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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.2 supl.1 Coimbra dez. 2023  Epub 23-Maio-2023

https://doi.org/10.12707/rvi22035 

Artigo de Investigação (Original)

Cuidadores familiares de pessoas com demência: Tradução, adaptação e validação da Escala de Limites Ambíguos

Family caregivers of people with dementia: Translation, adaptation, and validation of the Boundary Ambiguity Scale

Cuidadores familiares de personas con demencia: Traducción, adaptación y validación de la Escala de Límites Ambiguos

Luciana Andreia Costa Sousa1 
http://orcid.org/0000-0003-0191-6363

Célia Maria Abreu de Freitas1  2  3 
http://orcid.org/0000-0002-5515-3296

João Paulo de Almeida Tavares1  2  3 
http://orcid.org/0000-0003-3027-7978

1 Universidade de Aveiro, Escola Superior de Saúde, Aveiro, Portugal

2 Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA: E), Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC), Coimbra, Portugal

3 Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS@RISE), Universidade de Aveiro, Escola Superior de Saúde, Aveiro, Portugal


Resumo

Enquadramento:

Cuidar de pessoas com demência (PcD) é gerador de stresse entre cuidadores familiares (CF). Uma das situações geradoras desse stresse é a perda ambígua (PA).

Objetivos:

Traduzir, adaptar e validar a Escala de Limites Ambíguos (ELA) para português europeu e determinar as caraterísticas psicométricas da ELA.

Metodologia:

Estudo metodológico a partir de uma amostra de 88 CF de PcD. A consistência interna (CI) avaliada com o Coeficiente de Ômega de McDonald ((), a validade de constructo através da análise fatorial exploratória (AFE) e a validade de critério com a Escala de Perceção de Stresse (EPS).

Resultados:

A ELA apresentou validade conteúdo excelente. A AFE determinou um modelo de dois fatores, explicando 44% da variância, ( de 0,72. Os CF que residem com a PcD apresentam maior PA (t = 2,823, p < 0,01). Correlação significativa positiva e moderada entre a ELA e a EPS (r s = 0,578, p < 0,01).

Conclusão:

A ELA é um instrumento com propriedade psicométrica de CI e validade aceitáveis para a avaliação da PA.

Palavras-chave: luto; pessoa idosa; demência; cuidador familiar

Abstract

Background:

Caring for people with dementia generates stress among family caregivers. One of these stressor events is ambiguous loss.

Objectives:

To translate, adapt, and validate the Boundary Ambiguity Scale (BAS) into European Portuguese and assess its psychometric properties.

Methodology:

Methodological study with a sample of 88 family caregivers of people with dementia. Internal consistency was assessed using McDonald’s omega coefficient ((). Construct validity was assessed through exploratory factor analysis (EFA) and criterion validity through the Perceived Stress Scale (PSS).

Results:

The BAS showed excellent content validity. The EFA revealed a two-factor model, explaining 44% of variance, and a ( of 0.72. Family caregivers who live with people with dementia had greater ambiguous loss (t = 2.823, p < 0.01). A statistically significant moderate positive correlation was found between the BAS and the PSS (r s = 0.578, p < 0.01).

Conclusion:

The BAS has acceptable validity and internal consistency for assessing ambiguous loss.

Keywords: bereavement; older adult; dementia; family caregiver

Resumen

Marco contextual:

El cuidado de personas con demencia (PcD) genera estrés entre los cuidadores familiares (CF). Una de las situaciones que generan este estrés es la pérdida ambigua (PA).

Objetivos:

Traducir, adaptar y validar la Escala de Límites Ambiguos (ELA) al portugués europeo y determinar las características psicométricas de la ELA.

Metodología:

Estudio metodológico basado en una muestra de 88 CF de PcD. La consistencia interna (CI) se evaluó mediante el coeficiente omega de McDonald ((), la validez de constructo mediante el análisis factorial exploratorio (AFE) y la validez de criterio mediante la Escala de Percepción del Estrés (EPS).

