Introdução
Posicionada no topo de um morro, em meio a uma paisagem que integra cidade e natureza, uma estátua de braços abertos simboliza segurança e receptividade aos turistas que chegam à cidade do Rio de Janeiro, Brasil. De óculos escuros, sorriso largo e blusa aberta, o monumento de 180 quilos e 1,80 metros de altura foi apropriado pela indústria turística por duas razões distintas. Primeiro, por se tratar de uma estátua de bronze do astro do pop internacional, Michael Jackson. Segundo, por ser um marco simbólico de inclusão no roteiro turístico oficial da cidade carioca, de um lugar até então conhecido, sobretudo, pela violência urbana: a favela Santa Marta.
O objetivo deste artigo é apresentar uma “biografia cultural” (Kopytoff 1986) da estátua de Michael Jackson na favela Santa Marta, na cidade do Rio de Janeiro.1 Com base em uma pesquisa sócio-etnográfica realizada desde 2015, são analisadas as dinâmicas de produção do espaço urbano a partir da mercantilização turística e da violência urbana.2
A estátua é posicionada como enfoque metodológico e analítico para o desenvolvimento do seguinte argumento: a partir de conexões entre (i)mobilidades de imagens, significados, objetos e corpos, a “vida social” (Appadurai 1986) da estátua na favela pode ser determinada por uma trajetória contextual de “regimes de valor” em torno e a partir de seus usos, disputas e significados no tempo e no espaço.
A estátua de Michael Jackson na favela Santa Marta encontra-se posicionada no mesmo lugar onde foram gravadas cenas para o videoclipe da canção-protesto “They don’t care about us”, em fevereiro de 1996. Na época, a visita do artista à favela carioca foi alçada ao debate público devido a disputas sobre significados a partir da circulação global de imagens retratando o Rio de Janeiro. Estava em jogo um conflito de representações sociais relacionadas a interesses para a atração de “megaeventos esportivos” para a cidade (Freire-Medeiros 2009). Contudo, a veiculação global do clipe retratando desigualdades sociais e urbanas não interrompe um projeto público-privado de mercantilização da cidade: nos anos posteriores, o Rio de Janeiro foi vitorioso na candidatura para sediar os Jogos Pan-Americanos de 2007, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
Inesperadas reviravoltas ocorrem na cidade durante um intervalo de 14 anos e quatro meses. Ao longo desse período, esforços institucionais para evitar a chegada do artista à favela são convertidos em investimentos públicos para a construção da sua presença permanente. Inaugurada em 26 de junho de 2010, envolta por inflexões urbanas a partir do programa de segurança pública das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) (Machado da Silva 2010), uma estátua turística de Michael Jackson é incorporada à paisagem da favela Santa Marta.
A estátua de Michael Jackson é reproduzida como um signo do suposto sucesso de um projeto de “turismo de base comunitária” na “favela modelo” do processo de “pacificação”. Esta afirmação denota interdependências em um fenômeno a partir do qual o trânsito de visitantes pelos becos e vielas do Santa Marta demonstra ter relação direta com a difusão de renovados sentidos sobre as favelas cariocas. Como interpretar esse deslocamento de significados sobre a representação social produzida sobre a favela? Por que os propósitos institucionais para impedir a visitação à favela foram convertidos no planejamento de um marco simbólico para incentivar o turismo na favela? Quais seriam as novas sociabilidades e relações de poder instituídas em torno e a partir da instalação da estátua de bronze em questão?
Apoiado em formulações de Georg Simmel (2004), o antropólogo Arjun Appadurai (1986) define que a “vida social” das coisas é determinada por “regimes de valor” conformados sob diferentes condições no tempo e no espaço. Esses regimes não são propriedades inerentes, mas julgamentos e significações que os sujeitos fazem sobre as materialidades em diferentes contextos e situações. Desenvolvendo essa formulação, Appadurai explica que o valor socialmente direcionado a determinadas coisas geralmente atribui status de mercadoria a elas. Entretanto, ao longo de sua trajetória, as coisas e os objetos são também definidos por funcionalidades que também assumem características simbólicas e materiais. Ou seja, o estágio de mercadoria é um entre as múltiplas fases atravessadas por um objeto ao longo de sua “biografia cultural” (Kopytoff 1986) em contínuos processos de atribuição de valor, significados e funções.
A definição de “regimes de valor” se fundamenta através da ideia de que “o que cria o vínculo entre a troca e o valor é a política, em seu sentido mais amplo” (Appadurai 1986: 1). Em consequência, a realização de uma análise interpretativa sobre a “vida social” da estátua de Michael Jackson na favela Santa Marta se apoia na compreensão de que sua trajetória de interações, usos e apropriações são formas de relação e disputa em uma cronologia de políticas de governo, regimes de poder e formas de produção do espaço urbano em que ela se encontra.
