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Toxicodependências

versão impressa ISSN 0874-4890

Toxicodependências v.16 n.2 Lisboa  2010

 

Exclusão social e violências quotidianas em “bairros degradados”: etnografia das drogas numa periferia urbana

 

Luís Fernandes1, Alexandra Ramos2

1Professor associado a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.

2Psicóloga, investigadora da equipa de rua da Cooperativa Arrimo.

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RESUMO

Este artigo sintetiza os principais dados duma investigação que tem vindo a ser levada a cabo desde 2007 em dois dos bairros sociais periféricos mais conotados com o comércio e o consumo de drogas no Porto. Através do método etnográfico, segue-se o percurso às dinâmicas que o fenómeno droga na rua foi conhecendo, à medida que se adaptava a um acontecimento ecossocial de grande envergadura para a comunidade local: a demolição dum dos bairros e o realojamento de parte da sua população num outro, situado na sua vizinhança. Descrevem-se alguns dos traços da vida quotidiana nas plataformas junkie, os tipos de actores que as organizam e frequentam, as relações entre eles e as forças policiais e a violência inscrita na trama de relacionamentos entre os múltiplos actores em presença. Problematizam-se, a partir destas evidências empíricas, algumas das dimensões que nos permitem relacionar violência estrutural e violência quotidiana, bem como o modo como são habitualmente equacionadas as relações entre droga, exclusão social e políticas de cidade que elegem como alvo os “bairros das drogas”.

Palavras-chave: Mercado das Drogas; Bairro Social; Exclusão Social; Etnografia; Violência Urbana.

 

RÉSUMÉ

Cet article synthétise les principales données d’une recherche en oeuvre depuis 2007 dans deux des quartiers sociaux périphériques plus connotés avec le commerce et la consommation de drogues à Porto. En utilisant la méthode ethnographique, nous avons accompagné l’évolution des dynamiques du phénomène ‘drogue dans la rue’, au fur et à mesure que la communauté locale s’adaptait à un événement eco-social très important: la démolition d’un des quartiers et le relogement de partie de sa population dans un autre quartier voisin. On décrit certaines des traces de la vie quotidienne dans les endroits junkie, les types d’acteurs qui les organisent et fréquentent, les relations entre eux et les forces policiers, et la violence inscrite dans la trame de relations entre les multiples acteurs en présence. À partir de ces évidences empiriques, on discute certaines des dimensions qui permettent rapporter la violence structurelle et la violence quotidienne, ainsi que la manière comme habituellement sont pensées les relations entre drogue, exclusion sociale et les politiques urbaines qui ont comme cible les «quartiers des drogues».

Mots-clé: Marché des Drogues; Quartier Social; Exclusion Social; Ethnographie; Violence Urbaine.

 

ABSTRACT

This article synthesises the main data of an inquiry led since 2007 in two of the peripheral social housing neighborhoods in Oporto that are more related with drug dealing and consumption. Using the ethnographic method, we follow the evolution of the ‘drug in the street’ phenomenon, while the local community was adapting to a big eco-social event: the demolition of one of the neighborhoods, and the reaccommodation of part of its population in another quarter nearby. Some traces of the daily life in junkie areas, types of actors that organize and use them, their relationship with each other and with the police, and the enrolled violence in these relationships web. From these empirical evidences, some of the dimensions that allow us to relate structural violence and daily violence were discussed, as well as the way the relations between drug, social exclusion and urban politics on “drugs neighborhoods” are usually equated.

Key Words: Drugs Markets; Social Housing Neighborhood; Social Exclusion; Ethnography, Urban Violence.

 

RESUMEN

Este artículo sintetiza los principales datos de una investigación conducida desde 2007 en dos de los barrios periféricos más conocidos en Oporto por el comercio y el consumo de drogas. La etnografía fue el método utilizado para captar las dinámicas del fenómeno de la droga en la calle, mientras se iba adaptando a un hecho eco-social de gran magnitud para la comunidad local: la demolición de uno de los barrios y la transferencia de una parte de sus habitantes para el barrio vecino. Se describen algunos de los rasgos de la vida cotidiana en las plataformas junkie, los tipos de actores que las organizan y frecuentan, sus relaciones con la policía y la violencia emergente en el conjunto de relaciones entre los múltiplos actores del contexto. La problematización es echa basada en las evidencias empíricas, algunas de las dimensiones que nos permiten relacionar la violencia estructural e la violencia cotidiana, y equiparar las relaciones entre drogas, exclusión social y políticas de la ciudad que elijen los “barrios degradados” como blanco.

Palabras Clave: Mercado de las Drogas; Barrios Sociales; Etnografía; Violencia Urbana.

 

 

1 – Introdução: das relações entre drogas e exclusão social

Ao longo dos anos 80 e 90 do século que há pouco terminou, habituámo-nos a ver o termo “droga” associado ao do tráfico e ao do crescimento da pequena criminalidade. A legislação penal promulgada em meados dos anos 90 daria expressão legal a estas associações, equiparando o crime de tráfico, em termos de gravidade para a sociedade, aos de terrorismo ou de homicídio qualificado, tornando a prisão uma das mais importantes instituições de “acolhimento” de indivíduos relacionados com drogas através do consumo, da venda ou do crime conexo. Isso mesmo mostraram as análises sobre a evolução do número e do tipo de detidos no sistema prisional português, tanto para a população feminina (Cunha, 2002) como para a masculina (Fernandes e Silva, 2009). Entretanto, a última década do século passado e a primeira do actual assistiriam à ascensão dum tema que tem vindo, progressivamente, a dominar a questão social: o da exclusão. O fenómeno droga teria agora um novo terreno para a produção de associações, mostrando mais uma vez a sua vocação de atractor dos temas mais problemáticos da vida social. Foi assim que vimos as mais mediáticas zonas de “exclusão social” serem também os “bairros da droga” por excelência – dêem-se os exemplos do Casal Ventoso ou da Cova da Moura para Lisboa e do Aleixo ou do S. João de Deus para o Porto.

