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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.26 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.12118 

Artigo Original

Entre a crença e o saber: cultura como falseamento da realidade em um ambulatório psiquiátrico para imigrantes e refugiadas em São Paulo, Brasil

Among belief and knowledge: culture as a fake reality in a psychiatric ambulatory for immigrants and refugees in Sao Paulo, Brazil

Alexandre Branco-Pereira1  , conceitualização, investigação, metodologia, administração do projeto, supervisão, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-3513-5728

1Universidade Federal de São Carlos, Brasil, alebrancop@gmail.com


Resumo

Este artigo apresenta reflexões a partir de dados etnográficos obtidos durante pesquisa de mestrado em um serviço de saúde mental para imigrantes, refugiadas e pessoas surdas na cidade de São Paulo, Brasil. Durante a referida pesquisa, atuei enquanto antropólogo colaborador do serviço, sendo esse um processo de invenção e contrainvenção dinâmico e incessante a respeito de qual seria a atuação de um antropólogo em um serviço de saúde mental para pessoas com o que era definido como “vulnerabilidades linguísticas e culturais”. A partir disso, apresento as lógicas dos maquinários de produção e assimilação (ou não) das diferenças por meio da separação do mundo entre aqueles que creem e aqueles que sabem, ou as pré-modernas e as modernas. Por fim, proponho o povoamento desses contextos e cenários por antropólogas, levando a sério as dimensões simbólicas nos contextos de saúde e produzindo dado e cuidado.

Palavras-chave: antropologia; saúde mental; imigrantes; refugiados; Brasil

Abstract

This paper presents reflections from ethnographic data obtained during a master’s degree research in a mental health service for immigrants, refugees and deaf people in the city of São Paulo, Brazil. During this research, I worked as a collaborating anthropologist for the service, and this was a dynamic and incessant process of invention and counter-invention as to what an anthropologist would do in a mental health service for people with what was defined as “linguistic and cultural vulnerabilities”. From this, I present the logic of the machinery of production and assimilation (or not) of differences by separating the world between those who believe and those who know, or the premodern and the modern. Finally, I propose to populate these contexts and scenarios by anthropologists, taking seriously the symbolic dimensions in health contexts and producing data and care.

Keywords: anthropology; mental health; immigrants; refugees; Brazil

Introdução

“Esse é o antropólogo que eu te falei que queria colaborar com o ambulatório”.1 Com essa frase, pronunciada por uma psiquiatra em uma conversa com o coordenador do ambulatório,2 eu tomava conhecimento de que, a partir daquele momento, eu estava sendo inserido em um serviço de saúde mental destinado a atender pessoas em situação de “vulnerabilidade linguística e cultural” - a saber, imigrantes/refugiadas e surdas.3 Digo “sendo inserido” pois já havia sido apresentado à lógica de dádiva envolvida na entrada de pesquisadoras dedicadas a compreender questões sobre a migração e o refúgio: era necessário estabelecer uma relação de reciprocidade com os serviços em que eu tinha intenção de realizar pesquisa etnográfica, e um engajamento emocionalmente distante era tido como indesejável. Para dar prosseguimento à minha empreitada, eu precisava, portanto, de implicar-me: como um “especialista em cultura”, eu certamente teria, na percepção de minhas interlocutoras, aportes riquíssimos a acrescentar, “decodificando códigos culturais” importantes para a boa consecução do tratamento psicológico e psiquiátrico - naquilo que Kaufert chama de boxification of culture (1990) - e “ampliando as noções de transculturalidade” da equipe (Branco-Pereira 2019, 2020).

Assim, em um constante processo de invenção e contrainvenção do que significa ser uma antropóloga, sobre como lidar com as noções de alteridade e cultura, e como promover diálogos interdisciplinares potencialmente simétricos - considerando que esta é uma possibilidade exequível do trabalho etnográfico inserido em um contexto profundamente marcado pelas assimetrias de poder entre equipes de saúde e pacientes, e entre modernas e pré ou extramodernas -, meu trabalho de campo se deu entre 2017 e 2019 em um grande complexo hospitalar de São Paulo, no Brasil. Minha pesquisa etnográfica deu-se em um ambulatório psiquiátrico destinado a atender população “em situação de vulnerabilidade linguística e cultural” e, à época da pesquisa, recebia imigrantes/refugiadas e brasileiras surdas, preferencialmente. Nesse sentido, meu trabalho foi marcado por uma sobreposição impurificável de papéis desempenhados: a um só tempo, exerci o papel de professor em atividades formativas de médicos residentes em psiquiatria, de gerente de casos de imigrantes e refugiadas em tratamento psiquiátrico e de etnógrafo.

Nesse artigo, procuro apresentar esse itinerário e as reflexões suscitadas no percurso da produção etnográfica, dando especial atenção aos mecanismos de produção e qualificação daquilo que se entendia enquanto diferença cultural na relação entre equipe multidisciplinar de saúde, na qual eu estive incluso, e os sujeitos atendidos. Dessa forma, procuro refletir a partir da minha presença no ambulatório, e a contextualização dessa presença estrangeira pelas antropólogas nativas - psicólogas e psiquiatras que procuravam contrainventar o ofício de um antropólogo atuando em um serviço de saúde para imigrantes/refugiadas. Nesse processo, cultura, enquanto objeto do ofício etnográfico, ganha relevo, e o problema torna-se o diálogo entre as diferentes expectativas que o manejo do conceito no cotidiano das profissionais trazia à tona.

Primeiramente, descrevo como se deu minha entrada no campo, fortemente embebida em uma expectativa das ciências psi - e os aparatos teóricos por elas erigidos - mobilizadas para lidar com a “diversidade cultural” imposta pelos fenômenos migratórios sobre qual seria a contribuição possível da antropologia e da presença de antropólogas em um serviço de saúde mental destinado ao atendimento de sujeitos em situação de “vulnerabilidade linguística e cultural”. A invenção do antropólogo enquanto um habitante desse cenário do cuidado foi o que, tomando o termo de Thompson (2005) de empréstimo, chamo de coreografia ontológica: uma coordenação dinâmica de múltiplos aspetos e expectativas sobre o que faria uma antropóloga naquele contexto - e, diz-se, a antropóloga é aquela que frequentemente é chamada a desempenhar uma atividade, mas acaba por fazer algo radicalmente diferente do requisitado. Se, por um lado, desejava-se a especialista em culturas e alteridades, dona dos inventários sobre povos o mais exóticos possível - as “alteridades radicais”, como eram referidas - e capaz de decodificar culturas para tornar o exercício de “tradução” entre diferentes sistemas simbólicos possível, beneficiando, assim, a prática clínica de médicas e psicólogas; por outro, apresentava-se a que procurava desacelerar os processos de pensamento e os saltos interpretativos, a que tinha menos certezas sobre a alteridade cultural do que se esperaria, a que não tentava traduzir, mas levar a sério o símbolo, que representa-se a si mesmo e produz o mundo na mesma medida em que é por ele produzido (Wagner 2012, 2017).

Em seguida, discuto um substrato evolucionista e colonizatório que organiza aquilo que se estabelece ser cultura nesses contextos em uma linha temporal, reservando às modernas, caracterizadas por sua aculturalidade (a ausência quase completa de crenças, no sentido em que equivale essa categoria a um falseamento da realidade unívoca), um lugar privilegiado de produção da realidade (Branco-Pereira 2021). Assim, as pré-modernas, viajantes do tempo oriundas de um passado anacrônico e insistente, são caracterizadas por sua natureza essencialmente hipercultural, onde tudo é crença e nada é saber - ou seja, versam todas sobre realidades inventadas, passando ao largo da realidade unívoca descrita de maneira que se acredita como técnica e neutra pelos saberes biomédicos e psicológicos. Como crianças (Gonzalez 1984; Fanon 2008) - ou infans, “que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos” (Gonzalez 1984: 225) -, recebem condescendência sob a forma de tolerância por parte de adultas que, capazes de encarar o mundo despojado de seus encantamentos e garantias (Stengers 2011), toleram as crenças infantis - e infans é aquele que não fala por si, como argumenta Gonzalez (1984) - de mentes e culturas pré-modernas.

Por fim, advogo que o contexto descrito exige a capacidade de levar a sério o símbolo - que, inclusive, realiza o pensamento por nós (Wagner 2011: 975) - e a dimensão simbólica, evitando tratá-los enquanto a teratologia epistêmica (Viveiros de Castro, 2018) que representa a cultura sob as perspectivas psicologicistas e psiquiatrizistas do que a crença é. Dessa forma, argumento que a etnógrafa, aquela que um interlocutor psiquiatra definiu ser “quem acredita em tudo”, não deve ser entendida como alguém cuja função é limpar a camada acessória da cultura para que o conhecimento psicológico e psiquiátrico seja subsequentemente aplicado sem grandes equalizações, como campos de conhecimento que acreditam versar sobre realidades autoevidentes e universais costumeiramente fazem.

