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Toxicodependências

versão impressa ISSN 0874-4890

Toxicodependências v.16 n.2 Lisboa  2010

 

Consumo “não problemático” de drogas ilegais

 

Olga Souza Cruz1, Carla Machado2

1Psicóloga

2Professora Auxiliar da Escola de Psicologia da Universidade do Minho

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RESUMO

O consumo de drogas ilegais é uma prática cada vez mais comum em cidadãos “convencionais”, como forma de diversão e busca de prazer. Estudos sugerem que muitos consumidores têm consciência dos potenciais danos das drogas mas, ponderando os seus riscos e benefícios, optam por utilizá-las. Fazem-no, todavia, adoptando alguns cuidados de gestão dos consumos, de modo a reduzir potenciais danos. Reconhece-se hoje a existência de consumidores cujo ajustamento global não é significativamente prejudicado por esta prática. Neste estudo chamamos-lhes consumidores «não problemáticos» e pretendemos explicar de que modo estes sujeitos gerem os seus consumos para os manter como tal. Os nove par­ticipantes que integram este estudo foram seleccionados por um processo de amostragem teórica e os dados, obtidos através de entrevistas em profundidade, foram analisados de acordo com os princípios da grounded analysis. Os principais resultados sugerem que os consumidores «não problemáticos» utilizam uma multiplicidade de estratégias de gestão dos consumos, como o controlo da sua regularidade, dos seus locais e dos tipos de drogas usadas. Conhecer estas estratégias pode ser um instrumento importante para a redu­ção dos potenciais prejuízos dos consumos e para potenciar o efeito dos programas de redução de danos.

Palavras-chave: Drogas Ilícitas; Consumo «Não Problemático»; Es­tratégias de Gestão dos Consumos; Redução de Danos.

 

RÉSUMÉ

La consommation de drogues illicites est une pratique de plus en plus répandue chez des citoyens “conventionnels” comme forme de divertissement et de plaisir. Des études montrent que de nombreux consommateurs ont conscience des dommages potentiels liés à l’usage des drogues mais, pesant les risques et les avantages, ils choisissent la consommation. Ils le font toutefois en prenant un certain nombre de précautions dans la gestion des produits consommés de façon à réduire les dommages potentiels. On admet aujourd’hui l’existence de consommateurs dont l’ajustement global n’est pas endommagé de façon significative par cette pratique. Ils sont ce que nous appelons dans cette étude des consommateurs «non problématiques»; nous cherchons ici à expliquer la façon dont ils gèrent leur consommation afin de se maintenir comme tel. Les neuf personnes qui ont participé à cette étude ont été choisies selon un processus d’échantillonnage théorique et les données, obtenues grâce à des entretiens en profondeur, ont été analysées selon les principes de la grounded analysis. Les principaux résultats semblent montrer que les consommateurs «non problématique» utilisent un large éventail de stratégies de gestion de la consommation telle que le contrôle de la régularité, le lieu de consommation et le type de drogue prise. Connaître ces stratégies peut s’avérer un outil important pour réduire les risques potentiels de la consommation et d’améliorer l’effet des programmes de réduction de dommages.

Mots-clé: Drogues Illicites; Consommation «Non Problématique»; Stratégies de Gestion de la Consommation, Réduction de Dommages.

 

ABSTRACT

Illicit drug use is increasingly used by “conventional” citizens, as a form of diversion and to get pleasure. Studies suggest that various drug users are conscious about drugs’ potential harms but, taking into account their risks and benefits, decide to use them. However, they do it with some care, using some drug use management strategies, in order to minimize potential harms. The existence of drug users whose global adjustment is not significantly damaged by this practice is nowadays recognized. In this study we call them «non problematic» illicit drug users, and we intend to explain the processes by which some subjects manage their drug uses in order to keep them as so. The nine participants that integrate this study were selected through theoretic sampling and reached by a snowball strategy, being then subjected to an in-depth interview. Data were inductively analyzed, through a grounded analysis process. The main results indicate that «non problematic» illicit drug users resort to several strategies to manage their habit, namely, the control over the regularity, locations and types of drugs they use. Understanding these kinds of strategies may be an important contribution to reduce drug use potential harms and to enhance harm reduction efforts.

Key Words: Illicit Drugs; «Non Problematic» Drug Use; Drug Use Management Strategies; Harm Reduction.

