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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.46 Lisboa dez. 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.46.16 

Recensões

Não Serei Eu Mulher? As Mulheres Negras e o Feminismo, de bell hooks. Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Orfeu Negro, 2018, 320 pp.

1Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho, Braga, Portugal


Inspirado no nome da bisavó materna, para honrar os legados familiares femininos, bell hooks é o pseudónimo de Gloria Jean Watkins (1952-2021) e, a pedido da autora, não deve ser capitalizado. A insistência de hooks em manter o seu nome escrito em ‘letras pequenas’ deve ser entendida como um gesto político que pretende sublinhar a diferença entre a autora e a importância das causas que defende. Porém, ainda que esta Mulher Negra, feminista, ativista antirracista e professora nos quisesse dizer “isto não é sobre mim”, a sua atividade política e o seu legado intelectual obrigam-nos a começar por falar dela. bell hooks é autora de mais de trinta livros e incontáveis artigos científicos, participou em documentários fílmicos e deu inúmeras palestras públicas. A sua obra reflete sobre a forma como o género, a raça e a classe se potenciam mutuamente enquanto eixos de opressão, nas sociedades capitalistas.

Autora de obras incontornáveis, não só para os estudos de género, mas também para a filosofia política, para a sociologia, ou para a psicologia social, como Feminist Theory: From Margin to Center (1984), Black Looks: Race and Representation (1992), ou Feminism Is for Everybody: Passionate Politics (2015), hooks começou a escrever Ain't I a Woman: Black Women and Feminism com 19 anos, quando era estudante de licenciatura na Universidade de Stanford e, ao mesmo tempo, telefonista. Um dos aspetos impressionantes de Ain’t I a Woman é a forma como, ao longo da obra, esta jovem de 19 anos faz a revisão crítica de uma extensa literatura sobre racismo, género, escravatura e história americana, existente nos EUA, complementando esta análise crítica com partilhas sobre a sua experiência pessoal. O livro foi publicado em 1981 e, embora inicialmente uma parte da comunidade académica o tenha rejeitado, quer por não obedecer à forma canónica, quer por soar ‘demasiado estridente’, a obra tornou-se numa das mais influentes no âmbito dos estudos sobre mulheres e sobre raça. Em Portugal, tivemos de esperar até 2018 para conhecermos a primeira tradução deste clássico, feita por Nuno Quintas e publicada pela Orfeu Negro com o título Não Serei Eu Mulher? As Mulheres Negras e o Feminismo.

O título Não Serei Eu Mulher? [Ain’t I a Woman] tem raiz no mote do discurso proferido por Sojourner Truth (1797-1883)7, em 1851, durante a “Women’s Rights Convention”, em Akron, no estado do Ohio. bell hooks parte da mesma pergunta de Truth para lançar luz sobre as vidas das Mulheres Negras, nos EUA, nos séculos XIX e XX e para deixar uma semente de esperança num futuro menos sombrio, ao mostrar que não está sozinha na luta contra o patriarcado e contra o racismo, porque tem com ela um enorme legado de Mulheres Negras, ainda que estas tenham sido invisibilizadas.

No primeiro capítulo, “O Sexismo e a Experiência das Escravas Negras”, hooks revela as formas como as Mulheres Negras foram escravizadas, abusadas física e sexualmente e sobrecarregadas de trabalho, com a conivência das mulheres brancas e dos homens negros. Ambos - mulheres brancas e homens negros - beneficiaram da opressão perpetrada às Mulheres Negras por serem colocados acima delas na pirâmide social, onde, de outro modo, estariam no lugar mais baixo. No segundo capítulo, intitulado “A Desvalorização Constante da Feminilidade Negra” a autora reflete sobre a indiferença votada ao sempiterno abuso sobre corpos de Mulheres Negras (por não serem percebidas como mulheres), sobre o desprezo racista pelos esforços das Mulheres Negras no sentido de vencerem os rótulos sexistas que lhes foram atribuídos durante a escravatura (prostitutas, libertinas, vadias, etc.) assumindo ora o papel de mães obedientes, ora o papel de Sapphire - uma personagem negra de ficção que tem uma vontade de ferro, é poderosa, traiçoeira e desrespeitosa com os demais Negros. Estas formas de resistência das Mulheres Negras não as conseguiram libertar do abuso sexual e da sobrecarga de trabalho, uma vez mais, com a conivência e com o contributo opressor de mulheres brancas e homens negros. A par destes, também a academia/ciência sustentou o abuso, criou e reproduziu estereótipos e justificou a exploração, por não ser capaz de questionar o seu viés racista e de olhar para as Mulheres Negras como mulheres. Nestes dois primeiros capítulos, hooks desmonta ainda as falácias sobre a emasculação do escravo e sobre o matriarcado Negro nos EUA (que nunca existiu), para no terceiro capítulo “O Imperialismo do Patriarcado”, se demorar na questão da universalidade social do patriarcado, que na segunda metade do século XX reconfigura a representação das Mulheres Negras para serem a marionete sobrecarregada do capitalismo, que delas continuou a abusar sexualmente e ainda de forma mais diversificada.