Um antropólogo em um serviço de saúde para imigrantes/refugiadas

Era o último dia de janeiro de 2018, e a manhã iniciava-se com o costumeiro mormaço desse período do ano em São Paulo. Meu trabalho de campo no hospital já perfazia mais de um mês, e eu corria apressado pela estação do metrô para conseguir chegar a tempo à atividade didática que ministraria para residentes e profissionais do ambulatório. Cheguei ao instituto de psiquiatria, o prédio mais distante da estação do metrô, e cumpri os trâmites usuais: fui ao terceiro andar, peguei a chave do auditório e desci novamente para abri-lo. Ao chegar ao primeiro andar, deparei-me com uma das psicólogas da equipe, que eu não havia conhecido até então, aguardando na porta. Ela se apresentou, e esclareceu a razão pela qual eu não a havia conhecido ainda: estivera afastada por um tempo para dedicar-se à construção de seu projeto de mestrado, e retornava agora para suas atividades usuais no ambulatório.

Após o término da aula, ela me chamou para participar da reunião da equipe de psicologia, que tradicionalmente ocorria em sequência à atividade didática. Descemos ao térreo, e entramos em um dos consultórios disponíveis. Havia várias cadeiras distribuídas pelo espaço da sala - a maioria encostada nas paredes laterais, e uma, a que ocupei, colocada perpendicularmente ao restante -, e a equipe, composta à época por sete psicólogas além de sua chefe, já nos aguardava. Meu assento concedeu-me uma posição de destaque que poderia ser lida tanto enquanto um sinal prestigioso de centralidade, ou como símbolo de uma configuração inquisitória (o que acabou por ser minha leitura daquele contexto após o início da reunião). Os questionamentos, então, iniciaram-se com a chefe da equipe solicitando às psicólogas presentes um relato de como havia transcorrido o mês em que ela havia se ausentado, dando ênfase especial sobre como um antropólogo havia passado a integrar a equipe. “Vocês sabiam que ele estava trabalhando aqui?”, ela repetiu mais de uma vez enquanto questionava, uma a uma, as psicólogas da equipe acerca de suas percepções sobre o ambulatório e sobre mim. O tom mais agressivo era pincelado por viradas de cabeça em minha direção, sequenciadas pela frase “não é nada com você, você está chegando agora”, repetida mais de uma vez.

Entretanto, havia, sim, um desconforto explícito por minha presença ali, algo que só notei por estar presente na reunião. Apesar de evidente, o desconforto era também ambíguo: minha chegada para constituir parte da equipe denotava, por um lado, que a decisão pela inclusão de novas especialidades e especialistas à equipe do ambulatório dispensava a opinião das psicólogas - em especial, a de sua chefe -, e isso dava relevo, sob sua perspectiva, à posição de subalternidade da disciplina em relação à psiquiatria: “essa não é nossa casa”, dizia, emendando com “esse aqui é um instituto de psiquiatria, não de psicologia”. Por outro lado, minha presença também parecia abrir uma janela de oportunidade destinada a aumentar a participação das psicólogas na determinação das lógicas do ambulatório: eu estar ali indicava que não só as dinâmicas poderiam estar em processo de mudança, o que criaria momentum para a realização dos pleitos das psicólogas por mais integração e destaque no ambulatório, como também trazia outra disciplina subalterna à psiquiatria para engrossar o coro da “resistência” - afinal, da mesma forma que aquele não era um instituto de psicologia, tampouco era de antropologia. Estaríamos, portanto, juntas em nossa subalternidade epistêmica em um esforço contínuo por legitimação.

Nas semanas seguintes, como estaríamos em um período de transição entre duas turmas de residentes - uma findava seu ciclo de um ano, enquanto outra o iniciava -, reuniões com toda a equipe, chamada de “equipe transdisciplinar”, foram agendadas para o horário a fim de que pudéssemos discutir mudanças no ambulatório, e os conflitos emergiram de maneira mais destacada. A chefe da equipe de psicologia abriu a reunião anunciando que não integraria mais a equipe, pois daria sequência à sua pesquisa em outro ambulatório do instituto de psiquiatria. Lá, segundo ela, haveria mais pacientes identificáveis com o recorte determinado por ela para sua pesquisa de mestrado. Ela endereçou, então, críticas diretas à presença de antropólogas na equipe: disse que não éramos da área da saúde - e, portanto, não tínhamos conhecimento do funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) -, nem possuíamos técnicas de cuidado, repetindo mais de uma vez que o objetivo do ambulatório não era realizar pesquisa, mas prover cuidado às suas pacientes - a frase repetida foi: “não é sobre o dado, é sobre o cuidado!” A chefe reafirmava que antropólogos só “querem pesquisar”, e não cuidar: “Achei que vocês viriam para ampliar nosso entendimento sobre transculturalidade”, ela dizia, complementando com “não estamos em um campo de refugiados ou no meio do mato para precisarmos de antropólogos.” [Registro de campo, fevereiro de 2018].

Estávamos, portanto, em uma relação de subalternidade epistemológica - e praxológica - em relação às psicólogas, que sabiam cuidar. Era possível conceber a presença da psicologia entre as disciplinas imbuídas na arquitetura de uma espécie de teoria e prática do cuidado e inserida em um serviço hospitalar destinado a cuidar, e não a coletar dados - único interesse possível da antropologia e das antropólogas, que não cuidavam. O lugar de subalternidade era ainda mais visível quando colocado em perspectiva com o objetivo expresso da chefe da equipe de psicologia de mudar de ambulatório para aumentar a proximidade com os sujeitos de sua pesquisa: apesar de insistir que “não era o dado”, mas “o cuidado” o foco central das atividades ali desenvolvidas, sua produção de dados não era problematizada como era a das antropólogas, pois seu dado era comprometido com a produção de cuidado, enquanto o das antropólogas supostamente não, por aquele não ser um contexto suficientemente exótico: ela parecia dizer, na verdade, que não era ali que seríamos de alguma utilidade, mas sim “no meio do mato”, ou em um campo de refugiados.

Se a antropologia é chamada à baila para lidar com as reificações estereotípicas nutridas nesse campo em referência às pacientes-alvo, a antropóloga só é necessária em situações de exceção, “no meio do mato” ou “em um campo de refugiados”. Nas demais situações, é possível - e, em determinada medida, desejável - que antropólogas sejam meras visitantes a promover reflexões e capacitações sobre as “noções de transculturalidade” da equipe, que consumiria a alteridade em blocos étnicos, nacionais e/ou raciais - aulas sobre hábitos e comportamentos de haitianas, árabes ou africanas sempre em sentido lato, e de maneira generalizável. Em nenhum momento, entretanto, cogitava-se a possibilidade de que antropólogas povoem ambulatórios hospitalares enquanto praticantes do cuidado, ainda que o tipo de investigação produzida por estas gere dados sobre as relações entre as habitantes desse cenário que contribuam com as práticas terapêuticas estabelecidas.

Considerando a tríade das dimensões constitutivas do ser humano formulada desde esse campo - a biológica, a psicológica e a social -, a primeira e a segunda estariam abarcadas pela psiquiatria e pela psicologia, enquanto a última estaria reservada às ciências sociais, e diria respeito à dimensão da interação intersubjetiva, eminentemente coletiva. Não é possível, portanto, inventar (Wagner 2012) uma profissional dedicada a aferir a produção simbólica em uma relação clínica, pois essa profissional já existe: é a psicóloga. À antropóloga, reserva-se o lugar daquela que fala sobre grupos, e a dimensão simbólica produzida por estes, em uma espécie de “grupismo” cultural. Devemos, então, falar sobre os significados atribuídos coletivamente, nunca individual ou relacionalmente, em uma visão da antropologia enquanto uma disciplina inventariante de práticas culturais e de padrões de comportamento dos povos, muito ligada a um determinado culturalismo estadunidense (Mead, Benedict e Sapir inCastro 2015; Benedict 2013).

Não só a chefe da equipe de psicologia inventou-nos dessa forma. Também as psiquiatras tinham uma expectativa análoga em relação à entrada de antropólogos na equipe. Quando do processo de elaboração das atividades didáticas, em dado momento uma das psiquiatras responsáveis por elaborar o cronograma requisitou ajuda à outra antropóloga da equipe e a mim para encontrar bibliografia que servisse de insumo para o debate sobre as diferenças entre “sociedades e culturas mais coletivistas” e aquelas consideradas “mais individualistas”. Isso, de acordo com ela, produzia diversas implicações na “construção cultural da pessoa”, ou na forma como a cultura determinaria a divisão entre o indivíduo e o grupo. De toda a forma, e apesar de frisar que esse poderia talvez ser um debate cujo contexto estaria “ultrapassado” para a antropologia, a ideia de que é possível identificar traços culturais e/ou sociais nos indivíduos que apontassem para possíveis traços psicopatológicos - como, por exemplo, a analogia entre sociedades mais coletivistas e o diagnóstico de esquizofrenia, cujo marcador diacrítico seria a continuidade observada entre o indivíduo e o mundo que o cerca (uma espécie de conformação mental coletivista) - era o que baseava a tentativa de mapear conformações étnicas, nacionais e raciais que informassem coletivamente o funcionamento das mentes dos indivíduos. Era possível, portanto, inventariar os múltiplos “idiomas do sofrimento”, para que também fosse possível sistematizar suas traduções em categorias diagnósticas próprias da psiquiatria, encaixando-as na nosologia unívoca das patologias mentais, que existiam em si mesmas.