 

RESUMEN

El consumo de drogas ilegales es una práctica cada vez más habitual en ciudadanos “convencionales”, como forma de divertirse y buscar placer. Estudios sugieren que muchos consumidores tienen consciencia de los potenciales danos de las drogas pero, ponderando sus riesgos y beneficios, optan por las utilizar. Lo hacen, todavía, adoptando algunos cuidados de gestión de los consumos, de modo a reducir potenciales daños. Hoy en día se reconoce la existencia de consumidores cuyo ajustamiento global nos es significativamente perjudicado por esta práctica. En este estudio les llamamos consumidores “no problemáticos” y pretendemos explicar la manera como estos sujetos giren sus consumos para mantenerlos así. Los nueve participantes que integran este estudio fueron seleccionados según un proceso de muestra teórica y los datos, obtenidos a través de entrevistas en profundidad, fueron analizados de acuerdo a los principios de grounded analysis. Los principales resultados sugieren que los consumidores “no problemáticos” utilizan una multiplicidad de estrategias de gestión de los consumos, como el controlo de su regularidad, de los locales y tipos de drogas usadas. Conocer estas estrategias puede ser in importante instrumento para la reducción de potenciales prejuicios de los consumos y para potenciar el efecto de los programas de reducción de daños.

Palabras Clave: Drogas Ilícitas; Consumo “No Problemático”; Es­trategias de Gestión de los Consumos; Reducción de Daños.

 

 

1 – Introdução

A utilização de drogas ilegais é um fenómeno amplamente difundido que integra, desde há muito tempo, os hábitos culturais de diferentes povos. Assiste-se, actualmen­te, à difusão do consumo recreativo entre muitos jovens convencionais e à minimização de diferenças sociodemográficas no consumo (Gourley, 2004). a maioria da investigação sobre a utilização de substâncias ilícitas permanece, porém, centrada nos seus aspectos problemáticos e em amostras patológicas. atribui-se pouca atenção às suas dimensões hedonísticas e aos consumidores “funcionais” (Smith & Smith, 2005, p. 5). No entanto, prazer, diversão e curiosidade são motivos frequentemente atribuídos pelos consumidores à utilização de drogas (Balsa, Farinha, Urbano, & Francisco, 2004; galhardo, Cardoso, & Marques, 2006; Parker, Williams, & Aldridge, 2002). Considera-se que o consumo de substâncias ilegais é particularmente significativo entre pessoas que frequentam espaços de recreação nocturnos (Calafat, Gómez, Juan, & Becoña, 2007; Parker et al., 2002; Silva, 2005). Neste sentido, os contextos recreativos são locais onde se deve intervir, inclusive para a redução de riscos e minimização de danos (Galhardo et al., 2006; Silva, 2005).

Investigações recentes sugerem que os utilizadores de substâncias ilícitas têm consciência dos potenciais prejuízos do consumo, inclusive a nível da saúde (Parker et al., 2002; San Julián & Valenzuela, 2009). Alguns estudos apontam também que, em função dessa consciência dos riscos, os sujeitos gerem os seus consumos para evitar eventuais danos (Kelly, 2005; Parker et al., 2002; Shiner & Newburn, 1997; silva, 2005; Whiteacre & pepinsky, 2002). Algumas das estratégias de gestão dos consumos mais discutidas na literatura prendem-se com: a sua ocultação (Smith & Smith, 2005); a gestão da sua regularidade e mode­ração da quantidade usada (Kelly, 2005; Silva, 2005); a busca de informação sobre as drogas (Kelly, 2005; Silva, 2005; Whiteacre & Pepinsky, 2002); a escolha das substâncias a usar (Parker et al., 2002); e a ges­tão das circunstâncias e contextos do consumo, não o fazendo quando estão sob estados psicológicos negativos (Gourley, 2004; Silva, 2005).

O exposto sugere que alguns consumidores são capazes de manter o seu ajustamento global apesar de utilizarem substâncias ilícitas. Exceptuando os consumos, são sujeitos bem ajustados às normas convencionais, como por exemplo estudantes universitários (Galhardo et al., 2006; Levy, O’Grady, Wish, & Arria, 2005; Parker et al., 2002) ou sujeitos inseridos no mercado de trabalho (Frone, 2006).

