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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.16 Coimbra mar. 2018

https://doi.org/10.12707/RIV17064 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA

HISTORICAL RESEARCH ARTICLE

 

O cuidado e bom serviço dos enfermeiros em 1821-1822

Nursing care and nurses' good service in 1821-1822

El cuidado y buen servicio de los enfermeros en 1821-1822

 

Paulo Joaquim Pina Queirós*; António José de Almeida Filho**; Maria Angélica de Almeida***; Tânia Cristina Franco Santos****; Marina Baptista Pereira*****; Patrícia Freitas Pereira******

* Ph.D., Professor Coordenador, Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-851, Coimbra, Portugal [pauloqueiros@esenfc.pt]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica; recolha de dados; tratamento de dados, análise e discussão, escrita do artigo. Morada para correspondência: Avenida Doutor Dias da Silva, nº 115 - 3.º Esq, 3000-137, Coimbra, Portugal.

** Ph.D., Professor, Escola de Enfermagem Anna Nery, 20071-003, Rio de Janeiro, Brasil [ajafilhos@gmail.com]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica; análise de dados, discussão, revisão final do artigo.

*** Ph.D., Professora, Escola de Enfermagem Anna Nery, 20071-003, Rio de Janeiro, Brasil [angelica.ufrj@uol.com.br]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica; análise de dados, discussão, revisão final do artigo.

**** Ph.D., Professora, Escola de Enfermagem Anna Nery, 20071-003, Rio de Janeiro, Brasil [taniacristinafsc@gmail.com]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica; análise de dados, discussão, revisão final do artigo.

***** 12º ano, Estudante de Licenciatura em Enfermagem, Unidade de Investigação em Ciências da Saúde (UICISA:E), Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-851, Coimbra, Portugal [pereiramarina1996@gmail.com]. Contribuição no artigo: recolha de dados; tratamento de dados, análise e discussão.

****** 12º ano, Estudante de Licenciatura em Enfermagem, Unidade de Investigação em Ciências da Saúde (UICISA:E), Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-851, Coimbra, Portugal [patriciapereira_12@live.com.pt]. Contribuição no artigo: recolha de dados; tratamento de dados, análise e discussão.

 

RESUMO

Enquadramento: Após a revolução liberal de 1820 entra em funcionamento a primeira câmara eleita de representantes da nação portuguesa. Num contexto distanciado da profissionalização da enfermagem, do seu ensino, regulamentação e controlo, são várias as referências a enfermeiros.

Objetivos: Analisar o que se discutia sobre enfermeiros e enfermagem em 1821-22 no Soberano Congresso.

Metodologia: Pesquisa histórica nos diários das sessões, com levantamento, análise e interpretação de fontes.

Resultados: Identificados 5 blocos temáticos, a figura de enfermeiro-mor, o Projecto de Regulamento Geral de Saúde Pública, a referência a enfermeiros, a presença de parteiras e sangradores, e a organização de espaços enfermarias e hospitais.

Conclusão: Não há expressamente enfermagem, há enfermeiros. Enfermeiro-mor, diferenciado de enfermeiro. Persistência de sangradores e destaque à organização estruturada das parteiras. Existência de enfermeiro como cuidador, no espaço hospitalar e domiciliário, em processo de diferenciação de outras actividades de assistência ainda longe da profissionalização. Preocupações de higiene, segurança, qualificação, organização da assistência e dos espaços.

Palavras-chave: história; enfermagem; história da enfermagem

 

ABSTRACT

Background: The first elected chamber of representatives of the Portuguese nation started operating after the 1820 Liberal Revolution. Although historically distant from nursing professionalization, education, regulation, and control, several references were made to nurses in this chamber.

Objectives: To analyze the discussions about nurses and nursing in the Sovereign Congress in 1821-22.

Methodology: An historical search was conducted in the daily session records, followed by the collection, analysis, and interpretation of sources.

Results: Five themes were identified: the figure of enfermeiro-mor; the Proposal for a General Public Health Regulation; references to nurses; the presence of midwives and bleeders; and the organization of nursing wards and hospitals.

Conclusion: No explicit reference was made to nursing, only to nurses. The definitions of enfermeiro-mor and nurse differed. Bleeders were frequently mentioned, as well as the structured organization of midwives. Nurses appeared as caregivers in hospitals and at home, in a different category of other care delivery activities; however, nursing was still far from professionalization. Finally, there were references to issues related to hygiene, safety, qualifications, and care organization.

Keywords: history; nursing; history of nursing

 

RESUMEN

Marco contextual: Después de la revolución liberal de 1820 entra en funcionamiento la primera cámara electa de representantes de la nación portuguesa. Aunque el contexto se distancia de la profesionalización de la enfermería, de su enseñanza, regulación y control, existen varias referencias a enfermeros.

Objetivos: Analizar lo que se discutía sobre los enfermeros y la enfermería de 1821 a 1822 en el congreso soberano.

Metodología: Investigación histórica en las actas de las sesiones, con recogida, análisis e interpretación de fuentes.

