Introdução
A mobilidade é uma característica dos povos andinos, seja por suas atividades laborais diárias, seja por razões cerimoniais. Diferentes tipos de rotas e caminhos mostram a complexidade de noções associadas a deslocamentos espaciais e à própria construção do espaço nos Andes (Cruz 2012). Os intercâmbios inter-regionais de bens, conhecidos como trueques (trocas), feitos através de caravanas de lhamas desde tempos pré-hispânicos, raros hoje em dia mas ainda vigentes em algumas partes dos Andes (na Bolívia cf. Gabelmann 2015), são um exemplo dessa capacidade de deslocamento. Nesse caso, pastores puneños (da puna ou altiplano) saem das altitudes andinas mais extremas rumo à costa, intercambiando com moradores de diversos pisos ecológicos artigos tecidos manualmente com lã animal (cobertores e peças de vestuário) e carne seca por cereais, frutas e outros víveres inexistentes nas alturas.1
Em Andamarca, pequeno povoado andino ao sul do departamento de Ayacucho (Peru), de população2quechua-hablante bilíngue (falantes de espanhol e de quéchua), a qual se dedica em sua maioria à agricultura e ao pastoreio, não é diferente, como bem pude notar durante a pesquisa etnográfica de longa duração que lá realizei entre 2009 e 2011.3 Ainda que muitas vezes a imagem de povos agricultores seja associada à sedentariedade,4 é preciso enfatizar que os andamarquinos deslocam-se diariamente não apenas pelo fato de que muitos também são pastores - atividade facilmente associada à mobilidade -, mas porque a própria agricultura tal como é praticada localmente requer certo movimento. Uma de suas características mais importantes e que contribui para isso é que os terrenos têm pequenas extensões5 e são altamente distribuídos pelo território andamarquino.
Assim, raramente uma família tem todas as suas roças concentradas numa mesma região, estimulando um intenso deslocamento diário, conforme pude notar logo nos primeiros meses em Andamarca. De manhã cedo avistava muitas pessoas apressadas saindo do povoado a pé em direção ao campo.6 Durante o dia, o silêncio tomava conta das ruas a maior parte do tempo e era raro encontrar os pequenos comércios locais (armazéns e restaurantes) permanentemente abertos. A monotonia só era quebrada entre o final da tarde e as primeiras horas da noite, quando a maioria voltava das roças e, finalmente, as ruas recobravam vida. Parte do comércio e outros serviços abriam suas portas e outras atividades eram iniciadas (reuniões, assembleias, etc.). Rapidamente percebi que o ritmo da vida andamarquina era fortemente ditado pelo trabalho no campo e que a melhor forma de conviver com os habitantes era fazendo parte dessa rotina: ir ao campo sempre que possível, participar de atividades coletivas ligadas ao ciclo agrícola e à vida comunitária, como herranzas (marcação de gado), faenas (prestações de trabalho coletivas que mobilizam a população adulta para limpar canais de irrigação, abrir caminhos, construir estradas, etc.) e assembleias, além das mais diversas celebrações. Dessa forma, foi possível percorrer paisagens locais a pé com certa frequência, algo que faz parte desse modo de vida.7
A agricultura de pequena escala é destinada ao autoconsumo e realizada no valle (vale), ao longo de rios e encostas de montanhas, onde também são criadas algumas cabeças de gado leiteiro. A ecologia do vale contrasta enormemente com a de outro espaço igualmente importante localmente, a saber, a puna (altiplano). Contraste, aliás, presente não apenas na literatura antropológica andina (cf. Ossio 1992), como também aos olhos dos andamarquinos.8 Na puna estão os pastos destinados ao pastoreio de médios e até grandes rebanhos de camelídeos, ovinos e bovinos. Esse contraste não diz respeito somente a dois tipos de atividades (agricultura e pastoreio) e a altitudes diferentes - o vale ao redor de 3500 metros de altitude e a puna ultrapassando os 4000 -, mas também a formas diferentes de relação com animais, plantas e outros seres que compõem tais ecologias.
A divisão entre vale e puna organiza o território andamarquino em terrenos cultiváveis (privados) e pastos para pastoreio (coletivos), classificação que orienta a vida coletiva. Todo o território agrícola é coberto por andenerías, plataformas agrícolas pré-hispânicas acompanhadas de um sistema de irrigação igualmente antigo. A água é armazenada, canalizada e em seu momento propício é distribuída entre todos os moradores por prefeitos de água (chamados de yaku alcaldes), os quais fazem parte da Comisión de Riego. O vale é considerado o espaço domesticado por excelência: onde está o povoado, onde se pratica a agricultura, onde vacas leiteiras vivem presas sob cuidados humanos. Já os pastos da puna são de propriedade coletiva, administrados pela Directiva Comunal, o que significa que cada família andamarquina tem o direito de ocupar um dos 18 setores em que estão divididos, a depender de alguns fatores que visam o uso equilibrado dos terrenos entre todos. Assim, a puna constitui o espaço salvaje, onde vivem animais salvajes (pumas, raposas, vicunhas e condores) e outros (camelídeos, ovinos e bovinos) que podem estar mais próximos de um estado asselvajado por viverem soltos sem conviver permanentemente com os humanos - como os touros bravos que descem da puna todos os anos para a corrida que acontece durante a Festa da Água (cf. Caballero 2019b).