Também relacionado à atividade didática, um dos blocos era destinado a falar de “populações específicas”, convidando pessoas para falar sobre “as culturas” de povos árabes, de haitianas e de africanas, de maneira genérica. Primeiramente, essas atividades foram conduzidas por brasileiras, e não imigrantes-refugiadas oriundas desses lugares. Além disso, a expectativa era poder delinear padrões de comportamento compartilhados nacional ou etnicamente. Um dos exemplos trazidos frequentemente à tona por minhas interlocutoras para exemplificar como isso poderia contribuir para a prática psiquiátrica ciosa da consideração do “cultural” e do “social” era o que explicava a ideia de “idiomas do sofrimento”: uma das psiquiatras sempre dizia que as “diferentes culturas” expressavam sofrimento de maneira diferente. Árabes, por exemplo, eram escandalosas, choravam alto, precisavam demonstrar exacerbadamente a dor interna. “Muitos médicos”, dizia, “consideram isso fingimento. Mas é que na cultura deles, se você não expressar dessa forma, você não ’tá sofrendo.” A competência cultural, portanto, residia no fato de compreender que esse é um “idioma do sofrimento”, o que não invalida ou torna falso o sofrimento “real” apreensível por detrás desse idioma específico. Por isso, tornava-se imprescindível inventariar práticas e variações culturais da comunicação do sofrimento - este sim, irredutível a uma estrutura universal de produção de sofrimento - de povos específicos. Ao fim e ao cabo, a ideia era entender como seria possível traduzir esses idiomas de sofrimento, alocando-os na nosologia psiquiátrica.

Esse pensamento só se sustenta ao se considerar que há um sofrimento basal que extrapola o idioma que o expressa, e esse é - ou deveria ser - universalmente compartilhado - a ontologia unívoca do sofrimento. Realizada a tradução, possível por meio do aprendizado do que é a cultura das imigrantes/refugiadas atendidas, não haveria mais empecilho para a aplicação do conhecimento médico e psicológico tal qual é postulado em manuais diagnósticos e pelos teóricos da psiquiatria e da psicologia (o que, ao mesmo tempo, dispensa a antropóloga) - e, dessa forma, as culturas que cabem inteiras em um livro ou em uma aula tornam-se muitíssimo atraentes. Os métodos terapêuticos são imaginados como universalmente aplicáveis a todos os contextos, observada a devida equalização idiomática/cultural - eles resistiriam às contextualizações, portanto.

Dessa forma, tornava-se possível a antropologia sem antropólogas que o ambulatório parecia desejar - ou, pelo menos, com antropólogas que não cuidassem das pacientes. Acessando “a cultura” das pacientes e inventariando “padrões de comportamento” (Mead, Benedict e Sapir in Castro 2013; Benedict 2013), não há necessidade alguma de mediadoras nas relações entre médicas, psicólogas e pacientes, e elas poderão, enfim, se comunicar baseadas nas crenças epistêmicas fortemente enraizadas no conhecimento médico e psicológico moderno. Da paciente, só se acessa a cultura, e ela não informa nada sobre a própria doença e/ou métodos terapêuticos concernentes que não possam ser resolvidos com a compreensão do significado daquele “idioma”, a tradução dele da narrativa à realidade unívoca das categorias diagnósticas da psiquiatria/biomedicina e das categorias da psicologia, e a aplicação do conhecimento médico e psicológico sem alterações significativas, observando - nem sempre, é verdade - o cuidado de realizar a tradução reversa à paciente e explicando-lhe o que realmente significa o sofrimento por ela expressado. As narrativas da doença e do sofrimento não tinham importância em si mesmas, senão como expressão simbólica de uma camada de acesso exclusivo de médicas e psicólogas onde a realidade unívoca existia. A antropóloga deveria ajudar, portanto, na limpeza dessa camada externa acessória de modo a que médicas e psicólogas pudessem desempenhar seu ofício da mesma forma que faziam com as “sem cultura”, ou seja, com aquelas que não eram consideradas alteridades radicais e que “compreendiam” a - e não acreditavam na - clivagem epistêmica entre as elaborações feitas por médicas e psicólogas e aquelas feitas pelas pacientes imigrantes/refugiadas.

Assim, em um exercício de invenção e contrainvenção do papel da antropóloga em um ambulatório destinado a atendimentos de saúde mental para imigrantes/refugiadas e surdas (e, posteriormente, indígenas e migrantes internas - grupos com “vulnerabilidades linguísticas e culturais”), estive presente enquanto voluntário e enquanto pesquisador - produzindo, portanto, dado e cuidado - no ambulatório. Fui gerente de casos, função que esmiuçarei no tópico subsequente, responsável por três módulos das atividades didáticas - e pela consequente avaliação dos residentes em psiquiatria -, promovi diversas articulações institucionais entre o ambulatório e serviços de assistência migratória e organizei eventos destinados a ouvir dessas populações quais eram suas dificuldades de acesso ao SUS.

A todo momento, o embate entre o que minhas interlocutoras esperavam de minha atuação, o que eu esperava realizar atuando pelo serviço e o que foi efetivamente possível fazer se colocou para mim de forma premente, e navegar nesses mares revoltos foi uma parte particularmente difícil do trabalho de campo. Mobilizei alguns antropólogos brasileiros que começam, recentemente, a pensar o lugar da antropologia como uma disciplina hábil para “participar da formulação do cuidado e atenção à saúde” (Rego e Barros 2017: 13), como Campoy (2017a, 2017b) e Targa (2010). Esses relatos, apesar de representarem um ganho considerável para a discussão sobre a presença de antropólogas em serviços de saúde atuando enquanto profissionais do cuidado, me foram insuficientes para lidar com a prática cotidiana do ambulatório. Ao fim, como tentarei argumentar, minha atuação enquanto antropólogo do serviço foi fundamentalmente um exercício de mediação diplomática - inclusive entre essa constelação de perspectivas e expectativas postas em relação nesse contexto -, uma atuação no interlúdio da relação entre médicas, psicólogas, pacientes e outras actantes não humanas desse cenário, como as medicações, sinapses, documentos, entidades transcendentais e/ou divinas e atribuição de conformações comportamentais padrão determinadas por afiliações nacionais, raciais e/ou étnicas.

A gerência de casos

Após um almoço de trabalho entre a chefe da equipe de psicologia, o psiquiatra coordenador do serviço, a outra antropóloga e eu, ficou decidido que, para contemplar as demandas por maior integração entre psicólogas - e outras especialistas não médicas - e a equipe médica, seria instituída a figura da gerente de casos, a ser desempenhada por uma das especialistas não médicas da equipe. Surgido após os movimentos que questionavam a eficácia terapêutica da institucionalização em saúde mental nos Estados Unidos na década de 1960 (Reinaldo e Luís 2006), o gerenciamento de casos “pode ser definido como um processo de cuidado que inclui avaliação, distribuição, coordenação e monitoramento de serviços e fonte de recursos para garantir que a necessidade dos serviços seja reconhecida” (Soares 2009: 2). Assim, o trabalho de uma gerente de casos “consiste em avaliar as necessidades individuais e desenvolver um plano de cuidados para atender a essas necessidades” (Soares 2009). Essas definições, entretanto, reconhecem a pluralidade de entendimentos acerca da figura da gerente de casos: há sempre a ressalva de que o contexto no qual o gerenciamento é implementado determina sua ação prática.

No caso do ambulatório, a gerente de casos foi definida como um ponto focal de relacionamento longitudinal entre o serviço e a paciente. A gerente teria entre suas incumbências estabelecer uma relação em profundidade com as pacientes e seus contextos, ou seja, uma relação de vínculo com profundidade temporal: acompanha-se a pessoa por um período extenso de tempo. Dessa forma, é o acúmulo da relação que interessa, pois é necessário tempo para mapear contextos: a ideia era que a gerente evitasse dar respostas imediatas e se dedicasse a aprofundar seu conhecimento sobre o contexto completo da paciente, recusando interpretações apressadas e definitivas, tão comuns a contextos médicos e psicológicos.