Resultados: Se identificaron 5 bloques temáticos, la figura del enfermero-mor, el Proyecto del Reglamento General de Salud Pública, la referencia a enfermeros, la presencia de parteras y sangradores, y la organización de espacios para enfermerías y hospitales.

Conclusión: No existen expresamente enfermerías, hay enfermeros, el enfermero-mor, que se diferencia del enfermero; persisten los sangradores y destaca la organización estructurada de las parteras; existe el enfermero como cuidador en el espacio hospitalario y domiciliario, en proceso de diferenciarse de otras actividades de asistencia aún lejos de la profesionalización; preocupaciones de higiene, seguridad, calificación, organización de la asistencia y de los espacios.

Palabras clave: historia; enfermería; historia de la enfermería

 

Introdução

Damos por adquirido que o ensino de enfermagem em Portugal surgiu em 1881, em Coimbra, formalmente estruturado em escola, fruto dos bons ofícios de Costa Simões, o que pode constituir um dos primeiros sinais de profissionalização. Mas a profissionalização da enfermagem é seguramente um movimento secular, onde só nos finais do séc. XX, com o Regulamento do Exercício da Profissão Enfermagem e o órgão regulador - a Ordem dos Enfermeiros - se pode considerar acabado. Mas sabe-se, também, que a enfermagem e os enfermeiros existem e são referenciados anteriormente. Do conhecimento escasso, descontinuado, muitas vezes idealizado e construído em torno de figuras bondosas, importa o conhecimento sistemático, integrador nos movimentos da sociedade e que permita ver, no tempo longo, as linhas de construção ideológica e societária da enfermagem de hoje. Neste contexto impõe-se o estudo de documentos escritos, disponibilizados e acessíveis, pelo contributo que podem dar à clarificação do movimento de autonomização da enfermagem como atividade bem como da sua profissionalização. Temos hoje acesso informatizado à quase totalidade dos diários das diversas câmaras de representantes da nação que funcionaram em Portugal desde 1821 até aos nossos dias. Importa verificar e estudar, sobre um prisma histórico, o que se discutia, analisava, era levado e se elegia para análise, nestas câmaras, que tivesse relação com a enfermagem e os enfermeiros. A investigação agora presente dá conta do trabalho efetuado, com o levantamento, leitura, análise e interpretação dos Diários das Sessões de 1821 e 1822, 2 anos particulares. Portugal vê eclodir a Revolução Liberal em 1820, com ela dá-se um rude golpe na Monarquia Absolutista, abrem-se portas ao Liberalismo, a experiências representativas democráticas, com a instituição de câmaras onde os povos se viam representados. Foi o caso das Cortes Geraes e Extraordinarias da Nação Portugueza, também designadas por Soberano Congresso. Com “a revolução de 1820 consagrou-se em Portugal o momento fundador do liberalismo oitocentista” (Vargues,1993, p. 45). Este movimento de rutura e descontinuidade ocorre num momento em que “a sociedade portuguesa seguia repetindo rotinas ancestrais em praticamente todos os domínios da sua existência. Com uma população de escassos três milhões de habitantes, o país era esmagadoramente rural, muito pobre e, claro está analfabeto” (Bonifácio, 2010, p. 13). As Cortes Extraordinárias resultam da eleição em Dezembro de 1820, onde foram eleitos deputados com a missão de elaborar uma Constituição. Funcionaram entre 24 de janeiro de 1821 e 4 de novembro de 1822, dando origem à primeira constituição portuguesa, aprovada em 30 de Setembro de 1822. Vargues (1993) afirma que “com a instalação do primeiro parlamento liberal em Portugal . . . estava firmado o primeiro objectivo do revolucionário de 1820” (p. 61). Este órgão, com funções constituintes, assumiu-se, também, como órgão de soberania e “muitos foram também os portugueses que pretenderam intervir, fazendo chegar ao Soberano Congresso . . . centenas de propostas” (p. 61). Sobre estas Cortes, Bonifácio (2010) refere: “o Soberano Congresso, . . . , entregue a si próprio dedicou-se a elaborar uma Constituição puramente radical – uma república disfarçada de monarquia – bastante desfasada do que então, à excepção [sic] de Espanha, se praticava na Europa” (p. 27).

Tendo como objetivo analisar o que se discutia sobre enfermeiros e enfermagem em 1821-1822 no Soberano Congresso, justificam-se e tornam-se pertinentes as seguintes perguntas: Em Portugal, nestas datas, nestas cortes, o que se passava relacionado com a enfermagem? O que discutiam as elites, nesta assembleia, relacionado com a enfermagem?

 

Metodologia

Esta investigação desenvolve-se com metodologia histórica. Orienta-nos os seguintes posicionamentos metodológicos: considerar

três momentos da elaboração do discurso histórico, que são, primeiro, o exame do passado através das suas marcas, depois a representação mental que desse exame resulta e por fim a produção de um texto escrito ou oral que permite comunicar com outrem. (Mattoso,1997, p. 16)

Mas em que o discurso construído tenha em conta que “a cientificidade da ciência moderna da história se situaria não mais no que ela narre, mas sim descreva, analise, explique.” (Rüsen, 2001, p. 119); entendendo a História como “um saber complexo, lato e definido, explicativo e problematizador” (Torgal, 2015, p. 50).

