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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.27 no.1 Lisboa abr. 2023  Epub 28-Abr-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.13219 

Introdução

Espaços alternativos em Lisboa e a resistência à gentrificação

Alternative spaces in Lisbon and the resistance to gentrification

Raquel Rego1  , concetualização, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-7342-8695

João Braga Lopes2  , concetualização, investigação, metodologia, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-7884-6650

Mateus Sadock3  , concetualização, investigação, metodologia, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-0566-7405

Ana Estevens4  , redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-8594-3873

1 Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Portugal, raquel.rego@ics.ulisboa.pt

2 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, jobralopes@gmail.com

3 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Portugal,

4 Centro de Estudos Geográficos e Laboratório Associado Terra, IGOT-UL, Portugal, anaeste-vens@campus.ul.pt


Resumo

Entre o início da crise financeira (2007-08) e a crise pandémica (2020-), Lisboa estava no auge como destino turístico europeu da moda. Nesse período, numa singular concentração na capital portuguesa, associações e outros coletivos proliferaram como espaços alternativos, imbricando ação política e cultural. Neste dossiê, através de uma metodologia qualitativa de pendor etnográfico, mostramos que estes espaços configuram um modelo de desenvolvimento urbano próprio. Se, desde os anos 1970, os espaços alternativos têm desempenhado um papel de resistência à gentrificação em vários países ocidentais, o caso de Lisboa sobressai pelo contraste com um contexto nacional de fraca participação cívica.

Palavras-chave: marca Lisboa; gentrificação; espaços alternativos; participação cívica; cultura; resistência

Abstract

Between the start of the financial crisis (2007-08) and the pandemic crisis (2020-), Lisbon was at its peak as a fashionable European tourist destination. During this period, in a singular concentra-tion in the Portuguese capital, associations and other collectives proliferated as alternative spaces, overlapping political and cultural action. In this dossier, through a qualitative methodology of eth-nographic nature, we show that these spaces form a model of urban development of their own. If, since the 1970s, alternative spaces have played a role in resisting gentrification in several western countries, the case of Lisbon stands out for its contrast with a national context of weak civic partic-ipation.

Keywords: Lisbon brand; gentrification; alternative spaces; civic participation; culture; resistance

Introdução

Este dossiê resulta de um encontro feliz no âmbito do XII Congresso Português de Sociologia, ocor-rido em março de 2021, quando alguns comunicantes convergiram na apresentação de estudos desenvolvidos em torno de um mesmo fenómeno social, os espaços alternativos em Lisboa duran-te o período de austeridade que sucede à crise financeira de 2007-2008. Alargando-se, posteri-ormente, a investigadores de outras disciplinas científicas com o mesmo objeto de estudo, este dossiê assume um duplo intuito. Por um lado, compilar estudos sobre os espaços alternativos em Lisboa e sobre as dinâmicas urbanas que lhes estão associadas, permitindo, assim, uma mais pro-fícua acumulação e sistematização do conhecimento. Por outro lado, dar visibilidade a estes espa-ços na medida em que configuram um modelo de desenvolvimento urbano próprio, entretanto desafiado pela crise pandémica da Covid-19, iniciada em 2020, que de resto obrigou à reestrutu-ração e até ao encerramento de alguns deles.

Através do método qualitativo e, muito em particular, de uma abordagem etnográfica que combi-na estratégias de recolha de dados (Jerolmack e Khan 2017), como observação participante, en-trevistas, análise documental ou, ainda, investigação-ação ou colaborativa, todos os artigos ado-tam um olhar próximo do objeto, levando a cabo uma análise em profundidade que traz ao de cima o que já se conhece (Mauss 2002 [1926]). Todos os artigos se debruçam sobre o que Mauss (2002 [1926]) chamou formas secundárias de organização social, centrando-se num ou em vários espaços, comparando ou construindo teoricamente a partir do terreno. O objetivo transversal é compreender as dinâmicas internas destes espaços e a sua relação com o contexto, pois é ao con-tribuir para produzir práticas e valores alternativos ao modelo hegemónico que podemos dizer que estes espaços proporcionam um modelo de desenvolvimento próprio. Esta é uma tarefa emi-nentemente qualitativa e, como é próprio da etnografia, terá a ganhar ao ser encarada como uma construção colaborativa de conhecimento entre o investigador e o objeto de estudo (Campbell e Lassiter 2015), um conhecimento construído no diálogo e na imersão do investigador no terreno. Assim, a etnografia indutiva (Jerolmack e Khan 2017) permite-nos conhecer, com riqueza e nuan-ces, as dinâmicas de resistência e de criação de laços em comunidades que de outro modo estari-am invisibilizadas.