Resultados:

La ELA presentó una validez de contenido excelente. El AFE determinó un modelo de dos factores, que explican el 44% de la varianza, ( de 0,72. Los CF que residen con PcD presentan mayor PA (t = 2,823, p < 0,01). Correlación significativa positiva y moderada entre la ELA y la EPS (r s = 0,578, p < 0,01).

Conclusión:

La ELA es un instrumento con propiedades psicométricas de CI y validez aceptables para la evaluación de la PA.

Palabras clave: luto; pérdida; anciano; demencia; cuidador familiar

Introdução

A demência representa a sétima causa de morte a nível mundial, assumindo-se como uma das principais causas de dependência entre a população idosa (World Health Organizacion [WHO ], 2021). Dados globais referem que existem 50 milhões de pessoas com demência de Alzheimer (DA) e outras demências, um número que poderá atingir os 152 milhões em 2050 (WHO, 2021). Em Portugal, segundo a Alzheimer Europe (2019), existem mais de 193 mil pessoas com demência (PcD), estimando-se uma prevalência de 20 pessoas por mil habitantes. Previsões para 2050 sugerem um aumento de 25 pessoas por mil habitantes (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico [OCDE ], 2019). Sem disponibilidade de tratamento dirigido à cura, procura-se uma melhoria dos sistemas de saúde e sociais de modo a aperfeiçoar a qualidade de vida das PcD e das suas famílias (OCDE, 2019). De facto, o efeito das demências é avassalador, com o aparecimento de problemas físicos, emocionais e económicos (WHO, 2021).

Entre os problemas emocionais, destaca-se a perda ambígua (PA), que é um fenómeno relacional inerente ao cuidado prestado pelos cuidadores familiares (CF) às PcD (Boss et al., 2017). A PA integra o modelo de stresse familiar, sendo um fator major de gerador de stresse nas dinâmicas familiares. Foi estudado por Boss et al. (2017) em vários contextos (por exemplo, desaparecidos em combate, divórcio), nomeadamente em famílias com PcD. Deste modo, foi desenvolvida a Boundary Ambiguity Scale (Boss et al., 1990) para cuidadores de PcD. Assim, este estudo tem como objetivos traduzir, adaptar e validar a Escala de Limites Ambíguos (ELA) para português europeu e determinar as caraterísticas psicométricas da ELA.

Enquadramento

A teoria da PA foi desenvolvida por Pauline Boss na década de 70 do século XX, em famílias com soldados desaparecidos na guerra (Boss et al., 2017). Segundo a autora, a PA é definida como uma situação de perda que é incerta, ou seja, existe uma perda que não é efetivamente e fisicamente verificada, em que não ocorrem os rituais de luto como, por exemplo, os funerais. Deste modo, quando um membro da família está ausente ou a presença não é clara, o evento gerador de stresse ou situação é designado de perda ambígua. Existem dois tipos de PA: i) Tipo 1, denominada de física, em que a certeza da morte não existe, a pessoa está fisicamente ausente, mas mantida psicologicamente presente, porque não há provas de morte ou perda permanente; ii) Tipo 2, também denominada de psicológica, em que a pessoa está fisicamente presente, mas psicologicamente ausente, resultado de comprometimento cognitivo ou perda de memória por doença, lesão ou adição (Boss, 2016).

Na teoria da PA, existem dois conceitos que são diferenciados, a ambiguidade e ambivalência. A ambiguidade surge de uma situação fora da pessoa ou família, contrariamente à ambivalência que se expressa individualmente, como por exemplo, o sentimento de culpa (Boss et al., 2017). A ambiguidade congela o processo de luto e leva ao bloqueio de processos de tomada de decisão, a família não tem outra opção a não ser construir a sua própria verdade sobre o estado ausente da pessoa (Boss, 2007). Na situação dos CF de PcD, o sentimento de ambiguidade imobiliza e traumatiza o cuidador perante o seu ente, o qual permanece fisicamente presente, mas psicologicamente não é a pessoa que reconhece do passado (Boss et al., 2017). Assim, a PA constitui-se como sendo um distúrbio relacional e não de disfunção psíquica (Boss et al., 2017).