Este estudo parte do levantamento e análise de fontes documentais, especificamente os Diários das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, acessíveis no site da Assembleia da República, onde através do motor de busca disponibilizado, caminhou-se ao encontro das páginas dos diários, utilizando os descritores: enfermeiro(a); enfermeiros(as); enfermaria(as); enfermagem; parteira(as); sangrador(es). Trabalho que comporta a etapa de seleção e classificação das fontes documentais após o que se procede à determinação da qualidade e relevância contida nas fontes (Filho et al., 2015), Após leitura atenta, procedeu-se à análise dos assuntos, fez-se o enquadramento e explicitação em função dos objetivos traçados como sejam: o levantamento dos assuntos tratados que se relacionam com a enfermagem e enfermeiros; análise do material e interpretação temática e de conjunto para a série temporal dos 2 anos de funcionamento das cortes; perceção dos temas e assuntos que suscitaram o interesse das elites legislativas; construção de texto escrito analítico e interpretativo, fortemente ilustrado com citações das fontes, e conclusivo em termos de proposta interpretativa elaborada pelos investigadores. É de realçar que a análise documental, enquanto processo de investigação histórica, possibilita oportunidades de pesquisar o impacto da enfermagem na sociedade portuguesa, identificando o conteúdo das discussões sobre enfermeiros e enfermagem, bem como o estudo das ausências num determinado período histórico (Queirós, Filho, Monteiro, Santos, & Peres, 2017).

 

Resultados e discussão

O levantamento efetuado permitiu identificar 37 páginas de diários das sessões, respetivamente 23 no ano 1821 e 14 no ano 1822. Estas páginas estão em 27 diários (16 em 1821 e 11 em 1822), para um total de 481 diários publicados nesses 2 anos (263 para 1821 e 218 para 1822). Ou seja, em apenas 5,6% dos diários das sessões surgem assuntos relacionados com os descritores utilizados. Julgamos não estar em causa o valor percentual expressivamente reduzido, o que numa primeira análise poderia mostrar-se de baixo significado. Antes entendemos que se pode colocar a questão de em data tão recuada, e em organismo legislativo de tão elevado posicionamento social, já se ter encontrado este número.

Os descritores enfermeiro e enfermeiros foram os mais produtivos permitindo 25 localizações. Seguem-se os descritores enfermaria e enfermarias com 11 localizações, parteira e parteiras com cinco e, também, sangrador e sangradores com cinco. Refira-se que não se encontraram entradas com os descritores enfermeira, enfermeiras, e enfermagem (Tabela 1). A análise à produtividade dos descritores suscita à partida algumas interrogações. Porque não surgem entradas com os descritores enfermeira/as? Não existiam? Ou a formulação masculina abrangia as duas? A função enfermeira esgotar-se-ia na dimensão parteira e, por isso, não surge o descritor? A partir de quando surge a enfermeira autonomizada nos diários das sessões? Estudos posteriores, quando estiver analisada toda a série temporal respeitante à monarquia constitucional (1820-1910), darão por certo resposta a estas questões. Será também interessante e conveniente questionar, porque não surgem entradas com o descritor enfermagem? Julgamos que a resposta encontrar-se-á no facto de ainda agora começar a despertar o processo de diferenciação profissional da enfermagem.

 

 

A análise da série temporal, em que os descritores de pesquisa foram produtivos para cada um dos anos de funcionamento destas Cortes Gerais, mostram dispersão ao longo dos meses, não se verificando qualquer relevante concentração temporal.

A leitura dos diários das sessões, seguindo os descritores, permitiu identificar cinco blocos temáticos: Um primeiro de referências em torno da figura enfermeiro-mor. Um outro, com o Projeto de Regulamento Geral de Saúde Pública; Um terceiro bloco com referências concretas a enfermeiros; Relacionado com o tema anterior, mas com possibilidade de individualização, um bloco sobre parteiras e sangradores; Por último, um quinto bloco temático com aspetos de organização de espaços de assistência, enfermarias e hospitais.

Enfermeiro-mor

Sabemos das ligações do enfermeiro-mor a funções administrativas e de gestão. No Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, em 29 de junho de 1564, a provedoria é retirada aos padres de São João Evangelista, frades lóios, “e entregue à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, sendo o cargo de provedor substituído pelo de enfermeiro-mor e desempenhado pelo provedor da irmandade, que tinha, por isso, a sua morada no hospital” (Sousa, 2013, p. 92).

O material disponibilizado pelos diários das sessões do Soberano Congresso dá-nos algumas pistas sobre o enfermeiro-mor nesta época. No Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821 (Assembleia da República, 1821-1822), encontramos um projeto de Regulamento Geral de Saúde Pública, onde podemos ler que todos os hospitais serão administrados por uma junta composta pelo enfermeiro-mor, o administrador, o médico mais antigo, o cirurgião mais antigo e, o escrivão ou o escriturário. Genericamente as funções previstas para cada um destes cargos são definidas da seguinte forma:

o administrador terá a seu cargo tudo o pertence á economia da casa; o enfermeiro mor de tudo o que diz respeito ao pessoal dos doentes, e a todos os empregados; o medico [sic] fará a aceitação, ordenará a dieta, e o curativo dos doentes da repartição medica [sic], e fará executar o regulamento na sua enfermaria. (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2644).