Dada a pouca eficácia que a estratégia proibicionista tem vindo a mostrar (Fernandes, 2009; Quintas, 2006), parece mais proveitoso trabalhar para a redução de danos. Isso implica educar sobre, e para, o consumo, envolver os consumidores no processo de mudança (Whiteacre & Pepinsky, 2002) e discutir não só os riscos e danos do consumo como também as suas potenciais vantagens (Levy et al., 2005; San Julián & Valenzuela, 2009). Além disso, uma efectiva redução de danos exige o estabelecimento de uma relação de confiança com os consumidores e a valorização das suas perspectivas (e.g., sobre os riscos e vantagens do consumo), bem como das condições concretas do seu quotidiano e do seu consumo (Fernandes, Pinto, & Oliveira, 2006). Whiteacre e Pepinsky (2002) defendem a possibilidade de minimizar os danos relacionados com as drogas ao encorajar um consumo responsável. Propõe, assim, consentir-se que os próprios sujeitos decidam acerca do seu envolvimento no consumo, bem como uma mudança do foco das questões que se colocam sobre as drogas, perguntando-se: De que modo certas pessoas conseguem manter relações saudáveis com as drogas e de que modo outras desenvolvem relações não saudáveis?, em vez de Porque é que as pessoas consomem drogas? (ibidem).

Assim, o objectivo central do presente estudo é construir um modelo teórico que permita compre­ender e explicar de que modo certos consumidores de drogas ilícitas conseguem manter consumos «não problemáticos». Mais especificamente, deseja-se per­ceber que estratégias de gestão dos consumos utilizam para manter os seus consumos «funcionais».

 

2 – Método

2.1 – Participantes

Dados os nossos objectivos, optamos por conduzir uma investigação qualitativa, em que a selecção dos participantes foi feita através de um processo de amostragem teórica e o acesso a eles foi conseguido através de uma estratégia de snowball sampling. Os participantes foram intencionalmente seleccionados por cumprirem os critérios de inclusão que havíamos definido, de forma a podermos considerá-los consu­midores «não problemáticos»:

a) Critérios externos:

(a1) ausência de problemas médicos, sociais ou legais relacionados com os consumos;

(a2) caracterização do sujeito por terceiros signifi­cativos como consumidor «não problemático»;

(a3)consumos «não problemáticos» mantidos durante um período mínimo de cinco anos.

b) Critério interno ou subjectivo:

(b1) autocaracterização do sujeito como consumidor «não problemático».

A primeira fase do estudo envolveu um grupo de 9 participantes, 6 homens e 3 mulheres, entre os 23 e os 32 anos e com diversas ocupações (e.g., estudante uni­versitário; profissional da indústria; agricultor).

2.2 – Procedimento e instrumentos

Aos participantes era solicitada a colaboração para um estudo sobre diferentes padrões de utilização de drogas ilegais e sobre as estratégias de gestão dos consumos que permitem manter padrões «não pro­blemáticos». A nossa intenção era compreender, com detalhe, as questões colocadas e a partir da perspectiva dos participantes. Assim, optamos por realizar entrevistas qualitativas semi-estruturadas, que foram anali­sadas de acordo com os princípios da grounded analysis (Strauss & Corbin, 1990) e com auxílio do software QSR NVivo 8. Genericamente, o guião semi-estruturado, construído especificamente para este estudo, incluía questões sobre: (a) os padrões de consumo dos par­ticipantes (e.g., tipo de drogas usadas; regularidade do consumo; seus contextos e circunstâncias; percepções de terceiros sobre os seus consumos); (b) as suas experiências de utilização de drogas ilegais e as sig­nificações que lhes atribuíam; e (c) as estratégias de gestão dos consumos utilizadas para manter consumos «não problemáticos». A entrevista ocorreu num único momento, ainda que com duração muito variável, entre uma a três horas.

2.3 – Validação

Para a validação do modelo teórico, elaborado a partir dos resultados, efectuámos uma consulta aos partici­pantes, apresentámos-lhes o modelo e todos referiram que ele traduzia a sua experiência e pontos de vista. Para o enriquecer e validar, o passo seguinte, actualmente em curso, é a recolha e análise dos dados de dois grupos contrastantes: consumidores «problemáticos» e consumidores «ex-problemáticos» (sujeitos que manti­veram no passado consumos «problemáticos» mas que hoje têm consumos «não problemáticos»).