As imagens televisivas foram-nos fazendo aparecer com regularidade, mostrando-os como infernos da urbe, enclaves de desordem onde se manifestariam todos os males que vêm à tona quando se fala de exclusão. Estava também, deste modo, aberta uma nova frente no discurso sociopolítico: reconhecida uma dimensão territorial na exclusão, as drogas vão sendo conotadas com certas zonas “de marginalidade”, que passam a constituir alvos privilegiados na acção policial de “combate ao tráfico”; a retórica política vê-as como causa da exclusão, manipulando o alarme social que o tema já naturalmente gera de modo a justificar operações urbanas de “limpeza de terrenos”, que ficam livres para a reentrada no circuito lucrativo da cidade. Já nos detivemos na análise destes processos noutro lugar (cf. Fernandes e Pinto, 2004; Fernandes, 2006), advertindo também para o facto de o expediente nada ter de original, pois detecta-se em várias latitudes geográficas, correspondendo a um estilo concreto de política de cidade na gestão de “populações problemáticas”.1 Neste artigo pretendemos deslocar a análise das relações entre droga e exclusão social para um outro terreno, afastando-nos das formas elementares das análises mediática e sociopolítica. A simples enunciação dos termos “droga” e “exclusão social” é produtora de ambiguidades: são conceitos-contentor, no interior dos quais cabe uma série de temáticas, de saberes, de intervenções. Temo-lo vindo a repetir: mais do que perante conceitos, estamos perante áreas de convergência temática, que geram um efeito-íman sobre uma dispersão de actores e situações, e organizam formas de falar a vida conturbada das grandes cidades, oferecendo simultaneamente causas e consequências para uma grande quantidade de situações vividas como problemáticas. Acresce que, nas últimas três décadas, têm também convergido uma sobre a outra: como se a droga potenciasse a exclusão e esta potenciasse aquela – exemplo esclarecedor, o do sem-abrigo que mora na rua por causa da sua trajectória desestruturadora de toxicodependente, mas a sua trajectória foi realmente desestruturadora porque vivia num “bairro crítico”, era um desescolarizado e desempregado de longa duração (atentemos nos prefixos sem e des: a exclusão define-se por aquilo que desapareceu ao longo do ciclo de vida do indivíduo).

Em que terreno nos colocaremos, então, para a análise? No empírico, como é próprio das ciências sociais e humanas. Num empírico feito duma longa permanência no terreno, no contacto directo com os actores e as actividades em dois bairros de que o cidadão comum tem notícia por causa do “mundo da droga”. O presente texto retoma, assim, uma narrativa que já vem de trás, quando, no princípio dos anos 90, iniciávamos no Aleixo a etnografia do fenómeno droga num bairro que era já na época apontado como um dos principais núcleos de exclusão social do Porto e um dos seus mais dinâmicos “hipermercados das drogas”2. Continuamos, deste modo, o exercício duma analítica das condições reais da exclusão: tanto da que se exerce a partir de fora pela acção de determinantes estruturais, como a que se produz a partir de dentro pela vivência quotidiana condicionada por tais determinantes. Veremos como o fenómeno droga, tanto no plano experiencial do ser-se junkie em territórios marginais da cidade, como no plano da reacção social que suscita, se constitui como um analisador das relações entre violência estrutural e violência quotidiana – porque é na relação entre elas que podem desocultar-se os processos de exclusão. Guardaremos para a secção final a explicitação destes tipos de violência, à luz do percurso que propomos pelos dois bairros em que tem decorrido a investigação empírica.

 

2 – Metodologia

O presente artigo dá conta de alguns dados provenientes de uma investigação em curso desde Agosto de 2007, realizada em parceria entre a Fundação Filos3, numa primeira fase, a Cooperativa Arrimo4, numa segunda fase, e a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, con-forme protocolo celebrado entre elas para o efeito. O estudo em causa tem como objectivo principal a caracterização dos Territórios Psicotrópicos5 da Zona Oriental do Porto, correspondentes à área de intervenção da equipa de redução de riscos e minimização de danos ARRIMO. Esta caracterização visa constituir uma base de conhecimentos que facilite aos profissionais no terreno um adequado feedback informativo que lhes permita tomar decisões para a melhoria da qualidade assistencial. Esta investigação encontra-se ainda a decorrer.

O método utilizado é o etnográfico, usando como técnicas nucleares a observação directa, evoluindo para observação participante sempre que as condições do setting o permitam, e a entrevista nas suas diferentes modalidades, da programada à informal, realizada aos actores das drogas, a moradores e a profissionais da rede sociossanitária. A presença no terreno acontece, sistematicamente e desde o início, pelo menos três vezes por semana, estando um dos investigadores integrado na Equipa de Rua da Cooperativa Arrimo (ER). Estar com a equipa na rua constituiu-se, inicialmente, como a âncora de terreno que naturalizava a presença do investigador ali. Com o passar do tempo foi-se dando uma progressiva autonomização, alargando a outros territórios das mesmas zonas o trabalho de observação e as entrevistas.

Uma das características dos territórios psicotrópicos é a sua grande mobilidade. Constituem-se quando e onde se reúnem uma série de condições ecossociais específicas e deslocam-se quando estas são alteradas. Foi o que aconteceu antes e durante o estudo que estamos a levar a cabo. No seu início, o Bairro São João de Deus (BSJD) ainda era um dos principais palcos do fenómeno droga, apresentando uma grande concentração de consumidores e, por esta razão, acolhia a sede da Arrimo e grande parte do giro da ER decorria aí. A restante zona oriental apresentava bastante menos actividades ligadas ao “mundo das drogas”. A desarticulação do bairro fez com que estes territórios se movessem, num mecanismo adaptativo que se revelou altamente eficaz para a sobrevivência das actividades em torno das drogas. Assim, após a demolição do bairro, a cena drug deslocou-se, no que diz respeito à zona oriental, para o bairro do Cerco e cercanias, estendendo-se posteriormente para alguns bairros vizinhos e para os seus espaços desactivados/ desabitados (fábricas, viadutos, casas abandonadas...). Fiéis ao princípio etnográfico de seguir as sinuosidades do objecto, passámos também a realizar trabalho de campo nestes novos territórios.

 

3 – São joão de deus: construção e crescimento dum “bairro das drogas”

O São João de Deus (BSJD) é um dos principais bairros sociais do Porto, começado a construir em 1944 e a demolir em 2002. Antes de se iniciar a sua demolição, habitavam-no cerca de 5000 pessoas, das quais cerca de metade eram de origens cigana e cabo-verdiana. Resta hoje o conjunto habitacional mais antigo, com uma tipologia diferente da que conotamos com o “bairro social”. O estatuto de espaço marginal que, sobretudo a partir da segunda metade dos anos 80, viria a conhecer, cedo começou a construir-se. A sua fama de lugar proscrito valer-lhe-ia o cognome de Tarrafal: à semelhança doutros conjuntos residenciais camarários, também o BSJD se tornou, devido talvez ao seu marcado isolamento, num “bairro de castigo”, destino daqueles a quem o Antigo Regime retirava o direito de viver noutros bairros sociais, devido a “mau porte moral ou cívico”, conforme o texto da lei de 1945 sobre o regulamento dos bairros camarários. Assim, tanto no imaginário da cidade como no de quem lá habitava, uma imagem estigmatizante, reforçada pela realidade que aí se vivia, foi sendo consolidada ao longo dos tempos (Caspurro, 2004). É neste cenário pouco favorável que viria a inscrever-se uma importante actividade em torno das drogas ilegais, que o conduziria, nas duas últimas décadas do século, ao estatuto de maior “supermercado de droga” do Porto. A preocupação pública que o tema droga suscitava então atraiu sobre si uma grande atenção mediática, reforçando-lhe a imagem negativa e o olhar estigmatizante que o resto da cidade lhe lançava.

