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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.25 no.2 Lisboa ago. 2021  Epub 25-Nov-2021

https://doi.org/10.4000/etnografica.10524 

Artigos Originais

Técnica e aprendizagem: a bykyrè e as esteiras Iny da Coleção William Lipkind (1938)

Technique and apprenticeship: bykyrè and Iny mats from the William Lipkind Collection (1938)

Marília Caetano Rodrigues Moraisi 
http://orcid.org/0000-0002-0498-4778

i Universidade Federal de Goiás, Brasil, mmoraisufg@gmail.com


Resumo

Entre os Iny, povos indígenas do Brasil mais conhecidos na literatura etnográfica como Karajá, um dos artefatos mais presentes nas aldeias é a bykyrè, termo na língua Iny utilizado para se referir à esteira. No presente artigo, proponho refletir sobre como o estudo etnográfico da bykyrè, realizado junto a professores Iny, a partir de uma abordagem processual da técnica e da aprendizagem, pode contribuir para entender persistências e transformações da técnica de uma geração para a próxima; e qual o lugar do acervo de fotografias e documentos da Coleção Lipkind (1938) do Museu Nacional (UFRJ) nesse processo. Seguindo a indicação de Ingold (2000, 2012) em tentar trazer as esteiras de volta à vida, após o trágico incêndio que destruiu a coleção em 2018, argumento que, seja através de noções como as de imitação prestigiosa (Mauss 2003, 1948, 2010), participação periférica (Lave e Wenger 1991), habilitação (Ingold 2000) ou educação da atenção (Gibson 1979), entender como se dá a entrada da criança na produção da bykyrè e o lugar da Coleção Lipkind, passa por uma etnografia fina da bykyrè enquanto aprendizagem de um processo técnico e precisa estar fortemente enlaçada a uma etnografia da relação entre gerações.

Palavras-chave: antropologia da técnica; aprendizagem; museus e coleções etnográficas; cultura material; iny karajá

Abstract

Among the Iny, indigenous peoples of Brazil best known in ethnographic literature as Karajá, one of the most present artifacts in the villages is a bykyrè, a term in the Iny language used to refer to mats. In this article, I propose to reflect on how the ethnographic study of bykyrè, conducted with Iny teachers, from a procedural approach of technique and of learning, can contribute to understanding persistences and transformations of technique from one generation to the next; and what is the place of the photographs and documents from the Lipkind Collection (1938) of the National Museum (UFRJ) in this process. Following the appointment of Ingold (2000, 2012) in trying to bring mats of Lipkind collection back to life, after the tragic fire that destroyed the collection in 2018, it is argued that understand how the child’s entry into the production of the bykyrè and the place of the Lipkind Collection, goes through a fine ethnography of the mats while learning a technical process and needs to be strongly linked to an ethnography of the relationship between different generations.

Keywords: anthropology of technique, learning; museums and ethnographic collections, material culture, Iny Karajá

Introdução

Iny é como se autodenominam os povos indígenas mais conhecidos na literatura etnográfica como Karajá. Suas aldeias encontram-se na região central do Brasil (Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Porto Alegre), onde esteve entre 1938 e 1939 o antropólogo estadunidense William Lipkind (1904-1974), sob os paradigmas do culturalismo. Sua expedição foi possibilitada devido a um acordo informal entre o Museu Nacional do Rio de Janeiro e a Universidade de Columbia para a realização de pesquisas e a formação de etnólogos brasileiros. Nesse período, Lipkind coletou cerca de 527 artefatos de origem Javaé, Kaiapó, Tapirapé, Karajá, e outros que ainda não têm procedência especificada na documentação, registrados no livro-tombo na denominada Coleção William Lipkind (tabela 1). Sendo que 264 desses artefatos são pertencentes ao subgrupo “Karajá” (Lima Filho 2017). Durante 80 anos, a Coleção William Lipkind fez parte do acervo do setor de etnologia e etnografia do Museu Nacional do Rio de Janeiro (UFRJ), até o dia 2 de setembro de 2018, quando foi destruída durante o incêndio de grandes proporções que atingiu o edifício histórico que abrigava o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista.

