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Ex aequo

Print version ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.46 Lisboa Dec. 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.46.12 

Recensões

Mulheres empresárias e empreendedoras, de Ana Paula Marques. V.N. Famalicão: Húmus, 2021, 281 pp.

1Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal

2Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Portugal


A construção de uma igualdade substantiva exige criarmos condições para que mulheres e homens, de forma igual, possam participar e contribuir para a sociedade, e realizar-se plenamente em todas as dimensões das suas vidas.

Isto exige desafiar e quebrar os estereótipos de género que continuam a condicionar oportunidades e capacidades; remover os obstáculos que continuam a existir; e ação positiva que force o avanço que se faz demasiado lento e com claros sinais de retrocesso num contexto de crise (pós)pandémica e de economia de guerra, bem como de ataques ideológicos e políticos aos pressupostos das políticas de igualdade de género. Mas requer também que, a todo o momento, se faça visível aquilo que é o contributo fundamental da participação das mulheres em cada área, tanto naquelas em que estão sobrerrepresentadas como onde estão sub-representadas. Este é o caso do empreendedorismo e do empresariado.

Com efeito, o “Policy Brief on Women’s Entrepreneurship 2018”, da OCDE (Halabisky 2018) indica que os grupos demográficos mais sub-representados na população empresarial e, em particular, na criação de novas empresas, são jovens, mulheres, pessoas com deficiência e migrantes. Na Europa (UE-27), as mulheres correspondem apenas a 33% do empresariado e a 30% do novo empresariado (CE 2013). Portugal tem registado um crescimento do número de micro, pequenas e médias empresas, de propriedade dominantemente masculinizada, embora se venha esbatendo este gap de género devido ao aumento da proporção de mulheres proprietárias no segmento das microempresas.

Tem sido apontado que as empresas criadas e lideradas por mulheres tendem a ser mais pequenas e menos intensivas em capital, menos orientadas para o crescimento, mais avessas ao risco, predominantemente de base local e mais recentes, e em áreas mais tradicionais e setores económicos mais feminizados, menos valorizados e menos orientados para a tecnologia (principalmente saúde, assistência social e serviços). Este gap tem tido paralelo na falta de visibilidade do tema nos estudos sobre empreendedorismo e também nos estudos de género.

O livro organizado pela socióloga Ana Paula Marques, juntando nove textos de autoria geográfica e disciplinarmente diversa acerca das experiências genderizadas dos fenómenos do empreendedorismo e empresariado no feminino, constitui, assim, um contributo ímpar num domínio pouco estudado em Portugal, especialmente o domínio do pequeno e micro empresariado e do empresariado familiar. A abordagem que o atravessa centra-se em rostos, factos e narrativas, com espessura sociológica, de mulheres com estatuto de empresárias e empreendedoras e/ou em posições de gestão.

Fá-lo a partir de estudos de caso de mulheres concretas, mas com um ponto de ancoragem comum - uma conceção de empreendedorismo que simultaneamente extravasa o domínio do trabalho e do contexto económico para incluir a dimensão da vida privada e familiar das protagonistas, tal como as suas representações de género (muitas vezes em reconfiguração). Mobiliza para a análise as condições estruturais, as oportunidades e as orientações simbólico-valorativas da conjuntura societal que enformam as experiências concretas destas mulheres empresárias, recusando, porém a visão essencialista e fatalista para compreender as transformações potencialmente emancipatórias e de desafio dos estereótipos de género na atividade.

Demarca-se da narrativa dominante tributária de uma abordagem individualista, proclamadora do sucesso, da autonomia e independência, do risco e do primado das qualidades pessoais e da autorrealização como perfil (masculino) de quem empreende - ou seja, demarca-se da “predominante inscrição do empresariado num modelo darwiniano e heroico masculino”, como o designa Emília Fernandes no cap. 1. Firma-se, assim, como um contributo para a ideia da académica feminista Helene Ahl (2006, 2012), de que o estudo do empreendedorismo feminino deve abandonar a abordagem voluntarista e individualista que tem dominado o campo, e que coloca a tónica no comportamento dos homens ou das mulheres empreendedoras, e nos handicaps destas últimas. Segundo a autora, a análise do empreendedorismo feminino deve voltar-se para os fatores de contexto, para as forças sociais que impactam o desenvolvimento do empreendedorismo, ou seja, a “genderização das ordens institucionais” (legislação, políticas de família, normas culturais e sociais e estereótipos de género) como uma variável independente e também para as representações sociais sobre empreendedorismo, e sobre empreendedorismo no feminino e no masculino (Ahl, 2006, apudMonteiro et al. 2015).