Tanto animais quanto lugares são contrastados localmente, de forma geral, como “bravos” e “mansos” - estes estão acostumados com a presença humana por oposição aos primeiros, que podem fugir (no caso dos animais) ou reagir e atacar fatalmente os humanos. Isso varia em intensidade, dependendo do lugar onde nascem, do espaço onde vivem e onde circulam, aspetos que marcam a profundidade da convivência entre seres e territórios diferentes. Convivir (conviver) é uma noção muito cara aos andamarquinos e envolve formas e caminhos para acostumbrarse (acostumar-se), noção que evoca uma relação de pertencimento a um lugar quase num sentido consubstancial, enfatizando a construção do corpo, a incorporação de certas forças, pode dizer-se, bem como a compreensão de algumas práticas e noções. O trânsito, o contato e a convivência são formas de desenvolver relações com seres diversos, as quais podem variar em intensidade. Até mesmo os humanos que vivem permanentemente na puna podem ser considerados selvagens. Moradores de localidades vizinhas de altura (sinônimo de puna) que se dedicam somente ao pastoreio permanecem na puna o tempo todo - diferentemente dos andamarquinos -, sendo por isso chamados pejorativamente pelos andamarquinos de sallqas (palavra quéchua que significa salvaje, ermitãno, chúcaro, índio), pois vivem num espaço escasso de vida humana - “asocial” em oposição ao vale, este “social” por excelência, um antigo contraste conforme já enfatizara Juan Ossio (1992) a partir de sua pesquisa etnográfica realizada em Andamarca nos anos 1970 -, embora repleto de vida não humana, algo sempre presente para os andamarquinos. Esta é uma distinção fundamental para o argumento deste trabalho, a qual retomaremos adiante.
No entanto, tudo isso ainda não daria conta de descrever a mobilidade nesse contexto, pois talvez deixasse implícito de alguma forma que é fundamentalmente o trabalho que faz com que as pessoas se movam em Andamarca. É certo que as atividades ditas campesinas (chamadas assim todas aquelas que têm relação com o campo) demandam deslocamento, mas há outras formas importantes de mobilidade, como o trânsito constante de pessoas e coisas para a costa peruana, principalmente para Lima. Muitos têm família na costa e vão com certa frequência para a casa dos parentes por motivos diversos: em busca de serviços de saúde, trabalhos temporários, estudos, compras, reuniões com diferentes instituições estatais, ajudar os familiares, entre outros.
Nas férias escolares é comum os jovens visitarem seus familiares nas cidades da costa, período oportuno para exercerem alguma atividade informal cujos rendimentos custearão suas roupas e livros durante o ano. Assim, podem começar a se familiarizar com o modo de vida urbano e a tecer suas próprias comparações com a vida em Andamarca. No entanto, tudo isso ainda não daria conta de descrever a mobilidade nesse contexto, pois talvez deixasse implícito de alguma forma que é fundamentalmente o trabalho que faz com que as pessoas se movam em Andamarca. É certo que as atividades ditas campesinas (chamadas assim todas aquelas que têm relação com o campo) demandam deslocamento, mas há outras formas importantes de mobilidade, como o trânsito constante de pessoas e coisas para a costa peruana, principalmente para Lima. Muitos têm família na costa e vão com certa frequência para a casa dos parentes por motivos diversos: em busca de serviços de saúde, trabalhos temporários, estudos, compras, reuniões com diferentes instituições estatais, ajudar os familiares, entre outros. Nas férias escolares é comum os jovens visitarem seus familiares nas cidades da costa, período oportuno para exercerem alguma atividade informal cujos rendimentos custearão suas roupas e livros durante o ano. Assim, podem começar a se familiarizar com o modo de vida urbano e a tecer suas próprias comparações com a vida em Andamarca.
A mobilidade espacial não só é um componente fundamental do modo de vida andamarquino, como ainda muito praticada na sua forma mais antiga: a pé. Percorrer o território de Andamarca caminhando é algo ainda muito frequente nos dias de hoje. É assim que se aprende a andar sobre terrenos inclinados e arenosos, superfícies pedregosas e resvaladiças; a desviar habilmente de espinhos; a subir e descer altos muros de pedras; a cruzar terrenos alagadiços carregando peso nas costas; enfim, formas de desenvolver diversos sentidos e conhecimentos sobre matérias, superfícies e texturas do ambiente circundante, ocasiões propícias para “educar a atenção” e desenvolver um corpo apto para se engajar nessa paisagem específica (Ingold 2015a, 2015b). O próprio modo de pisar o chão já revela esse aprendizado: pisadas rápidas, certeiras, sin miedo, distribuindo bem o peso do corpo por todo o pé se a intenção é não afundar na lama; assim costumavam me aconselhar meus companheiros andamarquinos de caminhadas.
Trata-se de um tipo de conhecimento derivado da experiência corporal/sensorial na paisagem andina, repleta de precipícios e terrenos inclinados, para o qual está atenta Cristina Fontes (2016, 2018). Em sua pesquisa na comunidade de Ocumazo, zona rural no norte da Quebrada de Humahuaca (noroeste argentino), a autora destaca o “pisar fuerte” como capacidade dos habitantes locais de “ir encontrando durante la marcha una sucesión de apoyos estables que le permiten conservar el equilibrio en cada paso” (2018: 66), uma habilidade essencial para percorrer espaços difíceis de transitar, onde qualquer descuido pode resultar em grave acidente. Da mesma forma, muitos andamarquinos precisam deparar-se com riscos semelhantes nas suas lides diárias, principalmente aqueles que percorrem distâncias maiores e alcançam a puna.