No entanto, como observar percursos e circulações a partir de uma estátua numa favela? Esse trabalho é inspirado por uma vertente de pesquisas sociais que posicionam determinados objetos à categoria de operadores analíticos e etnográficos (Pinheiro-Machado 2011; Knowles 2014; Feltran 2021; Feltran e Maldonado 2022).3 Com base em “plataformas de observação” (Knowles 2015), tais pesquisas propõem descrições empíricas com base em novas perspectivas sobre os movimentos que escapam aos circuitos econômicos de circulação mundial (Tarrius 2002).
Reflexões do chamado “giro móvel” das ciências sociais são eficientes operadores analíticos para a descrição de conexões entre circulações de indivíduos, imagens e significados (Urry 2007; Freire-Medeiros e Lages 2020). Desenvolvidos teoricamente a partir do Paradigma das Novas Mobilidades (PNM), essas inovadoras formulações abrangem as relações entre movimentos em larga escala de pessoas, objetos, capitais e informações em todo o globo e processos locais de transporte diário, movimentos pelo espaço público e circulação de objetos materiais na vida cotidiana (Sheller e Urry 2006).
Direcionando as lentes das mobilidades para a estátua na favela Santa Marta, este trabalho propõe a apresentação da “vida social” da estátua de Michael Jackson. Para tanto, uma perspectiva móvel sobre “regimes de valor” é formulada com vistas a uma análise relacionada ao fenômeno global de turistificação de espaços periféricos no Sul Global (Frenzel, Koens e Steinbrink 2012).
Appadurai (1986) elabora que, embora de um ponto de vista teórico os atores humanos codifiquem as coisas por meio de significações, em termos metodológicos são as próprias coisas em movimento que elucidam seu contexto social. Logo, como formulação investigativa, variadas dimensões das circulações estabelecidas ao redor e a partir da estátua na favela são analisadas neste artigo em uma interpretação diacrônica sobre como os “lugares, espaços e subjetividades são constituídos através do movimento” (Büscher e Veloso 2018: 137).
Como adverte Igor Kopytoff, “o que faz uma biografia ser cultural não é o assunto tratado, mas como e de que perspectiva ela aborda o assunto” (1986: 69). Assim, não se pode negar a existência de armadilhas epistemológicas na construção de nexo biográfico sobre acontecimentos e situações dispersos em tramas de espaço e tempo (Bourdieu 1996). Portanto, a análise que se segue é elaborada com base em uma coleta de informações verificáveis sobre acontecimentos externos e relevantes à trajetória cultural, contextual e cronológica do objeto em questão - um “mosaico científico”, que se torna mais rico à medida que novas peças são nele encaixadas (Becker 2009).
Desde uma cronologia de (i)mobilidades ao redor da estátua na favela Santa Marta, apresento transições contextuais entre formas de ordenamento socioespacial e circunstâncias políticas. Com base no acompanhamento etnográfico de situações sociais e reportagens midiáticas, analiso contextualmente as motivações e interrupções entres circulações ao redor da estátua - pessoas, imagens, representações, ideias e mercadorias. Minha intenção é ilustrar modulações em “regimes de valor” a partir de uma cronologia de conexões entre usos e apropriações da sua estrutura material, englobando interpretações sobre significados e sua representação social.
O artigo a seguir tem como estrutura duas linhas argumentativas originais: (1) o desenvolvimento de uma formulação teórico-metodológica que associa os “regimes de valor” a uma perspectiva móvel; (2) uma interpretação analítica relacionada a diferentes estágios da “pacificação” no Rio de Janeiro a partir da estátua - um dos principais marcos simbólicos do período. Nas três seções após esta introdução, apresento uma cronologia contextual das apropriações e atribuições de significados à estátua de Michael Jackson. Para tanto, apresento as noções de estética e de imaginação política (Jaffe 2012, 2018), precariedade (Agier 2015) e legibilidade (Cavalcanti 2008; Adey 2010). Nas considerações finais, é reforçado o argumento central do texto a partir de uma exemplificação situada no contexto da pandemia de Covid-19.