Na teoria da PA, importa destacar que para além do conceito de PA, Boss et al. (2017) referem a existência da Ambiguidade de Fronteira (AF), que se caracteriza pela forma como a família, no seu todo e os seus membros, percebem a situação ou evento gerador de stresse. Esta AF surge como barreira para a gestão de stresse de uma família, destruindo a sua capacidade de resiliência.

A PA torna-se um problema estrutural quando se cria uma AF, em que papéis pré-existentes são ignorados e as decisões são colocadas em espera. A situação insolúvel bloqueia a cognição, bloqueia a gestão e o enfrentamento do stresse, e congela o processo de luto (Boss et al., 2017). Na AF, não há certeza de quem está dentro ou fora da família, no sentido de perceção e reflete-se em instabilidade e desequilíbrio do sistema familiar, passível de se resolver através do processo de reorganização, mudança de perceções familiares e individuais. Os impactos nos CF podem transitar para os seus relacionamentos, causando conflitos, incluindo isolamento de membros, divórcio, entre outros (Boss, 2016).

Segundo Van Wijngaarden et al. (2018), lidar com a PA é um dos aspetos mais desafiantes para os cuidadores de PcD, uma vez que lidam diariamente com o processo de luto complicado, enfrentando, além disso, “perdas compostas em série”, ou seja, perdas numerosas e cíclicas. Com a progressão da doença e a necessidade de maior envolvimento dos CF, estes deparam-se com mudanças que são instáveis, flutuantes e pouco claras, o que se reflete numa maior ambiguidade devido ao acumular de experiências de perda. Deste modo, os estudos evidenciam que a AF é um preditor de sobrecarga e depressão entre os cuidadores de PcD, em especial entre os que coabitam com estas pessoas, nomeadamente os cônjuges (Thomas et al., 2001). Deste modo, avaliar a AF e a comunicação eficaz, da equipa de saúde, com os CF de PcD, pode incentivá-los a seguir em frente, com implementação de ajustes necessários, podendo interromper o ciclo de ambiguidade e negação (Smodic et al., 2019).

Questão de investigação

Qual a validade da versão portuguesa da ELA para avaliar a PA em cuidadores de PcD portugueses?

Metodologia

Realizou-se um estudo metodológico, que incluiu duas fases: 1) tradução e adaptação cultural da escala ELA para português europeu; 2) validação das propriedades psicométricas da versão adaptada.

Para a validação cultural solicitou-se autorização à autora do instrumento (Boss et al., 1990). Após obtenção da sua autorização, deu-se início ao desenvolvimento do processo de validação linguística de acordo com os princípios de boas práticas para a tradução e adaptação cultural propostos pela International Society for Pharmacoeconomics and Outcomes Research (ISPOR) (Wild et al., 2005). Este processo desenvolveu-se segundo as etapas descritas na Tabela 1.

Tabela 1: Etapas do processo de tradução e adaptação cultural e linguística da ELA 

Etapas Atividades
1. Tradução Tradução para língua portuguesa por uma Enfermeira Bilingue (Inglês e Português)
2. Reconciliação Revisão e adaptação da tradução por uma tradutora profissional, de língua materna portuguesa. Após revisão e discussão para consenso, chegou-se à primeira versão do instrumento.
3. Retroversão Tradução da primeira versão para o inglês, realizada por uma outra tradutora profissional, com conhecimentos avançados em inglês e português europeu.
4. Harmonização Comparação da escala original com a escala traduzida (versão 1), comparando com a retroversão em inglês, realizada pelos investigadores e tradutor, formando assim a versão final traduzida em português (versão 2).
5. Cognitive Debriefing O painel analisou cada item do instrumento, objetivando a verificação da sua compreensão e significado, de forma a reduzir a ambiguidade na compreensão, chegando-se à versão 3 do instrumento.
6. Revisão Ortográfica A versão 3 foi revista por um professor de língua portuguesa, dando origem à versão final do instrumento.