Deve-se também observar que os contextos mudam, às vezes muito rapidamente, e essas transformações devem ser levadas em consideração. O exercício da gerência de casos era, portanto, eminentemente etnográfico: a relação longitudinal era um instrumento metodológico da etnografia. Também deveria identificar demandas não médicas e possíveis vulnerabilidades, mediar a relação entre médica e paciente e entre esta e serviços específicos para imigrantes-refugiadas surdas e outros serviços de assistência social, colaborar na elaboração do plano terapêutico singular (PTS) da paciente, e outras demandas que pudessem ser pertinentes. Como gerente de caso, eu realizava o acolhimento das pacientes no serviço, que era o primeiro contato destas com a equipe de saúde: realizava-se o acolhimento para “colher a história” e entender a demanda do caso. Também como gerente de casos, realizei visitas às casas de diversas imigrantes-refugiadas, a centros de acolhida, acompanhei-as em consultas médicas de outras especialidades em unidades básicas de saúde (UBS) e na Assistência Médica Ambulatorial (AMA), fazendo as vezes de tradutor em vários desses atendimentos.

Também as acompanhei em outros compromissos, como audiências judiciais e nos itinerários por vezes intermináveis entre centros de acolhida, serviços de assistência social e migratória, cursos de português e em eventos políticos de variados tipos. Como forma de melhorar meu trânsito com as imigrantes-refugiadas, aprendi noções básicas para me comunicar em krèyol e yorubá com pacientes haitianas e nigerianas - o que sempre fazia muita diferença na receptividade junto delas, que abriam um sorriso ao ouvirem “Bonjou, koman ou ye? Koman ou relè? 4 ou “Ẹ káàró, n kó?”,5 e demonstravam surpresa pelo meu interesse em seus idiomas nativos. O efeito produzido pelas línguas nativas ou crioulas era completamente diferente daquele produzido pelas línguas envolvidas na expansão colonial das potências europeias, como o inglês, o francês ou o espanhol (cf.Branco-Pereira 2018, 2019).

Junto à equipe, acolhi e discuti diversos casos, trazendo à mesa questionamentos que me pareceram pertinentes quanto à exotização e estereotipação daquilo que se chamava de “alteridades radicais”: nesse sentido, minha atuação era a de tentar arrefecer tais tendências. Em um dos casos, estávamos acolhendo um paciente angolano. Para o acolhimento, fomos destacados eu, um psicólogo e a outra antropóloga da equipe, que estava frequentando o ambulatório na época. O imigrante/refugiado estava acompanhado por um membro da igreja onde estava morando, também angolano, e que o havia trazido desde Angola para realizar trabalho missionário no Brasil - a igreja fora fundada por angolanos e destinava-se a atender majoritariamente angolanos que viviam no Brasil. Realizamos o acolhimento todo em português. Já no consultório, nos apresentamos e esclareci que não éramos médicos - estávamos ali para realizar uma primeira escuta a fim de entendermos melhor o caso. Quem começou a falar foi Aloísio, acompanhante de João, que nos explicou: João estava bem, e não apresentava problemas nem em Angola, nem quando chegou aqui. Aloísio dizia que João começou a piorar depois que voltou de um emprego no interior, onde trabalhava como marceneiro - em Angola, ele era fisioterapeuta. João não sabia se concordava ou não sobre estar mal - por vezes, achava que estava mal; por outras, relatava que não precisava de estar ali, pois já fazia suas orações e várias vezes repetiu que não entendia muito bem o motivo/sentido da conversa.

João fora encaminhado porque teria cometidos atos obscenos na frente de outros fiéis de sua igreja, o que gerou uma reação violentamente negativa contra ele. O pastor que lhe dera acolhida precisou intervir a seu favor, mas avaliou que sem tratamento psiquiátrico ele não poderia permanecer na igreja. Após esses conflitos, ele fora dormir em um carro abandonado que ficava na rua da igreja - o que era tido como signo inconteste de que ele só poderia estar “fora de si”, embora o fato tivesse ligação com o conflito entre João e o pastor -, e havia sido ameaçado de morte por meliantes que atuavam na rua. Aloísio listava diversos outros “comportamentos estranhos” de João: tirava o sapato no meio da igreja, certa feita havia colocado um pão dentro de seu sapato, fugia da igreja antes de compromissos agendados para ele (como consultas médicas), achava que as pessoas estavam tentando matá-lo, não aceitou, em razão do conflito entre eles, uma blusa de frio comprada a mando do pastor da igreja, entre outros.

As narrativas de Aloísio e João eram entremeadas por olhares desconfiados ou negativas com a cabeça de ambas as partes, o que indicava que havia conflitos e discordâncias em relação à história contada. João, o paciente encaminhado, parecia bastante confuso, e Aloísio, o pastor que o acompanhava, parecia bastante impaciente. João chegou a mencionar sua família em Angola algumas vezes, e disse que seu irmão gêmeo havia se oferecido para pagar sua passagem de volta para o país de origem, mas João não queria: “chegar lá desse jeito vai ser ruim”, ele disse. Ia continuar a frase, mas o psicólogo o interrompeu: “Pelo que eu estou entendendo, você não quer retornar a Angola mal, você não quer que as pessoas de Angola te vejam doente…” [Registro de campo, agosto de 2018, ênfase minha] A palavra “doente” não havia aparecido até então, e João reagiu imediatamente à menção dela, balançando a cabeça e franzindo o cenho. O psicólogo emendou: “A gente ’tá aqui pra fazer uma escuta do seu problema, não vamos julgar. Ninguém aqui ’tá dizendo que você ’tá doido, ninguém vai julgar você.” [Registro de campo, agosto de 2018, ênfase minha] Mais uma vez, ninguém havia mencionado a palavra “doido” até aquele momento. Quando João demonstrou preocupação sobre o tipo de acompanhamento que iríamos fazer, dizendo que não queria ficar ali e que já tinha lugar para morar, o psicólogo mais uma vez se antecipou, dizendo: “Fica tranquilo, João, ninguém aqui vai te cortar, ninguém vai te amarrar, ninguém vai te internar… pode ficar tranquilo.” [Registro de campo, agosto de 2018]

João estava visivelmente impaciente e incomodado, e a cada nova colocação do psicólogo parecia tornar mais difícil a tarefa de retornar a uma conversa tranquila. Ele produzia saltos interpretativos pouco recomendáveis para um primeiro contato com a história de alguém. Quando Aloísio descreveu o episódio em que João tirou os sapatos no meio da igreja, e colocou um pão dentro deles, o psicólogo disse: “Pelo que eu estou entendendo do que você está dizendo, você está expressando um desconforto e uma falha de adaptação com o Brasil tirando seus sapatos, demonstrando que você não concorda, é uma adaptação cultural… você tem problemas de adaptação no Brasil?” A antropóloga e eu nos entreolhamos, assustados, ao passo que João pensou por um tempo, e respondeu secamente: “Não.”

O acolhimento havia sido um desastre, e saímos para discutir o caso e realizar a marcação da consulta. Conversando com o psicólogo, eu e a outra antropóloga apontamos nosso desconforto com o que ocorrera. O psicólogo, então, respondeu que ele havia utilizado uma técnica reconhecida, e que todas as suas abordagens estavam “descritas nas leis e nos manuais do Ministério da Saúde”, sem, entretanto, especificar quais técnicas ou apresentar as referências para as descrições das abordagens. Ele ficou bastante desconfortável com os apontamentos que fizemos, incômodo visível em suas respostas mais secas e em sua expressão facial. Sua falta de traquejo pode ser lida enquanto uma postura epistêmica que crê que nutrir empatia e valorizar o “multiculturalismo” complacente e tolerante (Stengers 2011) com a diferença tida como cultural bastam para instrumentalizar a variável cultura, identificando precisamente as falhas de adaptação cultural de imigrantes/refugiadas por meio do sofrimento expressado idiomaticamente: o “tirar o sapato” é um “idioma de sofrimento”, que o psicólogo, educado sobre a importância da consideração da cultura em sua avaliação dos significados simbólicos da narrativa, trabalha para retirar do caminho a camada externa da cultura e fornecer, já no primeiro encontro, o real significado do sofrimento (falha de adaptação cultural), pois o “tirar o sapato” quer comunicar “desconforto”, “inconformidade”, “questionamento”, “inadaptação”, “inassimilação”. Já se sabe todas as respostas de antemão (o que dispensa a investigação), e interpretar corretamente é uma questão de aplicação da técnica correta de aferição - e essa sempre será convenientemente neutra.

Dessa forma, evidencia-se o emudecimento dessas imigrantes/refugiadas atendidas pelos serviços: essas pessoas e seus problemas tornam-se antes as interpretações que as profissionais que povoam esses espaços fazem delas, do que o que elas mesmas acreditam que sejam - assim, as interpretações tornam-se mais reais do que as pessoas. Os saltos interpretativos são próprios de um multiculturalismo condescendente que não acha que deve escutar as pessoas antes de formular juízos de verdade sobre elas e, ainda que as escute, faz-se ouvidos moucos: o “autismo” cultural (Rosa et al. 2009: 504) é antes uma condição projetada sobre imigrantes/refugiadas do que algo que ela produz internamente a suas estruturas biológicas e/ou psicológicas.