Nos textos dos diários das sessões podemos ainda encontrar outras referências ao enfermeiro-mor relacionado com vários assuntos, que de seguida se apresentam.

A Comissão de Instrução Pública, das Cortes Gerais, emite em 24 de março de 1821 parecer em como não vê inconveniente que seja lecionada uma cadeira de língua francesa dentro do Hospital S. José, o que será útil para os que frequentam o curso de cirurgia, mas carece da “licença necessária do Enfermeiro Mór do Hospital a que ficará subjeito [sic] no que pertence ao exercício da sua Aula” (Diário nº 42, de 24 de março de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 359).

Em 1 de maio de 1821 chega às cortes um pedido de emprego no Arsenal do Exército, de António Baptista que serviu de enfermeiro-mor nos hospitais militares.

A 25 de maio de 1821 dá-se nota de entrada nas cortes de portaria da regência do reino em nome d ‘El Rei, o senhor D. João VI, sobre a representação do enfermeiro-mor do Hospital S. José, em que expunha dúvida em receber a quarta parte dos direitos das farinhas estrangeiras, assim como da isenção dos direitos sobre trigos estrangeiros que se consomem no dito hospital. Situação, que é apreciada em 12 de dezembro de 1821, considerando o direito à quarta parte da venda do grão, atribuído remotamente, em 14 de abril de 1782, ao Hospital de S. José em virtude da escassez de recursos e argumentando:

auxilio, que actualmente [sic] se faz ainda mais necessário pelo maior numero [sic] de doentes que ali se curão [sic], que no presente excede a 1200, e sem o qual não há meios de ministrar aos doentes os géneros e remédios [sic] de primeira necessidade (Diário nº 248, de 12 de dezembro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 3396).

E as cortes “sendo-lhes presente a conta do Enfermeiro mór do hospital S. José”, decidem, “em razão da tenuidade de seus rendimentos . . . que deveria continuar-se a favor daquele hospital a parte da vendagem de todo o grão que lhe estava dantes aplicada” (Diário nº 248, de 12 de dezembro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 3397).

Na sessão de 21 de julho de 1821, o diário das cortes, dá conta da entrada do ofício do enfermeiro-mor do Hospital de S. José, enviando à representação dos facultativos de medicina e cirurgia sobre a proibição da entrada aos parentes, ou amigos dos enfermos no referido hospital. Na sessão de 1 de abril de 1822, foram distribuídos pelos senhores deputados 160 exemplares da receita e despesa do Hospital de S. José, relativo ao ano anterior e enviados pelo enfermeiro-mor.

Surge nos diários de 14 de agosto de 1821 e nos de 1 e 18 de abril de 1822, uma polémica sobre colocação de médicos no Hospital de São José, pelo enfermeiro-mor. Afirma-se:

he [sic] livre ao enfermeiro mór propor o medico que julgar melhor, mas que em igualdade de circunstâncias devem preferir os médicos que tem servido em estabelecimentos pios, reduz-se por tanto a duvida a comparar o merecimento e qualidade dos médicos propostos pelo enfermeiro mór com os actuaes [sic] da misericordia [sic] (Diário nº 60, de 18 de abril de 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 862).

E ficamos a saber, que a razão da polémica está em que “um dos médicos propostos pelo enfermeiro mór foi premiado em todos os anos da Universidade, qualificação que não tiveram os médicos da misericordia [sic]: este por tanto prefere-lhes indubitavelmente.” (Diário nº 60, de 18 de abril de 1822, p. 862). O parecer das Cortes vai no sentido conciliatório entre o mérito dos pios serviços e o mérito académico.

Projeto de Regulamento Geral de Saúde Pública: preocupações de segurança, qualificação e organização

Em 13 de outubro de 1821, o deputado Francisco Soares Franco (1771-1844), enquanto membro da comissão de saúde pública, apresentou às cortes um Projeto de Regulamento Geral de Saúde Pública. (Diário nº 10, de 08 de fevereiro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822).

O projeto de regulamento expõe no preâmbulo as razões da sua necessidade. Afirma que um dos mais importantes objetivos de qualquer governo é conservar a saúde pública dos povos, porque é muito mais útil prevenir as doenças, do que “passar pelo penoso trabalho de as tratar a custo de muitos riscos, e despezas [sic]”. A falta de centro de poder que fiscalize e responda aos objetivos expressos, são também razão que levam a referida comissão a propor este regulamento. Assim, apresenta o propósito de “fazer um regulamento de saúde publica [sic] simples, uniforme em todo o Reino, e dependente de um poder central, e único, que fiscalizasse” (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2639). A proposta legislativa desenvolve-se em 146 artigos organizados em oito títulos designados:

Da junta de saude [sic] publica [sic]; Dos empregados de saude [sic], e sua habilitação; Dos expostos; Dos hospitaes [sic]; Da policia [sic] medica [sic]; Do serviço de saude [sic] dos portos do mar dos Reinos de Portugal e Algarve, e Ilhas adjacentes; Do Lazareto; Dos delitos, e penas dos empregados de saude [sic] publica [sic]. (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2639-2649)

Releva do projeto deste regulamento a criação em Lisboa de uma junta de saúde pública nomeada por El-Rei e composta por três médicos, um cirurgião e um boticário, com a incumbência de reunir três vezes por semana, que terá as atribuições anteriores do físico-mor e do cirurgião-mor do reino; cuidará dos estabelecimentos de saúde existentes e a criar; comunicará as suas ordens aos inspetores de saúde das câmaras e médicos dos partidos; mandará habilitar e passar diplomas e cartas a médicos, cirurgiões e boticários; fiscalizará sangradores, parteiras e enfermeiros; elaborará relatórios trimestrais e semestrais sobre a saúde dos povos, e fará imprimir anualmente os “Annaes [sic] de saude [sic] publica [sic] em Portugal”.

O projeto de regulamento identifica, como empregados de saúde, no art.º 17, os médicos, cirurgiões, boticários, e parteiras. Não referindo neste artigo expressamente os enfermeiros, todavia, em artigo anterior, art.º 10, refere as funções de fiscalização dos inspetores de saúde das cabeças de comarca expressando:

o estado dos hospitaes [sic], notando o reparo dos edifícios, a boa ou má localidade deles, o seu asseio [sic], o numero dos doentes, a qualidade das moléstias, a atenção e assistência dos médicos, e cirurgiões, o cuidado, e bom serviço dos enfermeiros, o bom sortimento das boticas, a salubridade dos alimentos, e fornecimento das roupas. (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2640)

O projecto de regulamento encerra o propósito de organização do sistema de saúde pública, estabelecendo linhas hierárquicas, “em cada comarca um medico [sic] com titulo de inspector [sic] de saude [sic] publica”; linhas de comando, “comunicará [sic] as suas ordens por intervenção do seu secretario aos inspectores [sic] de saude [sic] das câmaras [sic]”; e também de controlo, avaliação e prestação de contas, “participará de seis em seis mezes [sic] ao ministério, e todos os anos ás [sic] Cortes relatorios [sic] sobre o estado de saude [sic] dos povos” (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2639).

Apresenta, para além do já enunciado no preâmbulo do regulamento, forte enfoque preventivo ao considerar: a regulação da vacinação; dos expostos e da sua educação; do controlo das entradas em território nacional, das quarentenas, e da organização do Lazareto; a atenção às botiques [sic] e medicamentos; ao ambiente e à salubridade, aos enterramentos e cemitérios. Relevante também a regulação da formação dos “empregados de saude [sic] ”, do reconhecimento dessa formação pela atribuição de licenças e cartas, e das penalizações pelo exercício ilegal.

O controlo do exercício profissional, está expresso no art.º 25, da seguinte forma:

Se algum empregado de saude [sic] não desempenhar bem as suas obrigações por omissão, ou ignorância, o medico [sic] do partido, e sendo elle [sic] o culpado, a câmara [sic], o participará ao inspetor [sic] da respectiva [sic] comarca, e este á [sic] junta, que dará as providencias, que julgar convenientes. No caso de não haver emenda o poderá suspender do exercício das suas ocupações. (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2641)

O projeto de regulamento refere-se expressamente, e por várias vezes, às parteiras, quer em relação às suas funções, preparação e formação, bem como ao exercício ilícito, em termos que se desenvolvem neste texto em ponto específico. Encontra-se também a referência ao enfermeiro-mor como elemento da junta administrativa dos hospitais. Ainda no âmbito das preocupações preventivas, o projeto de regulamento, no art.º 85, determina a existência, em todos os hospitais, de uma enfermaria separada para “molestias [sic] febris contagiosas, e uma casa de convalescença”. Também, no hospital de cada uma das capitais, haverá uma enfermaria “privativa, e recatada (nos casos particulares) para as mulheres parturientes” (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2644).

Este projeto deu entrada no Paço das Cortes em 12 de outubro de 1821, o qual se mandou imprimir para entrar em discussão. No entanto, “não chegou a ser discutido, nem aprovado, porque as cortes foram, entretanto extintas” (Subtil, 2016, p. 179). De qualquer forma é revelador do espírito legislativo e do pensamento, à época, das elites representativas da nação, bem como permite discernir sobre os enfermeiros, as parteiras e os sangradores, na visão espelhada na proposta legislativa.

Dentro deste enquadramento, preocupado, o Ministro da Marinha enviou ofício ao Soberano Congresso em 18 de outubro de 1822 “exigindo providencias [sic] prontas para os diversos objectos [sic] de saude [sic] publica [sic] do interior do reino”. (Diário nº 72, de 25 de outubro de 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 886). A comissão de saúde pública, em face do protelar da apreciação do projeto de regulamento, e da exposição do Ministro, propõe que as Cortes Gerais decretem, basicamente em 12 artigos, aquilo que é o resumo do projeto anteriormente referido. Nesta proposta, quatro artigos fazem referência a parteiras, sangradores e enfermeiros. Ficou esta proposta, resumida, de decreto “na lembrança do Sr. Presidente [das Cortes] para o dar para a ordem do dia quando convier” (Diário nº 72, de 25 de outubro de 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 886).