As primeiras quatro etapas decorreram como descritas sucintamente na Tabela 1. Na etapa Cognitive Debriefing participaram nove peritos (doutorados ou estudantes de doutoramento) de diferentes disciplinas que estudam os CF de PcD, tais como, enfermagem, psicologia e ciências da educação. Foram definidas três rondas (janeiro a fevereiro de 2021) para avaliação e obtenção de consenso. Em cada ronda, foi enviado, aos peritos, por correio eletrónico individualizado, um ficheiro Excel com um formulário de concordância com uma escala de Likert de 4 pontos (1 - não concordo a 4 - concordo totalmente), sendo incluído em cada item um espaço para observações livres, sugestões e/ou alterações. No final de cada ronda foi analisado o Índice de Validade de Conteúdo (IVC), bem como, as convergências e discrepâncias presentes nos comentários e/ou sugestões, os quais foram revistos, tendo sido novamente avaliados pelos peritos. A versão preliminar da ELA, foi submetida a um pré-teste, com 10 CF (março a abril de 2021).

Na segunda fase, realizou-se um estudo observacional, transversal, descritivo e correlacional com cuidadores de PcD. Recorreu-se a uma amostragem não probabilística por conveniência, tendo por base os critérios de inclusão: adulto (≥ 18 anos de idade), ser CF de PcD, e pertencer à lista de utentes das unidades de cuidados de saúde primários (CSP). Tendo em conta o objetivo de traduzir, adaptar e validar o instrumento BAS e no sentido de assegurar a validação do instrumento, foi estipulado um número mínimo de cinco participantes por item (Hair et al., 2019). Assim, visto que a escala é composta por 14 itens, obtivemos uma amostra de 70 CF de PcD. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para a Saúde da ARS Centro (processo nº11/2021). A participação foi voluntária e todos os participantes assinaram o consentimento informado livre e esclarecido.

Na recolha de dados foi aplicado: 1) questionário sociodemográfico constituído por 14 questões (e.g. género, idade e estado civil, grau de parentesco e a proximidade com o doente); 2) ELA, desenvolvida e validada por Boss et al. (1990). Esta é constituída por 14 itens, numa escala de Likert de 5 pontos (1 - discordo totalmente a 5 - não tenho a certeza sobre como me sinto). A pontuação final é a soma das respostas aos itens e quanto maior a pontuação, maior a perceção de limite ambíguo do cuidador. A consistência interna (alfa de Cronbach) da escala foi de 0,80 (Boss et al., 1990); 3). Escala de Perceção de Stress (EPS) é uma medida global que avalia o grau em que uma pessoa aprecia as suas situações de vida como stressantes (Cohen et al., 1983), do tipo Likert de 5 pontos (1 - Nunca a 5 - Muitas Vezes). Foi traduzida e validada para português por Pais Ribeiro e Marques (2009) e é constituída por 13 questões, das quais seis com pontuação invertida (questões 4, 5, 6, 7, 9 e 10). Maiores pontuações significam maior presença de perceção de stresse vivenciada pelo indivíduo. A consistência interna (alfa de Cronbach) foi de 0,88 (Pais Ribeiro & Marques, 2009). A recolha de dados, decorreu no período julho a agosto de 2021, por auto (n = 5) e heteropreenchimento (n = 83; e.g. CF iliteratos e/ou com baixa escolaridade) e englobou quatro fases: i) identificação de utentes nas listas das unidades segundo o código de demência atribuído e os critérios de inclusão definidos; ii) foi realizada uma validação junto dos respetivos enfermeiros de família sobre a elegibilidade de cada um dos utentes identificados integrarem a amostra (e.g. institucionalizados, cuidados no domicilio pelo seu CF, existência de certificado de óbito, validação de elegibilidade); iii) convite aos CF elegíveis para participar no estudo; iv) agendamento de data e hora para recolha de dados (devido à fase pandémica aquando da realização do estudo e, na impossibilidade de realizar a recolha presencialmente (n = 7), realizou-se a entrevista por telefone (n = 81).