 

4 – O São João de Deus e a cena drug

“De todo o bairro emana uma dimensão sacrificial. Sacrifício dum bairro abandonado desta forma, sacrifício duma população obrigada a viver em tais condições, sacrifício da vida destes consumidores.”

(excerto do diário de campo)

Quando o nosso estudo teve início, uma parte muito significativa do bairro tinha já sido demolida. A população que o caracterizava, a forma como ela se inter-relacionava, o intenso movimento humano de que o bairro era palco, a organização do mercado de drogas e os próprios locais de consumo tinham sofrido recentes mas profundas alterações. Faremos uma incursão pelo estado do bairro em 2007 e 2008, recuando, sempre que os dados recolhidos nos permitam, aos inícios de 2000, altura em que o São João de Deus estava no seu apogeu como “bairro de drogas”.

4.1 – O Tarrafal, um supermercado de drogas

Quem vem da Universidade Lusíada começa por descer uma ampla e moderna via rodoviária. Do lado esquerdo, depois da universidade, um lar de 3ª idade afirma-se como uma das últimas construções antes de entrar nos baldios. A seguir a este, apenas meia dúzia de casas desamparadas. Do lado direito, o baldio vem já desde o início da rua. No muro de betão que separa o passeio do descampado alguém escreveu, talvez à laia de aviso: “ADORO DROGAS”. O Bairro São João de Deus está isolado por uma extensa zona de descampado por um lado, e pelo outro é tamponado por uma via rápida de intenso tráfego. Dificilmente alguém chega aqui inadvertidamente.

A nova via desemboca numa rotunda, donde saem mais duas ruas asfaltadas recentemente e uma terceira, em direcção a um oeste cheio de pó, esburacada e sem passeios, entra no bairro. São João de Deus ergue-se à direita, numa encosta em agonia. Os prédios beges escuros estão completamente degradados, cheios de manchas de humidade, vidros partidos, janelas emparedadas, portas rebentadas. As áreas comuns estão destratadas, crescem ervas daninhas e há entulho nos canteiros. Do complexo inicial restam apenas 5 blocos que assumem, grosso modo, a configuração da letra E. Da entrada do bairro avista-se ao alto uma caixa de electricidade, em cujas paredes está grafitado em letras garrafais azuis e pretas: “TARRAFAL”. Mais ao lado pode ler-se: “Rui Rio, as pessoas deste bairro também são gente“, por baixo, em letras menores: “Jobs for the boys”.

No ar, o cheiro do bairro remete para a estagnação e para a sujidade. A atmosfera é de tal forma desoladora, de tal forma alheada do mundo, que rapidamente se propaga e, por osmose, se transforma num sentimento de esquecimento e de destruição interior: “Na berma da estrada está um esgoto ao ar livre, os cães deitam-se nele para se refrescarem, o cheiro é nauseabundo. Vê-se gente à janela a observar. Nos dias de sol, famílias inteiras de ciganos transportam para o exterior cadeiras e bancos, alguns quase desfeitos. Às vezes montam tendas à porta dos blocos. Sentam-se a desfrutar do sol e do ar livre enquanto conversam e vêem quem passa. Há personagens dignas de uma película de Kusturica (…) o marido da Dona A. lá está, na sua cadeira de praia de estofo esburacado e sujo, muito alto e magro, com a tez morena manchada (é portador de VIH). Veste sempre impecavelmente de negro, usa uns óculos de sol espelhados e anéis de ouro na mão esquerda. Tem a pose altiva de um lorde, cumprimenta-me com um mui digno inclinar de cabeça. Parece reinar sobre toda aquela destruição.” (diário de campo, 9.9.2007);

“Nas bermas estão estacionadas carrinhas de feirantes mas também carros de alta cilindrada, muitos deles com vidros fumados. É frequente ver carros violentamente acidentados, alguns ficam lá abandonados e acabam por se tornar a casa de alguns dos consumidores de rua.” (diário de campo, 12.11.2007).

Entrar no bairro exige uma finalidade. Ninguém lá vai passear ou a caminho de algum lugar, por isso existem sempre vigias às suas entradas: «Entrei no bairro a pé, em direcção ao Arrimo. Vejo algumas mulheres, a sua maioria jovem, a conversar à porta dum dos blocos. Olham-me desconfiadas. De repente, uma cigana mais velha, talvez de 50 anos, salta do muro e tapa-me o caminho, perguntando-me aonde é que eu ia. Respondi-lhe que trabalhava lá em baixo no Arrimo: “Ai, desculpe doutora, não a conhecia.”» (diário de campo, 22.09.2007).

Ultrapassado o check point, verificamos que a estrada, logo no seu início, sofre uma bifurcação à esquerda, a qual dá acesso ao centro comunitário e a uma pequena e agora isolada mercearia. Neste local situavam-se vários blocos e, segundo registos da ER da Arrimo, a venda de drogas e o tráfego humano eram intensos. O ambiente do bairro era sentido como ameaçador: «“Na parte de baixo do bairro havia uma sucata, aquilo ainda estava cheio de prédios. As pessoas punham tábuas de madeira para passarem duns edifícios para os outros. Era uma barulheira que nem imaginas!” S. conta-me como era o bairro antes de se terem iniciado as demolições. Do lado esquerdo da estrada principal, onde resta apenas uma pequena mercearia, aponta-me vestígios de uma escada: “Tás a ver aqui estas escadas? Era um formigueiro de gente, sempre a descer e a subir. A primeira vez que vim ao Arrimo, para começar a trabalhar, vim a pé. Havia imensa gente na rua, eu perdi-me e andei por aqui à toa. O que valia era que eu vinha da favela no Brasil e já estava habituado, mas isto tinha um ambiente muito pesado. Era muito perigoso!”» (S., 35 anos, Técnico Arrimo). O bairro parecia reger-se por uma lei interna muito própria: “Aqui havia sempre muitos carros, chegavam a fazer fila. As pessoas vinham cá comprar e, como tinham medo, evitavam sair do carro. Às vezes, um cigano passava-se porque queria que eles viessem a pé, pegava num bastão e batia nos carros todos. Chapa, faróis, tudo amolgado e partido. E ninguém dizia nada, nem saía do carro.” (V., 27 anos, assistente social).

Segundo registos da Arrimo, o bairro era, em 2003, visitado diariamente por 1500 consumidores. Estava plenamente estabelecido o estatuto de “bairro de droga”, actividade na qual uma parte da população participava: “Uns vendiam, outros cortavam, alguns guardavam o material ou o dinheiro… outros participavam no sistema de vigia… eu acredito que a dada altura, mais de 85% da população do São João de Deus estava metida no negócio da droga.” (A., 54 anos, morador do BSJD); “Em termos humanos, deparamos com uma amálgama. Convivem (e habitam) no espaço comum, os moradores do bairro (destacando-se a etnia cigana, pela sua exuberância) e a população toxicodependente. Estes, na sua maioria (mais de 90%), são oriundos de fora do bairro, que funciona todas as vinte e quatro horas de cada dia do ano como um “supermercado” de heroína e cocaína, aberto a toda a cidade (…)” (Caspurro, 2004).

