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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.24 no.2 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10/4000/etnográfica/8978 

ARTIGO ORIGINAL

Preenchendo murtis: arte e conhecimento em um templo hindu da deusa Kali na Guiana

Filling murtis: art, aesthetic, and knowledge in an Hindu temple of the goddess Kali in Guyana

Marcelo Moura Mello*

*Departamento de Antropologia e Etnologia, UFBA, Brasil, mmmello@gmail.com

RESUMO

O artigo trata de um conjunto de práticas, procedimentos rituais e “cuidados” envolvidos na construção, adornação e consagração de imagens religiosas em um templo hindu da deusa Kali na Guiana (antiga Guiana Inglesa), particularmente aqueles dirigidos às murtis, ou seja, imagens esculpidas de divindades hindus. Por meio da descrição dos atos envolvidos com a construção de murtis busca-se explorar o modo pelo qual se (re)criam conhecimentos, inovações e percepções estéticas. Sugere-se que murtis produzem efeitos que são encarnados nos corpos e na vida de devotos, expandindo-se para além de templos e altares.

Palavras-chave culto à Kali na Guiana, hinduísmo, murtis, arte

ABSTRACT

The article deals with a set of practices, ritual procedures, and “attentions” involved with the construction, adorning, and consecration of religious images in an Hindu temple of the goddess Kali in Guyana (former British Guiana), more specifically with those directed to the murtis, that is, sculptured images of Hindu deities. Through the description of the acts involved with the construction of murtis, the article seeks to understand how knowledges, innovations, aesthetic perceptions are (re)created. It’s suggested that murtis produce effects that are embodied in bodies and in the lives of devotees, beyond temple and altars.

Keywords Kali worship in Guyana, Hinduism, murtis, art

A complexa, diversificada e múltipla iconografia de divindades hindus tem sido objeto de atenção de um conjunto heterogêneo de observadores.[1] Não à toa, a bibliografia especializada concentrou-se, e concentra-se, nesse tópico com especial vagar – para uma síntese clássica e ainda atual, consultar Eck (1998 [1981]). No caso caribenho, mais especificamente do hinduísmo na Guiana, a produção acadêmica registra a centralidade de imagens divinas no cotidiano e na vida religiosa de hindus, tanto em obras de caráter descritivo mais amplo (Bassier 1978; Benoist 1998; Stephanides e Singh, 2000; K. Singh 1978; O. Singh 1993; Younger 2010), em escritos sobre arte visual (Benoist et al. 2004), em artigos acerca da relação entre possessão espiritual e iconografia (Mello 2018), quanto em estudos sobre as relações entre possessão, estética e simbolismo de práticas rituais (McNeal 2011, 2012) e em reflexões em torno do processo histórico de formação da iconografia e do panteão hindu (McNeal 2010). No caso de murtis,[2] formas esculpidas de divindades, a tendência das obras citadas acima é concebê-las como formas materializadas que aludem a processos de transformação histórica de práticas religiosas ou como expressões de mitos, símbolos e cosmologias. Descrições etnográficas sobre a criação e consagração de imagens esculpidas de divindades hindus, ou sobre a transformação de materiais (Ingold 2010) em objetos infundidos de presenças (Severi 2009), ainda carecem de maior sistematização.

Este texto trata de um conjunto de práticas, procedimentos rituais e “cuidados” envolvidos na construção, adornação e consagração de certos tipos de imagens religiosas (murtis) em um templo hindu da deusa Kali na Guiana. A descrição etnográfica é pautada pela tentativa de tematizar os modos pelos quais conhecimentos, inovações, técnicas e percepções estéticas são (re)criados nas transações entre “devotos” da deusa Kali, divindades e suas formas esculpidas.

Transplantado para a Guiana por indianos e indianas que se deslocaram para o país na condição de trabalhadores contratados, entre 1838 e 1917, após a abolição da escravidão negra no Caribe, o culto à Kali (Kali worship ou Kali puja) é uma vertente hindu historicamente ligada – e associada – ao sul da Índia, envolvendo possessão (ou “manifestação” das divindades, nos termos nativos), sacrifício de animais e práticas de cura de doenças causadas por feitiços, espíritos e/ou outros seres malignos.[3] No culto à Kali, “tratamentos” são realizados, pelas divindades hindus – que se “manifestam” nos corpos de alguns especialistas religiosos – em pessoas acometidas por doenças de origem física e espiritual. O culto à Kali se caracteriza pela realização das pujas, demonstrações de crença e submissão às divindades por meio de preces, reverências e oferendas. O mais importante ritual de Kali, o Big Puja, é realizado anualmente, envolvendo diversos preparativos e uma série de atos rituais dirigidos às murtis, ou mesmo a confecção de novas murtis, em substituição das antigas.