Para a análise dos dados utilizaram-se técnicas de estatística descritiva (frequência, percentagem, média, mediana, desvio padrão e máximo e mínimo). Na validade de conteúdo, estipulou-se uma concordância maior ou igual a 80% em todos os itens do instrumento. Nesta análise utilizou-se o Índice de Validade de Conteúdo (IVC), calculado de duas formas: cada item individualmente (I-IVC) e o IVC global da escala (E-IVC/Média [M ] e E-IVC/UN [Universal ]). A par do IVC foram, também, calculadas a probabilidade de ocorrência ao acaso (PC) e o Kappa (considerando bom para o intervalo de 0,60 a 0,74 e excelente para valores superiores a 0,74; Yusoff, 2019).

Na validade de constructo recorreu-se à análise fatorial exploratória (AFE). Para obter o modelo fatorial foi feita a extração por componentes principais e a rotação ortogonal de tipo Varimax. Para determinação da adequação da amostra foi utilizado o critério de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) e o teste de esfericidade de Bartlett’s. Os resultados são considerados adequados para a AFE quando KMO > 0,5 teste de esfericidade de Bartlett’s p < 0,01(Hair et al., 2019). Para calcular o número de fatores a reter foi considerado o método das análises paralelas. Para identificar o número de item por fator, foi considerada uma carga fatorial > 0,30 e uma variância > 40% (Hair et al., 2019).

Na validade por grupos de conhecimentos comparou-se os resultados da PA entre o grupo de pessoas que vive com a PcD e o grupo que vive próximo. Esta validade assenta no pressuposto de que as pessoas que coabitam apresentam mais sentimentos de PA (Boss et al., 2017). Foi utilizado o teste t de student ou o equivalente não paramétrico de U de Mann-Whitney, se pressupostos da normalidade não se verificaram. Na validade de critério, entre a ELA e a EPS utilizou-se o coeficiente de correlação de Spearman’s. A consistência interna foi avaliada através do Coeficiente ómega de McDonald ((), sendo que este deve apresentar valores entre 0,70 e 0,90 (Viladrich et al., 2017).

Para a análise paralela recorreu-se ao Analytics Software & Solutions (SAS) e utilizou-se o software IBM SPSS Statistics, versão 26.0 na análise dos dados, considerado como estatisticamente significativo, o valor de p < 0,05.

Resultados

Caracterização da amostra

Um total de 247 utentes apresentaram diagnostico de demência, dos quais 85 não cumpriam os critérios de inclusão e 73 recusaram participar ou não se conseguiu o seu contacto. A amostra final foi constituída por 88 CF, a maioria do sexo feminino (75%), com média de idades de 62,84 anos (DP ± 14,46 anos), variando entre 25 e 92 anos. A maioria (72,7%) vive numa união (casado ou em união de facto) e os CF são filhos da PcD (45,5%), seguidos dos cônjuges (39,8%) e os restantes participantes são outros familiares (14,8%), em que se incluem netos, noras e irmãos. A maioria dos CF (79,5%) coabitam com a PcD, têm entre 0 e 4 anos de escolaridade (42%), tal como referido na Tabela 2. Mais de metade (61,4%) encontra-se sem vínculo laboral e não recebem nenhum tipo de apoio domiciliário (59,1%). O tempo de cuidador apresentou uma mediana (Q1, Q3) de 57 (36, 84) meses com o mínimo de 8 meses e o máximo de 648 meses (Tabela 2).

Tabela 2: Caracterização sociodemográficas da amostra 

Nota. n = Número total da amostra; % = Percentagem; M = Média; DP = Desvio-padrão; mín. = Mínimo; máx = Máximo; Q = Quartil; PcD = Pessoa com demência.

Validade de conteúdo

No final da terceira ronda, o item A (título da escala) obteve um IVC = 0,89, pc = 0,018 e um K de 0,887. O item B (informação geral do instrumento), o item C (escala de avaliação) e os todos 14 itens da escala apresentam IVC = 1, pc = 0,002 e K de 1, considerando-se excelente (Tabela 3).