Em outros momentos, a gerência de casos parecia ter mais sucesso, especialmente em produzir mais adesão - comprometimento entre a paciente e plano terapêutico. No fim de 2018, acolhi uma paciente nigeriana, Ashanti. Ela já havia frequentado o ambulatório em 2014, mas havia interrompido o tratamento após um tempo. Ela encontrava-se bastante fragilizada: sempre que falava, era em um volume inaudível, e parecia sempre encerrar a frase antes de sua conclusão. Frequentemente chorava, algo que ocorreu desde nossa primeira conversa: geralmente, as lágrimas eram associadas à descrição de episódios de despedida, como quando a psicóloga do centro de acolhida onde ela estava morando, a única funcionária do local a falar inglês (e, portanto, a única capaz de efetivamente se comunicar com ela), tirou férias, o que a deixou sem ter com quem conversar, ou quando o residente responsável por seu caso informou que não seria mais seu médico, uma vez que seu ciclo enquanto residente do segundo ano estava terminando; ou quando contou-nos sobre seu marido, morto diante dela na Nigéria, e de suas cinco filhas, que deixou para trás durante sua fuga e de quem desconhecia os paradeiros.

Essa foi, portanto, a primeira intervenção não médica produzida: acionei o serviço de restabelecimento de laços familiares (RLF) da Cruz Vermelha de São Paulo, do qual tomei conhecimento em uma das reuniões de rede em que ele foi apresentado. O serviço utilizava-se das centenas de comitês internacionais da Cruz Vermelha em diversos países para localizar parentes de imigrantes/refugiodas que desconheciam seus respetivos paradeiros - condição muito comum a pessoas forçadas ao deslocamento repentinamente, como no caso de Ashanti -, e colocá-las novamente em contato. Esse serviço não promovia reuniões familiares de imigrantes/refugiadas, mas tornava-as possíveis: Ashanti, por exemplo, não conseguiria nem comprar passagens aéreas para as cinco filhas quando de nosso encontro pois não mantinha nenhum contato com elas, tampouco sabia seus paradeiros. O profissional da Cruz Vermelha me foi muito solícito, e requisitou-me informações sobre Ashanti, além de realizar uma visita ao centro de acolhida onde ela estava albergada para colher mais informações presencialmente. Suas filhas, entretanto, ainda não haviam sido localizadas até o momento de escrita deste artigo.

Outra questão premente à gerência do caso de Ashanti era sua vivência no centro de acolhida onde estava albergada. Em uma das consultas, ela relatou a mim e à residente que a atendia que havia brigado com uma de suas colegas de quarto. A colega dizia que ela estava roncando muito alto - o que Ashanti acreditava ser efeito da medicação que estava tomando, que a fazia dormir mais profundamente -, e a acordou durante a noite sacolejando o beliche que as duas dividiam. Ashanti disse que a colega a chamava de “macaca”, “africana”, ordenando que “voltasse para seu país” e que agora, “com Bolsonaro presidente”, ela seria expulsa definitivamente do Brasil. Para entender melhor a situação, solicitei à Ashanti permissão para visitá-la no centro de acolhida, localizado na zona leste de São Paulo, e ela de pronto autorizou. Marcamos um dia, e Ashanti esperou-me em uma praça próxima ao local junto a uma colega haitiana que também morava lá. Caminhamos até o centro de acolhida por uma rua movimentada, repleta de estabelecimentos comerciais, e as pessoas com quem cruzávamos iam acompanhando-nos com os olhos ao ouvir palavras pronunciadas em krèyol e inglês. Chegamos a um prédio branco com dois andares aparentes desde a rua, delimitado por uma grade que, por sua vez, era reforçada por placas de acrílico que cortavam a visão do interior do prédio a quem passava pela calçada. Mesmo assim, era possível identificar vultos de pessoas que se aglomeravam próximas à entrada. Ashanti tocou a campainha, e uma funcionária destrancou a porta, autorizando nossa entrada.

O centro de acolhida pululava de gente, entre imigrantes/refugiadas e brasileiras - só eram aceites mulheres e crianças no lugar. Após a entrada, descortinava-se uma espécie de garagem adaptada onde havia uma cozinha americana à direita de quem entra, um aparelho de TV e diversas cadeiras de plástico. À esquerda, uma escada levava ao piso superior onde havia um amplo quarto com dezenas de beliches e armários. À direita, uma outra escada descia ao piso inferior onde havia mais um quarto bastante amplo com camas e armários, e as salas onde a equipe profissional do centro de acolhida trabalhava. Também à direita, havia um acesso ao pátio onde muitas crianças brincavam, observadas por suas mães. Várias moradoras assistiam televisão, uma fazia café enquanto ralhava com a filha e todas observavam, curiosas, minha entrada naquele ambiente - afinal, eu era um homem desconhecido adentrando um abrigo onde só eram permitidas crianças e mulheres. Elas cumprimentavam Ashanti em português, revelando o apelido que lhe haviam dado: “Bom dia, mama!”, ao que ela respondia também em português: “Bom dia!” Ashanti me conduziu, então, ao piso inferior onde localizava-se a sala de Francine, psicóloga do local com quem ela mantinha interlocução mais próxima. Francine explicou-me, então, que a briga havia sido da forma como Ashanti relatara-me, dizendo ainda que a brasileira que começou a briga chamara a polícia no dia e registrara um boletim de ocorrência alegando ter sido agredida com um soco, o que não havia ocorrido. Dessa forma, uma audiência de conciliação estava marcada para dar fim ao processo de maneira amigável sem que fosse preciso conduzi-lo à justiça. Perguntei a Ashanti se ela aceitaria que eu a acompanhasse à audiência, e ela aceitou.

No dia da audiência, combinamos o encontro já no Núcleo Especial Criminal (Necrim) da polícia civil do Estado de São Paulo. A audiência estava prevista para as 14h, e eu cheguei pouco depois das 13h30. Dei meu nome na portaria, e mandei mensagem para Ashanti para saber se ela estava a caminho, mas a mensagem não foi respondida. Resolvi, então, telefonar-lhe: ela atendeu ofegante e com um tom preocupado, dizendo que estava próxima da estação da Luz, no centro de São Paulo - o que era relativamente distante -, mas que não sabia como chegar até o Necrim. Ela chamou ao telefone, então, uma guarda civil metropolitana (GCM), com quem conversei e expliquei a situação, requisitando a ela que, se possível, levasse Ashanti até o Necrim para que ela não perdesse a audiência - além de tudo, Ashanti andava muito devagar e parava frequentemente para retomar o fôlego, pois tinha problemas cardíacos. Já eram 14h40 quando ela finalmente chegou acompanhada de duas GCMs, e subimos à sala onde ocorreria a audiência - sua “rival”, no entanto, já havia prestado esclarecimentos e estava saindo da sala quando a adentramos.

A sala de audiência tinha uma mesa com três cadeiras ao seu redor, e uma outra mesa posicionada perpendicularmente a esta, atrás da qual sentavam-se as mediadoras designadas pela polícia civil para promover a audiência de conciliação. Após relatar mais uma vez a história da briga, entre muitas lágrimas e com ajuda de minha tradução, as oficiais de justiça sugeriram que eu atuasse enquanto mediador junto ao centro de acolhida para promover uma troca de quartos - ou de camas, pelo menos. Foi o que fiz: nesse mesmo dia, entrei em contato com Francine, e ela me disse que havia tentado realizar essa troca antes, mas que as duas haviam se recusado a sair da cama onde estavam. Entretanto, disse que se elas agora estavam de acordo, a troca seria feita - o que efetivamente ocorreu poucos dias mais tarde. Orientei Ashanti sobre a possibilidade de denunciar o crime de injúria racial perpetrado por sua colega de abrigo, mas as agentes da polícia civil, apesar de dizerem que ela tinha o direito de realizar a denúncia, desincentivaram que ela seguisse adiante para “evitar conflitos que seriam piores pra ela”.

Neste mesmo dia, retornando à estação de metrô acompanhado pelo passo lento de Ashanti, comentei com ela que o Brasil tinha uma grande ligação com povos Yorubá (pois sabia que ela era daquela etnia), e que havia palavras em nossa língua derivadas daquele idioma. Ela sorriu, e começou a perguntar quais palavras eram famosas por aqui: citei ilê aiyê, babalaô (bàbáláwo), oxalá (òòsàálá), orixá (òrisà), e alguns nomes específicos, como Ogum, Oxum, Iansã, Exu, Oxóssi, Oyá e outros. Ela demonstrou entusiasmo, e começou a me ensinar saudações e cumprimentos em yorubá: e káàrò (bom dia), e káàsan (boa tarde), e káàlé (boa noite), se àlàáfià ni? (como vai o[a] senhor[a]?), àlàáfià ni, a dupé (vou bem, obrigado), àlàáfià re (não há de quê), odàbó (até logo). Ela me ensinava, eu repetia, e ela ria de minha pronúncia ruim e vacilante, dizendo “oh, Alexandre” enquanto abaixava a cabeça para gargalhar. Essa foi a primeira vez que a vi sorrir.