 

3 – Resultados

Começaremos por descrever os principais resultados deste estudo, para de seguida apresentarmos o modelo teórico que construímos para explicar a manutenção de consumos «não problemáticos» na nossa amostra.

3.1 – Descrição dos resultados centrais

Na nossa amostra, a curiosidade surgiu como o principal motivo para o primeiro consumo de uma droga ilegal (n=7). Além disso, todos os participantes se referiram à difusão actual dos consumos e à aceitação social da utilização de canabinóides.

Para todos os participantes, o cannabis surgiu como a primeira droga ilegal usada (em média aos 15 anos) e as outras substâncias ilícitas só começaram a ser consumidas quando eram mais velhos (em média aos 19 anos). Para a maioria dos entrevistados, o ecstasy foi a primeira droga além do cannabis que experimentaram (n=6). Além disso, todos eles admitiram ter passado por um período, mais ou menos longo, de experimentação de diversas outras substâncias ilegais, sobretudo de outros estimulantes, como por exemplo a cocaína (n=7) e de alucinogénios, como os cogumelos alucinogénios (n=7) e o LSD (n=6).

Todos os participantes conotaram como positivas a maioria das suas experiências de consumo, destacando o prazer como o aspecto mais valorizado (n=9).

Não obstante, todos identificaram também alguns aspectos negativos relacionados com o uso de certas drogas, como a maior preguiça com a utilização de cannabis (n=6) e os perigos do consumo em relação a outras substâncias além dos canabinóides (n=3). Além disso, três sujeitos admitiram experiências realmente negativas com a utilização de certas drogas, como a heroína e o crack.

A importância das vivências com pares que também consomem foi referida por todos os participantes como um meio de aprendizagem sobre as drogas (n=9), inclusive através de conversas com pares (n=8) e da observação de comportamentos (n=7). Assim, o consumo dos pares surgiu como um modelo (n=7), inclusive para a decisão de consumir, ou não, uma subs­tância (n=6). As vivências com pares consumidores foram também realçadas como um importante meio de aprendizagem sobre os efeitos e consequências das drogas (n=9), o que é congruente com a percepção da maioria dos participantes acerca da importância do uso informado das substâncias (n=8), inclusive para evitar experiências negativas (n=5). Além disso, cinco entrevistados realçaram também a importância das vivências com pares consumidores como um meio de aprendizagem, em concreto, sobre estratégias de gestão dos consumos, relacionadas, por exemplo, com o tipo de drogas usadas (n=3) e com a sua regularidade e frequência (n=2).

Na nossa amostra, actualmente, apenas quatro par­ticipantes tinham monoconsumos só de cannabis e a maioria tinha policonsumos (n=5). Nestes, o cannabis realçava-se como a principal droga usada (n=5), apesar de ser acompanhada pelo uso ocasional de outras substâncias ilegais, sobretudo estimulantes e em con­creto cocaína (n=5). Este grupo de sujeitos tinha um consumo continuado destas drogas ilícitas, embora num padrão ocasional, há uma média de 9 anos. Além disso, tanto nos mono como nos policonsumos, verificou-se uma utilização regular e diária de cannabis (n=9), que ocorria já há uma média de 10 anos.

Os participantes discutiram diversas estratégias ou cuidados de gestão dos consumos, relacionadas em concreto com: o tipo de drogas usadas (n=9); a regu­laridade e frequência dos consumos (n=9); os seus contextos e circunstâncias (n=9); a sua ocultação (n=9); a gestão da aquisição das drogas (n=9); as vivências com pares consumidores (n=9); e a quantidade de dro-gas usadas (n=7). Em relação ao tipo de substâncias utilizadas, foi consensual a diferenciação das drogas (n=9) e a maioria distinguiu dois grandes grupos – por um lado, o cannabis e os seus derivados e, por outro, todas as outras substâncias ilícitas (n=8). Esta distinção baseava-se nos efeitos distintos que consideravam ser provocados pelas diferentes drogas e que encaravam como menos prejudiciais apenas no que respeita ao cannabis (n=8). Quanto às outras substâncias ilegais, a maioria dos participantes estabeleceu distinções adicionais (n=7), que exemplificaram contrastando prin­cipalmente a heroína com a cocaína inalada (n=7).