Importante notar que não estamos falando de qualquer paisagem e sim de “[un] paisaje vivificado” ou “viviente” (Arnold e Yapita 1996; Martínez 1976; Gose 2001), ou um “espacio vivo”, “una alteridad que interpela permanentemente al sujeto” (Vilca 2009: 246). Deslocar-se nessa paisagem envolve relações de intersubjetividade entre o caminhante e o solo por onde ele transita, entre ele e os animais e as plantas que encontra pelo caminho, além dos não humanos poderosos - Pachamama (mãe terra), Apus (montanhas poderosas), ancestros (antepassados) e outros -, cuja proteção deve ser invocada se o que se deseja é ter uma viagem exitosa, pois diferentes infortúnios sempre podem surgir. Afinal, são seres ambivalentes que podem enojarse (ficar com raiva) facilmente com algum caminhante desrespeitoso, o que pode oferecer ainda mais riscos. Por isso, pagapas e tinkapas (oferendas de coca e cigarros, libações e aspersões) são oferecidas a eles continuamente como um convite para beber e uma forma de pedir proteção e pedir permiso (pedir licença) para transitar por diferentes espaços, negociação necessária para aplacar qualquer possibilidade de descontentamento, um dos principais aprendizados que o caminhante deve sempre seguir.
O objetivo geral deste texto é destacar o sentido positivo de andar para as populações andinas como forma de conhecer, aprender e interagir. Assim como já fez Pablo Cruz através de sua pesquisa nos Andes meridionais bolivianos, mostrando-nos que é “durante sus desplazamientos que los hombres transmiten y construyen las explicaciones ontológicas, se acercan a su historia y toman cuenta de las fuerzas de los lugares y de las entidades que conforman el mundo” (2012: 247).9 É certo que as caminhadas rotineiras podem proporcionar (maus) encontros, surpresas e obstáculos, além da possibilidade de ver certas coisas que somente podem ser vistas quando se está sozinho. No entanto, empreender uma viagem a pé buscando especialmente desafios significa multiplicar os riscos, sobretudo quando se está em busca de lugares vírgenes (virgens),10 onde um humano jamais pisou. Esses são os lugares mais poderosos, segundo os andamarquinos, e por isso mesmo praticamente inacessíveis, ou seja, lugares selvagens e perigosos na puna, áreas desertas, territórios de animais silvestres e de outros não humanos.11
Mas, afinal, quem buscaria tais lugares, longínquos e perigosos? E por quê? Personagens centrais no que se refere à fertilidade e prosperidade entre os andamarquinos mostram disposição para isso: são os danzantes de tijeras, protagonistas da Fiesta del Agua, que dançam para celebrar e bendizer cada ano agrícola que inicia em agosto. Para que haja uma boa colheita, com sua dança eles fazem uma sorte de oración, alegrando santos padroeiros e outros seres poderosos, rogando por más agua, más lluvia como me disse Chuspicha, um grande amigo, célebre e experiente danzante.
A contratação desses bailarinos é uma responsabilidade reservada àqueles que gastam maior quantidade de água para irrigar seus terrenos. Esses são os cargontes (pessoas que pasan cargos) de Danzaq (assim chamados os danzantes em quéchua), cargo12 destinado a pessoas mais maduras, das quais espera-se que já tenham recursos para assumir um compromisso financeiramente dispendioso - por isso mesmo estima-se que terão mais terrenos e/ou animais, gastando mais água para mantê-los -, visto como uma retribuição para todos, humanos e não humanos, pelo uso dessa água.
Danza de tijeras: competição e resistência
A danza de tijeras é originária da região dos departamentos de Ayacucho, Apurímac, Huncavelica e norte de Arequipa, parte sul dos Andes centrais do Peru, cuja altitude varia entre 2500 e 4000 metros. Essa região é denominada de “trapecio andino” e coincide com o território ocupado pela Confederación Chanca até a primeira metade do século XV (Arce Sotelo 2006). Conforme o antropólogo peruano Rodrigo Montoya Rojas (2010: 212), a danza de tijeras teria relação com “el movimiento indígena de resistencia cultural y política conocido como Taqi unquy [enfermedad del canto] en 1565”.13 O Taqi unquy tinha como um de seus propósitos reivindicar a volta das “wak’as” (“huacas” ou “guacas”), lugares poderosos e sagrados, demonstrando profunda relação com a prática ritual nessa paisagem vivificada. Com a chegada dos colonizadores, que viam os rituais celebrados aos seres e lugares sagrados do panteão andino como algo demoníaco, as divindades locais teriam emudecido, fazendo com que os habitantes locais pensassem que talvez elas tivessem fugido ou até morrido (Montoya Rojas 2010).
Performada individualmente, a danza de tijeras se caracteriza por ser uma dança ritual de competencia (competição), ao longo da qual cada bailarino mostra publicamente duas formas muito diferentes de dispor, digamos, de seu corpo: uma delas se dá desde o início através de passos sofisticados e sutis que ganham vida e velocidade na medida em que se movem ao ritmo de uma harpa e um violino.14 Com uma das mãos o bailarino maneja um terceiro instrumento musical fundamental para a performance: um idiófono metálico em forma de tesoura cujo som é produzido pelo choque das duas lâminas de metal não cortantes (Arce Sotelo 2006). O tilintar das tesouras, segundo os andamarquinos, remete ao ruído das águas. A outra forma, já no final da competição, revela uma espécie de provação do corpo, explícita através de arriscadas acrobacias e desafios físicos: deitar sobre espinhos e pregos, caminhar sobre brasas, cortar-se com vidros, suportar grande peso, perfurar o corpo com objetos pontiagudos sem sequer sangrar. Este, mais do que qualquer outro momento anterior da competição, é precisamente quando os poderes dos danzantes se tornam mais explícitos. Diante de corpos tão resistentes,15 que não demonstram sentir dor, espetadores na plateia impressionam-se e dizem que isso no es humano! A competição encerra-se com a descida dos danzantes de uma das torres da igreja, um momento muito esperado pelo público, pois consolida o destaque de um dos artistas. Ao descer por uma corda estendida até ao chão, cada competidor deve ousar nas acrobacias, destacando-se aquele que apresentar a coreografia mais desafiadora e criativa. Entretanto, é preciso frisar que nessa competição a vitória nunca é algo claro, inequívoco, sendo geralmente objeto de controvérsias. Em festas como essas, os aplausos e os gritos dos espetadores indicam quem é o melhor bailarino, daí a importância das torcidas. Não há jurados ou avaliadores para declarar um vencedor. Assim, ao preguntar aos espetadores quem ganhou a competição, diferentes respostas podem surgir. Nota-se que o que anima os andamarquinos é, sobretudo, a competição em si, a qual não é finalizada por uma declaração oficial marcando as posições de vencedor e perdedor, sendo a controvérsia acerca de quem ocuparia tais posições aquilo que cumpre um papel fundamental na disputa em sentido amplo, animando sobremaneira a festa.
