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Ex aequo

Print version ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.47 Lisboa June 2023

https://doi.org/10.22355/exaequo.2023.47.18 

Recensões

“Não temos de carregar o que não é nosso” Recensão de Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo. Lisboa: Leya/Caminho, 2022, 292 pp.

*Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho (CECS). vitorsousa@utaad.pt

“Não temos de carregar o que não é nosso” Recensão de Um cão no meio do caminho. Figueiredo, Isabela. Lisboa: Leya/Caminho, 2022. 292 ppp.


“Ninguém entra na nossa vida por acaso”. A última frase de Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo (2022, 292), faz perceber o que está escrito na contracapa do livro: “Precisamos de alguém com quem falar. Não interessa de quê. Precisamos de uma voz humana”. Uma verdade que pode ser tão absoluta como evidenciar todo o seu contrário. E que se mantém verdadeira, ou não fosse essa a dinâmica de um romance. De qualquer romance. O que será, então, a verdade? Tratar-se-á de um ponto de vista, apenas, como defendia Nietzsche (Gonçalves 2011)? Apenas? A verificar-se, neste livro, o “apenas” terá recortes muito curtos, face a este tipo de frases: “o passado acabou. Não temos de carregar o que não é nosso” (Figueiredo 2022, 271). O que se cruza (muito) com a memória. As mentiras como bengalas que ajudam as pessoas a caminhar sem se magoarem (idem, 51). O que é apanágio de obras de ficção que ajudam a expirar fantasmas/passados. Talvez por isso, Umberto Eco preferisse as mentiras à verdade1. De novo a memória, que muitos reputam de ser mentirosa. Aquela que, segundo um ditado africano (sendo que África não é um país…), vai ao bosque e de lá traz a lenha que quer.

E lá está: mesmo com o desenvolvimento da retórica da liberdade, escreve-se no romance que “precisamos de um modelo. De mitos” (Figueiredo 2022, 62). E, “mesmo livres precisamos de ter rotinas” (idem, 67). Mas sem trelas nem coleiras como os cães (idem, 49). Da liberdade que abril abriu. Mas também da coleira e da trela saídas da Revolução. São personagens à procura de um rumo, como confidenciou a escritora numa entrevista (Manaia 2023), em que pretende questionar a nossa escravidão, pelo facto de achar que somos pouco livres. Por isso, sublinha que o livro retrata essa vontade de as pessoas estarem à procura de coisas novas para viverem de forma diferente. Com um entorno que se desloca dos anos que se seguiram à Revolução do 25 de Abril, e ao PREC, para a prática do quotidiano, pontuado por uma lógica de respeito pelo outro, de respeito pelos animais e pelos velhos. A felicidade como pano de fundo, mesmo que com origem numa revolta que almeja por uma mudança, muito embora afastada da luta social (passada a revolução) e centrada na vida individual. Em que a riqueza não é diretamente proporcional à quantidade de dinheiro ou de haveres. Por isso, Isabela Figueiredo cria anti-heróis. O que significa que todos contam.

Mesmo que não estivesse em Portugal quando se deu o derrube da ditadura, através da Revolução do 25 de Abril (só regressou de Moçambique em 1976), a escritora estudou bem a época, evidenciando a felicidade que lhe esteve associada e a rápida frustração que se lhe seguiu, ao ponto de a utilizar para a escrita, nomeadamente, dos seus Caderno de memórias coloniais. Como se o distanciamento dos tons negros que tipificavam os dias do Estado Novo estivessem pouco tempo ausentes. De súbito, a bolha onde estavam encerradas as emoções rebentou e foi colocada em prática a ideia de que os destinos do país estavam na mão de todos e não, como antes, em que outros pensavam pelo povo. Cedo percebeu que os portugueses são um povo conformado, o que constituiu um choque para quem, como ela, chegou a Portugal num período eufórico, de derrube de regime e de libertação de sonhos. Uma espécie de resquícios de um período que terminara recentemente e que durara quase meio século. Isabela Figueiredo, assumindo-se como uma pessoa inconformada, disse ter ficado chocada. E, interpretando o que sucedeu ao país, que foi da euforia à desilusão muito rapidamente, diz que essa dinâmica é mesmo tributária do recorte português, embora não perore sobre lógicas identitárias.