Tabela 1: Classificação tipológica e por etnia da Coleção William Lipkind 

Fonte: Lima Filho 2017

Durante a graduação, trabalhei na qualificação compartilhada do acervo da coleção Lipkind, junto a professores Iny que são alunos do Núcleo Takinahak de Formação Superior Indígena (NTFSI) da Universidade Federal de Goiás (UFG). No ano de 2018 realizei entrevistas e oficinas no NTFSI (Goiânia, GO) e tive uma breve experiência etnográfica nas aldeias JK1 e Santa Isabel do Morro (ilha do Bananal - Tocantins), utilizando cartões fotográficos e fichas museográficas da coleção.

Entre os Iny, um dos artefatos mais presentes e multifuncionais nas aldeias é a bykyrè, termo na língua Iny utilizado para se referir à esteira. Meu interesse por ela surgiu em campo, no encontro com Raquel Manakiru Karajá - 52 anos, professora na aldeia Santa Isabel do Morro e aluna do NTFSI - que estava tecendo uma bykyrè para sua filha quando estive em sua aldeia e se interessou pelas esteiras “antigas” da Coleção Lipkind. Raquel também estava trabalhando com a bykyrè como tema contextual de sua pesquisa de estágio, que acompanhei, assim como a de Brewy Karajá - 36 anos, professor na aldeia Santa Isabel do Morro e aluno do NTFSI - também sobre as esteiras Iny.

A aprendizagem da técnica da bykyrè tornou-se uma das principais questões a acompanhar minha inserção etnográfica. No presente artigo, proponho refletir sobre como o estudo etnográfico da bykyrè, realizado junto a professores Iny, a partir de uma abordagem processual da técnica e da aprendizagem, pode contribuir para entender persistências e transformações da técnica de uma geração para a próxima e qual o lugar do acervo de fotografias e documentos da Coleção Lipkind nesse processo.

Sigo a indicação de Ingold (2000, 2012) em tentar trazer as esteiras da Coleção Lipkind de volta à vida, em uma abordagem que compreende a produção do conhecimento pelo engajamento e imersão dos sujeitos no mundo imediato e material da experiência; e compreende a técnica como uma forma prática de relação habilidosa com o ambiente. Considero, também, o conceito de “conhecimento”, proposto por Barth (2000), como aquilo que as pessoas empregam para interpretar e agir sobre o mundo, ou seja, o “conhecimento” remete ao engajamento das pessoas no mundo.

Bykyrè e o “grande supermercado de ideias”

A definição de trançados e cestaria indígenas, bem como a elaboração de taxonomias e classificações para seu estudo, foram discutidas por autores como Mason (1904), Mauss (1972), Leroi-Gourhan (1971), Hodge (1907), Balfet (1952), Adovasio (1977) e O’Neale (1986). Mais próximo ao contexto dos Iny, os trabalhos sobre a arte do trançado dos índios do Brasil de Ribeiro (1985, 1986, 1988), sobre os trançados indígenas norte amazônicos de van Velthem (2007) e a etnografia da cesta Karajá de Taveira (2012).

Lipkind (1948), em seu artigo “The Carajá”, publicado no Handbook of South American Indians, menciona a esteira quando aborda o tema “Lifecycle” no tópico “Death”; em “Esthetic and recreational activities”, no tópico “Art”; e ao descrever as casas das aldeias Iny, dizendo que “mats used for sleeping and sitting are spread over the entire floor” (Lipkind 1948: 188). Ehrenreich (1948) também afirma que o interior das casas é bem simples, sendo uma parte do chão revestida de esteiras de buriti, sobre as quais também se dorme. E que esteiras podem ser usadas como sandálias, no caso de precisar ficar em pé, por um longo tempo, sobre a areia muito quente (Ehrenreich 1948).

Ribeiro (1988), sobre os usos dos trançados dos Iny, informa que as esteiras são usadas como: “paraventos ou como paredes divisórias internas e portas”; “tapetes para sentar, comer ou dormir”; “parasóis”; “poltronas, cestos-sacolas e urus para carregar pequenos objetos nas viagens”; “sandálias (descartáveis ou permanentes)”; e “máscaras cerimoniais de palha trançada usadas em festividades tribais” (Ribeiro 1988: 41).