Muitos danzantes começam aprendendo a arte com seus pais ou outros familiares, pois não são raras as famílias que se destacam na danza de tijeras ao longo de várias gerações. É o caso de Froilán Ramos, cujo nome artístico é Chuspicha (diminutivo de “mosca” em quéchua), um famoso maestro (professor) andamarquino que descende de uma reconhecida família de danzantes. São artistas como ele, destacados e experientes, que se tornam maestros, bailarinos habilitados a ensinar a danza. Contudo, diz-se que não basta alguém querer dançar, senão que os Apus escolhem os bailarinos, isto é, pode-se aprender a danza, porém, para chegar a ser um danzante exitoso e um maestro é preciso percorrer um longo caminho que envolve a vontade de seres outros.16 A danza de tijeras expressa uma relação tão estreita com os Apus que talvez possamos dizer que aquilo que se herda, no caso daqueles que descendem de outros danzantes, seja parte dessa relação que não começa com o artista que está sendo iniciado, mas com seus ascendentes. No caso de jovens que aprendem com seus professores, talvez isso também possa acontecer quando demonstram muito comprometimento, aptidão e habilidade, tornando-se discípulos destacados.
Para que estes corpos estejam aptos a praticar a danza de tijeras com sucesso, Chuspicha nos fala que é preciso que eles sejam transformados, ou nas suas palavras, que “el cuerpo del danzante no está completo sin los pactos con el Diablo, los Apus y la Sirena”. A respeito dessa incompletude, explorada mais detalhadamente em Caballero (2019a), nos interessa um importante aspeto para o argumento em questão neste texto, a saber, que o encontro com os viventes poderosos que transformam esse corpo, ou que o completam, não acontece em qualquer lugar, mas em lugares salvajes, liminares, perigosos e, por isso, mais poderosos. Um deles são as cataratas, reconhecidamente importantes para os danzantes não apenas em Andamarca como também em outras partes dos Andes; outro lugar, segundo Chuspicha, é a puna, o espaço mais selvagem na ecologia andamarquina. Tampouco qualquer lugar na puna, segundo ele a preferência é por aqueles mais remotos, mais inacessíveis, onde é mais difícil de se chegar e, por isso, são provavelmente lugares “onde ninguém nunca pisou”, lugares vírgenes - conforme veremos na próxima seção.
A trajetória dos danzantes é, portanto, marcada por um contínuo exercício de coragem, ou como diz Chuspicha: “el danzante debe estar acostumbrado con el miedo”. A consagración, ritual considerado como a iniciação dos danzantes andamarquinos, é um grande desafio, provavelmente o primeiro encontro do bailarino com o Diabo e/ou com a Sereia, quando o iniciante será apresentado aos seres do inframundo (ukhu pacha). Nessa ocasião, o bailarino deve mergulhar na catarata Puzapaqcha, a mais importante de Andamarca para os artistas locais. E lá, nas profundezas do mundo aquático, onde vivem seres diversos, vive também o Diabo, que pode fazer o aprendiz tornar-se um exímio danzante de tijeras. Tal experiência é capaz de propiciar uma importante transformação: de inexperiente danzante a bailarino autorizado a iniciar sua vida na arte da danza de tijeras após adquirir certas habilidades e potências justamente através dos seres que encontra - e ainda que seja necessário muito esforço para mantê-las ativas e vigorosas ao longo da vida, renovando-as periodicamente, parecem estar tão profundamente entranhadas em seu corpo a ponto de ser quase impossível desentranhá-las totalmente, caso o danzante assim o desejasse.
De certa maneira, isso nos remete à própria noção de pessoa nos Andes segundo Alison Spedding (2008: 98), que considera que o “individuo nunca actúa de manera totalmente separada de las personas más cercanas a él”. Em outras palavras, a “persona que se encuentra en esta red de acciones vinculadas no es simplemente un cuerpo, y tampoco es una mente única que piensa por sí sola” (Spedding 2008: 99). Os andamarquinos dependem uns dos outros para existir, e todos dependem da terra, das águas, dos animais, dos ancestrais. Mas no caso do danzante, o que se quer enfatizar é que essas “vinculações” são ainda mais profundas e mais radicais. Uma das principais causas dos infortúnios (doenças, acidentes, etc.) dos danzantes é o incumprimento de tais pactos. Todavia, ainda que esses sejam devidamente cumpridos, os danzantes sabem que os seres que lhes deram poderes têm o direito de levá-los um dia como parte de tal acordo.
