreno Segarra e Asunción Bernárdez Rodal mostram como as narrativas abertamente falsas em torno da existência de um “contrato de consentimento sexual” criado pelo Ministério da Igualdade são utilizadas para retaliar a alteração legislativa e normalizar a aceitação dos discursos de ódio contra as mulheres, independentemente da sua veracidade.

O terceiro artigo presente neste dossier aborda a intricada natureza do viés misógino na inteligência artificial (IA), ressaltando a necessidade de compreender de maneira profunda a linguagem e o contexto. Este entendimento torna-se crucial devido à propensão dos dados programados em perpetuar preconceitos, particularmente evidenciados em discursos de ódio contra mulheres. No artigo intitulado “How AI Bots Have Reinforced Gender Bias in Hate Speech”, Daniele Battista e Jessica Camargo Molano sustentam a tese de que, ao incorporar técnicas de deteção avançadas e considerar o contexto mais amplo do uso de linguagem agressiva, existe um potencial significativo para atenuar os riscos associados ao preconceito e à discriminação nas estruturas da IA. O autor e a autora sublinham a importância crucial da regulamentação do discurso de ódio, especialmente no contexto das plataformas digitais e da própria IA, como um meio de fomentar uma cultura fundamentada em respeito, tolerância e inclusão.

No texto “¿Son los jóvenes la raíz del auge de la misoginia en España? Sesgos y problemas en la cobertura mediática de la Manosfera y el antifeminismo español”, Lionel S. Delgado Ontivero analisa o contexto mediático espanhol, abordando as reações antifeministas às mudanças sociais promovidas pelo feminismo. O autor salienta o facto de a cobertura mediática simplificada e descontextualizada contribuir, de certa forma, para reproduzir as condições de possibilidade da reação antifeminista, que é precisamente aquilo que se pretende noticiar. O artigo apresenta uma reflexão sobre as possíveis causas da radicalização antifeminista de alguns jovens, apontando para a existência de um mal-estar social ligado a razões económicas, políticas e culturais.

“Modos de habitar la rabia contra la misoginia en Vis a Vis (2015-2020)”, de Emma Gómez Nicolau, Rebeca Maseda García e María José Gámez Fuentes, é o quinto artigo reunido neste dossier. As autoras apresentam um estudo que analisa a série televisiva espanhola Vis a Vis a partir da sua capacidade ambivalente de apresentar a raiva feminina. No que concerne à construção de personagens, a série apresenta arquétipos emocionais que associam as mulheres racializadas à alteridade, legitimando a raiva quando esta está relacionada com a maternidade. Ao longo da série, as personagens evoluem desafiando as narrativas hegemónicas, entranhando a raiva nas mulheres perante a violência patriarcal. Apesar da espetacularização da raiva ser vinculada a elementos meramente narrativos e visuais, ocorre um processo de politização das personagens em relação às violências misóginas que se articula em torno da raiva. O artigo conclui que a raiva sororal da série subverte o discurso do pós-feminismo neoliberal que promove o empoderamento e a resiliência diante da misoginia estrutural e cultural.

Assinado por Joan Sanfélix Albelda e Anastasia Téllez Infantes, o artigo “La base social de los discursos del odio misógino: una lectura cuantitativa de los hombres valencianos” apresenta um estudo direcionado para a compreensão das dinâmicas ideológicas que ocorrem a montante e a jusante dos discursos de ódio. Investigando a relação entre a orientação ideológica e a manifestação de posições, opiniões e valores relativos à igualdade, feminismo, violência de género e masculinidade por parte de homens urbanos da Comunidade Valenciana espanhola, o estudo correlaciona o discurso de ódio misógino com o contexto social mais amplo. Além de revelar a maior ou menor propensão dos participantes para a identificação com discursos que afirmam, negam ou minimizam os progressos em matéria de igualdade em função do seu posicionamento político-ideológico, a investigação explora as possíveis interconexões entre a ideologia e a narrativa no seio da base social dos discursos misóginos.

O último estudo do dossier incide sobre a problemática da desinformação perspetivada a partir da lente de género com o propósito de compreender mais profundamente a dimensão de género na circulação online de conteúdos falsos e enganosos. Juliana Alcantara e Juliana Valentim apresentam uma revisão sistemática de estudos interdisciplinares sobre desinformação, que mapeiam com recurso ao método PRISMA, a fim de elencar as principais evidências documentadas pela pesquisa e identificar áreas negligenciadas pela investigação. Documentando como a perspetiva feminista está, em grande medida, ausente na investigação, as autoras mostram como ela é importante para permitir entender como as narrativas enganosas e falsas interagem com as desigualdades estruturais e afetam os grupos mais marginalizados.