Este dossiê, dirigido à comunidade académica mas também a um público mais amplo, surge, as-sim, como oportuno. Têm sido publicados estudos em torno de temas contíguos, designadamente nesta mesma revista um dossiê duplo foi dedicado à etnografia urbana e às práticas artísticas (Ferro e Gonçalves 2018; Costa 2018) e diversos artigos têm vindo a lume sobre arte urbana e desenvolvimento territorial, salientando o papel dos apoios institucionais (Campos, Abalos Júnior e Raposo 2021; Veiga-Gomes 2017), ou a arte como produtora de uma geografia política na cidade neoliberal (Señorans 2021). Ora, se estes estudos incidem sobre casos nacionais e internacionais, o presente dossiê opta por se centrar num mesmo espaço urbano para melhor abarcar a diversi-dade e a complexidade que nele se encerra. Inovamos ao alertarmos para as mútuas influências entre arte, cidade e ativismo, em particular nas organizações sem fins lucrativos, sem apoio insti-tucional, e num mesmo espaço urbano.

Estas organizações são espaços alternativos, isto é, associações, cooperativas, coletivos, grupos, no fundo organizações mais ou menos formais, cujo principal fim não é o lucro e que são, muitas ve-zes, independentes de qualquer apoio dos poderes públicos, contrariando uma tendência nacional (Campos, Abalos Júnior e Raposo 2021; Veiga-Gomes 2017). Elas acolhem a experimentação artís-tica e alojam a ação política “subterrânea” na mobilização pelo direito à cidade. São espaços al-ternativos por três razões principais. Primeiro, promovem sociabilidades desmercantilizadas, não sendo nunca apenas de prestação de serviços, mas “organizações híbridas” (Doherty, Haugh e Lyon 2014). Segundo, apresentam agendas culturais e de participação cívico-política que se con-trapõem à oferta institucional, dominante e decidida de cima para baixo (top-down). Terceiro, tendem muitas vezes à autogestão: internamente são horizontais, democráticos e comuns (Dardot e Laval 2017). Estes espaços alternativos diferem, assim, dos espaços convencionais no tipo de motivações que atraem e mobilizam os seus participantes, por exemplo ao adotarem um foco mais comunitário e preocupado com a criação de laços de solidariedade e opondo-se à cidade neoliberal pautada pelo individualismo. Podemos dizer que neles perpassa uma maior fluidez en-tre “produtores” e “consumidores” dos bens e serviços a serem usufruídos.

Estes espaços questionam, por conseguinte, o padrão de participação cívica fraca no qual Portugal era enquadrado no advento do século XXI, nomeadamente quando comparada a sua participação associativa com a de outros países europeus (Eurostat 2005). As taxas de participação sindical e de mobilização para greves e manifestações são comparativamente baixas neste país, como revelam diversas bases de dados internacionais (European Social Survey, Poldem, V-Dem, etc.). Mas, ao longo de quase 50 anos de regime democrático, a participação cívica e política sofreu variações que complexificam a análise do padrão em que Portugal foi inserido: desde o dinamismo das co-missões de moradores do pós-25 de Abril de 1974 (Pinto 2013) às mobilizações da chamada “ge-ração à rasca” na oposição às medidas de austeridade impostas pela Troika (composta pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) para resgate financeiro do país, entre 2011 e 2014. Neste sentido, alguns estudos mostram as ações de protesto no país de “brandos costumes” e o surgimento de novos sujeitos políticos (Accornero e Pinto 2015; Lima e Martin Artiles 2018). No entanto, poucos estudos adotam uma análise micro destas ações, per-dendo de vista a forma como elas se diluem na informalidade e em dinâmicas de liminaridade associadas à estetização do quotidiano (Costa 2018). Este dossiê pretende justamente contribuir para colmatar essa lacuna.