A ideia de pactuar com seres poderosos para alcançar sucesso aparece em outras regiões dos Andes17 (Absi 2005; Taussig 2010), e entre os andamarquinos é algo fortemente associado às aptidões extraordinárias de músicos, cantores e dançarinos em geral. Diz-se que todos esses artistas fazem pactos, sobretudo com a Sereia. Assim como se fala também de instrumentos musicais que devem passar a noite ao lado de uma catarata para que sejam devidamente afinados pelos próprios seres das águas (Arce Sotelo 2006). A propósito, a relação entre água e música aparece em diversos trabalhos da região andina (Arnold e Yapita 1998; Stobart 1996, 2006; Cruz 2012), nos permitindo pensar nos instrumentos musicais como uma espécie de extensão das próprias cataratas - ou das águas de forma mais geral - artefatos também “feitos” por elas e que, do contrário, não teriam a mesma sonoridade, sendo as próprias sereias fazedoras de sons.
Caminhos que desafiam
Os pactos dos danzantes com o Diabo nas cataratas são alvo de muitos rumores. Tanto é assim que esse é um espaço muito associado a tais artistas. Em Andamarca, sabe-se que Puzapaqcha, a catarata local mais grandiosa, é a mais importante para os danzantes. A cachoeira fica num lugar de difícil acesso bastante preservado e escondido, entre duas e três horas de caminhada do povoado, o que ajuda a manter o poder dos lugares bravos que podem tornar-se mansos na medida em que o trânsito de humanos se intensifica. Quando isso acontece, conforme Chuspicha, proporciona-se uma chance de esquecimento por parte dos caminhantes da necessidade de oferecer aos seres que ali vivem e que são, ao mesmo tempo, os próprios lugares - o que poderia ser descrito como uma espécie de banalização dessa paisagem. Mas Chuspicha nos fala de outros lugares menos conhecidos, entre leigos quiçá, onde o danzante pode conseguir força e poder, reforçando seus pactos: são os lugares virgens, os mais selvagens entre os selvagens, por assim dizer. Através de tonturas, dor de cabeça e outros mal-estares físicos ele diz ser possível sentir a grandiosa potência do Diabo bem aí nesses lugares.
Para alcançar seus objetivos os danzantes necessitam se sacrificar, noção chave para os andamarquinos que costumam dizer: “el que no se sacrifica es flojo”, isto é, preguiçoso, o que indica que esse terá menos possibilidades de ser exitoso em seus afazeres. Tal noção é muito empregada para se referirem ao trabalho, servindo como um diferenciador fundamental entre as atividades agrícolas e aquelas ligadas ao pastoreio, ou melhor, entre eles, que desenvolvem as primeiras e também as segundas, e outras populações andinas que se dedicam somente às segundas, como os sallqas mencionados acima - da perspectiva dos andamarquinos a agricultura requer notável esforço e sacrifício, diferentemente do pastoreio, elementos fundamentais do “trabalho de verdade”. Para além de uma conotação moral, essa noção está relacionada a uma dimensão corporal: para os andamarquinos o trabalho por excelência faz o corpo suar, cansar, requer esforço físico intenso de tal maneira que essa transformação corporal é indicativa, de alguma forma, de que esse corpo se sacrificou (Caballero 2018a). Neste processo, sugiro que o corpo libera parte de sua força vital, ou como dizem frequentemente os andamarquinos, de seu ánimu, energia presente em humanos, animais, plantas e até certas coisas que nos pareceriam completamente inanimadas.
Segundo os andamarquinos, tudo o que está em contato estreito com a pessoa ou que convive intensamente com ela (suas ferramentas de trabalho, seu chapéu, as roupas que estão em contato direto com a pele, etc.), carregam uma porção de seu ánimu. Esta noção se assemelha ao “animu” da forma como aparece no trabalho de Catherine Allen (2008: 69) nos Andes peruanos, como uma “esencia espiritual”, conceito muito próximo à alma segundo a autora. Ao passo que para Alison Spedding (2008) o “animo” é mais um dos componentes da “persona andina” - que está composta de corpo, alma e animo (ou ajayu) - e “representa la fuerza vital de la persona y es lo que realmente muere cuando uno muere, ya que el alma sigue existiendo” (2008: 94). Conforme Spedding, por um lado, o “animo” se parece à alma, mas por outro, se parece mais com a mente, uma vez que está relacionado com “la voluntad y el pensamiento”, expressando-se através da capacidade de tomar decisões e de realizar ações (2008: 92). Nota-se, assim, certas conexões entre tais noções e o que os andamarquinos chamam de ánimu.18
De acordo com o que já propus anteriormente alhures (Caballero 2018a, 2018b), não apenas o trabalho por excelência é realizado com esforço pelos andamarquinos, mas as danças coletivas também. A graciosidade e a beleza da dança devem-se ao ritmo intenso e bem marcado dos passos, ao movimento vigoroso dos corpos e ao semblante alegre dos bailarinos. Ao escutarem a palavra aire (ar, vento), todos aqueles que dançam devem se esforçar para que todo o seu corpo se mova energicamente, contagiando o público espetador. Pode-se dizer, ainda, que dançar dessa forma se relaciona à necessidade que seus destinatários têm de ser contagiados por seu ritmo e alegria, uma vez que a dança deve alegrar e hacer bailar também os santos, os Apus, a Pachamama, como disse Chuspicha. Da mesma forma que a música deve ser executada com vigor, característica necessária para que seja escutada por aqueles a quem está destinada, conforme Holly Wissler (2010) destaca em seu trabalho na comunidade andina peruana de Q’eros.19
Durante a jornada pela puna, um esforço corporal similar ao exigido pelo trabalho e pela dança toma o corpo do danzante, considerando que essa caminhada é também um exercício de sacrifício cujo propósito, segundo Chuspicha, é resistir mesmo que seus sentidos o convidem a desistir o tempo todo. Ao longo da caminhada o danzante vai deixando um pouco de si, de seu suor, que nada mais é do que uma porção de sua essência vital, parte de seu ánimu, tornando-se ao mesmo tempo uma condição para (re)fazer seu corpo. De modo semelhante ao trabalhador que se sacrifica na roça para gerar as condições ideais de surgimento de novas vidas, o danzante percorre caminhos que o levarão a (re)fundar seu corpo. Com respeito ao esforço, Belaunde (2006: 216) propõe uma leitura criativa ao fazer referência ao suor como “vía de nacimiento” de cultivos e de crianças entre povos amazônicos. Entre os Yine da Amazônia peruana, por exemplo, “[p]ara que la guerra contra el feto sea un éxito, tanto la parturienta como la mujer que la ayuda deben hacer fuerza y sudar” (Belaunde 2008: 127).20 A autora nota, ainda, quanto o êxito de determinadas tarefas cotidianas está relacionado diretamente ao esforço, daí a importância do suor como sinal de que o esforço ocorreu. No caso do danzante, se trata do nascimento e da (re)criação de um corpo específico; seu suor marca a força liberada e, ao mesmo tempo, a resistência incorporada. Nessa jornada, o esgotamento e o consumo simultâneo de substâncias - necessárias para fazer oferendas durante a viagem - proporcionam as condições para que o danzante embarque num estado alterado que coloca seu corpo em uma situação limite, semelhante à experimentada durante a própria competição com outros danzantes. O êxtase e a exaustão alimentam simultaneamente a vontade do danzante de resistir, e esta é precisamente a chave para seu sucesso: fazer com que este corpo aprenda a resistir.