(I)Mobilidades ao redor da estátua na favela
Para apresentar a “biografia cultural” da estátua de Michael Jackson na favela Santa Marta, é fundamental explorar sua centralidade entre o turismo em favelas e uma inflexão contextual nas políticas de Segurança Pública na cidade do Rio de Janeiro. Inaugurado em 19 de dezembro de 2008, o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) foi apresentado, em narrativas institucionais, como uma resolução definitiva do “problema das favelas” (Valladares 2005).4 Em paralelo à circulação e à permanência de policiais militares no território de determinadas favelas, o espetáculo midiático de militares e tanques de guerra “pacificando” a capital produziu imagens que circularam na internet de forma ampla, a ponto de justificar prêmios internacionais de jornalismo.5
A favela Santa Marta foi o primeiro dos 38 territórios ocupados pelas forças policiais. Sob menções de particularidades estratégicas e demográficas, o território foi concebido como alvo de um vasto repertório de projetos-piloto - e o título de “favela modelo das UPP” foi repercutido em decorrência das numerosas intervenções urbanas testadas no local e, então, expandidas até outras favelas “pacificadas” (Menezes 2014, 2015).6
Maior visibilidade foi direcionada à favela Santa Marta em 2010, após a inauguração do Rio Top Tour - um programa de “turismo de base comunitária” apresentado como uma maneira de aproveitar o potencial turístico das favelas a partir da inclusão profissional dos próprios moradores.7 Associando possibilidades de negócios e inclusão social a partir de investimentos integrados a partir da integração entre Governo Federal, Governo Estadual e o Serviço de Apoio às Micros Empresas (Sebrae), moradores da favela receberam acesso a incentivos como linhas de crédito e capacitações de empreendedorismo.
Foi direcionado ao Rio Top Tour o investimento inicial de 230.000,00 reais. Embora não tenham sido informados ao público os direcionamentos financeiros desse valor, seus impactos foram perceptíveis. Desde obras de urbanização até instalações de placas turísticas no local, variadas intervenções operadas na paisagem local expressaram os esforços institucionais para a inscrição da favela no mapa turístico do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, a estátua de Michael Jackson é um elemento central para a definição de nexos entre o Rio Top Tour e a “pacificação” de favelas. Projetada e realizada pelo artista plástico, cartunista e escultor Ique Woitschah, a estátua foi posicionada em uma laje-mirante com vista panorâmica incluindo a favela, a cidade, a praia, o Cristo Redentor no Corcovado; e integrada a uma loja de souvenirs e um mosaico de Michael Jackson idealizado por Romero Britto - artista brasileiro com fama internacional pelo caráter multicolorido e comercial de suas obras.
Apesar da interrupção precoce do Rio Top Tour devido a rearticulações governamentais, a estátua na favela compõe uma política de diversificação de narrativas, representações e significados sobre as favelas da cidade (Moraes 2017).8 O mirante com a estátua se tornou um espaço apropriado para variados usos e motivos, como rodas de samba, churrascos de moradores e visitações turísticas, sendo o ponto mais cobiçado na favela para o registro de fotografias e selfies. Em um processo de ressignificação do espaço urbano carioca conduzido pelas UPP, a estátua de Michael Jackson é alicerçada como um símbolo da construção da “favela pacificada” como destino turístico e marca da cidade.
É constituído ao redor da estátua na favela um “regime de valor” propiciado pelo turismo em favelas “pacificadas” - e com isso, múltiplas formas de mobilidades passam a se estruturar ao redor da “vida social” da estátua (pessoas, mercadorias, representações, significados, entre outros).
Analisar a dimensão política em relação direta às expressões estéticas socio-territoriais pode enriquecer interpretações sobre as disputas urbanas condicionadas por “regimes de valor”. Para além do caso da favela carioca, a partir da Comuna 13, na cidade colombiana de Medellín, análises sobre a produção de grafites possibilitaram abordagens sobre a reprodução de fronteiras urbanas, a contestação de estigmas territorialmente circunscritos e a produção de memória coletiva local (Torres 2018). De modo análogo, em Kingston, na Jamaica, expressões estéticas como grafites, canções e produtos audiovisuais foram analiticamente entendidas como consequências de dinâmicas de ordenamento (i)legal e normativo do território (Jaffe 2012). Entretanto, o peculiar potencial de mobilidade da estátua deve ser pensado a partir de um singular paradoxo entre sua fixidez e determinadas formas de movimento e circulação.
Por um lado, ao situar as características de uma estátua imóvel na favela sob uma lente analítica atenta às intersecções entre dimensões interligadas de mobilidades, temos uma oportunidade particular de instrumentalizar a noção teórico-descritiva de “ancoradouros” (Hannam, Sheller e Urry 2006). Explorando conexões entre mobilidades e ancoradouros, podemos direcionar nosso olhar às materialidades que estruturam formas de movimentos - observando como as circulações perpassam estruturas móveis e quais relações de dependência ali se manifestam. Em um mundo social composto por sistemas híbridos estabilizados entre sujeitos, objetos e imagens, mobilidades em curso não podem ser descritas sem atenções analíticas aos ancoradouros espaciais, institucionais ou infraestruturais que são fixos, permanentes e necessários para a continuidade dessas múltiplas circulações (ibid.).9
Enquanto elemento central entre o turismo e a violência urbana nesse processo, a fixidez da estátua e o espaço em seu entorno podem ser percebidos como infraestrutura socioespacial que, ao mesmo tempo, atrai e projeta circulações entre visitantes, fotografias, trabalhadores, ideais políticos ou mercadorias ao redor da favela “pacificada” e turística.