Fonte: O’Neale 1986: 340

Figura 1: “Esteira trançada usada para dormir pelas moças Karajá” 

O’Neale (1986), em tópico dedicado às “Esteiras”, apresenta em seu trabalho a imagem de uma esteira Iny (figura 1), com as seguintes informações a respeito de suas funções: “são usadas esteiras para formar o teto da casa”; “constituem também parte do mobiliário de habitação, com elas se cobre o chão das vivendas”; “entre os Karajá, os pescadores utilizam artefatos desse tipo quando têm de passar as horas quentes do dia na beira do rio”; e “podem ser utilizadas a modo de peneira” (O’Neale 1986: 340).

Na Coleção Lipkind, foram localizadas seis esteiras do subgrupo “Karajá” (figura 2), com números de registro: 28.686, 28.687, 30.833, 30.834, 36.541 e 36.542. As fichas museográficas apresentam informações como: localização, nome do objeto, subgrupo étnico/linguístico, forma de aquisição, região, categoria, função, medidas, material, descrição e notas gerais. A técnica utilizada na confecção das esteiras, indicadas em suas fichas, é a chamada “técnica de trançado torcido vertical” (figura 3). Como todas as fichas têm como referência bibliográfica o trabalho de Ribeiro (1988), entende-se por trançado torcido vertical a seguinte definição: “consiste em um par de talos flexíveis ou fios lançados sobre si mesmos que, simultaneamente, em cada meia volta, englobam um elemento da urdidura que corre em sentido contrário, envolvendo-o transversalmente” (Ribeiro 1988).

Fonte: Fichas Museográficas da Coleção W. Lipkind (1938)

Figura 2: Esteira 30.833 da coleção W. Lipkind (1938) do Museu Nacional 

Fonte: Ribeiro 1986: 286

Figura 3 : Trançado torcido vertical 

Para uma melhor compreensão da técnica mencionada, destaco a definição de alguns termos utilizados relacionados ao buriti (figura 4): olho, palha, seda, urdidura e trama. O olho do buriti é a folha de palmeira antes de se abrir, ou seja, a prefoliação, outros nomes possíveis são broto, grelo e pendão. Do olho do buriti, é possível extrair a palha - base da bykyrè - e a seda - utilizada para trançar os feixes de palha. Urdidura é o elemento rígido e passivo do trançado. E a trama é o elemento (ou conjunto de elementos) ativo e móvel, que entrecruza uma série de elementos passivos, a urdidura, para formar o trançado (Ribeiro 1988).

Fonte: Ribeiro 1986: 286

Figura 4 : Buriti (Trithrinax acantocoma) 

Considerando que há muitas variáveis que incidem no processo de produção da bykyrè, busco apresentar sua cadeia operatória brevemente, como um instrumento metodológico de aproximação àquela prática. Ou seja, para o registro do que é mobilizado e recrutado por aquele que age no curso da operação - ou da sequência de operações (Coupaye 2017), com base na sequência apresentada por Brewy (Karajá 2018) nos slides de sua apresentação de estágio (figuras 5, 6, 7 e 8).

Figura 5: Slide: Local onde foi retirado “olho” do buriti (esq.). Sogra de Brewy separando a “palha” e a “seda” (dir.) 

Figura 6: Slide: Colocando a palha para secar amarradas em molhos (esq.). Panela em cima do forno com água fervendo para tingir as fibras e palhas pendura das (dir.) 

Figura 7: Slide: Fibras do buriti sendo tingidas com tinta tori (artificiais) 

Figura 8: Slide: Mulheres podem fazer partes separadas de bykyrè, aproximada mente 40 cm × 2 m, quando terminam, juntam as partes 

Os materiais acionados e mencionados na produção da bykyrè são: buriti, facão, moto, bicicleta, voadeira, palha, seda, fogo, tinta e panela. Os homens são responsáveis por ir até as áreas de inundação, “juncos” ou “aguapés”,2 retirar e transportar a matéria-prima básica de confecção da bykyrè: o olho do buriti. O que em 1938 provavelmente foi feito utilizando “as costas” como meio de transporte, hoje é feito com motos, bicicletas e voadeiras.