Tabela 3: Análise do Índice de Validade de Conteúdo da ELA versão português europeu 

Item IVC pc K Interpretação do Kappa
A 0,89 0,018 0,887 Excelente
B e C 1 0,002 1 Excelente
1 a 14 1 0,002 1 Excelente
E-IVC/M = 0,99; E-IVC/UN = 0,94

Nota. IVC = índice de validade de conteúdo; pc = Probabilidade de Ocorrência; K = Kappa; E-IVC/M = índice de validade de conteúdo da escala, média; E-IVC/UN = índice de validade de conteúdo da escala, concordância universal.

Validade de constructo

O teste de KMO foi de 0,76 e o teste de esfericidade de Bartlett’s (p < 0,01) evidenciando que há adequação para realizar a AFE. A análise paralela sugeriu a existência de dois fatores. Da análise fatorial com fixação de dois fatores emergiu o fator A “Ambiguidade face ao cuidar do EU ou da PcD” é constituído por oito itens que apresentam uma carga fatorial que variam entre 0,51 e 0,81 e apresentou um ( de 0,79 (Tabela 4). O fator B “Ambiguidade na conexão com a PcD e a rede” é constituído por 6 itens que apresentam uma carga fatorial que varia entre 0,39 e 0,62 e apresentou um Omega (() de 0,62 (Tabela 4). A consistência interna dos 14 itens da ELA foi de 0,72, com uma variância de 44%.

Tabela 4 : Análise fatorial exploratória da da ELA versão português europeu (n = 88) 

FA FB M DP
ELA13 0,51 3,40 0,85
ELA5 0,54 3,10 0,84
ELA14 0,59 3,85 0,36
ELA 3 0,62 2,82 1,07
ELA11 0,68 3,72 0,55
ELA2 0,73 3,49 0,82
ELA4 0,71 3,67 0,64
ELA9 0,81 3,67 0,56
ELA8 0,39 2,67 0,97
ELA1 0,49 2,56 0,90
ELA7 0,58 2,67 1,25
ELA6 0,62 2,35 0,94
ELA10 0,63 1,73 1,08
ELA12 0,62 2,23 1,15
Variância (%) ω 15,37 0,79 28,63 0,62 44 0,72

Nota. ELA = Escala de Limites Ambíguos; FA = fator A; FB = fator B; M = Média; DP = Desvio-padrão.

Validade por grupos de conhecimento e critério

Em relação à proximidade, verificou-se uma diferença estatisticamente significativa com a ELA (t = 2,823, p < 0,01) e o fator A (U = 526, p < 0,01), sendo que os valores mais elevados de PA estão presentes nos CF que vivem com a PcD. Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas com o fator B e grau de proximidade (U = 625, p = 0,965), tal como evidenciado pela Tabela 5.

Tabela 5: Diferenças estatísticas e Correlação entre variáveis, PA Total e fator A e B 

Nota. U = Mann-Whitney U; p = nível de significância; r s = Coeficiente de correlação; t = t-student; PcD = pessoa com demência.

Da correlação entre a ELA e a EPS evidenciou-se uma correlação significativa positiva e moderada (r s = 0,578, p < 0,01). Resultados similares foram verificados com o fator A (r s = 0,48, p < 0,01) e B (r s = 0,486, p < 0,01).

Discussão

A ambiguidade de fronteira do CF à PcD é uma temática emergente e inovadora. Em Portugal, os estudos realizados com CF não avaliam os sentimentos de ambivalência e ambiguidade. Assim, este estudo traduziu, adaptou e contribuiu para a validação para português europeu da ELA de forma a permitir aos profissionais de saúde avaliar a presença de PA nos CF. O cumprimento rigoroso das seis etapas propostas pela ISPOR (Wild et al., 2005), permitiu assegurar a equivalência semântica e idiomática da versão da ELA em relação ao original.