Ao nos focarmos na cidade de Lisboa, detemo-nos no epicentro destas ações. A capital tem passa-do por diversas transformações que se refletem na forma como o espaço urbano está a ser apro-priado e mercantilizado. Os espaços alternativos são um bom exemplo para percebermos estas mudanças. Começando por se instalar em áreas urbanas maioritariamente degradadas e com rendas mais baratas, eles atraíram estudantes, turistas e novos utilizadores, contribuindo para a mudança da imagem destes lugares (Estevens 2017; Veiga-Gomes 2017). Esta nova imagem influ-enciou o mercado imobiliário e estimulou a abertura de novos estabelecimentos comerciais, que se adaptaram rapidamente a um novo público e a novas preferências de consumo. Torna-se, as-sim, evidente o contributo, mesmo que não intencionado, destes espaços alternativos para a rege-neração dos lugares e para processos de gentrificação. Se num primeiro momento se assiste a uma fase de gentrificação marginal, em que há uma mistura social, emancipação, criatividade e solidariedade comunitária (Caulfield 1989), rapidamente se passa para outra fase, na qual os pro-jetos públicos de regeneração urbana e/ou as iniciativas privadas de reabilitação, quer imobiliá-ria, quer comercial e de serviços, se apropriam do que foi produzido na fase anterior e incentivam práticas alternativas. O valor dos imóveis aumenta e estes passam a ser vendidos a uma classe social com maior poder económico, com outro estilo de vida e com habitus e práticas culturais distintos dos anteriores residentes, fenómeno a que alguns autores chamaram de supergentrifica-ção (Atkinson et al. 2017; Mendes e Jara 2018). Os espaços alternativos são, então, rapidamente capturados e comercializados, tornando o processo perverso, pois acabam por ser expulsos peran-te o aumento das rendas e da pressão exercida pelos proprietários imobiliários (Ley 1996; Zukin 1982) após terem contribuído para regenerar o território. Estes espaços contribuem, portanto, para processos de gentrificação, mas desempenham ao mesmo tempo um papel importante na construção de dinâmicas de resistência coletiva. A luta pelo “direito à cidade” (Lefebvre 1967), um confronto que os mobiliza mas também os fragiliza e desgasta, inscreve-os na ideia de uma “outra” cidade (Marcuse 2009), feita para fruição de todos.

Este dossiê compreende, assim, quatro artigos com material empírico recolhido entre 2018 e 2020. O primeiro intitula-se “Arte e cultura, hegemonia e resistência: uma leitura comparada de diferentes territórios de Lisboa”. Nele, Ana Estevens e André Carmo, na sequência de vários estu-dos feitos ao longo dos últimos anos no campo da geografia e do urbanismo, destacam a impor-tância da arte e da cultura como elementos de transformação da cidade contemporânea e as ten-sões entre visões hegemónicas e de resistência a partir de três territórios: o largo do Intendente, a Colina de Santana e Marvila-Beato. O segundo artigo, “Associações e democracia cultural: propos-ta de dois ideais-tipo”, é de Raquel Rego. A autora parte do conhecimento dos espaços culturais do bairro dos Anjos para uma proposta teórica em dois tipos que depuram as suas missões, a sa-ber: o cultural entretenimento e o cultural ativista. O terceiro artigo, de Mateus Sadock, centra-se no Covil, nome fictício de um espaço alternativo de Lisboa. “Construindo resistência: etnografia de um centro social autogerido em Lisboa” incide sobre um espaço de tipo “cultural ativista”, para se usar a tipologia de Rego no artigo precedente. O Covil é um espaço anarquista e promotor da re-sistência à gentrificação, inclusive por via da estética punk. O último artigo, de João Braga Lopes e Joana Marques, intitulado “Comuns urbanos em Lisboa: formas de trabalho não mercantilizado em espaços alternativos”, analisa vários espaços comunitários na cidade de Lisboa com o objetivo de compreender as motivações dos seus participantes e as condições em que realizam o seu tra-balho, procurando também contribuir para o debate sobre este último conceito.

Ao reunir estes quatro artigos sobre espaços alternativos em Lisboa durante o período de austeri-dade que sucedeu à crise financeira, este dossiê pretende registar para memória futura a diversi-dade social e a análise das alternativas que emergem mesmo em tempos adversos.

Referências bibliográficas

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Recebido: 31 de Janeiro de 2022; Revisado: 21 de Janeiro de 2023; Aceito: 25 de Janeiro de 2023

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