Os desenhos nas esteiras remetem a outros artefatos, animais, narrativas mitológicas e ao corpo humano. Depois de secar as palhas estendidas no sol, é preciso tingir as fibras, caso se trate de uma bykyrè com desenhos. Raquel comentou que utiliza tinta tori.3 Em suas escolhas técnicas, ela agencia repertórios de possibilidades adequados, independentemente da origem dos objetos desejados (Mura 2011), sejam essas escolhas voltadas a produzir os elementos necessários a partir do “grande supermercado de ideias”, como se refere ao buriti, ou a adquiri-los em sua “roça na cidade”, como se refere ao mercado de São Félix do Araguaia, MT (cidade localizada a seis quilómetros da aldeia).

A bykyrè está presente desde a narrativa mitológica da criação do mundo até os rituais funerários Iny. A produção da esteira exige o estabelecimento de uma relação em movimento, entre as mulheres Iny, seus antepassados, filhos, netos, maridos, bròtyrè,4 buriti e outros artefatos; e faz parte de fluxos da produção dos ciclos de vida e de parentesco. Para não recair em uma abordagem da técnica puramente descritiva e pensar a técnica para além de uma ação sobre uma matéria inerte, levo em consideração que pode-se compreender como técnica “uma relação que abarca humanos e não humanos, mediada ou não por objetos, orientada por algum tipo de finalidade, eficácia ou devir, e que assume um caráter significativo para os modos de existência de seres e coisas envolvidos” (Sautchuk 2017: 11).

Parentes, materiais e relações: “num emaranhado de folhas e flores são tecidas as esteiras”

“A tenda da terra era o céu, vazio e abandonado. Kynyxiwe fez crescer os cabelos da terra - as árvores. Eram as raízes que rasgavam o chão e os troncos que subiam ramificando-se em galhos que se cobriram de folhas aumentando as sombras. Depois brotaram as flores perfumadas que dão origem às florestas. Outras plantas rasteiras inundavam as baixadas num emaranhado de folhas e flores, tecendo as esteiras com desenhos, tornando o chão macio. […] Kynyxiwe continua como um pensamento bom, e as coisas que criou fazem parte de seu corpo; quando algo perde o ritmo, ele sabe no mesmo instante.” (Lima Filho 1994: 140; destaques meus)

Ao perceber, então, as coisas não mais como um objeto autocontido, mas como um acontecer verbal (ação, processo, formação, crescimento, movimento), a esteira aparece como “uma teia ramificante de linhas de crescimento” (Ingold 2012: 41). Ao habitar o mundo, somos envolvidos por uma complexa malha de relações que é tecida pelas linhas que compõem a vida dessas coisas. Ao analisar o mito Iny da criação do mundo, citado do trecho acima, não é apenas o aparente uso das palavras “emaranhado” e “coisas”, que nos remete aos conceitos de Ingold. A bykyrè em sua produção, usos e aprendizagem forma um emaranhado em torno do qual giram diversos outros temas.

Os mitos de criação podem ser interessantes para compreender como a aparição de seres vivos e suas características funcionais pode ser explicada por processos técnicos executados por entidades não humanas (Pitrou 2016). Inclusive, para pôr em “xeque” as concepções teóricas que já foram formuladas em relação a “o que é vida”, considerada em suas várias dimensões, para cada grupo. No caso do trecho acima, transcrição de uma narrativa mitológica da criação do mundo contada por um hari (xamã), as criações de Kynyxiwe - criador do mundo Iny, ser que possui poderes transformadores (Lima Filho 1994) - fazem parte do seu próprio corpo (“Kynyxiwe continua como um pensamento bom, e as coisas que criou fazem parte de seu corpo”). Ao apresentar a transformação de “folhas e flores” em esteiras, fala de um procedimento técnico repetido de geração em geração e da imbricação entre processos técnicos e processos vitais (Lemonnier 2013).