Foi justamente a visibilização destas actividades, operada pelos diversos meios de comunicação social, sempre associada aos temas da marginalidade e da exclusão, que ajudou a consolidar a imagem negativa que o bairro carregava já desde as suas origens. Alguns responsáveis autárquicos fariam eco desta imagem, legitimando assim a decisão de demolir aquele que qualificaram como “cancro da cidade que urge extirpar”.

4.2 – Plataformas Junkie: os clientes, os flutuantes e os residentes

Seguindo a estrada principal, encontramos ainda os indefectíveis junkies: uns capeam6, outros vigiam, outros descansam estirados nos canteiros, no meio do lixo. São sem-abrigo, estão magros e têm a roupa desfeita no corpo. Podem ver-se alguns braços com edemas e feridas. Pouco falam e se falam, dificilmente olham directamente nos olhos do interlocutor. É muito frequente ver (e falar com) indivíduos com a seringa espetada no braço ou nas pernas: «… D. teve uma agulha espetada no braço durante a hora e meia que a equipa esteve no bairro, diz que está com dificuldade em encontrar veias e assim o “trabalho está facilitado”. Isso não o impede de andar de um lado para o outro, capeando e falando com os outros consumidores» (diário de campo, 9.9.2007); “… R. estava sentado num degrau. Tinha a seringa espetada na perna, pés e mãos muito inchados, cheios de feridas e crostas de sangue. Mostrou-nos uma ferida que tinha na barriga e que sangrava. É seropositivo. Olhava-nos com uns olhos muito tristes, sem fundo.” (diário de campo, 14.9.2007).

Em termos estatísticos, e recorrendo aos dados do relatório de actividades da Arrimo dos anos 2000-2004, registou-se, num total de 281 colheitas de sangue realizadas a utentes deste serviço, a seguinte prevalência de doenças infecto-contagiosas: 45% portadores do vírus de imunodeficiência humana (VIH); 71%, infectados com o vírus da Hepatite B; 77% com Hepatite C e 10% com Sífilis.

Os utilizadores podiam ser, grosso modo, divididos em três grandes grupos de indivíduos: os clientes7 – consumidores que iam ao bairro comprar substâncias psicotrópicas e que aí permaneciam apenas o tempo indispensável para tal; os flutuantes, que iam ao bairro comprar e consumir, voltando depois às suas actividades angariadoras de dinheiro (mendicidade, arrumação de carros, prostituição…) e logo que o obtinham, voltavam aí para reiniciar o ciclo consome-angaria-compra-consome; e os residentes (ou fixos), que correspondiam a indivíduos em ruptura social, eram sem-abrigo e viviam em total exclusividade de e para o “mundo das drogas”, reduzidos à expressão mínima no que toca a cuidados alimentares ou de higiene. Estes três grupos correspondem a três graus de envolvimento: desde um mínimo, em que a ida ao bairro é meramente instrumental, a um máximo, em que o local se torna lugar de vida.

Os residentes organizavam-se de forma a nunca ter de abandonar o bairro, encontrando nele forma de angariar dinheiro para os seus consumos. Usualmente exerciam três funções principais, que muitas das vezes acumulavam: capear, vender ou desempenhar o papel de “enfermeiros”. Os capeadores trabalhavam para os vendedores de drogas, atraindo a clientela e dirigindo-a para determinadas “bocas de venda”. Os vendedores comercializavam seringas e todo o material necessário para as práticas de consumo, bem como cigarros e medicamentos dalguma forma ligados à procura psicotrópica (serenal, paxilfar, metadona…). Por sua vez, os enfermeiros auxiliavam aqueles que manifestavam dificuldade em injectar-se. Eram frequentemente indivíduos com bastante experiência como utilizadores, que estavam há mais tempo no bairro e que, eventualmente, também forneciam/vendiam material de consumo (seringas, toalhetes…). Injectavam indivíduos que, normalmente devido ao mau estado geral das suas veias, não o conseguiam fazer sozinhos. Em troca do seu serviço recebiam tabaco ou uma pequena parte do caldo, assegurando assim os seus próprios consumos. Assim se constituem os elementos que pontuam a vida quotidiana das plataformas junkie. Características de alguns territórios psicotrópicos das “zonas degradadas”, estão organizadas numa espécie de assentamento temporário, podendo mesmo tomar a forma de acampamento, tal como testemunha o nosso trabalho de campo.

Quando falamos nos flutuantes e nos residentes ou fixos, estamos a nomear os actores que dão o carácter de plataforma a um dado território psicotrópico: lugares de concentração de actividades drug, onde uns chegam e partem e regressam, onde outros estão em permanência mas em condições precárias, que asseguram a logística para as necessidades do consumo de drogas no imediato. Elas desempenham, portanto, um papel instrumental ao serviço de “quem anda na vida”. Atraindo a si os utilizadores, permitem-lhes a aquisição e o consumo do “produto”, bem como a obtenção duma série de informações estratégicas para a “vida nas drogas”.

As plataformas estabelecem-se em determinados lugares urbanos ou peri-urbanos, conferindo-lhes uma marca visível que, em boa medida, acaba por constituir um signo de reconhecimento externo: “ali é o mundo da droga”8. É isto que as faz funcionar também como um irradiador do “problema da droga”, através do labor da comunicação social, que o visibiliza a partir de determinados elementos que vão constituindo o estereótipo deste objecto. Chamámos-lhes plataformas porque promovem a comunicação necessária à actividade que é perseguida pelos actores envolvidos. E, tal como há as plataformas do tráfico, figura de há muito do léxico da repressão da oferta, também aqui há o correspondente na procura: ela é assegurada por estas plataformas junkie, que põem lado a lado quem dispõe da oferta e quem faz a procura.

4.3 – A polícia e o bairro: quando o desvio vence a norma

A segunda bifurcação, também à esquerda, conduz-nos até à escola do BSJD e permite o acesso à zona de vivendas unifamiliares. Os muros da escola estão todos grafitados, Tarrafal é a palavra de ordem. A zona das vivendas é claramente um bairro à parte. Crianças e mulheres vêem-se na rua, brincando e conversando, e as casas, ainda que bastante degradadas, estão num estado de conservação mais razoável. Podem observar-se algumas casas emparedadas. Na rua principal, onde se localiza a esquadra da polícia, frondosas árvores ladeiam os passeios. Pelos registos da ER e pelos testemunhos recolhidos, parece evidente que a presença da polícia no bairro, nos seus últimos tempos de vida, se relacionava apenas com uma diminuição temporária do número de consumidores no bairro, ou com esperas sentadas nos degraus dos prédios ou nas pedras abandonadas, para que quando partissem, tudo voltasse a funcionar dentro da sua normalidade.