O caso de Ashanti também demonstra que a ferramenta metodológica do “levar a sério” é fundamental: é preciso que a profissional não descarte as inferências ontológicas formuladas pelas pacientes, pois aprender com elas não é apenas um exercício de interpretação e subsequente tradução à realidade unívoca do mundo e da ciência. Seus mundos também existem da mesma forma que os nossos, e “é óbvio que o etnógrafo tem de acreditar (no sentido de confiar) em seu interlocutor”, pois este não está só a lhe opinar sobre o que algo é, ele está a ensiná-lo (Viveiros de Castro 2002: 136), como Ashanti me ensinava. Mas como alguém que deve, por excelência, duvidar da existência dos mundos de suas interlocutoras, pois estes seriam meras lentes que impedem-nas de ver o que é verdadeiramente real, se comporta diante desse enunciado? Como podem psiquiatras e psicólogas levar a sério o que dizem suas interlocutoras se isso significaria compartilhar de uma visão equivocada acerca do que é real-em-si-mesmo, e torná-las, portanto, habitantes de uma “realidade alternativa”, tal qual suas interlocutoras? Talvez indo em busca da cultura reificável, dos blocos monolíticos inarticuláveis 6 que requerem seu abandono por meio da aculturação ou da assimilação, dos inventários de práticas e costumes e das estereotipias sociológicas, para usar uma expressão de Cardoso (1999): a cultura que cria “modelos explicativos” alheios às “explicações” sobre a realidade unívoca. Essa opção é feita, entretanto, às custas de algumas frustrações de expectativas: a busca pelas imigrantes/refugiadas arquetípicas e hiperculturais frequentemente esbarra em sujeitos reais que resistem em atender aos critérios definidores de um sujeito “possuidor de cultura”, como procurarei demonstrar na próxima seção.

Modernas e pré-modernas: um passado anacrônico e insistente

As atividades didáticas eram, por excelência, um momento de discussão sobre os pilares epistemológicos das práticas “culturalmente sensíveis” empreendidas no ambulatório, e de elaboração do que seria uma prática clínica ideal para uma atuação psiquiátrica ciosa da consideração das variáveis “sociais” e “culturais”. Durante o ano de 2018, acompanhei e ajudei a elaborar atividades didáticas para residentes do segundo ano da residência em psiquiatria. As atividades didáticas dos residentes - uma turma formada exclusivamente por homens composta no ano de 2018 - ocupavam a primeira hora de funcionamento do ambulatório, e abordavam diversos temas. Ao final de cada módulo, que durava um mês - ou quatro aulas, no total -, era prevista uma “formulação cultural”, que fazia parte das avaliações e consistia na aplicação de um modelo adaptado das oito perguntas de Kleinman (cf.Branco-Pereira 2019, 2020; Kleinman, Eisenberg e Good, 2006) para tentar elicitar os “modelos explicativos” das pacientes e tornar explícita a presença da cultura na elaboração das interpretações psicopatológicas.

O módulo de antropologia da saúde foi elaborado por mim, e não foi um módulo popular: em suas avaliações sobre todas as atividades do ambulatório no ano de 2018, as aulas de antropologia foram criticadas por serem consideradas “apenas curiosidade” e por não terem “utilidade” para a prática clínica. A participação dos residentes era praticamente inexistente, e a aula dividia a atenção com celulares e pequenos cochilos. Os textos trabalhados, disponibilizados com meses de antecedência, foram sumariamente ignorados. Além da “formulação cultural”, provas também faziam parte da avaliação dos residentes, e fui o responsável pela formulação e correção de questões sobre o módulo de antropologia, o que também tornou explícita a distância entre o que era tratado em aula e nas leituras sugeridas e as respostas apresentadas - e o baixo rendimento nas avaliações também foi motivo para contestações sobre a utilidade da antropologia enquanto parte das atividades didáticas.

Gostaria, entretanto, de deter-me por um momento nas formulações culturais, que eram oportunidades de presenciar a abordagem “cultural” dos residentes, e como as psiquiatras contribuíam com o debate do caso apresentado. Mais do que isso, eram oportunidades de saber como a ideia de cultura era instrumentalizada nessas discussões para lidar com os casos das imigrantes/refugiadas - como aparecia, com qual “utilidade” para a abordagem terapêutica e, sobretudo, o que era ou não considerado cultura, o que implicava visceralmente a ideia que tinham de uma contribuição a ser feita pela antropologia nesses contextos. A formulação cultural definia-se, portanto, enquanto um momento de invenção da cultura (Wagner 2012).

Em uma das atividades, um dos residentes iniciaria a apresentação da formulação cultural de uma paciente síria que, disse ele, “tinha certeza que ia aparecer muita cultura”. Entretanto, no decorrer da entrevista ele foi paulatinamente frustrado em suas expectativas iniciais:

“Fiz a entrevista, mas quebrei a cara. Ela não falou nada de cultura, nada. Quando eu vi, não tinha tanta diferença com paciente brasileiro. Ela explicava a doença pela biologia, não articulava cultura.” [Registro de campo, janeiro de 2019]

Intrigado, questionei sobre qual era, então, a expectativa dele sobre “aparecer cultura” na entrevista, ao que ele me respondeu que esperava que ela estivesse usando roupas típicas, pinturas corporais, fosse “menos cabeça aberta” e que desse explicações sobre seu sofrimento que fossem diferentes das que ele próprio articulava, o que não aconteceu: o “modelo explicativo” dela coadunava com o dele, o que fazia dessa uma consulta sem cultura - afinal, se o modelo explicativo da paciente coincidisse com o dele, isso significava que aquele não era um modelo explicativo, mas explicação. Se era biologia, não era cultura: apenas era.

Na semana seguinte, outra formulação cultural foi apresentada, e o residente apresentou as mesmas questões: realizando a entrevista da formulação cultural junto a um paciente haitiano, uma das perguntas versava sobre a relação médica-paciente, pontuando que há, por vezes, dificuldades de entendimento entre as duas, uma vez que elas vinham de “diferentes culturas” e tinham expectativas diferentes sobre o tratamento. O enunciado prosseguia questionando o paciente se isso causava-lhe algum tipo de preocupação, e se havia algo que o residente pudesse fazer para prover ao paciente o cuidado que ele considerava precisar. O residente relatou, frustrado, que o paciente respondeu dizendo que “a única questão é que [ele] espera que o médico possa dizer o que ele tem”. Disse também que “ele está ansioso por um diagnóstico e uma explicação”, e que “gostaria que existisse um ‘aparelho’ ou ‘exame’ que pudesse dar essa resposta mais concretamente”. Por fim, o paciente mencionou o fato de que outro médico havia comentado com ele que seus exames de sangue tinham apontado “a falta de uma vitamina” em seu corpo, e gostaria de saber se era possível que essa fosse a causa de seu mal-estar.

Um dos indícios da existência de “cultura”, portanto, é a ausência de explicações análogas às formuladas pela biomedicina. Quanto mais próxima está a paciente do modelo explicativo da médica, menos cultura ela tem, pois se não havia nenhum modelo explicativo exótico, a cultura não estava lá. Em não existindo cultura, não haveria, portanto, equalização necessária a ser feita na abordagem terapêutica, o que dispensaria qualquer mediador nessa relação clínica: qual a utilidade da antropologia e da antropóloga se as pacientes estavam falando de sinapses, de vitaminas, de medicações psicotrópicas e de categorias diagnósticas - ou seja, falando do que é real, e não uma ilusão? Qual a utilidade da antropóloga se não estávamos “em um campo de refugiados ou no meio do mato”, como afirmou a chefe da equipe de psicologia? Se as pacientes tinham acesso à “explicação”, eminentemente moderna, e não um modelo explicativo próprio e pré-moderno, típicos do “meio do mato” ou de campos de refugiados, não havia necessidade de interpretação, tradução e equalização cultural: o modelo explicativo da paciente já havia acessado a realidade unívoca da patologia mental, e todas na sala poderiam ser tratadas como adultas.

Dessa forma, o lugar acultural da médica também diz respeito a um lugar coincidente com o pensamento moderno e com todas as interseções concernentes a estes casos: se a cultura inventa-se no encontro, a crença no fato de que a biomedicina não é uma crença, mas um saber, enquanto todas as outras variações humanas não sabem, mas creem, enraíza-se na produção de uma identificação - transitiva, como todas - com aquelas que se considera produzirem saberes, e não crenças. Se durante a consulta a médica era defrontada com o que ela considerava um saber, e não uma crença, o projeto de considerar a variável cultura na abordagem terapêutica naufragava, pois que ali não havia crença/cultura, mas um saber acultural.