A ideia da maioria dos sujeitos é de que todas as drogas além do cannabis são prejudiciais, mas umas – concre­tamente os estimulantes e os alucinogénios – são mais controláveis do que outras, em especial os opiáceos (n=7). Deste modo, a maioria dos participantes realçou a importância de, para manter um consumo «não proble­mático», não usar heroína (n=6) e três referiram-no tam­bém em relação ao crack. Importa ainda destacar, que a maioria dos entrevistados se revelou consciente dos malefícios do consumo de drogas (n=6), sobretudo com a heroína (n=5) e a cocaína (n=3). Quanto à regularidade e frequência dos consumos, foi consensual a necessida­de de os conciliar com o cumprimento das actividades convencionais (n=9), o que implica reduzir a sua regu­laridade e frequência, sobretudo por constrangimentos ocupacionais (n=9). No entanto, a maioria dos partici­pantes admitiu trabalhar ou estudar sob o efeito das drogas ilegais, mas apenas dos canabinóides (n=6). Esta prática é compreensível se se considerar a percepção consensual dos sujeitos de que o consumo de canna­bis é compatível com o cumprimento das actividades normativas. O mesmo não defenderam em relação às outras substâncias ilícitas que, segundo eles, só podem ser utilizadas ocasionalmente e em contexto de ócio, para se conseguir manter um consumo «não problemáti­co» (n=9). Em relação às circunstâncias e contextos dos consumos foi consensual a importância de usar as drogas nos contextos certos (n=9), para melhor usufruir da sua utilização (n=7) e para evitar experiências negativas (n=6). Assim, o cannabis e os seus derivados surgiram como as únicas substâncias ilegais que podem ser con­sumidas em praticamente qualquer contexto e circuns­tância, sozinho ou com outros (n=9). Todas as outras drogas ilícitas só podem, segundo os participantes, ser usadas em contextos e circunstâncias especiais, mais festivas e sempre na presença de outros (n=9). Os contextos físicos de festas (n=9) e as residências particulares (n=8) surgiram como importantes locais de consumo. Para preservar a imagem social, foi consen­sual a necessidade de ocultar os consumos, inclusive para evitar julgamentos negativos, a nível social (n=9) e familiar (n=5) e para evitar problemas legais (n=6). De facto, a maioria dos entrevistados admitiu já ter tido, pelos consumos, algum tipo de experiências com agentes da autoridade, embora realçando a ausência de repercussões negativas significativas (n=5). Além disso, foi também consensual a possibilidade de ocul­tação dos consumos, o que implica o uso das drogas em locais resguardados (n=9). Igualmente consensual foi a importância de gerir a aquisição das substâncias, fazendo-o preferencialmente a conhecidos (n=9) e em locais seguros (n=7), sobretudo para garantir a oculta­ção da transacção (n=5), mas também a qualidade das drogas, já que essa foi uma preocupação manifestada pela maioria dos participantes (n=7). Por fim, para obter efeitos positivos e evitar experiências desagradáveis, a maioria dos entrevistados acrescentou a referência a cuidados relacionados com a quantidade de drogas usada (n=7), realçando a importância de não consumir em grandes quantidades (n=6).

Ainda que as referências a estes cuidados sejam comuns aos diversos sujeitos, todos consideraram que a gestão dos consumos é idiossincrásica e influenciada por características pessoais dos consumidores (n=9), como por exemplo a sua capacidade de autocontrolo (n=7).

Importa, ainda, dizer que todos os participantes se caracterizaram como consumidores «não problemáticos» (n=9), por se crerem capazes de, não obstante os consumos, se manterem ajustados nas várias áreas de vida (n=9), como sejam o trabalho, a família e a inserção social.

3.2 – Modelo teórico: de que modo certos consumidores de drogas ilegais conseguem manter os seus consumos «não problemáticos»?

Com base nos resultados anteriores, consideramos que o consumo «não problemático» de drogas ilegais é um processo constante de auto-regulação da utilização destas substâncias.

Este consumo é iniciado sobretudo pela curiosidade sobre as drogas e é facilitado pelas vivências com pares que consomem, inclusive por proporcionarem o acesso e a aquisição das substâncias. Estes dois factores contribuem para o desejo de consumir e a concretização deste desejo é facilitada por certas percepções legitimadoras da utilização de substâncias ilícitas, partilhadas pelos sujeitos, como a ideia da difusão actual dos consumos e a ideia da aceitação social do uso de cannabis. Reúnem-se assim as condições para que ocorra a iniciação dos consumos, o que tende a acontecer com os canabinóides, seguindo-se um período de experimentação de várias outras drogas ilícitas.