No entanto, nem sempre foi assim. Se recuarmos até ao início do milénio, verifica-se que as forças policiais tinham grande dificuldade em entrar no bairro, sendo-lhes muito difícil o exercício de qualquer tipo de autoridade: ”uma vez veio aqui o carro da PSP buscar um cigano para depor. A família e os amigos dele juntaram-se todos à volta do carro, tiraram os dois polícias cá para fora e queriam bater-lhes. Lá se conseguiram safar, mas iam apanhando uma coça…” (F., 40 anos, Técnico Arrimo); «O caso mais grave ocorreu em Março de 2001, no bairro São João de Deus: “Estávamos a tentar deter um traficante de droga, ele estava dentro de um carro e simulou a rendição. Parou e colocou as mãos no ar, mas quando me aproximei arrancou a toda a velocidade e levou-me 30 metros em cima do capô”.» (fórum da PSP, revista de imprensa, dossiê nº25).

Mais do que pouco respeitada, a polícia era persona non grata, era vista como o inimigo a abater: “Vinha um carro da polícia em alta velocidade a perseguir outro que entrou no bairro. O polícia não conseguiu controlar o carro e espetou-se contra o muro. Um deles sangrava muito e o outro estava inconsciente. Alguns ciganos não queriam deixar ninguém aproximar-se do carro. Foi uma gritaria! Gritavam: “Eles que morram, os filhos da puta!” (F., 40 anos, Redutor de Danos).

O reverso destas situações também é frequente: episódios em que agentes policiais exercem força desproporcionada em relação ao fim da acção que realizam, seja no terreno, seja depois na esquadra, ao pretenderem obter informações sobre envolvimentos no mercado de drogas: “Eles chegam aqui, e por mais que lhes peçamos para não nos bater, eles não se importam. E quando pedimos para não bater numa perna ou num braço, porque estamos doentes ou porque nos dói, ainda batem mais depressa nesses lugares” (Consumidor, registos da equipa de rua, 8.1.2005). Durante os interrogatórios, o uso de violência física era quotidiano e, embora muitas vezes fossem utilizados verdadeiros métodos de tortura, raramente o valorizavam: “Fiquei fodido! Nem foi por eles me terem enchido a mala, foi porque estive lá tanto tempo que faltei aí a uma combinação! Podia ser agora um homem rico” diz M., gesticulando muito. (diário de campo, 3.12.2007) 9.

Por que é tão frequente a violência policial sobre estes actores sociais? Veremos na secção seguinte que ela é apenas um aspecto dum quadro mais geral em que violências várias, mais ou menos difusas, mais ou menos escondidas ou ostentadas, aparecem como um traço do quotidiano nestes contextos. Podemos lançar a hipótese de que a forma como o “mundo da droga” foi sendo assimilado, no quadro das políticas proibicionistas, a um não-valor, como que autoriza o exercício da violência sobre aqueles que representam o seu lado mais vulnerável. mas, parece-nos também, que a naturalização da violência é uma das dimensões da exclusão: quando acontece reiteradamente num lugar, põe em evidência o quanto aí se suspendem as regras da sociabilidade comum. como se entrássemos num território à parte, em que a violência exprime, pela sua vulgaridade, a excepcionalidade que aí se vive – e esta é uma das dimensões centrais com que a exclusão é olhada a partir de fora. Eis por que a droga é, tal como dizíamos na introdução, um bom analisador das relações entre violência estrutural e violência quotidiana.

4.4 – Da quotidianização da violência: os bodes expiatórios

Os consumidores eram muitas vezes, nas relações com a restante população do bairro, alvo de grande violência. apresentavam-se constantemente com chumbos nas mãos e nas pernas, sendo alvejados principalmente por jovens com idades entre os 12 e os 18 anos, que, não raro, integravam a cadeia de venda de drogas muito cedo. Frequentavam intermitentemente uma escola que não lhes interessava, como nos foi repetidamente dito tanto por eles como pelos professores, e pareciam afirmar-se pelo exercício de uma marcada violência contra qualquer pessoa que não pertencesse aos “seus”. Amiúde atiçavam-lhes os cães, batiam-lhes e tinham comportamentos que punham em causa a sua integridade física: “Uma vez os putos pediram-me um cigarro, como não tinha atiraram-me pela ribanceira abaixo. Fodi as costas todas” (Consumidor, registos da equipa de rua, 24.06.2006); Eles (a sua família) não entendem! Tratam mal os drogados, batem-lhes e chamam-lhes nomes, os putos fazem pouco de nós e atiram-nos coisas. Mas nós também somos gente, precisamos de carinho, sabe? Não basta darem de comer, o mais importante é o carinho!” (consumidor de etnia cigana, diário de campo, 3.12.2007). a violência destes jovens tornou-se numa das imagens de marca do Tarrafal.

Também nas relações estabelecidas com os vendedores eram muitas vezes agredidos, facto que criava grande mas impotente revolta: “Estes gajos só sabem contar dinheiro, o lugar deles é em Custóias” (Consumidor, registos da equipa de rua, 31.3.2006); «Vários consumidores estão à porta do bloco x, esperando que abra a venda. Uns vão trocando conversa, outros permanecem calados, olhando para o chão ou para um qualquer obscuro ponto longínquo. De repente, sai um indivíduo de meia-idade da porta do prédio, furioso: “Drogados filhos da puta, ide-vos embora!” grita enquanto lança pontapés e empurrões em todas as direcções. É o pai do vendedor que esperavam. Ninguém esboça defesa, dispersam-se rapidamente.» (diário de campo, 4. 2.2008)

Enfim, a violência apresenta-se de várias formas e é exercida sobre vários actores. São, no entanto, os junkies de rua que aparecem como alvo preferencial: agredidos pelos jovens, pelos vendedores, pelos polícias. Configuram-se como perfeitos bodes expiatórios: enfraquecidos, sem voz e sem ninguém que os defenda. Aquele que, na cidade dominante, é tantas vezes olhado como figura da ameaça, é afinal aqui uma vítima, ocupando uma espécie de posição de fim delinha que parece autorizar a violência. E a sua frequência e intensidade não podem deixar de interpelar-nos sobre o seu significado, exercida sobre pessoas que, na maioria das vezes, nem esboçam defesa – como se o indivíduo que arrasta os seus consumos nas plataformas junkie em lugares esquecidos da cidade fosse uma espécie de quase-morte que é necessário esconjurar.