Seria pertinente realizar uma análise sistemática mais profunda das narrativas de origem do mundo Iny para afirmar algo mais aproximado da concepção cosmológica Iny, mas é possível perceber certa semelhança entre o agir de Kynyxiwe ao criar o mundo e o ritmo exigido das mulheres Iny ao (re)criar as esteiras. Entre o ritmo das criações de Kynyxiwe (“quando algo perde o ritmo, ele sabe no mesmo instante”) e o ritmo exigido das mulheres ao trançar as palhas do buriti. Segundo Rodrigues (2008), ao tecer a bykyrè, deve-se cuidar para que o espaço entre as palhas seja estreito e que sejam trançadas de modo bem apertado e próximo. Caso contrário, se houver um espaço grande entre as amarrações, a mãe da criança poderá ser acusada de preguiçosa.

Desde dentro da barriga da mãe a criança é inserida numa malha de afetos e cuidados por meio dos quais as pessoas se produzem como parentes umas para as outras, povoando intensamente a memória de seus pais e avós. Com a notícia da gravidez, a mãe, ou a avó, passam a dedicar de três a cinco meses de trabalho diário para a confecção de uma esteira, que será usada no ritual de pintura do recém-nascido (Nunes 2016).

Raquel sabe fazer esteiras, cestos, brincos, dexi e dekobute (adornos corporais utilizados em rituais e festas), ritxoko (bonecas de cerâmica) e artesanato com capim dourado, mas gosta mais de fazer coisas com palha. Ela disse que puxou isso de sua mãe. Sua filha, Djurambi (11 anos), também preferia fazer esteiras e já aprendia a tecer, pois estava “quase perto de menstruar”. Durante o período que está menstruada, a jovem Iny fica reclusa em casa e, como diz Raquel, tem de tecer tudo “bem perfeitinho”. Fazer algo torto pode provocar consequências negativas por toda a sua vida.

Ao término do fluxo menstrual, a moça é enfeitada e algumas parentas são convidadas para fazerem bròtyrè, o que pode ser compreendido como uma prática em que um conjunto de parentes, no contexto de algum ritual, se submetem ao mesmo tipo de coisa a que uma criança está passando (de forma atenuada) em prol dela e recebem um “pagamento” da família. A bykyrè é vista como um item valioso a ser oferecido como bròtyrè (Nunes 2016). Para a festa do Hetohok , iniciação masculina, a mãe do menino faz três esteiras que após o ritual são presenteadas aos seus parentes bròtyrè (Lima Filho 1994). No ritual funerário, o corpo do morto é adornado dentro da esteira que era utilizada pela pessoa em vida, onde são colocados seus objetos como flechas, machados, facão, roupas e panelas (Rodrigues 2008).

Como visto, a produção da bykyrè demanda o engajamento de uma série de parentes, materiais e relações. Os rituais citados, relacionados ao ciclo da vida, parecem fornecer ocasiões para que o processo de confecção das esteiras seja entendido, também, como situações específicas de bròtyrè onde as pessoas se produzem reciprocamente como parentes. Para Nunes (2016), esses momentos de confecção dos artefatos para os rituais podem ser vistos como um “aquecimento do processo do parentesco” (Nunes 2016).

Técnica, habilidade e aprendizagem: “os velhos vão fazendo e falando o conhecimento”

Considerando a indissociabilidade entre os sistemas simbólicos e os fazeres técnicos no estudo da técnica, Mauss aborda o problema da educação e da relação entre as gerações definindo educação como um ato de “imitação prestigiosa”, “imposto de fora e do alto” (Mauss 2003, 1948, 2010). A partir dessa noção, observo que as meninas Iny são introduzidas nas técnicas de produção da bykyrè desde muito cedo, imitando e ajudando suas mães, irmãs mais velhas e avós na preparação das fibras para o trançado e desenvolvendo suas habilidades através de uma “participação periférica” (Lave e Wenger 1991). Porém, longe de responder a comandos emitidos de uma fonte superior e externa, como propôs Mauss, seus movimentos parecem carregar intencionalidades que se desdobram em um diálogo contínuo com o material, onde o corpo não é movido como um objeto rígido, mas torna-se um com o fluxo (Ingold 2000).