Em um outro aspecto desse paradoxo, para além de características de fixidez que estruturam mobilidades, a estátua de Michael Jackson também assume contingentes propriedades de circulação e movimento - a partir das relações de produção e de consumo de souvenirs (Freire-Medeiros e Menezes 2016). Em comércios locais na favela Santa Marta, encontramos variadas pinturas, camisetas, bonés ou chaveiros para satisfazer a demanda de turistas que se dirigem até à estátua desejando recordações tangíveis e colecionáveis. Esses objetos detêm propriedades materiais, imagéticas e semióticas da estátua - que são projetadas desde a favela para diversas partes do mundo nas mãos e nas câmeras de visitantes (ibid.).
Atribuindo identidade e peculiaridade à favela Santa Marta, a estátua, ao mesmo tempo, sustenta enquanto infraestrutura e integra, como mercadoria, as mobilidades de imagens, significados, objetos e corpos conjugados pela representação da favela “pacificada” e turística - em um fenômeno que caracteriza o estabelecimento de um “regime de valor” ao seu redor.
É interessante refletir sobre como um repertório de ideias em circulação contribui para a construção de determinados espaços urbanos. Sendo assim, a categoria “imaginação política” pode ser acionada pela rancieriana possibilidade analítica de um domínio estético referente a um imaginário particularmente político (Jaffe 2018). De modo consequente, podemos notar que os “regimes de valor” que compõem a “vida social” de determinadas coisas, como a estátua de Michael Jackson, são modulados contextualmente pelo ordenamento político e pelas formas de produção urbana e territorial em quadros analíticos, normativos e afetivos.
Portanto, observando a estátua da Michael Jackson, é possível compreender empiricamente um exemplo de como a imaginação política assume uma forma material inspirada pela estética relacionada ao projeto de cidade regido pela política de “pacificação”. De modo complementar, a partir de uma perspectiva móvel, podemos compreender que o potencial de mobilidade (Kaufmann, Bergman e Joye 2004; Nogueira 2021) ligado ao contexto desse “regime de valor” assume propriedades específicas a partir de características da estátua - referidos a seus significados sob diferentes apropriações. A análise da “vida social” da estátua de Michael Jackson na favela Santa Marta nos leva a apreender um encadeamento de contextos urbanos relacionados à cronologia da própria política de segurança pública no Rio de Janeiro.
Desigualdades, significados e circulações em disputa
Iniciativas como o Rio Top Tour permitem a interpretação de que, para além da instalação de postos policiais, a experiência de governo do programa das UPP pode ser caracterizada por um objetivo de modulação de representações sociais da violência urbana - uma supressão da “metáfora da guerra” sucedida pela instauração de discursos produzidos pela “pacificação” (Leite 2014, 2017; Davies 2014; Farias et al. 2018; Da Motta 2019). Nesse contexto, pudemos notar uma contraposição com períodos anteriores, quando a repercussão internacional da favela carioca era questionada porque traria visibilidade às desigualdades sociais da cidade. Nos momentos imediatos aos Jogos Olímpicos de 2016, as favelas do Rio de Janeiro passaram a ser projetadas como “territórios de oportunidades” (Rocha e Carvalho 2018) a partir do “empreendedorismo criativo” (De Tommasi e Velazco 2013).
Representações vinculadas ao turismo sugerem a manifestação institucional e simbólica de novas formas de circulação de pessoas pela favela Santa Marta. A estátua na favela estabelece e estrutura deslocamentos motivados por diversas razões. Para chegar até sua posição, é necessário percorrer íngremes escadas e ladeiras por cerca de 20 minutos, ou acessar a estação três do plano inclinado - uma infraestrutura de transporte que funciona como elevador comunitário. No entanto, entre variadas motivações, visitar a favela e não conhecer a estátua de Michael Jackson seria percebido como a participação em um percurso incompleto.
Expressões de desigualdades sociais podem ser identificadas a partir de condições contextuais de (i)mobilidades (Sheller 2018, 2020). Evitando pressupostos essencialistas à teoria social, um ajustamento possibilitado por uma perspectiva móvel permite interpretações sobre desigualdades e contradições decorrentes do caráter relacional das “políticas de mobilidades”. Observando práticas de poder ao redor da estátua na favela do Santa Marta, podemos explorar a prerrogativa de que o movimento de algo ou alguém depende da imobilidade de outros - e de que entrelaçamentos entre movimentos, experiências e significados permitem caracterizar diferentes e interligadas expressões sociais (Cresswell 2006, 2010). Essas formulações podem ser acionadas para a interpretação de determinadas “situações sociais” (Gluckman 1940).