Este quotidiano das plataformas junkie passaria para o exterior dum modo caricatural, próprio da narrativa mediática, que aposta nas imagens de impacto que tragam à luz o lado marginal da vida urbana. o são João de deus estava definitivamente instalado na galeria dos perigos públicos: o discurso mediático exibia-o como exemplo do caos, os dirigentes políticos erguiam-no como bandeira da sua prometida luta contra a exclusão, a polícia tomava-o como terreno para as suas incursões no combate à droga, os redutores de danos trocavam perto de 1800 seringas por jornada. Este cenário de aglomerado urbano em situação de emergência justificava a opção do poderlocalpela sua desarticulação, que traria duas vantagens: apagar do mapa do Porto o seu “cancro” (linguagem dos responsáveis autárquicos) e devolverjá recuperada à cidade uma zona que, fruto da desordem em que mergulhara, se lhe tornara estranha. No ponto seguinte analisaremos as consequências desta operação urbanística sobre as dinâmicas do fenómeno droga.

 

5 – Do São João de Deus para o cerco: os territórios psicotrópicos também se realojam?

«Um dos ciganos com maior influência inter pares caracteriza a situação social no Cerco como explosiva: ”A governadora civil chama-me constantemente para tentar resolver conflitos que surgem quase diariamente no bairro. Aquilo é uma bomba que vai explodir a qualquer momento!”»

(excerto diário de campo)

À medida que a Câmara Municipal do Porto foi procedendo aos realojamentos dos habitantes do BSJD, os locais de venda de drogas foram-se também deslocando, levando ancorados a si alguns consumidores. Actualmente, resta apenas um capeador e é já muito raro encontrar consumidores. Alguns deles passaram a frequentar o Cerco, outros vão agora comprar e consumir a bairros sociais da zona ocidental do Porto, à zona do Alto da Maia e ao centro histórico da cidade. No entanto, não estamos em condições de saber, de um modo sistemático e exaustivo, para onde têm vindo a processar-se as suas deslocações.

A população do Cerco e os técnicos de intervenção social a trabalhar no terreno referem constantemente que, desde que os habitantes do BSJD chegaram, o “ambiente piorou muito”. Várias pessoas (mas sobretudo as mais idosas) dizem ter medo de sair de casa depois do escurecer e recear os assaltos na rua. É também referido um aumento de assaltos a casas, a idosos, a jovens e a consumidores, reflectindo um incremento da violência e um sentimento de insegurança permanente. Por seu lado, o modo como decorreu a saída do BSJD parece também ter sido sentido como violento – ou seja, estamos perante uma operação urbanística na qual tanto quem foi deslocado como quem recebeu novos vizinhos parece ter ainda agravado a sua condição de morador de “bairro social problemático”. O terreno forneceu-nos abundantes dados sobre as vivências deste processo que não exploraremos aqui por se afastarem do nosso argumento.

No ponto em que se encontra agora a investigação, e sublinhando a sua circunscrição geográfica à zona oriental do Porto, podemos dividir o efeito da desarticulação do BSJD em dois momentos temporalmente distintos: um primeiro, no qual foi constatado um grande incremento de venda e de consumo de substâncias psicoactivas no Cerco, e um segundo, que corresponde à actual situação, no qual se verificou novo movimento dos consumidores, desta vez para as suas limítrofes e para locais e casas abandonadas, dispersos um pouco por toda a zona oriental. Analisaremos de seguida cada um deles.

5.1 – A cena drug no Cerco

“Junto aos portões vêem-se pequenas labaredas cortando a noite: são os consumidores a fumar. Estacionamos junto ao campo, do lado de cá, onde dois vendedores servem a clientela, que não ultrapassa uma dezena de pessoas. Alguns vão-se logo embora, mas uma parte significativa dirige-se para os tais portões e consome à vista de toda a gente” (28.8.2007); ”Cerca de 50 pessoas aguardam em ordeira fila indiana a chegada do vendedor.” (3.12.2007). O conjunto habitacional camarário do Cerco do Porto, nascido em 1964, tem também uma história que o inscreve como um dos espaços mais conotados com o desvio – e, em particular, com o fenómeno droga.10 As consequências da chegada de muitos dos actores das drogas vindos do BSJD não seriam, propriamente, as de trazer alguma grande novidade, mas as de virem mexer num status quo instalado desde há muito.

Era discurso recorrente entre os consumidores que muitos dos vendedores do BSJD, mesmo os que não foram realojados no Cerco, aí alugaram casa para continuarem o seu negócio: ”D. arrendou uma casa no bloco y, não quis perder a clientela. E não foi só ele!” (M., consumidor, diário de campo, 5.01.2008). Através da observação e dos testemunhos recolhidos, quer de consumidores, quer de moradores entrevistados, pode afirmar-se com segurança que a venda de substâncias psicotrópicas se difundiu por vários blocos do bairro, fazendo-se com pouca oposição dos moradores: “… os vendedores sentam-se nos degraus junto aos portões e contam maços de notas. Chegam três mulheres de fato de treino e sentam-se ao seu lado, falando alegremente. Crianças andam de bicicletas e passam tangentes aos degraus. Jovens habitantes do bairro sobem e descem descomprometidamente as escadas.” (diário de campo, 4.4.2008).

No que diz respeito aos hábitos de consumo visíveis na rua verificou-se um claro contraste com o que se passava no BSJD: aqui as suas práticas recorrem muito mais à via fumada. Atendendo a que a equipa de rua continuou a trocar um grande número de seringas, parece poder concluir-se que a via injectada é reservada para o resguardo dos locais privados – o que provavelmente se relaciona com a própria história do bairro, onde o consumo “chutado” nunca foi muito evidente no espaço público, estando associado a um forte estigma: “O consumo picado é muito mal visto aqui, quem troca seringas fá-lo da forma mais discreta possível. O injectar está aqui ligado ao último grau de degradação.” (diário de campo, 3.2.2008).

5.2 – Consumos na cidade abandonada

Muitos utilizadores têm protagonizado, desde há aproximadamente um ano, uma clara fuga radial do interior do bairro. Os locais de consumo de rua situados no seu centro estão agora quase completamente desactivados. Um número importante de indivíduos migrou até a uma capela que se situa na periferia do bairro. Outros dispersaram-se pelos escaninhos da cidade. Há uma constante mobilidade e mutabilidade dos locais de consumo, dos pontos de venda, dos vendedores. A geografia, os actores e o palco transmutam-se, mas a acção segue. É necessário, quase diariamente, seguir o seu rasto. Estão agora dispersos por toda a zona oriental, formando pequenos grupos – muitas vezes de apenas duas pessoas – mudando frequentemente de local de consumo, na busca constante dum sítio próximo da “boca de venda”, onde possam consumir sem ser incomodados, quer pela população, quer pela polícia. Entre os mais significativos, escolhemos, a título ilustrativo, os seguintes:

A casa abandonada perto do bairro do cerco. Trata-se das ruínas daquilo que terá sido uma grande casa de lavoura: um grande portão na fachada dá acesso a um pátio interior, rodeado de dependências, algumas já quase a céu aberto. Muitas das paredes e a maior parte do tecto ruíram ou encontram-se prestes a ruir. Tendo começado por ser um local frequentado essencialmente por consumidores por via endovenosa, regista-se actualmente uma elevada frequência de fumadores. os consumos injectados e fumados são realizados em dependências distintas, utilizando estes últimos o local menos degradado da casa – um pequeno corredor que desemboca numa casa de banho desactivada: «… Estão mais de dez indivíduos a consumir, uns na prata, outros no caneco. “Já viu? Isto agora está muito limpinho. O J. trouxe uma vassoura e agora o último a sair tem de deixar isto como encontrou!” diz a R., empunhando orgulhosamente a vassoura.» (diário de campo, 8.5.09). ao invés, os locais da casa eleitos para o consumo injectado estão repletos de todo o tipo de lixo e escombros: «O V. está a consumir de pé, em cima dum monte de traves de madeira apodrecidas. Aproximamo-nos, esquadrinhando cada centímetro onde pomos os pés. Vejo em cima duma pedra muito material, algum ainda não foi usado. Reparo também num pedaço de espelho no meio daquela parafernália. V. diz-me que serve para “a malta que tem de se picar no pescoço ou atrás dos joelhos conseguir ver.”» (diário de campo, 24.4.09)

O viaduto. O viaduto foi um dos últimos locais descobertos (através das indicações dos consumidores) pela ER. Situa-se muito perto de dois bairros vizinhos do cerco, locais onde existe registo de um incremento considerável das actividades de venda de substâncias psicotrópicas: «Entramos no bairro X e avistamos de imediato três utentes nossos conhecidos (…) o G. aproxima-se da carrinha, sorridente, vem trocar “máquinas”: “Ai vocês agora vem para aqui? Fazem bem, aqui há muito petróleo. Há vários poços, até!” diz sorridente». (diário de campo, 24.02.2009). A entrada no viaduto faz-se por um pequeno buraco quadrado com menos de 1 metro de área. Ficando abaixo do nível da rua, torna-se necessário saltar 1,5 metros para lhe aceder. Desta forma, chega-se aos pilares que sustentam o viaduto e ladeiam a linha ferroviária: «É um local muito escuro, com um intenso cheiro a lixo, apenas iluminado por alguns postes que acompanham a linha de comboio e pela luz que emana pela rotunda, ao alto. O local desenrola-se em comprimento, os consumidores juntam-se no seu final, para onde já trouxeram cadeiras e colchões. L., aproveitando um pequeno buraco no muro de betão, colocou lá um colchão e pendurou um pano a servir de cortina. Há bastante lama no chão e muitos vestígios de consumo. Vislumbro uma grande ratazana a correr. Aqui a equipa de rua encontrou vários utentes que tinham desaparecido desde a desactivação do BSJD: “Parecem coelhos a saltar duma cartola!” afirma uma técnica da ER.”» (diário de campo, 13.01.2009).

Estes novos locais de consumo são altamente insalubres, têm reduzida visibilidade e são de difícil acesso. Continuam a vender-se drogas nos bairros mas tolera-se mal a presença dos consumidores, no que parece ser uma tentativa de procrastinação da intervenção policial. São induzidos a utilizar as drogas em locais cada vez mais isolados e com péssimas condições sanitárias. A constante pressão exercida sobre eles, proveniente quer da população dos bairros onde se vendem drogas (levada a cabo sobretudo por crianças ou adolescentes a mando dos vendedores) quer pela polícia, resulta numa cada vez maior ocultação, ostracização e abandono, agravando as condições de existência dos toxicodependentes das franjas que já se encontravam em grandes dificuldades. A dispersão e fragmentação territorial destas franjas na sequência da demolição do BSJD torna-as mais difíceis de detectar, podendo criar a ilusão de que o desaparecimento daquele que era considerado o mais importante território psicotrópico do Porto contribuiu decisivamente para combater o “problema da droga”. O que nos diz a pesquisa de terreno, no entanto, é que a adaptação ecossocial do fenómeno droga a esta operação de renovação urbana resultou na sua invisibilização, sobretudo por comparação com o que foram os tempos, abundantemente mediatizados, da concentração drug do Tarrafal.

 

6 – Conclusão: das relações entre droga e exclusão social

Produzamos agora um afastamento em relação ao imediatismo da experiência de terreno, para salientarmos duas dimensões que, sugeridas pelos dados etnográficos, nos interpelam aos níveis teórico e interventivo.

– Nível Teórico: o que é um “bairro em exclusão”? Estamos perante uma ordem interna que se afundou, como se a exclusão e a marginalidade se autoproduzissem e a nós nos coubesse apenas mapear as zonas que colapsam e intervir sobre elas como quem, de fora, leva o remédio?11 Ou estes bairros são apenas o lugar de impacto da exclusão, tomando aqui a expressão de Stoer, Magalhães e Rodrigues (2004), revelando em toda a sua destrutividade mecanismos que residem muito a montante? Esta questão faz-nos regressar à relação entre violência estrutural e violência quotidiana, de que o fenómeno droga nas plataformas junkie é um claro analisador.

A violência estrutural, de acordo com Philippe Bourgois (2001), diz respeito à forma como a organização polí-tico-económica de uma sociedade se traduz na produção de desigualdades e opressões sociais crónicas, da pobreza à saúde, passando pelos direitos humanos e conduzindo, na maioria das vezes, a situações de sofrimento social. Acrescentemos que são, não raro, as próprias instâncias estatais a concorrer para a produção deste tipo de violência, seja por omissão, seja por acção directa, como vimos acontecer no nosso terreno de estudo tanto a propósito do modo como foi levada a cabo a operação de desarticulação do São João de Deus como em certo estilo de acção policial. Exprime-se também no modo como situações de desvantagem se fixam com muito maior impacto em certas zonas e franjas da população, como a desinserção crónica em relação ao mercado formal de trabalho, o abandono escolar ou as novas formas de pobreza.

A violência quotidiana diz respeito às práticas e expressões de violência ao nível das interacções micro.

De acordo com Bourgois (2001), a quotidianidade de tais práticas e expressões acaba por normalizar a violência ao nível das relações interpessoais, criando-se um ethos local de cultura de violência – eis também o que vimos acontecer nas zonas da nossa pesquisa de terreno.

– Nível Interventivo: recoloquemo-nos agora de novo no papel de redutores de danos, para afirmar que os técnicos da Arrimo perderam o rasto a um número significativo dos utentes do programa de rua. Dito doutro modo, o impacto da desarticulação do bairro sobre os consumidores implicou a quebra da sua relação com a equipa de redução de riscos, comprometendo a eficácia de um trabalho deste tipo, que se baseia na continuidade, sem a qual não é possível a construção de relações numa população fortemente afectada, justamente, pela sucessiva quebra de relações no seu percurso biográfico.

