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Etnográfica

Print version ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.27 no.1 Lisboa Apr. 2023  Epub Apr 28, 2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.12856 

Artigo Original

Jogar, lutar, torcer: olhares etnográficos sobre futebol e rituais ameríndios

Playing, fighting, rooting for: ethnographic gazes on football and Amerindian rituals

Luiz Henrique de Toledo1  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Supervisão, Validação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-5354-5923

Carlos Eduardo Costa2  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Supervisão, Validação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1783-0732

1 Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos, Brasil, lhtoledo@ufscar.br

2 Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil, caecso@yahoo.com.br


Resumo

O artigo é um esforço de síntese para apresentar uma subárea dos estudos sobre esportes nas ciências sociais no Brasil, denominada de Antropologia das Práticas Esportivas. Trata-se de descritor acadêmico que visa articular os usos de algumas noções que definem o vasto campo de experiências lúdicas com a produção contextual de dados empíricos. Modelos sociológicos de amplo espectro, que operam noções como jogo e esporte, são colocados à prova das experimentações etnográficas. Objetiva-se alcançar paisagens mais descontínuas por intermédio da relação entre duas faculdades sensíveis, jogar e olhar, constitutivas de um modelo denominado de modelo das relações. O exame da dialética entre olhar e jogar permite que fenômenos esportivizados distintos, desde a ubíqua prática do futebol a uma determinada luta corporal xinguana, ambas analisadas do ponto de vista da categoria torcer, mantenham as possibilidades analíticas comparativas na diferença.

Palavras-chave: Antropologia das práticas esportivas; corporalidades; modelos etnográficos

Abstract

The article is a synthesis effort to present a sub-area of sports studies in social sciences in Brazil, called Anthropology of Sportives Practices. It is an expression that articulates the uses of some notions that define the vast field of playful experiences with the contextual production of empirical data. Broad spectrum sociological models that operate notions such as games and sports are put to the test of experiments and extensions of ethnographic models. In this case, the objective is to achieve more discontinuous landscapes in which the meanings of what we define by “to play” and “to watch” - sensitives faculties that orders expressive corporealities - assume a more universal symbolic nexus than properly historical phenomena, such as games, hobbies and sports. The examination of the dialectic between watch and play allows different sportive practices, such as football and a specific Xingu wrestling, analyzed from the point of view of the category “cheers” (fans), to maintain their comparative properties in the difference.

Palavras-chave: Anthropology of sportive practices; corporealities; ethnographical models

Antecedentes

Embora a expressão Antropologia das Práticas Esportivas tenha aparecido publicamente ao menos desde 2001, num balanço bibliográfico sobre estudos tematizando futebol (Toledo 2001), podemos assumir o ano de 2009 como marco formal do uso mais continuado do termo pelos autores desse artigo.1 Foi num esforço coletivo chancelado por relações institucionais acadêmicas que organizamos o volume Visão de Jogo: Antropologia das Práticas Esportivas (Costa e Toledo 2009), que contribuiu para experimentar os alcances dessa expressão em campos contínuos de investigação etnográfica.

Uma das questões prementes da proposta metodológica dessa coletânea foi matizar o campo de investigações sócio-antropológicas sobre esportes no Brasil, à época fortemente demarcado pelos importantes insights culturalistas de uma primeira geração de investigadores que se debruçaram sobre o futebol masculino de espetáculo (DaMatta et al. 1982), aproximando-o à ampla temática da identidade nacional.

Em Visão de Jogo, os recortes empíricos divisam não necessariamente fenômenos da ludicidade, mas práticas que despontavam como objetos, em princípio pouco ou nada esportivos, por exemplo, a esportificação de dinâmicas rituais religiosas em denominações neopentecostais com forte demanda jovem. Outros temas como feminismo, sexualidade e generificação estão contemplados na observação de modalidades como o voleibol e em contextos de sociabilidade torcedora presente no futebol. Também focando essa modalidade, constam da coletânea pesquisas sobre práticas de aprendizagem, modernização e políticas institucionais. Há um capítulo que examina contextos imigratórios de atletas brasileiros do futebol e do basquete. O livro ainda conta com discussões conceituais da tradição antropológica, tais como festa, jogo e ritual em dinâmicas de sociabilidade universitária e, por fim, traz um esboço comparativo, focado nos trabalhos de dois antropólogos, o brasileiro Roberto DaMatta e o argentino Eduardo Archetti, à época trabalhando em Oslo, que de perspectivas distintas tematizaram em suas obras questões de identidade nacional.

Cabe destacar do texto de apresentação um comentário referente ao título que, de passagem, menciona a percepção do olhar, ideia latente que teria desdobramentos futuros:

“Ver e jogar participam de uma mesma dinâmica, embora alguns os tomem por instâncias separadas em léguas no fruir de um jogo e volta e meia algumas interpretações repisem o caráter alienante daqueles cujo acesso à prática se dê somente pela faculdade do olhar. Pois jogar é também deixar-se ver, ser avaliado, daí todo o imenso volume de opiniões que julga o tempo todo e que mobiliza tanto quem joga quanto quem assiste. E mesmo para aqueles que se encontram entregues à atividade, saber enxergar a dinâmica da performance com algum distanciamento possibilita antecipar melhor as evoluções da disputa, a conduta dos adversários, medir, enfim, seu próprio desempenho.” (Costa e Toledo 2009: 13-14)

Para além desses estudos pontuais em ressonância recíproca num mesmo volume, Visão de Jogo oferece uma expressão dentro de um cenário em que alguns descritores acadêmicos já há muito haviam se consolidado, é o caso de Sociologia do Esporte e Antropologia do Esporte. De todo o modo, a coletânea serviu de gatilho para que investigações abordando paisagens etnográficas mais descontínuas pudessem vir a lume (Toledo 2019; Costa 2021a). Nesse artigo serão enfocadas algumas extensões de categorias abrigadas na tradição das pesquisas acadêmicas voltadas para a temática esportiva.

Os estudos sobre fenômenos lúdicos e esportivos tendem a observar no par jogo e esporte a matriz de onde conceitualmente vicejaram várias perspectivas de análise. Alguns trabalhos dispõem estes fenômenos num movimento histórico de superação e espraiamento de um pelo outro, caso paradigmático é o alentado ensaio Homo Ludens, de Huizinga (1993[1938]).