Enfermeiros, atividades e funções

Em 6 de novembro de 1821, as cortes recebem este interessante pedido:

Bernardo José de Sousa Lobato, pede licença para sair de casa com um enfermeiro a dar passeios necessários em restabelecimento de sua saúde, o que he [sic] proibido por decreto das Cortes, que lhe permite só curar-se dentro de casa. (Diário nº 218, de 6 de novembro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2963).

E sobre o assunto, as Cortes na mesma data decidem mandar “dizer ao governo que não ha [sic] inconveniente em se facultar ao supllicante [sic] a pedida licença.” (Diário nº 218, de 6 de novembro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2970). Verificámos que os enfermeiros operavam no acompanhamento de pessoas, particulares, no restabelecimento de saúde, em espaço doméstico. Por certo, pessoas de destacado nível social. E, assim é, com Sousa Lobato, fidalgo, guarda-roupa de D. João VI, seu obstinado apoiante, que após ter chegado do Brasil, teve indicação de deportação para fora de Lisboa. Radicando nisto, a necessidade do pedido de autorização para sair de casa onde se encontra confinado por decisão judicial.

Mas encontramos sobretudo referência a enfermeiros em contexto hospitalar, onde é esperado o “cuidado, e bom serviço dos enfermeiros”. (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2640). Enfermeiros, em hospitais militares que, entre outras coisas, manipulam os remédios “quando os seus estudos os não habilitam para semelhante emprego” (Diário nº 223, de 12 de novembro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 3051). Ficámos também a saber que João António Oliveira, preso com sentença de desterro, “principiou a exercer o emprego de enfermeiro . . . e como tivesse estudado por alguns anos os princípios de cirurgia, tem desempenhado as funções de seu cargo com intelligencia [sic] e muito zelo” (Diário nº 50, de 2 de abril de 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 688). Razão pela qual, a comissão de melhoramento das cadeias do Porto, pede que “ele [sic] cumpra, exercendo o seu emprego de enfermeiro o desterro em que foi condemnado [sic]” (Diário nº 50, de 2 de abril de 1822, p.688), até porque, diz-se, a Misericórdia do Porto não pode ter enfermeiros assalariados pela escassez de meios.

Do hospital militar de Moçambique refere-se “dois semi-clerigos que tinhão [sic] o nome e a renda de enfermeiros, mas não o serviço” (Diário nº 20, de 29 de maio de 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 295). Também um “supplicante [sic] cirurgião enfermeiro do collegio [sic] dos nobres, tendo há anos satisfeito os encargos do primeiro cirurgião, lugar que se acha vago, supplíca [sic] a S. Magestade, . . . a graça de o prover no citado lugar pelos serviços que tem feito” (Diário nº 50, de 8 de julho de 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 732).

Também o Diário nº 27 de 3 de setembro de 1822 (Assembleia da República, 1821-1822, p. 333), dá-nos conta que Manoel Antonio Lourenço, natural da Galiza, residente em Portugal há mais de 20 anos, “onde tem servido de enfermeiro dos hospitais militares, e tendo-se aplicado ao estudo e cirurgia, hoje exercita essa profissão”, solicita a naturalização portuguesa. E ainda é-nos revelado, que onde não existam médicos, “poderão os sangradores assistir aos doentes como enfermeiros” (Diário nº 72, de 25 de outubro de 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 886).

Parteiras e sangradores

As parteiras são empregadas de saúde a par dos médicos, dos cirurgiões e dos boticários conforme o expresso no art.º 17 do projeto de Regulamento Geral de Saúde Pública. No mesmo documento os inspetores de saúde das cabeças de comarca terão a seu cargo a verificação se os médicos dos partidos das câmaras desempenham bem as suas obrigações, se os cirurgiões não se excedem nas suas funções, “se as parteiras são capazes de ministrarem os socorros, que dellas [sic] se esperão [sic]” (Assembleia da República, 1821-1822). Estas parteiras serão instruídas na arte de obstetrícia, “saberão ler, e escrever; e mandar-se-ao [sic] imprimir umas breves instrucções [sic] por ordem do inspector [sic] de saúde da comarca. Terão igualmente certidão de terem praticado com alguma parteira examinada” (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2641).

Os cirurgiões de comarca com conhecimentos de obstetrícia podem abrir anualmente um curso de partos para as mulheres que se propuserem ser parteiras. Mas, “toda a parteira que não tiver certidão de seu exame, e aprovação, e se achar exercitando o seu officio [sic], será intimada pelo inspector [sic] da saúde, para que se abstenha de o fazer; e reincidindo soffrerá [sic] a multa indicada”. É também reveladora a ideia da hospitalização do parto “uma enfermaria privativa, e recatada . . . para as mulheres parturientes, onde serão tratadas com cuidado, e segredo, que as circunstancias exigirem”. (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2644).