No processo de validação foram considerados os IVC individuais e globais através da média dos itens (E-IVC/M) e o acordo universal (E-IVC/UN). Tendo presente que a pontuação média pode ser distorcida por outliers (E-IVC/M), neste estudo ambos foram considerados na validação de conteúdo, sendo os resultados considerados excelentes se o E-IVC/UN ≥ 0.8 e o E-IVC/M ≥ 0.9 (Yusoff, 2019). Os dados E-IVC/M e E-IVC/UN foram de 0,99 e 0,94, respetivamente. Segundo Yusoff (2019), estes dados demonstram que a ELA apresenta uma excelente validade de conteúdo, o que reflete que esta escala avalia adequadamente o constructo da PA/ambiguidade de fronteira. Adicionalmente, o número de peritos (n = 9) é considerado adequado para a validade de conteúdo, variando na literatura entre no mínimo três e no máximo 10 (Boateng et al., 2018). No sentido de assegurar a representatividade considerou-se, igualmente, a qualidade do painel de especialistas, pelo que foram convidados peritos de diferentes disciplinas com enfoque de pesquisa em CF de PcD. Os IVC individuais do pc e K são considerados excelentes. Por último, o pré-teste reforçou que a ELA é compreensível, não tendo surgido ambiguidade nas questões, nem sugestões que justifiquem a alteração da mesma.

Neste estudo foram utilizadas três formas de validade, nomeadamente, a de constructo através da AFE, de grupos de conhecimentos e critério, indo ao encontro de Boateng et al. (2018), que sugerem pelo menos duas formas de validade de constructo. Os dados da validade de constructo, mostram a adequação da amostra, cargas fatoriais superiores a 0,4 (exceto o item 8) e um modelo fatorial de dois fatores que explicam 44% de variância, o que reforça a validade da ELA (Hair et al., 2019). Uma maior retenção de fatores poderia aumentar a percentagem de variância, mas considerado os dados da análise paralela obteve-se dois fatores, sendo que o fator A é o que menos explica a variância da ELA.

A validade por grupos de conhecimento é demonstrada quando um teste ou questionário consegue discriminar dois grupos que diferem na variável de interesse (Davidson, 2014). Deste modo, os resultados evidenciam que o grupo dos CF que residem com a PcD experienciam maior ambiguidade, sendo verificado em outros estudos (Thomas et al., 2001). Esta proximidade reflete-se num cuidado contínuo (24 horas, 7 dias por semana) em que os CF podem ficar mais confusos em relação ao seus papéis e relacionamentos, por exemplo “ainda é meu marido/esposa? A PcD ainda sabe quem sou eu?”. Nestas situações, os CF podem questionar-se se a pessoa cuidada está presente ou ausente, o que se reflete na ambiguidade que sentem. A vivência destas experiências pode causar sofrimentos e perdas intransponíveis, que derivam em ambiguidade que se vai agravando na medida que a progressão da demência implica perdas contínuas.

Os resultados da validade convergente demonstram uma correlação moderada entre a ELA e a EPS, em que ambos os instrumentos refletem o stresse do CF, reforçando a validade da ELA e a pertinência deste estudo. Estes resultados evidenciam que a PA leva a situações de maior perceção de stresse, tal como mostra um estudo com 132 PcD e seus CF, que concluiu que a ambiguidade foi preditor de sobrecarga e depressão no cuidador e que a “retirada” e desmotivação foram identificados como as principais queixas destes cuidadores (Thomas et al., 2001).

O valor de consistência interna foi avaliado através do Coeficiente ômega de McDonald ((), sendo que a consistência se reflete na forma de precisão e erro de medida. Segundo Viladrich et al. (2017) o coeficiente ômega é um método alternativo para determinar a confiabilidade, sendo o cálculo baseado na análise fatorial. Este coeficiente trabalha com cargas fatoriais, contrariamente ao coeficiente alfa, o que torna os cálculos da consistência interna mais estáveis e com nível de confiabilidade maior. Neste estudo, o ómega da escala ELA foi de 0,72, o que indica uma confiabilidade do modelo de dois fatores obtido (( > 0,70). Os valores de ómega no fator A e B foram de 0,79 e 0,62, respetivamente. Neste sentido, existe consenso para que se considere que a ELA na sua escala total tenha uma consistência interna boa, demonstrando que o instrumento é consistente, reforçado pelo fator A que apresenta coeficiente de ômega superior a 0,70. No que toca ao fator B, apesar de não apresentar um coeficiente ômega superior a 0,70, este encontra-se próximo de 0,65 podendo ser considerado um valor satisfatório (Katz, 2011).