As alternativas analíticas sobre este ponto podem ser verificadas em vários autores, inclusive nalguns mais distantes do campo das investigações esportivas, tais como Lévi-Strauss (1989[1962]). Vale lembrar, de passagem, que para esse autor a relação entre jogo e esporte não é lida numa chave histórica, mas como duas práticas ou “propriedades” que respondem a ontologias distintas: sociedades ditadas por rituais conjuntivos e outras em que rituais disjuntivos ganham muita projeção, tal como parece ser o caso dos esportes. Observações próximas a esta poderiam ser estendidas a Pierre Clastres, que prefigurava nas práticas esportivas ocidentais a possibilidade, e porque não dizer, os perigos, da transfiguração dos jogos tradicionais indígenas em luta e violência.2

Mas foi certamente Norbert Elias o autor que reacendeu a importância sociológica dos esportes, o futebol entre eles, promovendo-os numa escala paritária a outros fenômenos pacificadores da sociabilidade, nomeando com o neologismo esportificação aquilo que no domínio dos entretenimentos passou a ser tomado como correlato da parlamentarização, processo de reenquadramento da ordem política burguesa e de industrialização, índice das transformações da esfera econômica. Três domínios interdependentes tomados da paisagem ocidental europeia, oferecendo um modelo paradigmático e generalizado na expressão processo civilizatório (Elias 1997 [1939]; Garrigou e Lacroix 2001).

Muitos creditam a Norbet Elias, já nos anos 60, o mérito de ser aquele que inaugurou uma Sociologia dos Esportes (Reis 2021). Se o argumento do pioneirismo não for suficiente para estabelecer os limites estritos de um campo acadêmico, Elias e Eric Dunning, seu colaborador de primeira hora nos estudos esportivos, foi ao menos aquele que primeiro enfrentou com mais fôlego e sistematicidade analítica a temática do desporto da perspectiva de sua sociologia configuracional (Elias e Dunning 1992 [1966; 1971]).3

Naquilo que nos concerne, obviamente que não se trata de negar a centralidade do termo jogar, aspecto constitutivo ao conceito de esporte, tão presente nos descritores acadêmicos, como os já mencionados sociologia do esporte e antropologia do esporte. Sequer pretendemos minimizar os processos sociológicos e históricos que dizem respeito à especialização e comoditização esportiva profissional amparadas na divisão social do trabalho, o empenho dos saberes científicos e a produção dos corpos disponibilizados para o mercado de espetáculo (Damo 2007), a implementação de políticas esportivas de Estado, o mercado de bens e marcas esportivas e a expansiva midiatização e massificação da audiência.

Não obstante, a antropologia das práticas esportivas busca retirar o peso heurístico ou a determinação historicista da categoria esporte, ao movê-la dentro de um conjunto continuadamente experimentado de práticas. Não se pretende, por óbvio, minimizar as formas institucionais e convencionalizadas que o fenômeno esportivo assumiu no amplo domínio da vida social, mas chamar a atenção para suas difrações capturadas em contextos propriamente etnográficos.

Nessa direção, queremos crer que há no termo esporte uma implicação ou encapsulamento antes de tudo epistemológico no seu uso mais amplo, quer no domínio de senso comum, quer no domínio acadêmico. Pois, amparado em valores ocidentalizantes faz das práticas esportivas fenômenos sérios, subsidiários e solidários ao processo civilizador, muitas vezes tomado como índice de uma hegemônica noção de modernidade.

De centros e periferias nos estudos das práticas esportivas

Já no Brasil, foi sobretudo a partir da década de 80 do século passado que estudos acadêmicos sobre esportes e particularmente sobre temas futebolísticos ganharam fôlego nas ciências sociais. Contudo, contrariamente ao protagonismo da sociologia europeia, tais pesquisas foram tributárias de outra seara acadêmica, notadamente uma iniciativa de alguns antropólogos (DaMatta et al. 1982), cujo impacto ainda pode ser verificado por toda a América Latina (Alabarces 2004).

Amparado nos pressupostos mais sensíveis e caros à perspectiva da cultura, temáticas como ritual, processos de simbolização e identidades matizaram os conceitos de sociedade e modernidade, deslocando o centro de gravidade dos estudos sociológicos europeus sobre futebol, embora tal literatura tenha sido paulatinamente acolhida na academia brasileira num mesmo processo de expansão dos estudos sobre esportes.

Essa inversão relativa, chamemos assim, acabaria por problematizar, quase que de imediato, as teses historicistas e sociológicas em torno de temas como ideologia, poder e estratificação social (Volpicelli 1967; Vinnai 1973) presentes desde uma sociologia clássica de matiz marxista. A perspectiva antropológica e progressivamente etnográfica também interpelou os modelos de inspiração bourdieusiana, bem como a já mencionada macrossociologia configuracional eliaseana.

Então, nota-se que a nascente antropologia do esporte à brasileira fez um movimento desdobrado em pelo menos três sentidos. Primeiro, constatando no plano histórico e concreto aquilo que recentemente um de seus proponentes, Roberto DaMatta, reafirmou num prefácio (DaMatta 2022), fazendo mover centro e periferia no plano das apropriações simbólicas de uma modalidade originalmente europeia que se acomodou ao processo de urbanização da sociedade brasileira. A despeito da retórica um tanto hiperbólica e irônica que orienta suas provocações, DaMatta é arguto em relação aos sentidos desse espraiamento do futebol:

“O Brasil roubou o futebol dos ingleses realizando um processo aculturativo invertido. Um processo que põe em causa a tonelagem das mais bem estabelecidas teorias coloniais. Realmente, se somos capazes de abrasileirar e sermos os melhores do mundo em futebol, por que não podemos fazer o mesmo com justiça social e com a democracia?” (DaMatta 2022: s/p)

E compensando o atraso com que o tema futebol figurou no debate acadêmico das ciências sociais brasileiras, o segundo movimento de inversão centro e periferia ocorreu em função da apropriação de um tema sociológico até então controverso e marginal levado mais para o centro do debate acadêmico, na direção de um melhor entendimento daquilo que divisou o amplo debate sobre cultura brasileira. O futebol, fenômeno até então preso às esferas de um lazer consumerista ou retido num espectro ideológico, seria menos abordado em confronto com a sociedade (lazer versus trabalho, seriedade versus não-seriedade, tradição versus modernidade, ideologia versus cultura), e passaria a ser tomado como um ritual de significação, expressão e ao mesmo tempo conceito operador de relações sociais mais espraiadas, problematizando visões correntes que o apequenavam como fenômeno sociológico repisado pelas teses do futebol servido às massas como “ópio do povo” (DaMatta et al. 1982). (Figura 1)

Fonte: foto de Luiz Henrique de Toledo (2014)

Figura 1:  Grafites pelas ruas da cidade de São Paulo às vésperas da Copa do Mundo FIFA 2014  

Portanto, dialogando criticamente com as perspectivas sociológicas europeizantes, que alcançaram com mais ênfase campos acadêmicos em outros países da América Latina, os estudos antropológicos sobre o fenômeno esportivo no Brasil perspectivaram os processos sócio-históricos centralizados em determinadas sociologias, bem como as determinações históricas de longa duração, passando a descortinar representações ou categorias nativas paritárias às noções sociológicas até então mais abrangentes.