A viagem é importante desde seu início por situações privilegiadas de interação com essa paisagem viva. As manifestações de diversos seres (através do vento, da chuva, do granizo, etc.) por onde passamos, muitas delas convites à interação, sinais de boas vindas ou expressões de desgosto (daqueles que estão enojados, incomodados), não nos deixam indiferentes às suas presenças, impondo-se diante de nós. Por conseguinte, devemos pedir permiso através das oferendas a cada novo território pisado, a cada novo Apu que avistamos, ainda que não saibamos seu nome, lembrando-nos sempre da necessidade de seu apoio para termos uma boa viagem. Por isso as interações devem ser bem conduzidas desde o princípio, caso contrário granizo pode cair do céu repentinamente como reação de uma lagoa que se aborreceu com aquele que, desavisado, atirou-lhe pedras. E como expressão de desaprovação mais forte ainda, te puede dar aire, te puede dar agua, ou te puede agarrar la tierra. Assim dizem os andamarquinos ao perceber que alguém está com o corpo muito vulnerável ao vento durante uma caminhada pelo campo, ou quando se adentra uma lagoa ou certos lugares sem fazer pagapas, situações em que é possível sofrer algum daño por parte desses seres ambivalentes.21 Tais dãnos, conforme fui aprendendo ao longo de muitas caminhadas, se expressam sob a forma de dores de cabeça, mal-estares diversos e até doenças na pele e nos ossos, cuja origem está na ação da água, da terra, do vento, das montanhas. Alguns deles são irreversíveis, outros podem ser tratados e até curados por especialistas, curanderos, brujos, xamanes, através de oferendas específicas.
As inumeráveis montanhas, das quais apenas é possível avistar as silhuetas quando o sol começa a esconder-se no final da tarde, as gradações de dourado da vegetação seca e seus vários tons de verde durante a época de chuvas, além dos incontáveis caminhos serpenteados que rodeiam as montanhas, nos revelam uma paisagem que frequentemente mais parece um desenho, uma textura que nem sempre nos permite distinguir bem suas escalas. Em certa medida, a interação do caminhante com o entorno ocorre com o próprio deslocamento por terrenos acidentados, o que vai lhe oferecer diferentes altitudes e ângulos a partir dos quais a paisagem se mostra, por vezes, quase como uma pintura bidimensional, ou de súbito como um desenho tão vivo - a exemplo de quando avistam-se animais em movimento - capaz de revelar sua tridimensionalidade. Este jogo visual experimentado pelo caminhante-espetador é um jogo de percepções proporcionado pelo movimento, pelos diversos planos visuais criados pelas montanhas que se sobrepõem umas às outras, pelos efeitos de luz e sombra; às vezes praticamente ilusões, verdadeiras miragens. Essas podem ser reforçadas caso os Apus se desagradem excessivamente com a presença desrespeitosa de alguém, ou com pagapas mal feitas (ou sua ausência), podendo eles próprios até se tornarem invisíveis e assim confundir o caminhante, algo indesejável quando as montanhas são pontos de referência fundamentais no espaço. Caminhar sozinho por terras distantes e salvajes nunca é algo recomendável segundo os andamarquinos, pois os humanos são vulneráveis às trampas de uma paisagem que tem poder para transfigurar-se repentinamente e até para tornar-se invisível, como se brincasse de esconde-esconde, provando os sentidos do caminhante. Vários são os relatos de andamarquinos sobre pessoas que se perderam na puna, ou que ficaram aprisionadas no interior das montanhas - onde hay de todo, no te va a faltar nada -, vivendo em um mundo paralelo sem saber se um algum dia conseguiriam sair. Trata-se de uma capacidade dos Apus de “hacer alucinar”, uma “suerte de ilusión andina”, de “te hacer ver” (Cecconi 2017: 95) coisas que depois desaparecem, assim como de fazer desaparecer animais e outras coisas tangíveis (inclusive a si próprio). Dirigir-se sozinho às montanhas é aumentar a possibilidade de ter distintas experiências visionárias (Cecconi 2017) que trazem consigo diferentes perigos, inclusive o de sofrer um “vuelco”, uma inversão que se dá a causa de um “encontro desafortunado”, uma mudança abrupta que proporciona afeções negativas como “estar aireado” (Bussi 2015), ou segundo os andamarquinos quando te da aire.22
Em artigo sobre o sítio arqueológico pré-colombiano de Chavín de Huantar, nos Andes peruanos, Mary Weismantel (2015) destaca algumas questões relacionadas a encontros perigosos a partir dos monólitos de pedra talhada que compõem esta construção. Se nos Andes com frequência as pedras estão impregnadas de vida (Lanata 2007; Robin Azevedo 2010; Fernández Murillo 2018), as enormes pedras de Chavín carregariam uma “camada adicional de significados”, referente às formas de animais predadores (ave de rapina, jaguar, serpente, crocodilo) gravadas em suas superfícies. A autora chama a atenção sobre a possibilidade de que os frequentadores de Chavín, considerado por estudiosos um possível lugar de peregrinação para “adoração” dessas pedras, tenham experimentado “uma consciência transformadora das dualidades ontológicas inerentes a um objeto poderoso que é, ao mesmo tempo, animal e pedra”, ressaltando a interação entre humanos, não humanos e artefatos (2015: 12, tradução minha). O encontro proporcionado pelos monólitos de Chavín de Huantar, segundo Weismantel, não eram “ordinários”, tampouco com animais ordinários, mas lá eram travados encontros com seres muito mais “perigosos”, “enormes, antigos e poderosos”. Para a autora, era um lugar procurado por pessoas que viajavam grandes distâncias e que desejavam ver e ser vistas por tais seres, encontros que proporcionavam a experiência de uma mudança transformadora.