Entre 2010 e 2015, o local onde se encontra a estátua vinha sendo ocupado por uma combinação de visitantes movidos por diferentes motivações: turistas interessados em conhecer a favela; guias de turismo conduzindo seus clientes; jornalistas produzindo reportagens sobre o empreendedorismo e a “pacificação”; políticos buscando reconhecimento e apoio a seus projetos; ou mesmo pesquisadores (como eu) realizando esforços de pesquisa a respeito do espaço urbano da cidade. Em abril de 2015, diferentes experiências na favela são reunidas em um encontro desses atores: o conserto da estátua após o roubo de seus óculos escuros.
Para oferecer enfoque analítico às consequências desse incidente na biografia da estátua, é inevitável a breve exposição de uma sequência de eventos: entre os dias 22 e 29 daquele mês, rumores locais e reportagens midiáticas noticiaram que alguém havia “vandalizado” a estátua e questionavam as motivações do evento; em seguida, passou a circular a informação de que os óculos foram encontrados em local próximo à estátua, danificados; por fim, foi comunicado que o autor da obra estaria de volta à favela para realizar o conserto (Correio Braziliense 2015). No dia do restauro, havia uma atmosfera cerimonial gerada pelo agrupamento de inúmeros espectadores que se deslocaram até à estátua para acompanhar a situação.
A chegada do artista Ique Woitschah acompanhado do secretário estadual de turismo, Nilo Sérgio Felix, suscitou diferentes reações. Concomitantemente, guias de turismo orientavam seus clientes a estender o tempo de permanência visitando a favela para registrarem aquele “acontecimento único”. Além da singularidade do evento de conserto da estátua, havia, por parte desses profissionais, uma tentativa de ensaiar aproximações com o secretário e pleitear benefícios para o turismo local. Entusiasmados, alguns empreendedores me contaram que estavam motivados pela possibilidade de registrar fotos junto com o secretário de turismo e o criador da estátua para compartilhar em suas redes sociais. Por parte destes grupos, havia uma inequívoca sensação de alívio, porque aquele momento significava o desfecho de algumas preocupações. Eles estavam preocupados com a possibilidade de a estátua permanecer danificada por muito tempo - já que esse comprometimento poderia prejudicar os roteiros turísticos e parte do comércio integrado às novas atividades econômicas: “Ainda bem que resolveram! Quem gostaria de visitar a favela para ver uma estátua quebrada?”, questionou um comerciante.
Por outro lado, a celeridade do conserto da estátua foi motivo para a resignação de moradores posicionados em locais mais afastados. Naquele momento, a passagem do tempo permitia que expectativas locais fossem balizadas quanto aos resultados do programa das UPP. Incômodos eram provocados pela ideia de que a produção de uma imagem positiva da favela era mais importante para a “pacificação” do que o respectivo benefício dos moradores.
Enquanto observavam a aglomeração de pessoas ao redor da estátua, integrantes deste grupo compartilhavam relatos sobre problemas cotidianos. Para eles, enquanto atrasos em promessas institucionais - como melhorias na distribuição de água e energia elétrica do local - eram justificados por orçamentos e licitações, em contrapartida o serviço de reparo na estátua teria sido agilizado por se tratar de um elemento representativo para a estética promovida pela “pacificação”. Moradores insatisfeitos apontavam que o cotidiano da favela era determinado pelas desigualdades de uma política pública que promovia a visitação de turistas à medida que direcionava poucas ações para a prestação de serviços básicos no território.
Enfoques socioeconômicos sobre as UPP demonstram que a entrada da polícia nas favelas foi perseguida de perto por companhias de serviços e comércio - e a especulação trazida pelo avanço da fronteira de capital ocasionou a expulsão de moradores que não conseguiram se adaptar à chegada de novos custos de vida (Ost e Fleury 2013). Enquanto marco simbólico do projeto, diferentes usos e apropriações sobre a estátua de Michael Jackson demonstram dinâmicas contraditórias. Empreendedores e guias de turismo se mostravam orgulhosos do envolvimento em atividades profissionais e lucrativas a partir da circulação turística ao redor da estátua. Outros moradores questionam a prioridade direcionada à dimensão representacional do projeto: por que a estátua era rapidamente consertada à medida que a infraestrutura de serviços básicos na favela apresentava falhas?
De acordo com o antropólogo Daniel Miller (2010), todo e qualquer objeto possui a capacidade de marcar o ambiente, firmar identidades e determinar ações e comportamentos diante das mais variadas situações. Essa perspectiva pode ser complementada pela afirmação de que, para além de finalidades práticas ou “funcionais”, objetos estão diretamente ligados a indivíduos e grupos sociais - sendo portadores de significados que mediam as relações humanas em determinados sistemas culturais (Baudrillard 2002).