No mais, atualmente, o esporte mantém-se como categoria aberta e em disputa nas várias searas acadêmicas, empiricamente retomada aqui, primeiro, a partir de uma modalidade esportiva de amplo espectro, que é o futebol e, segundo, posta à prova em seus desdobramentos etnológicos, tais como abordaremos o caso da luta ameríndia xinguana.

Ainda nesse sentido, talvez aí se ofereça um terceiro movimento de inversão temática e conceitual em relação ao status centro e periferia quando abordamos os estudos sobre esportes, dado que a forte presença multiétnica indígena somada às relações estabelecidas com a dita sociedade brasileira envolvente, demandam por um tensionamento ainda maior das categorias explicativas hegemônicas e universalistas, alargando os limites analíticos da categoria esporte. É nesse sentido também que desdobramos esporte em duas categorias de ação, jogar e olhar, a partir de modelos etnográficos explicitados já na próxima secção do artigo.

Modelos etnográficos

A evolução de uma perspectiva orientada pelo método etnográfico veio embasada, ou melhor, cotejada por dois modelos utilizados pela Antropologia das Práticas Esportivas, em princípio formulados para observar contextos futebolísticos: um denominado de modelo tripartite ou modelo das “posições em relação”, tal como foram definidas as experiências etnografadas, e outro de “modelo das relações”, em que foi proposto o exame de um par dialético - olhar jogado e jogar olhado.4

Foi sustentado no modelo tripartite que no futebol de espetáculo concatenam-se e contrapõem-se saberes específicos. Jogadores, técnicos, fisiologistas, psicólogos, dirigentes etc., enfeixam uma primeira província denominada de profissionais, associada às duas outras províncias ocupadas por diversos atores reunidos nos termos especialistas e torcedores. Convencionou-se que especialistas são todos aqueles diretamente envolvidos na profusão desse futebol, ou seja, as mídias e seus agentes diretos (comentaristas, locutores, repórteres, mas também agentes e empresários, patrocinadores etc.). Por fim, a província denominada de torcedores abriga todos aqueles que ocupam espaços mais distante das primeiras, pois idealmente torcedores e torcedoras se colocam nem como profissionais relacionados à prática e ou disseminação do jogar, nem como especialistas, que em última análise também se beneficiam de estar mais próximos dos interesses daqueles que gravitam em torno dos ditos profissionais. Não obstante, essa definição, em princípio negativa, de torcedor contrasta com o conjunto mais complexo e heteróclito de práticas que, fora de campo, os devolvem ao espetáculo como partícipes legítimos na produção continuada de novos significados e experiências para além do jogo, espraiando as possibilidades tanto do olhar quanto do jogar.

O ritual do futebol de espetáculo, sobretudo o masculino, sugere demandas simbólicas que evocam uma totalidade em movimento, uma “estrutura agida” 5 apreensível desde o cotidiano, ampliando a observação etnográfica sistemática em vários de seus domínios (etnografias de treinamentos, cursos de capacitação de técnicos, cursos de jornalismo esportivo, espaços de sociabilidade torcedora).

As províncias profissionais especialistas e torcedores revelaram, para além de uma tipologia formada por grupos corporados ou agentes em “carne e osso”, embora assim fossem apreendidos na observação participante, posições em relação ou loci simbólicos que fazem articular narrativas intercambiáveis tanto no domínio ritualístico dos jogos quanto no domínio do cotidiano.

Sob este aspecto, a dicotomia jogo e esporte, muitas vezes imposta como uma relação entre dois conceitos totalizantes, pôde ser diluída num outro corte analítico em que aparecem não como polos de um movimento histórico de transformação, mas como retóricas sociais compartilhadas (Herzfeld 1997). Ou operadores reversíveis de práticas de agentes concretos que, embora posicionados, trocam continuadamente parte das experiências discursivas e colocam em tensão fatos da ludicidade e fatos da esportividade profissional na dinâmica relacional entre essas províncias.

Esses agentes vivenciam e lançam mão, em menor ou maior intensidade, de suas éticas, seja a do desinteresse lúdico (do jogo) ou a da competitividade meritocrática (do esporte), de acordo com a posição que assumem dentro do socius esportivo. Tais papéis e posições alternam-se, misturam-se, contrapõem-se, seja no plano representacional, seja no plano das práticas concretas. Portanto, do modelo das posições depreenderemos a ideia de permuta relativa de posições.

Foquemos agora o segundo modelo etnográfico: o modelo das relações. O advento e disseminação dos esportes no contexto ocidental euro-americano desdobrou-se dos valores mais caros orientados em formações históricas a partir da noção de representação, o que não deixa de evocar a ideia de um movimento de alienação do corpo que joga entregue ao jogar de outrem, chancelando as possibilidades do aparecimento de um olhar cada vez mais vicário, especulativo e perscrutador cujo acesso às emoções corporais poderia se dar de fora das práticas. Claro que experiências corporais do jogar se mantiveram mesmo entre torcedores, mas para efeitos de potência do modelo foi a prática profissional que mais se destacou como fonte aceleradora da separação entre jogar e torcer.6

Tal distanciamento, se assim o tomarmos em sua processualidade histórica, correu em conformidade com a consolidação dos Estados modernos e das sociedades burguesas, temas que Norbert Elias (1997 [1939]) e Elias e Dunning 1992 [1966, 1971]) elegerão como fenômenos capitais do seu modelo sociológico das configurações na produção das mediações parlamentarizadas no interior da sociabilidade, na qual os esportes constituem parte das cadeias de interdependência no processo de parlamentarização (representação) de domínio político. Aqui é a categoria jogo que se destaca ao reposicionar a sociedade como tributária de um jogar multidirecionado (Garrigou 2001).

Da permuta relativa das posições salientada no primeiro modelo, devedor da matriz dual jogo e esporte (que se expande pela dicotomia seriedade e não seriedade), aprofundamos outros pressupostos em princípio menos intuitivos, designando ao olhar a tarefa sintética e central de toda a expressão corporal e performática presente tanto da perspectiva do jogar quanto do torcer.

No modelo das relações não há nas experiências da ludicidade e da esportificação um jogar dissociado do olhar, seja de quem joga ou torce, relativizando a chave sócio-histórica da matriz dual jogo-esporte e seu corolário de distanciamento e estranhamento entre práticas sérias (profissionais) e não sérias (sociabilidade). O que nos levou do modelo de permuta relativa das posições à onipresença de uma dialética simbólica em todas as províncias (profissionais, especialistas e torcedores), definindo duas novas expressões para melhor estabelecer uma relação mais dialética entre olhar e jogar: olhar jogado e jogar olhado (Toledo 2019).