Esse lugar acultural da médica e da medicina só se torna possível diante de uma imigrante/refugiada imaginada enquanto hipercultural. Tudo é linguagem e narrativa quando se trata das imigrantes/refugiadas, e a cultura é a camada acessória que distancia os significados particulares do significado universal - em último grau, são todas iludidas. A cultura produz uma realidade não aferível pelos métodos e instrumentos das tecnociências, que na concepção das praticantes (e de algumas imigrantes/refugiadas) descrevem o univocamente real. Na falta dos mesmos instrumentos, o que resta à imigrante/refugiada hipercultural é produzir narrativas, inventar explicações que, por serem invenções - não no sentido wagneriano de invenção, mas no sentido de uma invenção de significados que falseia a realidade óbvia -, são descontínuas ao significado real do sofrimento expressado e, portanto, do “mundo real” (e não é isto a loucura?). Entretanto, esperar sujeitos hiperculturais (e, portanto, pré-modernos, pois a aculturalidade é sobretudo a superação da crença e a evolução à modernidade) fornece, além de tudo, explicação para as falhas terapêuticas e de adesão ao tratamento: são os “problemas de comunicação”, de Kirmayer e Minas (2000), causados pelos entendimentos exóticos da cultura que afastam as imigrantes/refugiadas dos serviços, desresponsabilizando as praticantes médicas por meio da neutralização da “ameaça à competência profissional representada pela ambiguidade ou resistência ao tratamento de sintomas persistentes” (Kirmayer et al. 2004: 664, tradução livre).

O embate entre a hiperculturalidade das imigrantes/refugiadas e a aculturalidade das médicas também coloca em relevo a “maldição da tolerância”, para usar a expressão de Isabelle Stengers (2011). Na argumentação da autora, tolerância

“É uma mensagem que, como uma ‘palavra mestra’, é instantaneamente aplicada assim que ouvimos, entendemos e aceitamos que ‘nós’ não somos como os outros, aqueles que definimos em termos de crenças que estamos orgulhosos, mas possivelmente também pesarosos, de não mais compartilhar. […] Tolerante é ele, ou ela, que mensura quão dolorosamente pagamos pela perda das ilusões, das certezas que atribuímos àqueles que pensamos ‘acreditar’. […] Eles habitam onde nós, modernos, não podemos retornar a não ser enquanto caricaturas, seitas e déspotas.

Mas a nostalgia e a tolerância em direção aos outros que têm sorte o suficiente de ‘acreditar’ mal esconde nosso orgulho imenso. Nós somos ‘adultos’, nós somos capazes de confrontar um mundo despojado de suas garantias e encantamentos.” (Stengers 2011: 310, tradução livre)

Se a outra só crê, enquanto eu sei - e sei inclusive sobre o que ela crê, como se espera das antropólogas -, a clivagem epistemológica e de acesso a esse substrato humano comum estão dadas de antemão. Se não é possível trazer outras noções de sujeito, doença, cura alheias às articuladas pela ciência, se não é possível hibridizar o serviço, ou seja, se as respostas estão dadas de antemão, não há o que se aprender com imigrantes/refugiadas, tampouco com as antropólogas, que exceda os possíveis inventários de práticas culturais e de comportamentos. As estereotipias socioculturais são “compradas” em grandes blocos que versam sobre as crenças concernentes a estes ou aqueles povos e sobre categorias e modos de pensamentos “nativos”. Entretanto, esses grandes monólitos exotizantes são “comprados” como forma de facilitar a comunicação - é preciso entender o “idioma de sofrimento” expressado, realizar o exercício de tradução para a nosografia médica, estabelecer o método terapêutico e, enfim, traduzi-lo de modo que a paciente entenda -, mas para serem descartados enquanto explicação. Em outras palavras, a médica e a psicóloga até poderiam crer no que a paciente diz, mas, dessa forma, todas estariam erradas. Tolera-se, então, a explicação de forma condescendente, como um adulto tolera a uma criança sabendo que, na realidade, ultrapassa-lhe os conhecimentos sobre a realidade última do mundo. Advém daí o choque dos residentes quando descobrem que uma criança pode acessar os mesmos modelos explicativos que eles, podendo ser “mente aberta” como uma moderna.

São as mentes pré-modernas que creem, pois a cultura é o estágio que precede o conhecimento. Se cultura é tida como uma crença (ou ilusão, ou invenção [no sentido de falsear a realidade], ou alucinação) que incide sobre a univocidade ontológica do mundo real, a divisão aqui realizada permite formular a ideia de que médicas e psicólogas - ou brancas, ocidentais, de classe média ou alta; em outras palavras, as iguais ou as mesmas - sabem, pois não creem, o que é um traço diacrítico da modernidade em relação às temporalidades outras: o abandono da crença em benefício do saber.7 As que têm cultura, portanto, não são todas as imigrantes/refugiadas, mas apenas aquelas localizadas em um ponto passado do tempo, e operam em uma temporalidade superada por aquelas que não creem mais, pois já passaram a saber, transformando este em um serviço de “atualização” temporal. O choque expressado pelos residentes na apresentação dos casos em que as imigrantes/refugiadas articulavam explicações biomédicas para seus infortúnios advém da “descoberta” de imigrantes/refugiadas que, surpreendentemente, em sua concepção, coabitam o tempo presente junto a eles, são modernas como eles: não há crenças a serem inventariadas, pois eles depararam-se com o que se considera ser inequivocamente um saber em contraposição às crenças exóticas, quase alucinatórias e imaginadas. Essa também é uma forma de operar mecanismos de produção de diferença, e de separar pessoas entre “mesmas” ou “iguais”, e “outras” ou “diferentes” - ou seja, de produzir hierarquias entre alteridades (Machado 2008).

Por essa razão, se há uma profusão de serviços de saúde mental “culturalmente competentes”, destinados a atender imigrantes/refugiadas é porque essas últimas são as que têm cultura (não todas, é verdade, apenas as pré-modernas), e eles também operam dentro da lógica do humanitarismo-dádiva (que espera, entre outras coisas, adesão e comprometimento ao tratamento (cf. Branco-Pereira 2019) e coproduzem parte das hierarquias das alteridades fractais observadas em campo (quais conformações mentais são mais ou menos modernas).

Entre as que “têm cultura” - as pré-modernas que se situam tão próximas da crença quanto distantes do saber - estão as brasileiras, contanto que sejam as negras, periféricas, migrantes internas, rurais, indígenas, e todas as coletividades que são simultaneamente vítimas da exclusão do projeto moderno e da tentativa de conversão a ele por meio de uma empreitada civilizatória de atualização temporal. Se as classes médi(c)as “ocidentais” (ou modernas) têm a pretensão de apresentar-se enquanto internacionalmente mais homogêneas entre si do que se considerarmos as similitudes possíveis entre elas e as populações socialmente excluídas em seus respetivos países (o que justifica a aplicação de um método de intervenção elaborado para contextos considerados modernos), a separação realizada entre as “com” e “sem cultura” é também uma separação entre as subjetividades do presente e aquelas de um passado anacrônico e insistente. As classes médi(c)as compartilham do projeto moderno, enquanto às outras relega-se o atraso da pré-modernidade, condicionado e determinado por expressões sociais que pertencem (ou deveriam pertencer) ao passado, como o racismo - e quantas vezes as frases iniciadas com “em pleno 2019…” são reproduzidas para demonstrar choque sobre episódios de racismo, machismo e homofobia, por exemplo, como se essas fossem expressões anacrônicas e impossíveis de existir no presente, embora existam e sejam reproduzidas mesmo por aquelas conscienciosas sobre os malefícios envolvidos na reprodução dessas estruturas de relações sociais. É nesse interlúdio - no encontro, ou no choque - que as culturas de pacientes - imigrantes/refugiadas e outras “alteridades radicais”, como surdas, negras, periféricas, nordestinas, trabalhadoras rurais -, médicas e de todas as outras actantes envolvidas é inventada, e desvela-se o lugar de onde a psiquiatria social e cultural é pensada e praticada: o lugar que se crê moderna, habitante do presente, branca, urbana, detentora da prerrogativa de outorgar ou não o estatuto de sujeito a outrem e, acima de tudo, cujas interpretações sobre a realidade detêm preponderância sobre as das pré-modernas.