Este estudo apresenta algumas limitações. Primeiro, o tamanho da amostra (n = 88), que foi decorrentes de vários fatores: a indisponibilidade de alguns CF devido à pandemia por COVID-19 e a negação de alguns CF face ao diagnóstico de demência da pessoa que cuidam. Tendo presente a validade de constructo deste estudo, uma relação amostra-item superior 10:1 é o mais recomendado (Hair et al., 2019), sendo que se conseguiu um amostra-item de 6:1. Contudo, prevê-se uma relação mínima de 5:1 para que se possa realizar uma AFE (Hair et al., 2019). Futuros estudos, em especial de análise fatorial confirmatória, devem considerar a relação amostra-item superior 10:1. Segundo, a existência de regras restritivas de acesso dos utentes às unidades de saúde, devido à situação pandémica, em que as todas as atividades presenciais foram reduzidas ou canceladas, o que limitou o acesso presencial aos CF, pelo que, a maioria da recolha de dados tenha sido efetuado por contato telefónico, o que pode ter constituído uma dificuldade para os CF. Terceiro, a inclusão de CF de PcD independentemente do estádio da doença. A presença de sentimentos de PA reflete a progressão da doença, sendo que em estádios iniciais os sentimentos de PA podem não estar presentes, podendo refletir-se nas respostas dos participantes. Quarto, que seja do nosso melhor conhecimento, não foram encontrados outros estudos de validade da ELA, informação confirmada pela autora do instrumento, o que limita a comparação dos resultados.

Conclusão

Os resultados deste estudo evidenciam que a versão portuguesa da ELA têm equivalência linguística com a versão original, tendo o pré-teste demonstrado que esta é de fácil compreensão. A validade de conteúdo dos 14 itens da escala revelou um IVC = 1, pc = 0,002 e K de 1, considerando-se resultados excelentes. A propriedade psicométrica da ELA apresentou resultados de validade de constructo e consistência interna aceitáveis. Contudo, sugere-se o uso da escala global na avaliação da PA, considerado que a subescala “Ambiguidade face ao cuidar do EU ou da PcD” apresentou valores de consistência interna baixos. Tratando-se de uma área recente de pesquisa no âmbito do CF a PcD, em Portugal, a implementação deste estudo contribuiu para a validação da ELA. Este instrumento poderá ser utilizado na avaliação da PA e desenvolvimento de intervenções realizados por profissionais de saúde, nomeadamente enfermeiros, a CF de PcD, na gestão do stresse familiar e, consequentemente, alívio da sobrecarga decorrente do mesmo.

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Como citar este artigo: Sousa, L. A., Freitas, C. M., & Tavares, J. P. (2023). Cuidadores familiares de pessoas com demência: tradução, adaptação e validação da Escala de Limites Ambíguos. Revista de Enfermagem Referência, 6(2, Supl. 1), e22035. https://doi.org/10.12707/RVI22035

Recebido: 24 de Março de 2022; Aceito: 12 de Outubro de 2022

Autor de correspondência João Paulo de Almeida Tavares E-mail: joaoptavares@ua.pt

Conceptualização: Sousa, L. A., Freitas, C. M., Tavares, J. P.

Tratamento de dados: Sousa, L. A., Tavares, J. P.

Análise formal: Sousa, L. A., Freitas, C. M., Tavares, J. P.

Investigação: Sousa, L. A., Freitas, C. M., Tavares, J. P.

Metodologia: Sousa, L. A., Freitas, C. M., Tavares, J. P.

Supervisão: Freitas, C. M., Tavares, J. P.

Visualização: Freitas, C. M., Tavares, J. P.

Redação - rascunho original: Sousa, L. A., Freitas, C. M., Tavares, J. P.

Redação - análise e edição: Sousa, L. A., Freitas, C. M., Tavares, J. P.

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