Torcer não se apresenta tão somente como resultado dos mecanismos simbólicos de representação, que passam a conferir legitimidade ao jogar. Pensando especificamente os esportes, o torcer, nesse sentido definido acima, não seria fenômeno subsidiário, posterior ou epifenomênico do jogar.

Outro pressuposto implicado nesse segundo modelo é o de que o aprendizado de técnicas corporais (obviamente que não somente as esportivas) consiste sempre num movimento de apuro do olhar. No limite, cumpre enfatizar, mesmo que se jogue ou se pratique um esporte para si próprio, o olhar se impõe e se interpõe como faculdade que ajuíza os desempenhos - do jogar e do torcer.

Decorrência desse novo argumento, podemos dizer que o desenvolvimento histórico dos esportes modernos e profissionais de espetáculo tendeu a mascarar ou a levar ao máximo afastamento essas práticas (quem joga e quem torce), definindo ou inventando toda uma cultura esportiva voltada à especialização ou divisão social e simbólica entre jogar e torcer. E olhar paulatinamente se metaforizou das atitudes vicária e curiosa do assistir e especular, para o torcer. A entrega pessoalizada e errática é apreendida num subjetivismo mais do que desdobrado e transfigurado em experiências coletivizadas e sérias na formação de assistências e torcidas especializadas. Torcer é igualmente dotado de discursividades, técnicas, artefatos, performances corporais, juízos normativos e projetos políticos, numa expressão, um olhar jogado.

Ocultar essa profunda analogia simbólica em torno do olhar seria deixar de entrever as tensões que envolvem os processos históricos que orientaram e orientam esse afastamento entre jogar e torcer. Formar uma massa de despossuídos das qualidades do jogar, inventada a partir de uma fenomenotécnica definida a favor do alto rendimento acessado somente por e para poucos, lastreou toda a cultura esportiva, sobretudo, a dos esportes coletivos profissionais cada vez mais enredados aos interesses econômicos e políticos.

Levando em conta essas premissas mais gerais buscamos não somente ampliar o inventário etnográfico em Antropologia das Práticas Esportivas, mas também reposicionar as formas de sociabilidade presentes no universo especular e especulativo do torcer, sobretudo na figura sociológica delimitada pela categoria genérica de “torcedor”. Torcer é instanciação que oferece a antítese simbolicamente motivadora (Wagner 2010) em relação a todos aqueles que se comprometem com o jogar (sejam os jogadores de fato, sejam todos aqueles que promovem pecuniariamente o espetáculo), tensionando as formas mais institucionais que moldam os esportes.

Partindo dessa célula (olhar jogado/jogar olhado) buscamos evidenciar tanto o lugar dos torcedores na política esportiva em sociedades euro-americanas (Toledo 2019) quanto questões de cosmopolítica no contexto ameríndio (Costa 2013), desde que se tome algumas práticas corporais, e aqui a luta corporal será objeto de análise, como fenômenos que igualmente tensionam e são estimulados pelo olhar jogado. Veremos que a luta corporal denominada kindene, aparentemente distante do futebol, constitui um caso exemplar de apropriação e, ao mesmo tempo, extensão etnográfica da relação entre jogar e torcer. O que revela o caráter não arbitrário das lutas políticas pelo torcer presentes em culturas esportivas tão distintas.

A confrontação e os desdobramentos criativos que paisagens ameríndias etnografadas por Costa no Alto Xingu podem ofertar para ampliar ou prospectar comparativamente parte desses modelos é tema que se seguirá na última secção desse artigo.

Mas, antecipando, diríamos que se busca não a mera aplicação de ferramentas metodológicas pensadas a partir de fenômenos e práticas esportivas ocidentais em contextos ameríndios. Cumpre verificar em que medida tais modelos podem ter “nascido” ou sido propostos a partir dessas sócio-lógicas, em que as faculdades sensíveis do olhar, expandidas nas metáforas do jogar e torcer, igualmente alimentam dinâmicas esportivizadas em contextos aparentemente mais descontínuos com os esportes euro-americanos.

Jogar e torcer em perspectiva

Um exemplo pontual dessa tensão conceitual, que preside tais nomeações e seus mascaramentos epistemológicos (portanto, políticos), pode ser notado nos estudos sócio-antropológicos sobre comportamento torcedor. E aqui, finalmente, alcançamos a seara do olhar jogado.

Há uma reiterada e contínua dissociação conceitual que toma comportamentos torcedores (jocosos, emotivos, insurgentes e/ou relativamente violentos) dentro de uma economia argumentativa que exita nomeá-los de esportivos ou desportivos.7 No Brasil fala-se em violência “no” esporte, ou mesmo “do” esporte quando se mira as esferas do jogar. Mas quando se adentra no domínio do torcer e suas figurações colocam-se em maior evidência questões comportamentais mais complexas - e a violência ou as transgressões passam a ser “dos” torcedores ou ainda “da” sociedade. (Figura 2)

Fonte: foto de Luiz Henrique de Toledo (2019)

Figura 2 : Concentração de torcedores ao redor do estádio Cícero Pompeu de Toledo (Morumbi) na cidade de São Paulo  

E esta violência “no” esporte, mas geralmente atribuída aos torcedores, porque evidenciada como sendo “dos” torcedores, torna-se objeto de efeitos sociológicos que motivam aqueles que controlam as esferas do jogar a estabelecer distâncias políticas e de assepsia moral em relação às esferas do torcer. O fato é que se menciona pouco o termo “violência esportiva” quando se volta para o comportamento torcedor, preservando no imaginário os valores que resultam de uma atividade blindada no interior das culturas euro-americanas.

Transgressões torcedoras deslizam das editorias esportivas para aquelas que, de modo amplo na mídia, tratam desses casos como sendo de ordem da segurança pública, mesmo que não abdicando de abordar outras tantas transgressões judicializadas que presidem esse campo (xenofobia, racismo, misoginia, corrupção institucional). Contudo, há maiores dificuldades analíticas e juízos morais implicados em constatar a natureza propriamente esportiva nessas contendas e refregas entre torcedores, não raramente tomadas por subsidiárias, extrapolações ou imposturas que viscejam dentro do esporte, mas que na verdade são vistas como estando de fora de seus domínios éticos. O comportamento transgressor torcedor é hipostasiado como problema social, escamoteando processos contínuos de cerceamento do torcer, preservando o jogar, que se coloca como categoria hierarquizante numa relação que aqui se pretende dialética.