Durante os consumos, os sujeitos vão tendo diversas experiências, mais ou menos positivas, que juntamente com as vivências com pares consumidores os levam a desenvolver certos cuidados de gestão dos consumos. De facto, em função da qualidade das experiências de consumo que vão tendo, os sujeitos vão moldando a sua utilização de drogas: as experiências positivas, que proporcionam prazer e que são as mais frequen­tes, contribuem para a manutenção dos consumos; os aspectos negativos experienciados com o uso de certas drogas, apesar de não serem suficientemente significativos para provocar o abandono dos consumos, contribuem para a sua adaptação de modo a evitar tais aspectos negativos; e, por sua vez, algumas experiên­cias realmente negativas com a utilização de certas substâncias, embora muito mais raras, fazem com que os sujeitos nunca mais as consumam.

Assim, o consumo «não problemático» é informado pela qualidade das experiências pessoais de utilização de drogas e pelas vivências com pares consumidores, já que estas últimas surgem como importantes meios de aprendizagem sobre as substâncias e como modelos, inclusive para a decisão de consumir ou não uma droga. Em função destes dois factores, os sujeitos vão desenvolvendo certos cuidados de gestão dos seus consumos, de modo a potenciar o prazer e a minimizar os seus potenciais aspectos negativos.

O processo de auto-regulação dos consumos envolve a ponderação constante da relação entre custos – leia-se os malefícios das substâncias e os aspectos negativos da sua utilização – e benefícios – em con­creto o prazer que deles retiram. Este processo implica a gestão contínua da utilização das drogas, ainda que, muitas vezes, ela não seja conscientemente pensada nem reflexivamente aplicada. Contudo opera no quotidiano e inclui cuidados diversos de gestão dos consumos. De entre eles, realçam-se os que se referem ao tipo de substâncias usadas e à regularidade e frequência da sua utilização, já que é em torno dessas duas dimensões que se tende a definir o padrão de consumo actual. Isto porque, apesar dos sujeitos passarem tendencialmente por uma fase inicial de experimentação de várias substâncias ilícitas, ao longo do tempo os seus consumos tendem a desenvolver-se e a estabilizar num padrão que, em geral, envolve o uso regular de cannabis e o uso só ocasional de todas as outras drogas ilegais. Este padrão é frequentemente mantido durante muito tempo, não se tratando de consumos fugazes.

Com o tempo – e fruto das suas experiências pessoais de consumo e das experiências com pares consumidores – os sujeitos vão desenvolvendo mais cuidados de gestão da utilização de drogas. O objectivo central destes cuidados é manter a funcionalidade nas diversas áreas de vida, o que envolve três sub-objectivos: controlar o consumo; preservar a imagem social e evitar o estigma; e obter efeitos positivos e evitar experiências desagradáveis. Para manter o controlo sobre o consumo realçam-se cuidados relacionados com: o tipo de substâncias usadas; a regularidade e frequência da sua utilização; e os seus contextos e circunstâncias. Para preservar a imagem social e evitar o estigma destaca-se a importância: da sua ocultação; da gestão da aquisição das drogas; e, outra vez, dos contextos e circunstâncias dos consumos. Por fim, para obter efeitos positivos e evitar experiências desagradáveis salientam-se os cuidados relacionados com: a quantidade de drogas usada; e, de novo, com o tipo de substâncias consumidas, os contextos e circunstâncias dos consumos e também com as vivências com pares consumidores (já que são valorizadas como um importante meio de aprendizagem sobre as drogas).

 

4 – Discussão

Um dos principais alcances deste estudo é mostrar que há consumidores de drogas ilegais que não se enquadram nas noções comuns de consumidor «problemático» ou «toxicodependente». De facto, a própria lei portuguesa admite essa possibilidade, já que diferencia os utilizadores «toxicodependentes» e os «não toxicodependentes» (Quintas, 2006).