Fazer esteiras não é algo trivial, sua produção demanda conhecimentos específicos, quando ensinam suas filhas e netas a trançar, as mães e avós “contam as histórias dos antigos, dão ensinamentos e conselhos”. Elas não orientam o aprendizado da técnica no sentido professoral, mas criam situações nas quais as aprendizes são instruídas a “pegar o jeito da coisa”. A destreza e habilidade em trançar depende de um fino ajustamento de percepção visual, assim como do tato.

“A criança observa o trabalho dos mais velhos, busca imitá-lo por vezes, e ao fazê-lo é incentivada pela pessoa que tem maior responsabilidade na sua educação. As meninas, ao aproximar-se a idade de se casarem (12 a 17 anos), devem aprender a confeccionar as esteiras de palha de buriti e a tecer os ornamentos de algodão que usam nos punhos, e abaixo dos joelhos e nos tornozelos. No entanto, a jovem Karajá procura aprender ou aperfeiçoar seu conhecimento das técnicas artesanais só quando tem a necessidade de fazê-los, geralmente após o casamento, quando faz as esteiras de seu grupo conjugal e os enfeites de algodão para os filhos e o marido.” (Costa 1978: 64-65)

Na adolescência, todas as meninas dominam as técnicas de trançar, a perspicácia visual e a sensibilidade adequada para a realização do movimento rítmico. Ingold, com a noção de “habilitação”, entende que nesse processo cada geração contribui para a próxima, não por entregar um corpus de representações ou informações em sentido estrito, mas ao introduzir os neófitos em contextos que oferecem oportunidades selecionadas para percepção e ação (Ingold 2000, 2010). O que Gibson chamou de “educação de atenção” (Gibson 1979).

Nesse sentindo, Sautchuk (2015) considera que Ingold (2010) desenvolve a mais potente formulação acerca da aprendizagem na Antropologia em relação à “prática” e à “experiência” visto que, entre outas razões, a sua abordagem concentra o debate sobre aprendizagem nos temas mais em voga da discussão sobre a dicotomia natureza e cultura e seus derivados. Ingold avança numa “apreciação etnográfica da aprendizagem para além de sua dinâmica sociológica, incluindo no cerne das preocupações as relações com os artefatos, com os ritmos e com tudo aquilo que poderíamos considerar no âmbito de um processo psicológico” (Sautchuk 2015: 121).

As habilidades, técnicas, desenhos e grafismos são uma questão importante para Raquel que decidiu trabalhar com a esteira em sua pesquisa de estágio (figura 9), seu objetivo é “manter sempre viva a prática de produção de esteiras, porque é importante cada detalhe de tecer, as habilidades adquiridas e os desenhos que são feitos”. Raquel acrescentou que “devemos valorizar mais os produtos usados na fabricação das esteiras como a palha do buriti, os juncos e aguapés” e que é preciso “conscientizar os jovens para não queimar estes produtos naturais de grande importância pra cultura Iny”. Assim como Brewy destaca a valorização da bykyrè como algo importante para gerar situações de aprendizagem e trocas de saberes, também demonstra preocupação com as queimadas e com o esquecimento das técnicas de trançar, reforçando a ideia de um engajamento no que chamam de “retomada de saberes”.

Fonte: Acervo pessoal, Ilha do Bananal (TO), 2018

Figura 9: Raquel Manakiru apresentando os objetivos do seu trabalho de estágio 

Como apontou Raquel sobre a Coleção Lipkind, fotografias antigas e o conhecimento escrito são importantes porque “ajudam a lembrar”, mas é preciso “esticar aquele conhecimento”, assim como os “os velhos vão fazendo e falando o conhecimento”. Ou seja, o conhecimento sobre as esteiras produzido a partir de uma lógica ocidental e museal pode evocar outros conhecimentos sobre a bykyrè onde se estabelecem diversos tipos de relações sociais entre humanos e não humanos (Barth 2000), mas é preciso colocá-los em movimento.