No Brasil, mas não somente nele, projetar ou domesticar o comportameto torcedor como um problema emulador, e ao mesmo tempo à margem das transformações no futebol profissional, cumpriu acelerar os processos de elitização das praças esportivas verificada nas últimas décadas, abrigando essas formas do torcer na lógica da extração consumerista midiática, o que afetou sobretudo a presença popular torcedora nos estádios convertidos em arenas, tomadas por parcelas ou frações de classe de aficionados mais endinheirados. Partir da violência torcedora como causa dos males do futebol de espetáculo fez aumentar a tecnicalidade asséptica repressiva, escamoteando suas implicações epistemológicas de um embate político que visa reposicionar continuadamente as esferas do torcer e do jogar como perspectivas hierárquicas do olhar.

O descritor Antropologia das Práticas Esportivas, por estar implicado na etnografia, permite compor uma verdadeira peleja e confrontação, horizontalizando ou simetrizando modelos antropológicos e nativos. O corolário dessa postura é evidentemente não reproduzir sempre os mesmos modelos explicativos para fenômenos distintos, base do cientificismo universalista, mas levar em alta conta que cada contexto de pesquisa pode revelar suas teorias em seus próprios constructos teóricos.

Ao invés de replicar modelos, operamos por transdução, atentando para algumas transformações e hipóteses parciais, que passam a delinear como esses modelos podem se comportar diante de novos contextos. É o modelo antropológico que se transforma junto com a inventividade etnográfica. Nessa direção o modelo, que também é uma invenção no sentido que Roy Wagner empresta ao termo (Wagner 2010), seria mais uma imagem a compor uma espécie de ecologia etnográfica com os dados, para evocarmos uma proposição mais geral presente na perspectiva ingoldiana (Ingold 2011).

Desfocando olhares: corporalidades, práticas e torcidas em contextos comparados

Uma das questões capitais dos estudos sobre jogos, do caráter lúdico de determinadas manifestações humanas a despeito do tempo e espaço, é a maneira como se transferem as emoções, êxitos e desencantos do plano individual para o coletivo, as conexões entre a prática do jogar e as performances do torcer. De fato, trabalharemos o jogar olhado/olhar jogado como chave analítica para responder a essa questão há tanto colocada: como se transferem os êxitos (e fracassos) da parte para o todo, do jogador para o torcedor, e vice-versa, de onde as emoções vividas emergem com vitalidade. Essa relação entre o plano individual do jogar, ainda que disputado em modalidades coletivas, e o sentimento de pertença mobilizado por conjuntos torcedores, mesmo que com propriedades específicas, é atravessada pela função determinante do olhar.

Desta maneira, estabeleceremos as relações entre esses três domínios, jogar/olhar/torcer, através das emoções promovidas pelas práticas esportivas. Olhar é jogar ou, ainda, tensionar a dialética entre o jogar olhado e o olhar jogado pela relação entre o(s) praticante(s) e seus torcedores.

“Disso resulta, para efeitos do modelo que, todo jogar é jogo olhado. Olhar é dar coexistências às coisas, transformá-las em objetos ou objetivos. O modelo das relações os trata, jogadores e torcedores, como ocorrências tardias dos sentidos e metaforizações das experiências do jogar e do olhar, que podem ser observadas em outras inúmeras práticas lúdicas anteriores ao futebol.” (Toledo 2019: 44; itálicos nossos)

Para propor uma base comparativa ancorada nesse modelo das relações, passaremos por três assuntos interligados, suas proximidades e diferenças etnográficas. Primeiramente o corpo, tema caro tanto para as pesquisas em etnologia indígena como para a Antropologia das Práticas Esportivas. Num segundo momento, a luta ritual no Alto Xingu,8 objetivo maior para o qual os corpos masculinos são fabricados, será tomada brevemente por meio de sua complexidade organizacional, das alianças e oposições interétnicas que definem times e adversários, numa dinâmica que se altera a cada ritual dependendo das relações de parentesco entre os chefes. Por fim, a proposta é associar o primado do olhar no modelo das relações com sua apresentação etnográfica através das relações entre lutadores, torcedores e os “olhadores” da luta. Esse sentido mais amplo, longe de pretensões totalizantes, ajudará a entender conceitualmente nossa decisão pelos usos da expressão “práticas esportivas”, tanto por não estar atrelada ao contexto dos processos históricos dos esportes euro-americanos, como pela dimensão conjunta que as práticas assumem na cosmopolítica indígena.

Começaremos com um debate que associa fisiologia distintiva, embates políticos e interesses pessoais e familiares. Uma definição etnográfica em torno dos processos de fabricação corporal dos lutadores alto-xinguanos, o “idioma simbólico de referência” para as pesquisas etnológicas na América do Sul indígena (Overing 1977; Viveiros de Castro 1977, 1979; Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro 1979; Lima 2000). Demonstraremos como os conhecimentos sobre determinadas espécies botânicas e seus potenciais fazem parte da construção de um lutador campeão, sugerindo um regime de disputas políticas intra e interétnicas a partir dos conhecimentos relacionados aos usos de tais substâncias, especialmente realizados em famílias de chefes.

Os jovens chefes, por volta dos seus dez anos de idade, recebem em sua homenagem 9 o tiponhü, “festa de furar orelhas”. Nesse momento, aldeias são convidadas pelo povo anfitrião para acompanhar a furação das orelhas dos meninos que vão adentrar o período chamado de reclusão pubertária. Os jovens de famílias de chefes têm ambas as orelhas furadas com o fêmur de onça, sendo que seus acompanhantes podem ter apenas uma orelha furada com tal objeto, sendo que para os não chefes são usadas agulhas de madeira. Logo após a cerimônia, os povos convidados disputam competições através da luta kindene (Neto 2005).

Destacamos esse momento definidor na fabricação do corpo do jovem chefe, pois após esse ritual ele entrará na reclusão. Ficará “preso” nos gabinetes formados dentro de casa, só tecerá relações com familiares próximos como pais e irmãos, deverá ter alimentação especial, por vezes deixá-lo-ão passar fome para aprender a controlar sua raiva, para ser um verdadeiro chefe. Ficará invisibilizado e aprenderá as técnicas e conhecimentos tradicionais. Permanecerá escondido nessa reclusão por volta de cinco ou seis anos, caso descenda de famílias de chefes.