Os nossos participantes, embora utilizem substâncias ilícitas, definem-se como bem ajustados nas diferentes áreas de vida, o que sugere que são consumidores funcionais. Importa, também, realçar que utilizam drogas há quase uma década, não se tratando, portanto, de consumos fugazes. Além disso, acentua-se que a nossa amostra foi seleccionada também em função de critérios externos, inclusive a caracterização do sujeito por terceiros significativos como consumidores «não problemáticos» e a ausência de problemas legais, sociais ou médicos relacionados com os consumos. De facto, outros estudos reportam essa integração e valoração social de certos utilizadores de substâncias ilegais (Frone, 2006; Galhardo et al., 2006; Parker et al., 2002). Por exemplo, Smith e Smith (2005, p. 18) descrevem os seus participantes como consumidores “funcionais”, pela sua capacidade de conciliar os consumos com a manutenção de um trabalho e de um estilo de vida “normal”. Esta capacidade parece resultar de um processo de minimização e gestão de riscos, à semelhança do que é referido noutros estudos (Kelly, 2005; Parker et al., 2002; Silva, 2005; Whiteacre & Pepinsky, 2002). Trabalhos anteriores demonstraram que, para tal, as aprendizagens em grupos de con­sumidores desempenham um papel fundamental (Becker, 1973; Gourley, 2004; San Julián & Valenzuela, 2009), nos quais se propagam normas que ajudam a gerir os consumos e a evitar más experiências (Whiteacre & Pepinsky, 2002). Outros autores assinalam também a dimensão de autogestão e autocontrolo em alguns consumidores. Ehrenberg e Mignon (1992, cit. Quintas, 2006, p. 20) consideram mesmo que “A esmagadora maioria de utilizadores de drogas exerce autocontrolo dos consumos”. Na nossa amostra, este autocontrolo envolve três grandes conjuntos de cuidados destinados a manter a funcionalidade nas diferentes áreas de vida: a) cuidados para manter o controlo sobre o consumo; b) cuidados para preservar a imagem social e evitar o estigma; e c) cuidados para obter efeitos positivos com as substâncias e evitar experiências desagradáveis.

Do nosso ponto de vista, os cuidados relacionados com o tipo de substâncias usadas e com a regularidade do seu consumo surgem como centrais, inclusive porque é em função deles que se tende a definir o padrão de consumo actual. Este consumo, em geral, envolve o uso regular de cannabis e a utilização só ocasional de outras substâncias ilícitas, sobretudo a cocaína inala­da – padrão semelhante ao que é reportado noutros estudos (Galhardo et al., 2006; Levy et al., 2005; Silva, 2005). Assim, apesar de utilizarem substâncias ilegais, estes sujeitos não parecem alheados das expectativas e normas convencionais. De facto, eles parecem tentar conciliar os consumos com as responsabilidades con­vencionais e, nesse sentido, só concebem o uso regu­lar de cannabis dado que a consideram como a única substância compatível com as actividades normativas. Esta diferenciação das drogas ilícitas em função da perigosidade que lhes atribuem foi também constatada por Parker e colaboradores (2002), destacando que os sujeitos decidem não consumir, sobretudo, heroína e crack, por as considerarem as substâncias mais pre­judiciais e optam por utilizar drogas que crêem não prejudicar o desempenho profissional, num esforço de conciliar o consumo com as responsabilidades normativas.

Além disso, e como já foi referido, os nossos partici­pantes consideram que as substâncias devem ser usadas em contextos próprios, não só para melhor usufruir dos seus efeitos, mas também para ocultar o seu consumo e, desse modo, evitar problemas legais e o estigma social. Importa realçar que esta necessidade de ocultação dos consumos obriga a pensar nos problemas para os consumidores provocados pelas políticas proibicionistas em vez de pelas próprias drogas. São vários os autores que discutem os pro­blemas gerados por esta política repressiva, inclusive a nível sanitário (e.g. prejuízos para a saúde pública), social (e.g., marginalização dos consumidores), económico (e.g., custos da repressão; aparecimento de mercados negros) e jurídico (e.g., ameaça aos direitos fundamentais e liberdades individuais dos consumidores) (Caballero & Bisiou, 2000, cit. Quintas, 2006; Fernandes, 2009; Smith & Smith, 2005). Além disso, é frequentemente realçada a sua falta de eficácia, nomeadamente para a diminuição das taxas de prevalência dos consumos (Fernandes, 2009; Quintas, 2006). O nosso estudo permite questionar também até que ponto a falta de eficácia das políticas oficiais das drogas não é alimentada pela discrepância entre um discurso público sobre as drogas que se centra nos seus prejuízos (San Julián & Valenzuela, 2009), ao mesmo tempo que os consumidores (funcionais) valorizam o consumo de substâncias ilícitas e salientam o prazer que daí retiram. Com efeito, os discursos oficiais tendem a centrar-se nos aspectos problemáticos dos consumos e a associá-los linearmente com problemas, pessoais e sociais diversos (O’Malley & Valverde, 2004). Fazendo-o, arriscam-se, na nossa opinião, a não compreender correctamente as motivações e experiências de pelo menos parte dos consumidores, assim como a não conseguir chegar a eles. Com efeito, a discussão pública sobre as drogas pode ser sentida pelo tipo de consumidores que descrevemos neste texto como falseada, contribuindo assim para que se desliguem desse debate.