A proposta de realização de uma “biografia cultural” da estátua de Michael Jackson conduz a uma perspectiva processual da mercantilização, na qual os objetos podem transitar dentro e fora do estado de mercadoria. Nesse sentido, os autores Appadurai e Kopytoff mencionam que os casos analíticos mais interessantes são os dedicados à observação de “coisas” situadas nas zonas intermediárias desse processo. Interações ao redor de intervenções estéticas podem ser percebidas a partir de formas possíveis de engajamento político e disputas (Aderaldo 2017). Com base no exemplo apresentado, é possível afirmar que a estátua na favela representa um processo de mercantilização e, com o passar do tempo, também é disputada por meio de narrativas sobre desigualdades sociais na favela.
Precariedade pode ser uma noção analítica compreendida pela tradução de uma “condição politicamente construída”, mediante a qual determinadas populações sofrem com falhas nas redes sociais e econômicas de apoio à existência, e são tornadas “assimetricamente expostas a contextos de violência, perigo, enfermidade, migração forçada, pobreza ou morte” (Butler 2009). De acordo com o antropólogo Michel Agier (2015), condições precárias são mais perceptíveis nas “margens” dos espaços urbanos - em uma condição que não deve ser definida por alguma localização geográfica fixa e/ou permanente, mas sim a uma posição epistemológica e política. Essas margens precárias são lugares de onde é possível observar os diversos movimentos que, em meio às contradições e disputas entre o que a cidade “é” e o que ela “deveria ser”, na prática, revelam o que ela “poderia ser” (ibid.: 487).
Esse processo, nomeado de “fazer-cidade”, revela uma cidade constituída no e pelo movimento de pessoas, coisas e ideias - contrariando uma cidade estática e estabelecida a priori. Aproximando estes movimentos que “fazem-cidade” com a noção de “regimes de valor”, percebemos as (i)mobilidades ao redor da estátua de Michael Jackson a partir de uma cidade “em processo”, em contínua (des)construção realizada pelos sujeitos que vivem nela.
Interpretações da estátua na favela a partir de seus múltiplos significados indicam variações contextuais em “regimes de valor” determinados pelo contexto urbano. Devemos notar que o desvio de mercadorias para fora de rotas determinadas é sempre um sinal de criatividade ou de crise, seja estética ou econômica (Appadurai 1986: 27). Assim, a estátua que foi concebida para representar o sucesso de um projeto urbano passa a simbolizar a decadência do caráter mercantil desse fenômeno: em fevereiro de 2016, às vésperas do 20.º aniversário da ilustre visita do artista à favela para gravações do clipe, após um custo acumulado de cerca de 35.000 reais em reparos por eventos de depredação, a estátua foi retirada da favela para a realização de manutenção externa (Braga 2016). Durante cerca de duas semanas, a visita de turistas à favela foi frustrada pela ausência do principal atrativo do local.
Michael Jackson entre flashes e tiroteios
Chegando ao marco temporal de 10 anos após o lançamento do programa das UPP, indicativos em diferentes esferas sociais revelam um acentuado processo em que a militarização do cotidiano é elevada à condição de elemento predominante na dialética entre a gestão policialesca do território e o processo de mercantilização urbana na cidade (Telles 2015). Esse fenômeno pode ser ilustrado por situações como novas inflexões no governo institucional,10 agravamentos em estatísticas de segurança pública,11 e trágicos homicídios ocorridos em favelas ocupadas pelos policiais.12
Como consequência, o fracasso da “paz” justifica uma “guerra” que perde seu caráter metafórico para ser convertida em uma efetiva modalidade de governo (Birman e Leite 2018). Nos momentos posteriores aos Jogos Olímpicos de 2016, conflitos territoriais armados se tornam mais uma vez recorrentes na favela Santa Marta. Experiências e representações sociais conduzidas pelo empreendedorismo e pelo turismo em favelas são desestabilizadas por imagens de tiroteios e pela reconstituição de uma ordem social caracterizada pela criminalidade violenta.
Em agosto de 2017, inusitados debates foram suscitados pela frenética circulação de uma imagem da estátua de Michael Jackson. A repercussão foi motivada por uma reunião icônica entre “pacificação”, turismo e violência urbana: um fuzil foi colocado na estátua, pendurado em seu pescoço (Torres 2017). Com base na produção dessa imagem e em sua repercussão, é possível elaborar análises descritivas sobre momentos intermediários aos Jogos Olímpicos de 2016 e o cumprimento de 10 anos da UPP Santa Marta, em dezembro de 2018. Relações sociais, econômicas e políticas concernentes à biografia cultural da estátua a validam, nesse momento, como uma materialidade representativa da mercantilização turística da favela e também como um artefato que desperta distinguidas formas de interação e de atribuição de valor.