Durante esse período são dois os principais métodos de fabricação corporal: a escarificação e a ingestão de eméticos (Costa 2020). Esses procedimentos são constantes na vida de um jovem recluso. Eles devem ter seus corpos escarificados por um objeto chamado hingi (arranhadeira), feito com um tipo de coco em formato triangular de aproximadamente um palmo, em que se acopla uma fileira dos dentes do peixe cachorra (Hydrolycus scomberoides). Os jovens têm praticamente todo o corpo arranhado, com especial atenção aos braços e ombros para ganhar força para agarrar, um dos objetivos principais do estilo da luta. Após essas escarificações, feitas por homens da parentela masculina, uma série de itens são usados tanto para a cicatrização como com potencialidades terapêuticas e energéticas.

Um vasto conjunto de espécies botânicas é usado para fazer o corpo crescer, engordar, ficar forte, alto e resistente. Pimenta, bambu, algodão são alguns dos mais comuns. Todavia, esse tipo de conhecimento tradicional é parte de um arsenal que não se transmite fora dos domínios familiares. Saber quais são os melhores itens e suas posologias é parte desse processo de fabricação corporal que se reverbera na disputa política, retransmitido geracionalmente.

Além dos cicatrizantes e fortificantes usados pós-escarificação, ocorre também o uso cotidiano de eméticos, tomados geralmente pela manhã para causar muitos vômitos antes do banho frio, uma limpeza interna do corpo. Não seria o momento de apresentar esse vasto inventário etnobotânico (Verani 1990), mas apenas aludir como esses conhecimentos não são comuns a todos, o que faz parte dessa disputa que envolve a chefia. Antes de se proibir o uso de itens que aumentam a força, potência e resistência do lutador, é indicativo que tais itens façam parte da fabricação corporal desse campeão, exatamente porque feito nas famílias de chefes. São conhecimentos tradicionais que adentram na qualidade de propriedades intelectuais, ativos culturais de determinados grupos, por isso mesmo alvo de disputas políticas (Cunha 2009).

E, longe de ser tomado como um indicativo de desequilíbrio das condições de disputas nas lutas, aparece exatamente como demonstração de poder, tanto corporal, do lutador que aguenta os usos dessas substâncias, quanto político, por estar inserido numa família de chefes que possuem tais conhecimentos, posologias, enfim. A disputa política tomada vis-à-vis com a prática esportiva a partir daquilo que é o idioma de referência, a corporalidade: “a fabricação do corpo do lutador é uma das preocupações dominantes desta cultura” (Viveiros de Castro 1977: 185). (Figura 3)

Fonte: foto de Carlos Eduardo Costa (2008)

Figura 3:  Lutador sendo escarificado por seu pai. Na panela, as ervas cicatrizantes e fortificantes  

Enquanto a reclusão é o local da invisibilidade, de esconder o lutador para a produção doméstica, calcada em conhecimentos tradicionais que são objetos e objetivos de disputas faccionais, a luta ritual é seu oposto, momento maior de exibição dos jovens chefes no plano regional e de rivalidades políticas interétnicas. Enquanto os campeões kindotoko (“donos de luta”) são olhados atentamente em suas performances, estabelecendo dinâmicas diferenciais dos relacionamentos através das diversificadas formações torcedoras, a fabricação do corpo desses jovens deve ser escondida, retirada dos olhares dos outros, dos perigos que nessa fase liminar da vida a exibição pública engendraria por conta da feitiçaria (Vanzolini 2010).

Desse modo, no plano dos modelos, temos duas funções determinantes do olhar atreladas ao universo da luta - que aqui, via extensão etnográfica, cumpre a função do jogar visto anteriormente. Uma primeira, trata de um conjunto de conhecimentos técnicos e saberes específicos que devem ser escondidos dentro de casa, longe dos olhares dos outros ao colocar o jovem em reclusão para a fabricação de seu corpo. Dialeticamente a este processo de produção doméstica no plano da aldeia, a sincronia do cotidiano, está a exibição ritual no plano regional, quando os jovens chefes, campeões de luta, são apresentados durante os rituais em homenagens aos chefes falecidos, a diacronia que instaura uma continuidade na chefia. Esconder e exibir são demandas do olhar dos quais os lutadores, seus corpos e performances são alvos constantes. De maneira esquemática, é como se quanto mais tempo escondido dos olhares dos outros, melhores as condições de fabricação do corpo de um lutador que será exibido regionalmente.

Atentamos ainda para a importância do olhar, pois o egitsü, assim como outras ocasiões da vida nativa, é o momento de exibir no plano regional a continuidade dessa chefia fabricada no plano local. Os egitsü acontecem na época da seca (julho-outubro); são em torno de três a cinco por ano, dependendo de inúmeras condições. A dinâmica das alianças para a organização ritual estabelece o sistema de convites entre os “donos”, os anfitriões, os “aliados”, relacionados aos homenageados falecidos via parentesco, e os “convidados”, adversários na luta.10

Os times de luta são formados de acordo com as relações entre os anfitriões e os demais povos. Os anfitriões são os parentes próximos aos homenageados falecidos que organizam as atividades, em alianças estratégicas com outros povos ligados via parentesco, ficando os demais como convidados, adversários nas lutas. Os campeões locais, futuros chefes, são apresentados individualmente, lutam contra os campeões convidados um de cada vez, para dar visibilidade aos embates. Depois dessas primeiras 10-15 lutas, os lutadores comuns se enfrentam, com vários combates ocorrendo ao mesmo tempo.

Após esse confronto, os campeões anfitriões novamente são apresentados, enfrentam os campeões do próximo povo convidado, seguido das lutas coletivas até que tenham se defrontado contra todos os povos presentes. A luta é a mesma, para vencer é necessário agarrar a parte de trás da perna do oponente, segurá-lo por trás, ou aplicar algum golpe de arremesso.

Nesse ponto novamente cabe destacar o uso do termo práticas esportivas ante esporte, ainda que a luta ritual possa ser apresentada como uma disputa de alto rendimento. Trata-se dos limites do que seria o fair play (Brito, Morais e Barreto 2011), as igualdades de condições, as buscas pela paridade entre os atletas de cada modalidade. Em competições de luta, como o boxe olímpico ou o judô, ocorre os lutadores fazerem uma luta a mais que seus adversários. Geralmente, por conta do chaveamento, aquele que perde uma luta classificatória pode se recuperar na repescagem, ficando limitado às disputas pelo terceiro lugar, com algumas modalidades premiando dois lutadores com o bronze exatamente por conta desse caminho percorrido com uma luta a mais.

Na kindene, esse preceito está absolutamente distante, talvez por isso a necessidade estratégica que os anfitriões têm de se aliar a outros povos, ou mesmo a alta incidência de empates. Durante os egitsü, os campeões anfitriões chegam a fazer mais de dez lutas num único dia, ao passo que os convidados adversários fazem duas ou três, no máximo. Isso decorre, e voltamos à importância do olhar, por conta da visibilidade que se quer dar aos grandes campeões, exatamente esses que estão sendo feitos na reclusão, por famílias de chefes que têm conhecimentos diferenciados sobre usos de determinadas substâncias e procedimentos.