A contribuição de Mendoza (2010: 22) sublinha o “desplazamiento a pie en el espacio geográfico” como aspeto fundamental para a compreensão da relação entre o ato de caminhar e a música na peregrinação para o santuário do Senhor de Qoyllurit’i (província de Quispicanchis, departamento de Cuzco, Peru). Nessa jornada participam camponeses e pastores que caminham dias desde seus povoados, além de pessoas da cidade e turistas - que costumam percorrer somente o trecho final de aproximadamente 8 km a pé ou a cavalo. O primeiro aspeto a ser destacado nessa caminhada é o “sacrifício”, pois carregar pedras para apachetas (montículos de pedras) e suportar as intempéries ao longo do trajeto durante dias demonstra que o corpo do peregrino está sendo sacrificado e, com isso, segundo a autora, estão sendo pagos parte de seus pecados, um dos objetivos da própria peregrinação. O segundo aspeto faz referência ao fato de a caminhada permitir “ver” e “conocer”, ressaltando-se a dimensão visual como parte fundamental do processo cognitivo e também uma série de interações (brincadeiras entre os participantes, momentos de reflexão, consumo de coca, comida e bebida, etc.) que caracterizam a viagem, para camponeses e pastores, como mais “divertida” do que deslocamentos realizados com veículos automotores. Em terceiro lugar estão o movimento e o som, já que durante a peregrinação “la retención y el recuerdo de la información se ven intensificados o acrecentados por la sensación de movimiento y el sonido” (Mendoza 2010: 25). Aqui não se trata de um movimento qualquer, mas de um deslocamento que se desenvolve de maneira “ordenada” e “coordinada”, em forma de fila até nos momentos de descanso. São grupos, coletivos ou “comparsas” que viajam juntos, caminhando e dançando. Finalmente, entre os elementos centrais dessa peregrinação e que muito a diferencia das caminhadas dos danzantes de tijeras, é sua característica festiva, o que faz da música um acompanhamento indispensável durante a jornada. Desde o ponto de vista dos participantes, há algo muito importante nessa combinação: o silêncio é característico de seres e lugares selvagens, sendo associado aos não humanos e ao perigo. Logo, caminhar em silêncio seria “caminar como condenados, como almas”23 (Mendoza 2010: 30), isto é, comportando-se como não humanos ameaçadores que vagam por lugares desertos em busca de suas vítimas. A música, de acordo com os peregrinos, “ayuda a concentrarse en el camino, a andar con buen ritmo para no romper el grupo, e impide que el cansancio y el sueño los haga distraerse o romper la coordinación con el resto” (Mendoza 2010: 30). São canções apropriadas para mediar os encontros com outros grupos pelo caminho e com o próprio Señor de Qoyllurit’i.
Através do trabalho de Zoila Mendoza retomamos um dos aspetos fundamentais propostos por Mary Weismantel: as caminhadas possibilitam “encontros”, e a música em Qoyllurit’i contribui para que alguns aconteçam, ao mesmo tempo que evita outros. Ou seja, ao longo do deslocamento em Qoyllurit’i a música é um elemento fundamental para impedir encontros com seres perigosos (indesejados nesse caso), enquanto em Chavín de Huantar os encontros com esses mesmos seres consistiam no principal interesse dos seus frequentadores. Voltando ao danzante de tijeras, podemos dizer que é com este mesmo propósito dos peregrinos de Chavín que ele se dirige até à puna: desejoso de encontros cujos efeitos resultem em transformações que alterem sua perspectiva e seu corpo. A experiência de caminhar por regiões inalcançáveis na puna faz com que a coragem vá sendo incorporada no corpo cansado que, por sua vez, vai tornando-se resistente ao medo, capaz de sofrer perfurações e cortes, de suportar a dor durante a competição. Criam-se, então, os atributos valorizados para vencer os seus rivais. O corpo emerge como suporte da experiência vivida no ambiente mais perigoso ao que o danzante tem acesso. Caminhar dias pelos pastos desertos da puna arriscando encontrar pelo caminho toda a sorte de seres (pumas, “condenados”, espíritos, Apus transfigurados em humanos, etc.) molda tanto sua subjetividade como seu corpo, sua predisposição para encarar os riscos que se apresentarão ao longo da vida do danzante nas competições, momentos em que ele terá de buscar desafios igualmente inalcançáveis, que só ele possa executar e, assim, conseguir superar os seus rivais.