Há também a entrada em cena dos retornados (temática recorrente em Isabela Figueiredo), quais vândalos cheios de mundo e de impedância. De liberdade e de um certo estado selvagem. Que impactaram a sociedade portuguesa de então e a fizeram evoluir. Mas olhados como quezilentos, problemáticos, com outras lógicas que não as daqui (da ‘metrópole’). Que introduziram a droga trazida “de lá”. Desgraçando muitos. Numa brincadeira de retornados-adolescentes/crianças relatada no romance, não por acaso os cães eram os turras, num pretenso quartel-general de oriundos das “províncias ultramarinas”. Havia que pôr os turras na cadeia - “liberdade e prisão. Não há ninguém verdadeiramente livre” (2022, 147), sendo que “o grande impulso da vida está nos desgraçados” (idem, 151). Mas, afinal, quem eram os turras? “Os turras são angolanos. Estás parvo. Os turras são pretos” (idem, 161). O cão tido como turra, como se fosse um outro da relação. Sendo que “o cão era como um casamento”. Sempre tudo bem e mal (idem, 166). O que pode dar nisto: “Os cães podem matar. Nós também” (idem, 167). Nós como se fossemos cães (já Manuel Alegre escrevera Cão como nós, 2002). No romance, nem os nomes dos cães caíram do céu. Basta referir Cristo, o cão de José Viriato (o líder dos lusitanos, emblemático para o Estado Novo, surge aqui numa dinâmica nada enquadrada nesse sistema de ditadura, mas podendo ser olhado enquanto consequência da queda da própria ditadura…).

Histórias de animais que vão fugindo do prato para outra dimensão. Em que se não come carne. E se trocam ideias com, sobretudo, cães no meio do caminho. Mesmo que sejamos “animas gregários”, pelo que “precisamos de manter a impressão de que a Terra não é uma lha e de que não estamos nela sozinhos” (idem, 77). Ideias pintadas pelo pincel de uma narrativa utópica, com diálogos por vezes de grande dimensão, mas que, nem por isso, se mostram enfadonhos. Por serem descritivos e mostrarem cores e aromas, bem como estados de espírito e serem bem escritos. Talvez o facto de Isabela Figueiredo ter sido jornalista tenha ajudado.

Mas, se por um lado, o pensamento ia no sentido de que os afetos prendem, e Zé Viriato, o protagonista da história, afiançava não gostar de se sentir preso, privilegiando a sua liberdade (idem, 79), o foco vai mudando. Que tem que ver com a sua própria circunstância e perfil de vida. Como acontece quase sempre com todos: pais divorciados no pós-Abril, com sonhos abre-latas do cinzentismo social, que complicam ainda mais as relações e aumentam o hiato quando se vai atrás de um ideal. Do calor da luta política por oposição à vida em casa e, de forma trágica, no livro, a morte também trágica dos pais que pontua todo o percurso. Da mãe, que bloqueou face ao divórcio, e do pai, que foi cooperar com Angola e lá foi assassinado. De relações fugidias, sem afetos. Ou com eles, mas em relacionamentos nada conseguidos. Nem desejados. Mas, mesmo assim, relações.

A páginas tantas, Zé regressa ao colo de Josefa, sua avó. Muitos anos após a sua saída de casa, correndo atrás de um sonho libertário, assente numa paixão. Pouco correspondida. Já debilitada, mas com o senso inteiro. E, através de uma vizinha improvável de Zé (Beatriz), a situação vai aproveitar a ambos. A acumuladora Beatriz - personagem que a autora diz ter ido buscar a Vivian Maier -, que pode sofrer as consequências de quem vive sozinho e com um passado que foge ao cânone. No caso, uma mulher que seguiu a sua própria vida. E que exorcizou o seu próprio fantasma, estando presente quando este escorregou e caiu, morrendo. Fechando um ciclo que se iniciou com a pureza que lhe dera em nova, numa relação ‘proibida’ e, por isso, não correspondida. Mas que, por isso, foi reparada com a justiça possível, que matou quem a atormentava. Ambos - Zé e Beatriz - exorcizam passados. Preservam a memória da avó - sublinhando a importância dos velhos nas sociedades e, com isso, da memória -, e termina-se com um cão igual ao Cristo que tivera na infância. E, sendo estúpido dar-lhe o mesmo nome, optou-se por Red. Diminutivo de Redentor. A mesma coisa, afinal. Antes, Cris era Cristo, o nome do cão da infância quando fora de casa. Para não parecer mal. Uma descristianização animal, tendente a acertar as injustiças da religião. Sim, porque isso no mundo dos animais - no dos cães, nomeadamente - não acontece. Pelo menos com essa dinâmica. E, se os humanos fossem como eles, haveria decerto amor incondicional. A autora não escreve isso, mas a ideia apanha-se no ar. Rodeada de liberdade em pleno sentido.

Assim se percebe o fim do livro: “Ninguém entra na nossa vida por acaso” (Figueiredo 2022, 292). Mas, preparando o caminho para que o passado definhe sem impedir a vida de correr, já que “o passado acabou. Não temos [ninguém tem] de carregar o que não é nosso” (idem, 171). Felicidade, a palavra-chave da escrita de Isabela Figueiredo. O que é ser feliz? Viver! Mas, para quem sofre, a morte também permite voar. É uma libertação. Também dos animais.