Seguindo, o olhar também se mostra determinante no desenvolvimento dos combates rituais, a relação entre jogar/olhar/torcer é operada através de seus principais personagens. Entre os lutadores, o ponto individual da busca pela glória, e os torcedores, para quem são transferidas as emoções no plano coletivo, a kindene oferece a figura mediadora dos nginiko. No caso, os nginiko (“olhadores”) não são árbitros, não influenciam nos resultados dos combates, mas têm decisiva participação nas disputas entre as torcidas. Por isso mesmo, essa posição central não deve ser ocupada por qualquer um, sendo lugar destinado aos mestres dessa arte marcial, acostumados com as técnicas e táticas, em suma, esses representantes têm o “olhar domesticado” de um corpo e pessoa fabricados para a luta (Costa 2021a).

A conexão promovida entre quem joga e quem torce é feita por esses especialistas do olhar. Fazem a mediação entre os lutadores que estão no momento efetivo da disputa e seus torcedores, que devido a toda a complexidade organizacional dos rituais egitsü são alterados a cada evento. O mesmo torcedor, que vibrou com a vitória de seu competidor numa luta, pode torcer contra ele dali a alguns dias quando a configuração organizacional, pautada predominantemente no parentesco dos chefes com os falecidos homenageados, for outra. É dessa maneira que a relação entre o jogar e o torcer, mediada pela figura do olhador, aqui e de fato agente síntese e etnográfico de um olhar jogado, cuja própria posição já remete ao ato de olhar, se mostra fundamental no desenvolvimento dos combates e das relações interétnicas.

Os resultados das lutas se medem não através de contagens sequenciais e cumulativas, mas de performances diferenciais, tanto dos lutadores que devem arremessar seus oponentes com força e sagacidade, como dos torcedores que devem gritar o mais alto a cada nova vitória. É aí que se mostra importante a figura do olhador, pois, dadas as diferentes formas de vitória, por arremesso ou por tocar a parte de trás da perna do oponente, a visibilidade é dificultada pela distância entre os lutadores e os coletivos torcedores formados. São os olhadores que chamam a vitória de seus competidores quando esta não é obtida de maneira inconteste.

Os olhadores, que ficam próximos dos combates, fazem a mediação entre a atuação do competidor, que deve demonstrar técnica apurada para vencer seu oponente, com a performance torcedora, que deve gritar alto para suprimir a possibilidade de dúvida do resultado quando este não é absolutamente conseguido. Então, ver a vitória exige extrapolar os sentidos e ser comemorada através dos gritos das torcidas. Muitas vezes cada torcida canta resultados diferentes para uma mesma luta; um olhador chama a vitória de seu lutador, ao que é acompanhado por sua torcida, enquanto o outro olhador também chama sua própria torcida para cantar a vitória de seu competidor. Essa suposta confusão também ocorre quando um time chama a vitória e o outro o empate, demonstrando essa fundamental relação entre jogar e torcer, mediada pelo olhar.

Como visto, no universo da luta alto-xinguana o primado do olhar é determinante, seja nos processos de tornar invisíveis os jovens corpos que estão sendo fabricados durante a reclusão, seja na posição central, na exibição pública que os lutadores assumem nos confrontos regionais, auge dos relacionamentos interétnicos, ocasião única em que os nove povos se encontram reunidos num mesmo espaço/tempo. Ou ainda, na dimensão mais própria ao entendimento da kindene enquanto uma prática esportiva, na continuidade estabelecida entre lutadores, olhadores e torcedores, nas alianças e rivalidades, associações e oposições que produzem e transferem o conjunto das emoções. (Figura 4)

Fonte: foto de Carlos Eduardo Costa (2011)

Figura 4: O time dos anfitriões. Campeões em primeiro plano  

Quando um lutador ganha ao tocar a parte de trás da perna de seu adversário, ou seja, não é um golpe de arremesso, é necessário que o olhador transfira sua visão para a torcida. Nesse ponto, os embates se prolongam, sendo comum que ambas disputem literalmente no grito qual venceu. Como não existem contagens, quando os resultados deixam margens para dúvidas, a disputa jogada se transfere/transforma numa disputa torcida, mediada pela olhada do olhador.

O que nos traz, finalmente, ao modelo das relações em sua expansão etnográfica em inúmeras práticas esportivas, desde que se estabeleça essa continuidade entre jogar/olhar/torcer e não se reifique posições arbitrárias. A luta entre os campeões e as maneiras como as torcidas reverberam seus resultados instaurando novos conflitos via o olhar, é uma demonstração etnográfica da dialética jogar olhado e olhar jogado.

Algumas considerações

Nessas breves considerações, em vista da ampliação das relações entre os descritores e os contextos etnográficos, reiteremos a importância dos modelos para tais conexões. Ou melhor, as relações entre o modelo das posições (profissionais, especialistas e torcedores), tratado comparativamente ao modelo das relações (olhar jogado e jogar olhado). De maneira que, apesar de ambos terem sido elaborados conceitualmente segundo etnografias no entorno do futebol masculino profissional, suas expansões, seguindo as trilhas das práticas esportivas, podem ser antevistas numa série de modalidades, inclusive nalgumas que não se constituem do universo euro-americano dos esportes de alto rendimento, apesar das disputas e rivalidades que engendram.

Desse modo, o principal contraponto etnográfico que trazemos, a luta alto-xinguana, apresenta sobremaneira tal acoplamento entre esses modelos. Num primeiro momento, é nítida a separação entre o universo dos lutadores (que seriam os profissionais), dos “olhadores” nginiko (os especialistas) e o variado conjunto interétnico formado a cada ritual (torcedores). A analogia entre as práticas poderia ser tomada também ao modelo das relações, pois, como vimos, a luta não reifica as separações entre o jogar e o torcer, mas através de uma posição mediadora estabelece as conexões entre jogar/olhar/torcer, promovendo continuidades entre eles. Até mesmo a disputa entre as comemorações das torcidas que se trava quando um resultado não é olhado de maneira decisiva.

Essa proximidade trazida ao nível dos modelos é mais um indicativo dos interesses desse texto em promover o descritor práticas esportivas. Não como oposição a esporte(s), mas, principalmente, devido aos múltiplos processos descortinados via etnografia que poderiam não ser tomados a partir desse guarda-chuva conceitual. Inclusive, por vezes, que nem mesmo recebe termo equivalente em idiomas nativos, como é o caso Kalapalo onde não se encontra palavra equivalente para esporte, ainda que nesse contexto se verifique a presença de esportes como o futebol (Costa 2021b) e outras práticas esportivizadas, usando ou não de instrumentos, como arco e flechas, dardos, petecas, bolas.