A cidade pode ser compreendida como um agregado de tensões e conflitos que se especializam, e seus marcos visíveis são apenas parte de uma realidade mais profunda e extensa que os contextualiza (Arantes 1994). Acompanhando o desmonte do programa das UPP, a estátua que foi considerada o principal recurso simbólico do turismo em favelas proporcionado pelo processo de “pacificação” no Rio de Janeiro tem uma reviravolta ao ser subvertida em imagem que torna reconhecível a própria violência urbana operada na cidade.
A deterioração de características comerciais do processo urbano de “pacificação” poderia ser acompanhada pela desvalorização de marcos simbólicos do período recente. Entretanto, essa afirmação só pode ser confirmada por uma formulação mercantil. Como preveniu Arjun Appadurai (1986), não devemos assumir uma interrupção na “biografia cultural das coisas” enquanto houver permanências nas condições, contextos e circunstâncias sob as quais os objetos circulam e são trocados - seus “regimes de valor” (ibid.: 15).
Apesar de desvalorizações ao caráter de mercadoria, a biografia cultural das coisas pode ser associada à viabilidade de novas trajetórias sociais e culturais, porque a “vida social” dos objetos subsiste conforme sua trajetória de usos, disputas e significados for socialmente reconfigurada entre contextos econômicos, políticos e culturais (ibid.). Embora esvaziadas em seu caráter mercadológico, as coisas, como a estátua de Michael Jackson, subsistem em sua “vida social” a partir de outras formas de trocas e circulação.
Na semana anterior à divulgação da imagem da estátua com o fuzil, o então chefe do tráfico de drogas na favela Santa Marta havia sido baleado e preso após uma intensa troca de tiros com a polícia. Devido à frenética repercussão midiática da imagem, a assessoria de imprensa da UPP Santa Marta informou ter apurado que os responsáveis pela foto da estátua com o fuzil eram participantes da quadrilha do traficante manifestando uma forma de retaliação pela prisão do chefe - e divulgou um atestado institucional reconhecendo a presença de traficantes na favela.
A circulação da imagem da estátua com o fuzil discrimina diferenciações relativas aos anos anteriores: após mais de seis anos sem tiroteios, conflitos territoriais armados voltam a ocorrer na favela Santa Marta após tentativas policiais de restaurar uma rotina de circulações em pontos estratégicos da favela. Apesar da manutenção institucional da UPP Santa Marta, diversos locais da favela voltam a ser ocupados por grupos armados de criminosos, incluindo o espaço onde se encontra a estátua de Michael Jackson.
Reconfigurações urbanas ao redor da estátua permitem a delimitação de contextos distintos relacionados ao programa das UPP, e sua “vida social” acumula momentos relativos aos diferentes “regimes de valor” em que circulações são determinadas pela cronologia de uma política de segurança pública pertencente a um projeto mais amplo de cidade. Essa perspectiva demonstra como os tempos presente, passado e futuro podem estar conectados através do movimento e das mobilidades (Büscher e Veloso 2018).
Desse modo, a desestabilização em “regimes de mobilidade” na favela Santa Marta (Glick-Schiller e Salazar 2013; Baker 2016; Mano 2021) pode ser compreendida com base nas variações de circulação que ocorrem ao redor da estátua - enquanto contextuais modificações socioespaciais em “regimes de valor” conduzidas pela cronologia da “pacificação” na cidade.
Nessas variações em seus “regimes de valor”, a estátua na favela pode ser compreendida a partir de características que proporcionam formas complementares de legibilidade: seja por possibilitar a interpretação das (i)mobilidades em curso sobre um espaço urbano (Adey 2010), quanto por qualificar formas cotidianas de atenção sobre indeterminações e riscos em uma atividade hermenêutica incessante (Cavalcanti 2008). Tanto moradores quanto empreendedores locais e mesmo turistas passam a conviver com (i)mobilidades ocasionadas por uma acentuada sensação de perigo causada pela ameaça iminente de conflitos no território da favela.
Para além de uma transferência de significados, a imagem da estátua com um fuzil é ilustrativa das condições de violência urbana vivenciadas no território. Além de conviverem com desconfianças relacionadas aos tiroteios frequentes, moradores da cidade passam a relatar que policiais estariam agredindo pessoas de forma física e verbal, entrando em casas sem autorização judicial, revirando imóveis e roubando pertences. Também foram repercutidos relatos de pessoas que tiveram celulares confiscados e revistados por policiais sem autorização legal, adultos que foram revistados por policiais armados na frente de seus filhos e mulheres que foram revistadas de forma irregular (Figueiredo 2019).