Referências bibliográficas

Duggan, Maeve. 2014. “Online Harassment.” Pew Research Center. Disponível em http://www.pewinternet.org/2014/10/22/online-harassmentLinks ]

EIGE. 2017. “Cyber violence against women and girls.” European Institute for Gender Equality. Disponível em https://eige.europa.eu/publications/cyber-violence-against-women-and-girlsLinks ]

FRA. 2014. “Violence against women: an EU-wide survey.” European Union Agency for Fundamental Rights. Disponível em https://fra.europa.eu/en/publication/2014/violence-against-women-eu-wide-survey-main-results-reportLinks ]

Free, Diana, et al. 2017. “Digital Technologies and Intimate Partner Violence: A Qualitative Analysis with Multiple Stakeholders.” Proceedings of the ACM on Human-Computer Interaction 1(CSCW): Article 46. DOI: https://doi.org/10.1145/3134681Links ]

Ging, Debbie, e Eugenia Siapera. 2018. “Special issue on online misogyny.” Feminist Media Studies 18(4): 515-524. DOI: https://doi.org/10.1080/14680777.2018.1447345Links ]

Ging, Debbie, e Eugenia Siapera. 2019. Gender Hate Online: Understanding the New Anti-Feminism. Cham, Switzerland: Palgrave Macmillan. [ Links ]

Henry, Nicola, Asher Flynn, e Anastasia Powell. 2018. “Policing image-based sexual abuse: stakeholder perspectives.” Police Practice and Research 19(6): 565-581. DOI: https://doi.org/10.1080/15614263.2018.1507892.Links ]

Siegle, Alexandra A. 2020. “Online Hate Speech.” Em Social Media and Democracy: The State of the Field, Prospects for Reform, editado por Nathaniel Persily e Joshua A. Tucker, 56-88. Cambridge: Cambridge University Press. [ Links ]

Vickery, Jacqueline R., e Tracy Everbach, eds. 2018. Mediating Misogyny: Gender, Technology, and Harassment. Cham, Switzerland: Palgrave Macmillan. [ Links ]

Vogels, Emily. 2021. “The State of Online Harassment.” Pew Research Center. Disponível em https://www.pewresearch.org/internet/2021/01/13/the-state-of-online-harassmentLinks ]

1Veja-se a Recomendação CM/Rec(2019)1 do Comité de Ministros do Conselho da Europa aos Estados-Membros sobre prevenção e combate ao sexismo, adotada em 27 de março de 2019, que, reconhecendo a articulação de diferentes manifestações de sexismo com “dificuldades continuadas em concretizar a igualdade de género”, insta os governos, designadamente, a “pensar numa reforma da legislação que condene o sexismo e defina e criminalize o discurso de ódio sexista”.

Rita Basílio de Simões.

Doutorada em Ciências da Comunicação, é Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tem investigado sobre jornalismo, média digitais e género. Investigadora do Centro de Estudos Sociais, coordena a participação portuguesa no Global Media Monitoring Project e é Co-Investigadora Principal do Projeto “MyGender - Práticas mediadas de jovens adultos: promover justiça de género nas e através de aplicações móveis”, financiado pela FCT (PTDC/COM-CSS/5947/2020).

Inês Amaral.

Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Doutorada em Ciências da Comunicação, é investigadora do Centro de Estudos Sociais. Tem investigado sobre sociabilidades nas redes sociais digitais, participação e media sociais, género e media, literacia mediática e audiências. É Investigadora Principal do “Projeto MyGender - Práticas mediadas de jovens adultos: promover justiça de género nas e através de aplicações móveis”, financiado pela FCT (PTDC/COM-CSS/5947/2020).

Sonia Núñez Puente.

Professora Catedrática da Faculdade de Comunicação da Universidad Rey Juan Carlos (Madrid, Espanha). Tem liderado projetos de investigação nas áreas do ativismo digital feminista, violência cultural, representações de género e Estudos Culturais. Atualmente é Investigadora Principal do projeto de I+D+i “Mediatização da raiva das mulheres: quadros de inteligibilidade e estratégias comunicativas de transformação politizante” (ayuda ID2020-113054GB-I00), financiado pelo MCIN/AEI/ 10.13039/501100011033.

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