Raquel, ao fazer sozinha uma bykyrè que ela já viu alguém fazer antes, é como se estivesse andando ao longo de um caminho que já percorreu antes acompanhada por outra pessoa. Ela se lembra à medida que vai andando, e “ir andando” significa encontrar seu próprio caminho pelo terreno da experiência, processo a que Ingold chama de “ato de recordar” (Ingold 2010). É fácil perceber que nenhuma fotografia ou ficha museográfica vem com instruções exatas a ponto de alguém, olhando/lendo, ser capaz de convertê-las em comportamento/habilidade. É esperado de Raquel (e das jovens Iny) que “seja capaz de achar o seu caminho, com atenção e sensibilidade, mas sem depender de outras regras explícitas de procedimento - ou, numa só palavra, habilidosamente” (Ingold 2010: 19).

Considerações finais

Os professores Iny, quando falam de “retomada de saberes”, falam em termos de “acordar”, de despertar algo que está ali, mas é deixado de lado. Em analogia à vida das coisas (Ingold 2012) da Coleção Lipkind, é como se esses saberes, práticas e técnicas, estivessem em um “estado de latência”. Ao verem os artefatos antigos, é estabelecida uma relação entre o movimento de ondulação dialética da memória e da própria “vida” dessas esteiras. Mesmo retiradas da vida doméstica e de seus contextos, elas ainda carregam em si processos e memórias latentes que podem ser colocados em determinados fluxos em que vão ter seus sentidos ora expandidos e estimulados - mesmo que agora, no caso das coleções do Museu Nacional, isso seja possível somente através de fotografias e fichas museológicas - ora adormecidos (Bachelard 1993, 1994).

Após o incêndio do Museu Nacional, a Coleção Lipkind não existe mais fisicamente. No entanto, através das fotografias, das fichas museográficas e da pesquisa compartilhada com indígenas do povo Iny, como placas de sinalização numa paisagem (Ingold 2010), o material pode “ajudar a lembrar” e dar direções para a “retomada dos saberes” que estão sendo esquecidos, colocando em movimento conhecimentos que, no caso da bykyrè, fazem parte de fluxos de relações que vão desde a narrativa mitológica até à preocupação com as grandes queimadas na Ilha do Bananal que estão destruindo os grandes “supermercados de ideias” (buritis) dos Iny.

É interessante, agora, renovar os estudos taxonômicos e sistemáticos, característicos dos estudos de acervos etnográficos, à luz de metodologias atentas a aspectos que podem ser acessados pelo estudo etnográfico da técnica, da produção e da circulação dos artefatos, associando-os as categorias êmicas usadas para se referir a eles em seu próprio contexto sócio-ecológico-territorial (Silva 2007; Mura 2011).

Seja através de noções como as de imitação prestigiosa (Mauss 2003, 1948, 2010), participação periférica (Lave e Wenger 1991), habilitação (Ingold 2000) ou educação da atenção (Gibson 1979), entender como se dá a entrada da criança na produção da bykyrè, como devemos dar conta da persistência da técnica de uma geração para a próxima e qual o lugar do acervo de fichas e fotografias da Coleção Lipkind nesse processo, passa por uma etnografia fina da bykyrè enquanto aprendizagem de um processo técnico e precisa estar fortemente enlaçada a uma etnografia da relação entre gerações. E, nesse sentido, a experiência aqui apresentada, foi apenas inicial e indicativa.

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1 Referência ao ex-presidente Jucelino Kubitschek (1902-1976).

2Os termos junco e aguapé, utilizados por Raquel, referem-se ao local onde é encontrado o buriti, ou seja, a regiões alagadas e pantanosas por onde passa um rio, riacho ou ribeirão. Vistas ao longe, as matas que se formam às margens dessas regiões, onde se destacam os buritis, são indício seguro de que por ali existe um curso d’água.

3Termo em in ribè (língua Iny) para se referir a não indígenas.

4Um tipo específico de relação entre os Iny, será discutido à frente.

Recebido: 22 de Novembro de 2020; Aceito: 22 de Junho de 2021

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