Na anteriormente referida proposta de decreto apresentada nas cortes em 25 de outubro de 1822, evoca-se, o sangrador e a parteira nos seguintes termos:

Nenhuma pessoa poderá exercer as funções de medico [sic], cirurgião, boticário, sangrador, e parteira, sem haver apresentado carta de exame na camara [sic] do districto [sic] . . . . Enquanto não se publicar o regulamento geral de saude [sic], serão feitos todos os exames de sangrador, boticário, e parteira, perante o inspector [sic] da comarca, nomeado elle [sic] dous [sic] examinadores para cada um destes exames. (Diário nº 72, de 25 de outubro 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 886).

Tratando-se de um decreto de compromisso entre a emergência de medidas e a não apreciação e aprovação do regulamento geral de saúde pública, prevê ainda duas situações claramente transitórias que regulam sangradores e parteiras. Refere-se que nas terras “onde não houver parteiras examinadas”, não terão penalizações as mulheres que “gratuitamente assistam aos partos de suas vizinhas, amigas ou parentas”. (Diário nº 72, de 25 de outubro 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 886). Em relação aos sangradores, que “nas aldeas [sic] onde não houver médico, poderão os sangradores assistir aos doentes como enfermeiros”, ainda assim, consultando algum médico de terras vizinhas que o aconselhará, e nessas circunstâncias podem exercer sem que “por isso sejam culpados” (Diário nº 72, de 25 de outubro 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 886).

Noticia-se ainda, num diário da sessão de 16 de julho de 1822, que em Montemor-o-Novo há problemas na misericórdia e hospital, tendo sido irregularmente acrescentado um terço aos ordenados do secretário, organista e sangrador. As cortes determinam que não tenha mais lugar este aumento, uma vez que misericórdia local já paga ordenados a um secretário, um boticário, dois médicos, dois cirurgiões, e um sangrador.

A 7 de outubro de 1822 é apresentado nas cortes um plano, em 8 pontos, para as escolas de cirurgia da cidade de Lisboa e do Porto, disso nos dá conta o diário nº 56. No ponto 7 do plano das escolas, explicita-se:

Cessará daqui em diante a diferença entre sangrador, ou cirurgião de pequenas operações, e o cirurgião operador; não devendo para o futuro haver senão umas cartas de cirurgia, e unicamente ficarão autorizados para exercitar este emprego os que as tiverem na forma do artigo antecedente [exames no 3º ano para grau de bacharel, e no 4º ano carta de formatura], ou as da faculdade de Medicina, e Cirurgia da Universidade de Coimbra. (Diário nº 56, de 7 de outubro 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 716).

Nesses anos, 1821-1822, a sangria ainda persistia como recurso terapêutico. Sabemos que “os barbeiros-sangradores, que também barbeavam, foram autorizados em 1572 a exercer o seu ofício de forma autónoma pelo Senado Municipal de Lisboa, mediante carta passada pelo cirurgião-mor” (Sousa, 2013, p. 639). Prática que só no século XIX foi abandonada, “muito por mérito do médico francês Pierre-Charles-Alexandre Louis” (Sousa, 2013, p. 28), que usando já métodos estatísticos demonstrou a sua total ineficácia.

Quanto às parteiras, são claramente identificadas como empregados de saúde, tem formação, prevê-se “abrir curso annual [sic] de partos ás [sic] mulheres, que se propuserem [sic]” (Diário nº 199, de 13 de outubro de 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2640). Saberão ler e escrever e mandar-se-ão imprimir umas breves instruções sobre a sua arte pelas quais serão examinadas para terem certidão. As que exercem sem licença serão objeto de sansões. Estamos perante regulação na formação e exercício, o que não acontecia com enfermeiros.

As enfermarias – espaços degradados e de precária higiene

Pelo Diário de 22 de março de 1821, ficamos a saber da existência de um benemérito que disponibilizando quatrocentos mil reais, apresentou ao governo interino um plano para a criação de

um estabelecimento para recolher: os Mendigos, velhos, pobres, cegos, e aleijados que inundão [sic] Lisboa . . . . , vindo pelo dito plano a dar-se aos miseráveis não somente huma [sic] subsitencia [sic], . . . , e no caso de moléstia enfermaria e remedios [sic]. (Diário nº 40, de 22 de março 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 328).

Na vila de Sintra “a casa da Enfermaria he [sic] muito pequena e quasi [sic] subterrânea” (Diário nº 87, de 23 de maio 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 1003), o que motivou as cortes a emitir parecer enviado à Regência “para que se dê prontas providencias [sic]” (Diário nº 87, de 23 de maio 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 1003).