Pode-se ainda objetar que juntar numa mesma expressão “modelo” e “relações” traia de início o argumento, sobretudo se a ideia de modelo se prestar a sinônimo de sistema ou epistemologicamente for utilizada como recurso por meio do qual se operem “reduções progressivas” (Goldman 2008: 74). No intuito de corrigir essa observação façamos nossas as palavras de Marilyn Strathern:

“A relação como modelo de fenômenos complexos, portanto, tem o poder de conjugar ordens ou níveis dessemelhantes de conhecimento, sem deixar de conservar a sua diferença.” (Strathern 2014: 279)

Ao discutir as propriedades presentes no seu conceito de “(r)elação”, a autora estabelece a imanência das conectividades ou a irredução de suas possibilidades, obedecendo a propriedades holográficas onde “cada uma de suas partes contém informações sobre o todo e há informações sobre o todo envoltas em cada uma de suas partes” (idem: 278). E como segunda propriedade mostrar que relação “precisa que outros elementos a completem, visto que sempre há de se perguntar entre quais elementos as relações se estabelecem” (idem: 279), conferindo sua complexidade e tessitura contextual ao estabelecer relações entre coisas ao mesmo tempo que tomando coisas como relações.

Portanto, devemos reiterar que tais modelos não são nem modelos reduzidos, herméticos ou fechados em si mesmos, nem prisioneiros das paisagens que originariamente motivaram suas formulações. Poderíamos ainda adjetivá-los como modelos de passagem, pois estabelecem o primado das relações (quer de posições, quer de instanciações sensíveis) como fatores de apreensão etnográfica, daí noções como “sistema” e “estrutura” terem sido preteridas pelas alegorias do jogar e, sobretudo aqui, do olhar metaforizado em torcer.

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1 Luiz Henrique de Toledo trabalha com temas esportivos na antropologia desde os anos 1990 e orienta pesquisas no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal de São Carlos, Brasil, desde 2002. Carlos Eduardo Costa realiza pesquisas no pluriverso das relações interétnicas no Alto Xingu, focando especificamente as lutas corporais promovidas nos egitsü, ciclo ritual pós-funerário de homenagens aos grandes chefes. Líderes do grupo de pesquisa LELuS (Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e Sociabilidade) - UFSCar/CNPq.

2Indícios dessa apropriação da obra de Clastres, sugerida pelo filósofo Bento Prado Júnior ao tratar de aspectos da obra do autor, podem ser verificados em Leirner e Toledo (2011).

3A tensão entre a dimensão lúdica, supostamente desinteressada e historicamente determinada pela ordem cultural pré-moderna e o aspecto competitivo das práticas esportivas, fenômeno constitutivo das sociedades burguesas industriais, pode ser observada oblíqua ou diretamente na literatura desde Caillois (1988 [1950]), Huizinga (1993 [1938]), Veblen (1965), seguidos por Elias em colaboração com Eric Dunning (1992 [1966; 1971]), Guttman (1978), Bourdieu (1983 [1978]), Hobsbawm (1989), Gay (2001), entre outros, com nuanças importantes de interpretação. Perspectivas mais etnográficas podem ser observadas, por exemplo, em Bromberger, Hayot e Mariottini (1995).

4O primeiro consta em Toledo (2002) e o segundo enunciado em Toledo (2019).

5Conforme sugere Guedes (2003).

6É preciso acrescentar que é comum torcedores praticarem as inúmeras formas de se jogar futebol (amador), o que os faz aproximar de alguma perspectiva da prática profissional. Jogadores podem ingressar na carreira de comentaristas esportivos ou na vida administrativa do futebol, que também evoca a ideia de permutações presente no modelo das posições. Todas essas permutas compõem a dinâmica discutida a partir desse modelo evocado aqui somente em suas linhas mais gerais.

7Categorizar e nomear torcedores é uma problemática terminológica contextual importante. Alguns autores distintamente (Roversi 1990; Toledo 1996, 1999, 2019; Hourcade 1998; Giulianotti 2002; Teixeira 2004; Sodo 2010; Hollanda e Aguilar 2017, entre outros) já propuseram taxonomias ou classificações para dar conta das transformações comportamentais focadas a partir da figura genérica do torcedor, de onde se confrontam categorias nativas, de senso comum e midiáticas. Aqui a questão é, digamos, anterior às formas de torcer, pois estamos lidando com o verbo torcer na sua derivação substantiva e o reposicionando num plano mais abstrato como metáfora de olhar para alcançar os efeitos de expansão no modelo das relações.

8O Alto Xingu é um complexo regional multiétnico e multilinguístico descrito pelas relações entre nove povos: Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nahukua (karib), Yawalapiti, Mehinaku, Wauja (aruak), Kamayurá e Aweti (tupi). Esses povos vivem num contexto de interdependência ritual, alianças matrimoniais, trocas comerciais que indicam suas proximidades e diferenças. A luta corporal kindene é a maneira primordial de relacionamento interétnico, função das transformações entre guerra e ritual - tanto no pensamento nativo como nas abordagens conceituais. Trabalhos em todos os povos, e inúmeras temáticas, já foram realizados, de onde destacamos duas coletâneas para ampliar a visão regional: Coelho (1993) e Franchetto e Heckenberger (2001).

9O estatuto de “homenagem” no Alto Xingu, especialmente aos chefes, tem como referência os trabalhos de Guerreiro (2012, 2015).

10O egitsü é um ritual pós-funerário em homenagem aos chefes falecidos - mais conhecido como kwarup, na língua tupi. Devido a sua suntuosidade, não seria possível descrevê-lo em detalhes dentro de nossos limites, mas é um conjunto de festas com ornamentação das efígies que simbolizam os mortos, cantos, danças, flautas, discursos rituais realizados entre os nove povos que fazem parte desse complexo regional. A luta corporal kindene é o ápice do evento e atração mais aguardada. A bibliografia sobre o egitsü é extensa e tematicamente variada: Agostinho (1974), Carneiro (1993), Bastos (1989, 2001), Junqueira e Vitti (2009), sobre as origens mitológicas, relações interétnicas e principais aspectos organizacionais. Guerreiro (2012, 2015) e Fausto (2017), sobre a relação do ritual mortuário com a chefia. Ainda Costa (2013), especificamente sobre a luta. O vídeo da Associação Yawalapiti Awapa sintetiza alguns dos principais acontecimentos. Disponível em https://youtu.be/VYuRFl5FJh0 (última consulta em janeiro de 2023).

Recebido: 21 de Setembro de 2020; Aceito: 23 de Novembro de 2021

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