Conclusão: breve comentário sobre “levar a sério”

Levar a sério as inferências ontológicas de outrem é um exercício com consequências críticas. É, como argumenta Viveiros de Castro,

“não neutralizar. É, por exemplo, pôr entre parênteses a questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais cognitivos da espécie humana, explica-se por certos modos de transmissão social do conhecimento, exprime uma visão de mundo culturalmente particular, valida funcionalmente a distribuição do poder político, e outras tantas formas de neutralização do pensamento alheio.” (Viveiros de Castro 2002: 129)

Dessa forma, é preciso, sim, imaginar o pensamento alheio como um sistema de crenças, mas não nos termos psicologicistas ou psiquiatrizistas de crença enquanto ilusão, “nem nos termos logicistas do valor de verdade” (Viveiros de Castro 2002: 130), pois não é o caso de considerar essas formulações como opiniões (objetos de crença e descrença), ou como um conjunto de proposições (passíveis de juízos de verdade). Se a crença, prossegue Viveiros de Castro valendo-se de Latour, é mais um efeito de relações entre os povos do que um estado mental (Latour 2002), considerá-la enquanto uma opinião ou um conjunto de proposições torna a cultura “uma teratologia epistêmica: erro, ilusão, loucura, ideologia…” (Viveiros de Castro 2002: 130, ênfase minha).

À psiquiatra e à psicóloga, abandonar a relação clínica enquanto eminentemente hermenêutica e interpretativa em benefício de uma relação ontológica e epistemologicamente simétrica é, portanto, virtualmente impossível. Abster-se de neutralizar o pensamento alheio e de versar sobre universais cognitivos da espécie humana é, em certa medida, estar realizando o mesmo erro de interpretação - cultural - que torna sua interlocutora produtora de um mundo que não existe, ou seja, que não atrela o pensamento simbólico aos índices e ícones unívocos do mundo (Kohn 2013). Se a loucura é, como argumenta Kohn, o pensamento simbólico radicalmente descontinuado das bases indexicais que nossos corpos podem fornecer sobre o mundo externo, criando, assim, mentes radicalmente separadas das bases inequivocamente unívocas do mundo, levar esse pensamento simbólico a sério é não apenas desaconselhável para suas práticas clínicas, mas contraria a própria substância - que é a desconfiança, mas isso é assunto para outro artigo - da qual essa relação clínica entre paciente e psiquiatra/psicóloga é constituída, e isso a despeito das tentativas em contrário. É a relação que funda a doença e a saúde mental, e os mundos não compartilhados são a própria substância das alucinações - produzir um mundo eminentemente individual, intransitivo e incomunicável é, portanto, loucura: a incapacidade de produzir trocas simbólicas. Para que a psiquiatria e a psicologia existam, é necessário que, antes de mais nada, se creia que os mundos de suas pacientes não existem - ou não existem como elas próprias formulam -, para que então as patologias mentais possam existir.

Isso não quer dizer que psiquiatras e psicólogas duvidem da existência do sofrimento enquanto substrato produzido pelos estados de adoecimento mental. As vulnerabilidades produzem, sim, sofrimento: no entanto, é preciso reinterpretá-las para descobrir o que realmente significam. Eram falhas de adaptação cultural, estresse crônico e múltiplo derivado do processo migratório, estresse de aculturação, traumas (cicatrizes psicológicas) derivados de situações extremas, racismo, entre outros modelos explicativos das psiquiatras e psicólogas erigidos enquanto explicações. O sofrimento teria uma base estrutural universalizável codificada em manuais clínicos psicológicos e psiquiátricos, e uma simples tradução daria conta da tarefa de interpretá-lo da maneira correta, tirando a camada acessória das crenças culturais e das vulnerabilidades sociais do caminho: os idiomas de sofrimento apenas indicavam que abaixo dos estratos culturais repousava o sofrimento unívoco já acessado e descrito na literatura científica desses campos de conhecimento.

O modelo, então, não rompe como pretende com as lógicas que privilegiam a interpretação biomédica, ou “materialista ingênua”, apesar de suas tentativas expressas de fazê-lo - e o fato de existirem essas tentativas já garante uma descontinuação importante em relação àquilo que se chama de “psiquiatria hegemônica”. No entanto, a abordagem é ainda reducionista, e ainda não considera o símbolo e a dimensão simbólica como possuidores de agência, como mônadas (Leibniz 2016 [1714]; Tarde 2018), ou algo-em-si-mesmo: ele é sempre acessório ao mundo real. Essa abordagem falha em compreender o símbolo enquanto igualmente real, e enquanto produtor de realidades - enquanto o tropo, ou a metáfora obviada (Wagner 2017). O pensamento, que não está no cérebro, está no símbolo e nas relações, pavimenta a construção dos mundos comuns possíveis. O lugar da agência da biologia, portanto, também não pode permanecer inarticulado: ele se inventa nas articulações postas em relação e no símbolo. Reconhecer a realidade das dimensões simbólicas e relacionais não é subsumi-las à biologia, mas levá-las em consideração em si mesmas, e de maneira dinâmica e processual. Dessa forma, os símbolos e relações estão sempre em disputa, em construção e reconstrução semântica, e é preciso um método de investigação etnográfico para acompanhá-los e levá-los a sério em si mesmos, e não enquanto uma camada acessória à realidade.

Assim sendo, a estereotipia sociocultural (os grandes blocos monolíticos sobre as culturas e sociedades das “alteridades radicais”, representadas por imigrantes/refugiadas e surdas) torna-se virtualmente intransponível para essas profissionais. Para psiquiatras e psicólogas acreditarem em suas pacientes (em especial, aquelas munidas de “cultura”), elas precisariam acreditar que elas próprias estariam erradas e deixar, então, de serem psiquiatras e psicólogas. Quem “acredita em tudo”, como pontuou um interlocutor psiquiatra, são as etnógrafas, e talvez por isso torna-se necessária sua presença nesses contextos, e não apenas uma ideia amputada de “transculturalidade”: a antropóloga não só pode, como deve, enquanto instrumento teórico-metodológico próprio da disciplina, levar a sério o que dizem suas interlocutoras. Sem a antropóloga atuando no interlúdio dessas relações clínicas críticas, o mais provável é que a “cultura” se torne apenas uma outra forma de estereotipia sociocultural bem-intencionada, um multiculturalismo consciencioso e complacente que, em último grau, crê-se dialogando enquanto apenas monologa - e surdas são sempre as outras.

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1 Esse artigo é uma versão adaptada do quarto capítulo de minha dissertação de mestrado e de meu livro (Branco-Pereira 2019, 2020). A pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes).

2Não revelarei o nome dos serviços de saúde pesquisados, tampouco o de suas frequentadoras, sejam elas parte da equipe profissional ou pacientes.

3Utilizarei o termo imigrantes/refugiadas como forma de ressaltar as múltiplas experiências dos sujeitos descritos neste artigo na intenção de borrar as margens delimitadas pela categoria jurídico-estatal do refúgio e tentar pontuar as nuances da experiência do refúgio e da imigração no Brasil. Já a escolha pela escrita na concordância nominal feminina tem fins teóricos - serve para fazer justiça estatística à maciça presença feminina no cenário pesquisado, e para borrar identidades de ambientes frequentados por uma multidão de mulheres (Fleischer 2018) - e políticos: a intenção é deslocar o entendimento que concede gênero a tudo que não é masculino, reservando ao feminino o lugar de variação particular de um tipo de humanidade universal representada pelo homem. O desconforto na leitura intenciona estimular uma equalização cognitiva contínua por parte da leitora, sempre retornando ao estranhamento de não ver reificado o lugar do masculino enquanto estrutura basal da humanidade a partir da qual o feminino apenas varia - e essa argumentação pode ser transposta para outras searas onde essa falsa dicotomia entre universais e particulares é mobilizada.

4“Bom dia, como vai você? Como você se chama?”, em krèyol.

5“Bom dia, tudo bem?”, em yorubá.

6“Se a cultura fosse uma ‘coisa’ absoluta, objetiva, ‘aprender’ uma cultura se daria da mesma forma para todas as pessoas, tanto nativos como forasteiros, tanto adultos como crianças. Mas as pessoas têm todo o tipo de predisposições e inclinações, e a noção de cultura enquanto uma entidade objetiva, inflexível, só pode ser útil como uma espécie de ‘muleta’ para auxiliar o antropólogo em sua invenção e entendimento.” (Wagner 2012: 52).

7É curioso como um traço que atravessa todos os trabalhos analisados é uma espécie de “confissão de culpa”, reconhecendo que quem escreve também crê, e não só sabe. Esse reconhecimento, não obstante, também estabelece uma clivagem: há um outro patamar destinado àquelas que sabem tanto a ponto de terem consciência de que creem, em contraste àquelas tidas como tão ignorantes que levam a vida crendo que sabem. A posição moderna, livre das crenças e capaz de enfrentar o mundo despojado de suas garantias e encantamentos, é uma posição privilegiada de produção e aferição do que é real ou não.

Recebido: 17 de Março de 2020; Revisado: 01 de Maio de 2021; Aceito: 17 de Junho de 2021

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