Os dois últimos capítulos de Não Serei Eu Mulher são dedicados ao feminismo e à sua história. Em “Feminismo e Racismo: a questão da responsabilidade”, hooks mostra como o movimento feminista (branco) foi, desde o seu início, narcisista, classista e racista. Ao advogar os direitos das mulheres, as feministas brancas pensam apenas nos direitos das mulheres brancas, e tanto ao nível dos direitos civis, como dos laborais comportam-se muitas vezes como adversárias, ou mesmo como inimigas. Não tendo as Mulheres Negras poder para se fazerem ouvir e para circularem as suas mensagens nos canais legitimadores do discurso (academia), a literatura feminista produzida por mulheres brancas foi a única tida em conta e, consequentemente, o feminismo branco foi o único reconhecido como movimento. As mulheres brancas participaram ativamente no apagamento das Mulheres Negras, sob a retórica da sororidade entre todas as mulheres, que na realidade apenas incluía as mulheres que comungavam dos seus interesses de classe. As Mulheres Negras sentiram-se traídas pelo movimento feminista e formaram grupos de feminismo negro, o que institucionalizou as divergências raciais entre mulheres.

O último capítulo, “As Negras e o Feminismo”, é dedicado ao feminismo Negro desde o século XIX até ao momento em que o livro foi escrito. Segundo hooks, apesar de terem sido apagadas pela história, as Mulheres Negras americanas do século XIX tinham uma maior consciência da violência sexista do que algum outro grupo algum dia teve, motivo pelo qual a autora sugere a recuperação desse espírito de luta e dessa consciência, por parte do movimento feminista negro atual. Partindo de Sojourner Truth e do já referido discurso proferido em 1851, hooks sintetiza os incomensuráveis contributos das primeiras gerações de mulheres Negras livres nos EUA para a emancipação feminina e o envolvimento posterior das Mulheres Negras no feminismo, fazendo também uma espécie de síntese das principais ideias que defendeu durante os capítulos anteriores: o impacto do sexismo nas Mulheres Negras durante a escravidão e seus legados até à atualidade, a desvalorização da feminilidade negra, o sexismo dos homens negros (e a falsa ideia de emasculação do homem negro pela escravatura e pelas mulheres negras), o racismo e o classismo das feministas brancas.

Sem nunca aplicar conceitos como racismo estrutural ou interseccionalidade, hooks faz uma descrição, acessível a todos/as os/as leitores/as, do racismo enquanto fenómeno estrutural (presente na formação das estruturas sociais) e da forma como o racismo, o sexismo e o classismo se interpenetram e se reforçam mutuamente enquanto eixos de opressão. Finalmente, bell hooks tenta levar-nos além de pressupostos racistas e sexistas e faz uma proposta concreta para a luta feminista:

É um compromisso para erradicar a ideologia da dominação que permeia a cultura ocidental em vários planos - sexo, raça e classe, para indicar apenas alguns - e um compromisso para reorganizar a sociedade norte-americana de maneira que a realização do eu possa prevalecer sobre o imperialismo e a expansão económica e os desejos materiais. (pp. 304-305)

A publicação desta obra em Portugal, em 2018, é uma consequência direta do crescimento do Movimento Negro Português e do discurso antirracista no país, mas só cumpre o seu verdadeiro desígnio se nos levar a indagar como as palavras de bell hooks ressoam na nossa realidade. Em que medida o racismo em Portugal tem as mesmas origens e a mesma construção do racismo nos EUA? Qual o papel das Mulheres Negras na sociedade portuguesa? Como têm sido representadas e/ou apagadas? Qual o envolvimento das Mulheres Negras no feminismo em Portugal? Qual a consciência antirracista e anticlassista do movimento feminista português, ao longo do tempo?

Em Portugal, como nos EUA, não faz sentido perguntar às Mulheres Negras se são feministas ou antirracistas, mas sim, a todas as feministas, se o podem ser sem serem antirracistas. Infelizmente, também por cá, lutar ao lado das mulheres brancas pode implicar endossar o seu racismo, mas permanecer numa luta que é antirracista (apenas) ajuda a legitimar a ordem social patriarcal, uma vez que a palavra “negros” se refere a homens negros e a palavra “mulheres” a mulheres brancas. A existência das Mulheres Negras tem sido invisibilizada no papel e na fala.

7Para mais informação, ver, por exemplo, https://www.nps.gov/articles/sojourner-truth.htm

Referências bibliográficas

hooks, bell. 2018. Não Serei Eu Mulher? As Mulheres Negras e o Feminismo. Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Orfeu Negro, 2018. [ Links ]

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