Por outro lado, a utilização de substâncias ilícitas parece consideravelmente independente da mera abordagem jurídica do problema. Por exemplo, Reuband (1995, cit. Quintas, 2006) comparou os dados de prevalência de consumo de cannabis em países europeus tolerantes (como a Holanda e a Espanha) e repressivos (como a França e o Reino Unido) e não encontrou uma ligação persistente dessa prevalência com a legislação do país. Assim, conclui que “os consumos de drogas não dependem das diferenças nos sistemas de controlo legal” (Reuband, 1995, cit. Quintas, 2006, p. 54) e que as substâncias ilícitas tendem a ser valoriza­das pelo ócio que podem proporcionar e parecem cada vez mais integradas no estilo de vida de muitos sujeitos globalmente “convencionais”. Se assim é, tal como o nosso estudo parece corroborar, mais que trabalhar para a abstinência, parece mais pragmático e proveitoso tentar reduzir os potenciais danos dos consumos. Nesse sentido, e na nossa perspectiva, há um conjunto de aspectos a considerar. Desde logo, há que desenvolver um trabalho horizontal, envolvendo nele os próprios consumidores, valorizando a sua perspectiva e encarando-os como peritos no tema (lógica que é, aliás, intrínseca à redução de riscos e minimização de danos) (Fernandes, 2009). É necessário promover um diálogo franco, sobre informação precisa (e.g., efeitos, consequências e potenciais riscos e danos das drogas), o que, na nossa perspectiva, implica que se admitam os benefícios que os consumidores atribuem aos consu­mos (e.g., prazer, diversão). Além disso, consideramos importante apostar em estratégias mais concretas como os testes das drogas. Igualmente central é inter-vir em contextos de consumo significativos. Ainda que muitos sujeitos utilizem as substâncias em locais mais inacessíveis (e.g., residências particulares), uma grande parte fá-lo em contextos recreativos, como bares e discotecas. O contexto partying-clubbing, por exemplo, realça-se como central para o padrão de policonsumo recreativo e a maioria dos seus actores são utilizadores diários de cannabis e consumidores regulares aos fins-de-semana de drogas de dança, como estimulantes (Parker et al., 2002). Cremos ser importante intervir nestes locais, trabalhando não só com os seus frequentadores (como referido anteriormente), mas também com os seus responsáveis e com outros profissionais destes meios (Calafat, Fernández, Juan, & Becoña, 2005). Em relação a estes últimos, dada a sua proximidade com os utilizadores de drogas e o importante papel que podem ter junto deles, interessa conhecer as suas ideias em torno dos consumos, assim como as suas práticas de utilização de substâncias (Calafat et al., 2005). Importa, ainda, investir na sua formação, não só a nível teórico (e.g., informações precisas sobre as drogas, inclusive os seus efeitos e riscos) mas também a nível prático (e.g., noções de suporte básico de vida, para que sejam capazes de actuar imediatamente em situações de emergência) (ibidem).

Para terminar, realçamos que a nossa investigação tem a limitação de não possibilitar a generalização dos resultados, dado não se tratar de uma amostra representativa da população consumidora em geral.

Não obstante, a amostra considerada tem também, e na nossa perspectiva, a vantagem de representar uma faceta usualmente oculta do consumo de drogas e de estimular um debate mais complexo sobre as múltiplas facetas deste fenómeno.

 

Referências Bibliográficas

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Artigo recebido em 23/04/10; versão final aceite em 18/06/10.