Por sua vez, os próprios profissionais locais de guiamento turístico se perceberam cada vez mais responsabilizados pelos riscos de circular com visitantes pelas favelas da cidade.13 Em outubro de 2016, o interesse de visitantes estrangeiros pelas favelas é impactado após o assassinato de uma turista europeia em um tiroteio durante o tour que acontecia no morro da Rocinha (Betim 2017). Em dezembro de 2018, ocorre na favela Santa Marta um fato em circunstâncias que denotam, simbolicamente, o desmonte da “pacificação”: um policial foi baleado durante um tiroteio no espaço onde fica a estátua de Michael Jackson (G1 Rio 2018).
Essas alterações contextuais de dinâmica são percebidas com apreensão pelos guias formados pelo Rio Top Tour, porque a maior parte deles nunca havia lidado com a intersecção entre o risco de homicídios e os roteiros de turismo em favelas - e o cotidiano da favela passa a ser composto por flashes das câmeras dos turistas coexistindo com o som de disparos de armas devido a tiroteios ao redor da estátua de Michael Jackson:
“Algumas semanas atrás, um grupo de 14 turistas estava na laje do Michael Jackson quando começou uma operação policial, e um tiroteio assustou as pessoas que estavam fotografando. A solução que eu tive foi entrar, com dez adultos e quatro crianças, para tentar nos proteger, dentro da loja de souvenirs, ao lado da laje. Vários policiais com os rostos encobertos entraram, de forma bastante ostensiva, e embora não tenham revistado ninguém, circularam entre as pessoas de uma forma muito ameaçadora.” [Guia de turismo, entrevista, outubro 2018]
Observando a vida social da estátua na favela Santa Marta a partir de uma perspectiva móvel, temos a possibilidade de analisar contextos políticos relacionados à estética, à precariedade e a formas de legibilidade. Entre flashes de turistas e tiroteios no território, a estátua de Michael Jackson indica uma sobreposição temporal em dinâmicas locais, ao mesmo tempo que sua imagem figura como síntese do debate público, corroborando uma narrativa que já vinha sendo enunciada: o esgotamento das UPP após os Jogos Olímpicos de 2016 adquiriu tamanha proporção que atingiu até mesmo a “favela modelo” do projeto de “pacificação”.
Compreender que objetos, bens materiais e mercadorias são possuidores de uma “vida social” nos ajuda a perceber que, para além das pessoas, as coisas (ou estátuas) podem ser pensadas a partir de uma história biográfica. Refletindo sobre objetos e materialidades em uma realidade social determinada por políticas e sistemas de mobilidades, a “biografia cultural das coisas” pode ser estabelecida pelas circulações que se constituem em torno e a partir delas mesmas, determinando suas trajetórias em contextos econômicos, políticos e sociais no espaço urbano. O valor é produzido pelas circulações e a vida social da estátua na favela subsiste enquanto recursos de (i)mobilidade forem inventados, disputados e projetados ao seu redor.
Considerações finais
O significado das coisas não está necessariamente inserido nas formas, mas nos usos, disputas e significados que são produzidos a partir delas e em seu entorno. Neste trabalho, pude argumentar sobre a possibilidade de compreender a estátua de Michael Jackson a partir de um paradoxo: enquanto ancoradouro fixo que sustenta sistemas de (i)mobilidades ao seu redor e também como integrante de circulações materiais, imagéticas e semióticas que produzem representações e experiências políticas e socioespaciais.
Examinar a estátua como representação da “favela modelo” da “pacificação” é debater e questionar a imagem nacional e internacional que foi vendida do projeto de segurança pública. Principalmente porque a favela com a estátua é constituída como uma mercadoria inserida em uma infraestrutura turística mais extensa e controversa - o Rio de Janeiro das Olimpíadas de 2016. Representações estatuárias podem ser associadas a diferentes modos semióticos e usos sociais (Almeida e Geirinhas 2021). Embora inaugurada um ano após a morte do artista, o contexto cultural e urbano da estátua a posiciona sob atribuições de valor em temporalidades contextuais. Assim, podemos comprovar que a “vida social” da estátua de Michael Jackson na favela Santa Marta supera a biografia do próprio artista ao ser convertida em um marco simbólico que identifica o território na cronologia de conjunturas temporais e socioespaciais do Rio de Janeiro.
Para além do marco simbólico de uma política pública direcionada à favela, a estátua de Michael Jackson passa a ser um símbolo apropriado pela comunidade local como forma de explicitar as desigualdades e precariedades condicionadas por formas de governo no território. Uma significativa manifestação deste argumento é a veiculação de uma imagem da estátua em usos e apropriações relativas a territorializações e sociabilidades figurativas do ano 2020: apresentada com uma máscara facial de proteção, a estátua é retratada em uma reportagem internacional pela interação de um morador voluntário representando a higienização comunitária das ruas, becos e vielas da favela - consequência de desigualdades sociais e a ausência de iniciativas públicas de combate à pandemia de Covid-19 nas periferias da cidade (Associated Press 2020).