Uma das grandes dificuldades da equipa de rua da zona oriental tem sido, já o referimos, reencontrar os antigos utentes do BSJD e descobrir os seus novos locais de consumo. Quando acontece descobri-los, vimos já como representam a continuidade duma situação de grande marginalidade e sofrimento: não é melhor estar no viaduto ou na casa abandonada de que demos notícia atrás do que estar no “vale dos leprosos” do extinto São João de Deus… No discurso das autoridades do poder local, urgia “extirpar o cancro” que a droga tinha feito crescer no São João de Deus. Afinal, produziram-se pequenas metástases… Houve, no entanto, um ganho de curto prazo: invisibilizou-se temporariamente o espectáculo que o bairro oferecia, criando a ilusão de que, “matando o bicho, se acaba a peçonha”…

 

NOTAS:

1 – Cf. Enrique Ilundain (2004) para o caso dum dos principais concentradores junkie da Catalunha, o bairro de Can Tunis em Barcelona, ou Alba Zaluar (1985) para o caso das transferências de várias favelas para “comunidades urbanas” no Rio de Janeiro.

2 – Cf. Fernandes e Agra (1990) Uma topografia urbana das drogas. Lisboa: gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga. Esta seria a primeira de várias monografias etnográficas sobre os actores e os territórios psicotrópicos, em vários bairros conotados com forte actividade em torno das drogas, nas zonas ocidental e oriental do Porto.

3 – Instituição privada de solidariedade social cujo objectivo é a promoção de iniciativas de respostas sociais através de projectos de intervenção junto de pessoas ou grupos em situação de pobreza ou exclusão. Na altura em que a investigação teve início, acolhia o projecto Arrimo, que sensivelmente um ano depois se autonomizou e constitui a Cooperativa Arrimo.

4 – Organização cooperativa para o desenvolvimento social e comunitário, desenvolve projectos de intervenção comunitária no domínio da toxicodependência, nomeadamente nas áreas de redução de riscos e reinserção social.

5 – Por território psicotrópico entende-se “um atractor de indivíduos que têm interesses em torno das drogas, com um programa comportamental orientado para os aspectos instrumentais ligados a um estilo de vida em que elas têm um papel importante” (Fernandes, 1998: 164-204).

6 – gíria utilizada pelos autóctones.

7 – Estas designações resultam, respectivamente, da linguagem dos actores sociais dos nossos territórios, duma expressão em uso nos técnicos que intervinham no Casal Ventoso e da equipa da Arrimo. A expressão “flutuantes” deu nome a uma reportagem no Canal 1 em Junho de 2005, onde o BSJD é elevado ao estatuto de caso nacional, herdando o posto anos antes ocupado pelo Casal Ventoso.

8 – Contrariamente a outros territórios psicotrópicos, cuja espacialidade intersticial, funcionamento quase clandestino, carácter portátil ou tamanho reduzido (em espaço e em número de participantes) os tornam pouco visíveis.

9 – Os registos do nosso diário de campo são confirmados pelos relatos de redutores de riscos da Arrimo. Uma boa parte das equipas de redução de riscos com que temos contactado referem também episódios de violência policial nos territórios onde intervêm. Tratamos com mais profundidade os nossos dados relativos ao tema da violência policial na comunicação “Forças policiais e mundo das drogas: para além duma ética do Bem e do Mal”, à 5ª conferência Latino-Americana sobre Redução de Riscos (Porto, Julho de 2009).

10 – Entre 1997 e 1999 desenvolvemos investigação etnográfica no Cerco. Para uma síntese dos resultados, ver Fernandes e Neves (2002) Ethnographic Space-Time: culture of resistance in a dangerous place in, S Brochu., C. Agra, da & M. M, Cousineau (eds) Drugs and Crime Deviant Pathways, Aldershot: Ashgate.

11 – Por vezes, um certo tipo de investigação psicológica que lê as situações desligadas do contexto contribui involuntariamente para a ideia de autoprodução da exclusão. Referimo-nos a investigações sobre famílias desestruturadas, más práticas parentais, violência doméstica, insucesso escolar, alcoolismo, toxicodependências, em que estas situações e comportamentos, na ausência de leitura contextual, aparecem como “traços” de certos grupos sociais.

 

Referências Bibliográficas

Bourgois, Philippe (2001). The power of violence in War and Peace: Post-Cold War lessons from El Salvador. San Francisco: Sage Publications.

Caspurro, António (2004). Relatório de Actividades do Projecto Arrimo 2000-2004.

Cunha, Manuela Ivone (2002). Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa: Fim de Século.

Fernandes, José Rio (2004). Desindustrialização, terciarização e reestruturação territorial, o caso do Porto in ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5304.pdf

Fernandes, Luís, Pinto, Marta (2004). El espacio urbano como dispositivo de control social: territórios psicotrópicos y políticas de la ciudad in Uso de Drogas e Drogodependencias, Monografias Humanitas, Nº 5. Barcelona: Fundación Medicina y Humanidades Médicas pp. 147-162.

Fernandes, Luís (2006). O medo à cidade. In Actas do Encontro de Intervenção Social: Saberes e Contextos. Porto: Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti.

Fernandes, Luís, Silva, Rosário (2009). O que a Droga fez à prisão. Instituto da Droga e da Toxicodependência, Lisboa.         [ Links ]

Ilundain, Enrique (2004). Drogas, enfermedad y exclusión. ¿Can Tunis (Barcelona) como paradigma? Monografías Humanitas no5. Barcelona: Fundación Medicina y Humanidades Médicas, Barcelona.

Stoer, Stephen, Magalhães, António e Rodrigues, David (2004). Os Lugares de Exclusão Social, São Paulo, Cortez Editora.

Zaluar, Alba (1985). A máquina e a revolta. São Paulo: Brasileirense.

 

Bibliografia Consultada

Domus Social (2007). Relatório. Porto, Câmara Municipal do Porto.

Guerra, Paula (2005). O bairro do Cerco do Porto: cenários de pertença, afectividades e simbologias in ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/1491.pdf

Oliveira Ramos (ed), (1995). O Porto oitocentista, Séren, M. C., Pereira, G. in História do Porto. Porto, Porto Editora.

Pereira, Virgílio Borges (2005). Uma imensa espera de concretizações... Ilhas, bairros e classes laboriosas brevemente perspectivadas a partir da cidade do Porto in ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8461.pdf

Pimenta, Manuel et al. (2001). Estudo socioeconómico da Habitação Social do Porto. Porto, Câmara Municipal do Porto/Pelouro da Habitação e Acção Social.

 

Contactos:

Luís Fernandes: jllf@fpce.up.pt

Alexandra Ramos: mariadasoliveiras@gmail.com

 

Artigo recebido em 08/01/10; versão final aceite em 25/02/10.