Desenhando a paisagem, forjando o corpo: reflexões finais
Finalmente, gostaria de destacar uma imagem frequentemente associada aos passos dos bons danzantes de tijeras: dizem que esses são capazes de fazer filigranas com os pés, de tão finos, ágeis e elaborados que são seus movimentos. Desse modo, ao dançar, eles desenham o espaço com os pés; e ao percorrer a paisagem através das caminhadas não parecem fazer algo tão diferente. Caminhar é uma forma de criar e reforçar trilhas, desenhando e esculpindo a paisagem, atuando sobre ela. Por outro lado, ao andar por esses caminhos a paisagem viva molda e atravessa o corpo do danzante, inscrevendo nele marcas (ou caminhos) por onde fluirão potências que o tornarão mais forte. Não se deixar vencer é não se deixar tomar pelas forças dessa paisagem poderosa, a condição para que elas atuem positivamente sobre esse corpo, fortalecendo-o.
É como a água que percorre seus caminhos dentro dos andenes, porém, para que isso aconteça necessita ser conduzida - ao irrigarem, os andamarquinos dizem que hay que llevar el agua. A cada período de irrigação é necessário preparar a terra, desenhando nela caminhos (chamados de bordes ou eqas) que ficarão à espera da água, proporcionando-lhe uma distribuição e circulação mais uniforme, impedindo-a de ficar retida em certos pontos - quando isso acontece aumentam os riscos de desmoronamento dos andenes. Algo semelhante ao que faz o danzante ao percorrer caminhos na paisagem traçando seus circuitos, fazendo e ativando conexões durante todo seu trajeto, aspergindo vitalidades através de seu corpo, de seu suor, e das substâncias que são oferecidas ao tinkar (aspergir bebidas) com Apus e ancestros, um convite explícito para compartilhar e uma mostra de que eles são recordados e respeitados. Deixar de fazer pagapas é deixar de cultivar tais relações e, principalmente, deixar de transferir vitalidades.
A comunicação com seres de outros mundos é facilitada pela coca (Allen 2008: 154) e pelas bebidas alcoólicas (Allen 2008: 180). Estas, não por acaso, são chamadas pelos andamarquinos de ánimu, enquanto Catherine Allen, de forma semelhante, afirma que nelas há um potente “sami” (também trata-se de energia vital presente em tudo que tem vida), e por isso têm de ser compartilhadas com outros seres, incluindo lugares sagrados. De acordo com Allen, essa energia pode ser transferida a outras coisas e/ou pessoas, apresentando uma intensidade variável, que pode ser controlada até certo ponto. Com esse propósito é que se realizam a maioria dos rituais andinos, eventos que, nas palavras da autora, buscam “dirigir el flujo de sami” (Allen 2008: 58). Se consideramos a intenção de guiar o sami, e se nos remetemos à necessidade de guiar a água, temos dois fluxos que apesar de distintos têm em comum a característica de estar impregnados de vitalidades. Seguindo esta ideia, sugerimos que as jornadas dos danzantes à puna podem ser vistas como uma forma de dirigir para si mesmo as potências salvajes lá existentes, as quais percorrerão seu corpo, e cujos efeitos serão acionados mais tarde nas competições. Em outras palavras, chegar a lugares vírgenes, desconhecidos e não transitados, talvez seja a oportunidade de produzir uma relação muito próxima com esses espaços/seres. “Tende-se a imaginar a domesticação como uma linha divisória: ou você está do lado humano, ou do lado selvagem” (Tsing 2015: 184), o corpo do danzante forjado dessa forma não corresponde exatamente a nenhum dos lados dessa “linha divisória”, sendo meio humano e meio selvagem.
A danza de tijeras é, assim, um potente conector entre Apus, Pachamama, águas, animais, plantas e humanos, e os danzantes, figuras chave sem os quais seguramente não haveria Festa da Água. O próprio corpo do danzante é o resultado de conexões diversas com não humanos que devem ser constantemente reforçadas para que seja um corpo completo, que o assemelha de alguma maneira à imagem do cyborg, seguindo Donna Haraway (2009). Não se trata de um bailarino que representa a água ou a paisagem, mas de um corpo transformado pela água, pelos seres da água (Caballero 2018b), radicalmente “vinculado” - para retomarmos a noção de pessoa de Spedding (2008) - a eles. Um corpo que é também paisagem, ou poderíamos dizer, que o danzante “é com” o Diabo, “é com” os Apus, “é com” a paisagem, ressoando com as proposições de Haraway (2016) e De la Cadena, Risør e Feldman (2018). De forma alguma significa que o danzante é passivo no processo de forjar seu corpo, cabendo a ele não sucumbir às forças dos Apus, do Diabo, ou como disse Chuspicha: “la naturaleza no te puede ganar”. Isso é o que se deve provar com o corpo através de uma sorte de competição, desta vez com a naturaleza, cujo objetivo é vencer, ou seja, não deixar-se dominar por ela, ainda que todos saibamos que ela é mais forte. A vitória do danzante é uma demonstração para si mesmo e para os demais (Apus, Diabo e seres outros) que ele tem poder; ao passo que fracassar é a explicitação de sua incapacidade de resistir. Se durante a competição em praça pública a posição de vencedor nunca é inequívoca, aqui essa parece ser uma posição explícita: desistir dessa jornada é fracassar.