Nos relatos de vidas apresentados neste livro encontramos esta “genderização das ordens institucionais” e das representações genderizadas sobre o empreendedorismo e empresariado, mas também as repercussões de algumas transformações de género nos padrões familiares, educativos e económicos destas mulheres - designadamente o aumento dos níveis de escolarização e de qualificação, de participação no mercado de trabalho e nos cargos de decisão - e os seus impactos nas suas opções, práticas, mas também nos discursos sobre si e sobre a sua atividade e desempenho num “mundo entendido como masculino”.

Como Ana Paula Marques refere, “Ao assumirem lugares de chefia e direção em empresas ou criando oportunidades de negócio e emprego, as mulheres têm vindo a conhecer (re)configurações nas suas trajetórias profissionais e projetos de vida”, o que fica também ilustrado nas (re)configurações discursivas sobre si e sobre o empresariado retratadas no primeiro capítulo (p. 7).

Nos vários capítulos são apresentados resultados de pesquisa, sobretudo qualitativa, em Portugal, Brasil e Polónia, produzida através de estudos de caso, entrevistas biográficas e em profundidade, histórias de vida, observação participante, questionários e análise de dados macro, como por exemplo, o Roadmap para empresas familiares portuguesas (Marques 2018).

As autoras expõem uma diversidade de condições das mulheres perante o empresariado e o empreendedorismo, embora seja prevalecente o campo do pequeno empresariado (Ana Isabel Couto, cap. 2) e do empresariado familiar em que as mulheres assumem a direção da empresa fundada previamente por familiares (cap. 3 e 4, de Ana Paula Marques e Flávia Pereira, e cap. 7, de Hana Witt) ou que fundam elas próprias. Percebemos, nestes três textos, o caráter crítico da sucessão nas empresas familiares, os seus vários modelos, mas sobretudo a forma como nesses processos são também críticos os interesses das mulheres (potenciais sucessoras, mas muitas vezes desqualificadas e desconsideradas pelos fundadores). Percebemos também como as empresas familiares têm sido palco de mudanças intergeracionais com notável presença das mulheres em carreiras de gestão e responsabilidade empresarial, com mais elevadas qualificações do que os fundadores, e como a autonomização económica e organizacional destas mulheres em lugares de topo e de chefia (embora negligenciada da literatura sobre sucessões) tem potenciado estratégias de capacitação e superação de preconceitos e de estereótipos de género, imprimindo dinâmicas de profissionalização, responsabilidade e autoridade, em consonância com os desafios de sustentabilidade e competitividade da empresa familiar, ou seja, o que conduz a mudanças nos padrões culturais desta tipologia de empresas. Explora-se o potencial destas mudanças na alteração dos estereótipos que afastam as mulheres do empresariado e da liderança.

É também analisado o novo fenómeno das comunidades digitais de empreendedoras, como a Mulheres à Obra (Camila Rodrigues, cap. 5), verdadeiras redes de participação, entreajuda e fomento do capital social e consciencialização da dimensão coletiva e política do empreendedorismo feminino.

Rita Moreira (cap. 6) estuda o percurso-tipo de empreendedorismo jovem e qualificado impulsionado pelas instituições de ensino superior, permitindo compreender a importância dos programas que estas instituições desenvolvem para estímulo e apoio às jovens, no arranque dos seus próprios negócios (centros de empreendedorismo, parques de ciência, incubadoras, gabinetes de transferência de conhecimento e tecnologia e de proteção de propriedade intelectual, entre outros).