O que faz com que a sua escrita lhe saia das entranhas. E que o/a leitor/a nela se reveja. Nos diálogos certeiros, especialmente os masculinos. Das conversas da vida-vidinha dos que param no Café Colina, que podia ser do bairro de qualquer um/a. Em que os homens aparentemente falhados retratam apenas o seu percurso, e em que se ouve que “beber é mais barato do que ir às putas” e se questiona se determinado indivíduo “goste de pito”. Uma lógica machista, que assenta num olhar social “português”, em que a mulher continua a ser o parente pobre. O olhar de Isabela Figueiredo, talvez exatamente por isso, desconstrói o estereótipo tendente a possibilitar viver. Com liberdade. Felicidade. E trauma. Ou seja: assumindo os distúrbios tendentes a impossibilitar uma igualdade de género, mas que deita por terra essa narrativa. Lamentar uma situação não impede olhar para a frente e seguir caminhos, que se distanciam de qualquer “tradição”. Sendo que toda a tradição, sendo inventada, pode sempre, em qualquer momento, ser posta em causa. E ser substituída por uma dinâmica de igualdade. Neste caso, de género. Em que as mulheres são protagonistas. E ridicularizam passados e presentes. Numa revolução que, sendo cortante e dura, vai permitir uma melhor vida futura. Uma esperança que a autora tem subjacente no romance que escreve.

O protagonista marginaliza-se da sociedade, vivendo do lixo dos outros. Uma possibilidade própria de um romance, mas cuja utopia tem o olhar preso à vida de cada um: presa na lixeira existencial e na correspondente troca social. Com um recorte masoquista, por ser assumido como necessário, não obstante a vida que pode espreitar e possibilitar ar renovado em cada momento. Isabela Figueiredo sabe disso. Liga o lixo do protagonista com o da amiga recente. E destrói a ideia de que desconhecidos estão impedidos de construir possibilidades. Sejam elas quais forem. E, para além de as construírem, deitaram por terra ideias feitas. Mesmo saídas da liberdade de uma revolução que deitou por terra o fascismo. Mas que, na estonteante velocidade dos sonhos, poderá ter dado alguns tiros nos pés, sendo certo que a realidade nunca mais poderia ser como até então. E mesmo as mulheres, num mundo pontuado por eles, foram desfazendo ideias. Feitas. No caso da mãe do protagonista, ora morrendo de amores, por desistir de viver (com a ironia de o ex-marido, um devoto da revolução, ter morrido numa missão de cooperação em Angola…); em relação à avó, sendo aparentemente a mais canónica, nem por isso deixa de ir mais além e ser das mais possibilitadoras da busca de liberdade; para não falar da amiga recente do protagonista. Que exorciza o trauma relacional, expia fantasmas e deixa para trás um ethos moribundo. Que promete futuros. Tal como o protagonista, seu recente amigo. O que quer dizer que cada ser é um ser. Não tem um carimbo prévio que define a sua própria dinâmica. Onde a liberdade tem um papel sublinhado. Seja a viver do lixo, ou no operariado, ao serviço da Educação, da Saúde ou da Justiça. Assumindo a sua cidadania de forma plena. Em democracia.

O livro está dividido em três partes: 1. Lixo, lixo, lixo; 2. Debaixo da terra; e 3. O passado acabou. Logo no início (2022, 15), Isabela Figueiredo propõe um som ambiente para acompanhar a obra e entrar no que diz ser a sua própria ambiência, em que pontuam, entre outros, Lou Reed, Rita Lee, Xutos & Pontapés, Anthony & The Johnsons, Roxy Music e David Lynch & Lykke. E vamos lendo, a ouvir o sugerido ou a associar as palavras à música.

Referências bibliográficas

Alegre, Manuel. 2002. Cão como nós. Lisboa: Bertrand. [ Links ]

Figueiredo, Isabela. 2015. Caderno de memórias coloniais. Lisboa: Caminho. [ Links ]

Figueiredo, Isabela. 2022. Um cão no meio do caminho. Lisboa: Leya/Caminho. [ Links ]

Gonçalves, Sérgio Campos. 2011. “Da premissa metafísica à história do sentido: a Verdade em questão e sua concepção como objeto em Nietzsche.” Revista de Teoria da História 6(2): 122-138. Disponível em https://revistas.ufg.br/teoria/article/view/28980Links ]

Leiderfarb, Luciana. 2015. “Umberto Eco. O regresso do grande conspirador” [entrevista]. Revista do Expresso, 18 de abril, pp. 28-33. [ Links ]

Manaia, Tiago. 2023. “Isabela Figueiredo: Quero muito questionar a nossa escravidão, porque somos tão pouco livres?” Máxima, 19 de janeiro. Disponível em https://tinyurl.com/526buvnsLinks ]

1Ver entrevista de Leiderfarb (2015) a Umberto Eco.

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