Pela mesma época, os moradores da cidade de Faro, apresentam representação ao Soberano Congresso relativo à pretensão de colocar doentes militares no Hospital dos Pobres, argumentam que este é tão exíguo, apenas com duas enfermarias, uma para homens outra para mulheres. Lembram existir em Faro o antigo convento dos Jesuítas, sendo que deslocando-se alguns padres para Tavira, podia servir de Hospital Militar. Este assunto inicia-se em 25 de junho de 1821 e tem continuidade em 21 de agosto, narrando-se:

A Comissão examinou escrupulosamente todas estas informações, e concluiu que o melhor local para o hospital militar de Faro, he [sic] o collegio [sic], que foi dos Jesuitas, actualmente [sic] ocupado pelos Carmelitas descalços: que os padres, sendo em pequeno numero [sic], e tendo um convento rico em Tavira, não há inconveniente algum, antes convém que sejam para lá mudados. (Diário nº157, de 21 de agosto 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 1971)

Também da vila de Guimarães dá-se conta da deplorável situação do hospital, que tem somente duas pequenas enfermarias

onde o ar respirado por um grande numero [sic] de doentes he [sic] carregado de exalações nocivas, de maneira que o convalescente de uma febre sem caracter [sic], recabe [sic] contagiado de uma febre maligna; e o doente de feridas, ou ulceras, vê tomar a estas um aspecto [sic] péssimo em razão da continua influencia do máu [sic] ar, em que respira, e vive. (Diário nº 214, de 31 de outubro 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2884)

A essas enfermarias acrescentavam-se outras duas no subterrâneo, para

cura do mal venéreo e que mais parecem sepulturas do que casas de cura. . . . e visto ser tão pequeno o recinto das enfermarias os doentes estão quasi [sic] imediatos uns aos outros, e muitas vezes os convalescentes ao lado dos moribundos. (Diário nº 214, de 31 de outubro 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2884)

Sobre este assunto, as cortes, emitem parecer “que o convento das carmelitas da vila [sic] de Guimarães seja cedido á Misericordia [sic] della [sic] para servir de hospital a beneficio daqueles povos; e que as suas freiras actuaes [sic] se mudem para o convento de santa Clara da mesma vila [sic]” (Diário nº 214, de 31 de outubro 1821; Assembleia da República, 1821-1822, p. 2884).

Em Vila Franca de Xira discute-se a legalidade da posse das instalações onde a confraria da Misericórdia erigiu um hospital “á [sic] custa de avultadas esmolas, dadas por seus irmãos, e pelos lavradores, e o estabelecerão em umas casas, que uma senhora devota emprestou” (Diário nº 69, de 22 de outubro de 1822; Assembleia da República, 1821-1822, p. 864).

Como se pode constatar discutiu-se a precaridade de instalações com preocupações de salubridade e motivações higienistas. As soluções encontradas passam pela utilização de instalações conventuais. Vem a propósito a apreciação a estes 2 anos, feita por Bonifácio (2010, p. 31): “Os direitos do rei tinham sido reduzidos a pó, e os da Igreja Católica duramente golpeados pela nacionalização de seus bens.”

 

Conclusão

O estudo permite-nos, sinteticamente, algumas conclusões, com o denominador comum de ocupações e profissões de saúde em processo de reconfiguração.

Os descritores só revelaram abordagens pessoalizadas e no masculino. Não há enfermagem, há enfermeiros.

Encontram-se vastas referências ao enfermeiro-mor, figura social de destaque, diferenciado da figura de enfermeiro, por isso não enfermeiro, com funções administrativas e de gestão, responsável por tudo o que diz respeito ao pessoal dos doentes, e a todos os empregados. Funções também distintas do administrador e de outros das áreas clínicas. Eventual antecessor da posterior figura de enfermeiro geral, da atual de enfermeiro diretor, com percurso evolutivo onde no caminho existiu ainda a distinção entre enfermeiro-maior e enfermeiro-menor, em linhas de continuidade a investigar.

Persistência de profissões anteriores como a de sangrador, já não a dos clistereiros da idade média, ainda assim, em evolução de cirurgião de pequenas operações para as de cirurgião, por vezes, ainda com referências tangenciais à actividade de enfermeiro.

Funções claras de parteiras, identificadas a par de médicos e cirurgiões, como empregados de saúde, com ensino, certidão e regulação.

Preocupações higienistas, de organização, qualificação e segurança, bem presente no inovador projecto de Regulamento Geral de Saúde Pública. Com espaços assistenciais degradados, a serem reorganizados num palco de soluções à luz da confiscação dos bens monásticos.

Existência de atividades de enfermeiro como sejam cuidar e acompanhar. Sendo nos hospitais expectável o cuidado e bom serviço dos enfermeiros, atividade que é objeto de fiscalização. No espaço doméstico, em casa e na rua, a função de enfermeiro e de acompanhamento no restabelecimento da saúde. Atividade de enfermeiro num processo de diferenciação em relação a outros, como sejam, os sangradores, os cirurgiões, as parteiras e longe ainda das características de profissionalização da enfermagem moderna. Os enfermeiros não são expressamente identificados como empregados de saúde, contrastando com as parteiras, não tem formação formal, não são examinados, nem são certificados.

Conhecer o passado é procurar fios condutores do desenvolvimento da enfermagem como ocupação e profissão. Identificar os momentos e fases de profissionalização, contribui para a compreensão dos constrangimentos e possibilidades de desenvolvimento da enfermagem hoje, como profissão e como ciência.

 

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Recebido para publicação em: 31.07.17

Aceite para publicação em: 17.11.17

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