Sara Outón (cap. 8) apresenta as perceções de empreendedoras na Galiza, em Espanha, também no contexto da pandemia de COVID-19, identificando os fatores que motivam e lançam as mulheres na atividade empreendedora, ainda que na amostra prevaleça o empreendedorismo de necessidade. Finalmente, no último capítulo (9), Monika Fabińska identifica e sistematiza, a partir de revisão bibliográfica e de um estudo na Polónia, quais são os constrangimentos, barreiras, fatores motivadores, expectativas e perceções das mulheres no empresariado e liderança de negócios. Procura compreender como se podem eliminar essas barreiras através das políticas públicas, designadamente de reforço do acesso aos equipamentos de acolhimento de crianças, de reforço dos apoios de capital de arranque e dos programas de formação e mentoria para mulheres empreendedoras.

Se em todos os textos e estudos fica clara a posição contraditória destas mulheres, é no cap. 1, de Emília Fernandes, que esta “dupla posição genderizada” é analisada de forma mais aprofundada, salientando-se os dilemas discursivos e identitários entre a sua performance como empresárias e a sua condição como mulheres. No fundo, as suas análises confirmam a tipologia de fatores que tem sido mobilizada para explicar a opção pelo empresariado - os fatores de atração (independência, autorrealização, aumento dos rendimentos, detetar de oportunidades de mercado, detenção de uma competência e qualificação promissora) e os fatores de pressão que levam a empreender por necessidade (insatisfação laboral, desemprego, constrangimentos familiares e dificuldades de conciliação entre a vida profissional e família, entre outros), e que têm sido mais frequentemente associados às mulheres empreendedoras.

Não obstante estas tendências gerais, em termos de modelos de empresariado e tipos de obstáculos e constrangimentos, os vários casos analisados alertam criticamente para a variabilidade de situações, motivações e objetivos das mulheres que criam o seu próprio negócio ou que lideram os negócios da família, rejeitando a homogeneidade e essencialização. Fica claro como, para além das limitações e desigualdades decorrentes de uma atividade fortemente determinada pelas conceções de papéis de género prejudiciais para as mulheres, algumas dinâmicas de socialização, de aquisição de competências e qualificações e de recursos a montante e jusante do mercado de trabalho influenciam as trajetórias das mulheres estudadas. Elas são-nos apresentadas como “protagonistas de um movimento de fundo traduzido em trajetórias de autonomização económica e de capacitação para liderança [que] contribuem para atenuar estereótipos de género que estão na base da persistência de culturas organizacionais segregadas sexualmente” (pp.118-19).

O livro deixa-nos, pois, um sinal positivo e pistas para pesquisa futura acerca do empreendedorismo feminino, que pode ser associado a “mudanças dos padrões culturais das empresas familiares [devido] às elevadas qualificações e competências profissionais destas fundadoras, conjugadas com a apropriação das dinâmicas de inovação tecnológica, digitalização e sustentabilidade dos negócios, para além de alargamento do mercado local, atingindo o nacional e internacional” (cap. 3) e a experiências de requalificação do lugar e papel das mulheres como empresárias e líderes de empresas.

Referências bibliográficas

Ahl, Helene. 2006. “Why research on women entrepreneurs needs new directions.” Entrepreneurship Theory and Practice 30(5): 595-621. [ Links ]

Ahl, Helene, & Susan Marlow. 2012. “Exploring the dynamics of gender, feminism and entrepreneurship: advancing debate to escape a dead end?” Organization 19(5): 543-562. DOI: https://doi.org/10.1177/1350508412448695Links ]

CE - Comissão Europeia. 2013. Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões - Plano de ação «Empreendedorismo 2020» Relançar o espírito empresarial na Europa (2013/C 271/14). Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52013AE0941&from=FRLinks ]

Halabisky, David. 2018. “Policy Brief on Women’s Entrepreneurship.” OECD SME and Entrepreneurship Papers 8. Paris: OECD Publishing. DOI: https://doi.org/10.1787/dd2d79e7-enLinks ]

Marques, Ana Paula (Org.). 2018. Roadmap para Empresas Familiares: Mapeamento, Profissionalização e Inovação. e-book. Braga: CICS. Disponível em http://hdl.handle.net/1822/56256. [ Links ]

Monteiro, Rosa, Catarina Silveiro, e Fernanda Daniel. 2015. “Representações sociais do empreendedorismo no feminino e no masculino: investigação com estudantes.” Psicologia em Estudo 20(1): 107-116. DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v20i1.25539Links ]

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