Na concepção dos devotos de Kali, só existe um Deus, um ser primordial, que se manifesta de diferentes formas. Kali é esse ser primordial, a Divindade Mãe, ou Devi. Conforme as necessidades específicas dos humanos e dos próprios deuses ao longo dos milênios, Kali tomou, ou assumiu, diferentes formas. Por isso existem tantas deotas (divindades), que, em última instância, são formas de Kali, cada qual detentora de atributos, características, capacidades, predicados e temperamentos específicos.

Murtis são apenas uma das imagens divinas existentes no templo onde realizei a maior parte das minhas observações, Blairmont. Pinturas, quadros e fotos estão distribuídos pelo local. Neste texto, concentrarei meu interesse em murtis, deixando em segundo plano outras formas assumidas por deuses e deusas hindus, como folhas, vasos sagrados e outros artefatos. No templo de Blairmont, localizado na região costeira da Guiana, na margem ocidental do rio Berbice, 17 divindades hindus são “cultuadas”, seis das quais se manifestam em seus veículos humanos com mais frequência. Os altares de deusas e deuses estão distribuídos em 11 templos e a cada domingo se faz puja (ofertar) para as murtis, que são objeto de uma série de procedimentos e intervenções rituais.[4] Ao longo do ano, diferentes festivais religiosos têm lugar.

A configuração espacial de Blairmont, fruto de uma série de intervenções realizadas ao longo dos anos, é pensada à luz das transações entre divindades e devotos. Segundo meus interlocutores, na época de sua fundação e décadas seguintes, a área de Blairmont era desolada, repleta de mato e vegetação, as paredes dos templos sustentavam-se em hastes de bambu e não havia “comodidades” – dormitórios, cozinha coberta por telhas, tanques d’água, sanitários com descarga, depósitos, etc. No entanto, desde sua fundação, Blairmont revelou-se “sagrado” e “abundante”, propício para o plantio e florescimento de árvores e plantas.

Com efeito, de nada adiantaria contar com comodidades se o templo não dispusesse de elementos indispensáveis para a realização das pujas. Há dezenas de árvores no local, dentre as quais cajueiros, caramboleiras, pimenteiras, bananeiras, mangueiras, limoeiros, coqueiros e neem – árvore sagrada cujas folhas servem como instrumento de cura das divindades –, além de arbustos de bétel, manjericão e outras trepadeiras. Dada a importância de se ofertar guirlandas, floríferos recebem cuidados especiais. Há lótus, hibiscos, flor-de-seda (calotropis), alamandas, lis, jasmins e dezenas de oleandros de várias colorações, em tons avermelhados, fúcsias, rosas e brancos.

Stephanides e Singh (2000: 129 – tradução minha), pesquisadores que concentraram suas observações sobre o culto à Kali na Guiana no templo de Blairmont na década de 80 do século xx, ressaltaram, corretamente, que “o mundo do templo de Kali é uma elaborada rede de interconexões”, na qual “toda criação é vista como manifestação e extensão do poder de Kali”. Os dois autores não se debruçaram demoradamente sobre esse ponto e referiram-se, especificamente, às interconexões entre divindades, ciclos cósmicos de criação/destruição do universo expressos nos mitos e a paisagem, destacando concepções cosmológicas centrais do culto à Kali. Meu foco, entretanto, será levemente diferente. Por meio da descrição dos atos envolvidos na construção de murtis, busco explorar o modo pelo qual os devotos criam e recriam conhecimentos e percepções estéticas. A análise de ritos de consagração, por sua vez, implica destacar os movimentos das murtis, isto é, suas formas de distribuição em uma ambiência, entre corpos e pessoas.

Completando e cuidando das murtis

Em 2012 acompanhei o processo de construção de três novas murtis a serem consagradas no Big Puja, principal e mais aguardado festival religioso do calendário anual dos templos de Kali.[5] O Big Puja conta com a participação de centenas de pessoas e demanda inúmeros preparativos, semanas de trabalho braçal, além da coleta de recursos financeiros e de ofertas rituais (arroz, cocos, animais a serem sacrificados, etc.). Tais preparativos objetivam a “renovação” total do templo, isto é, o conserto e a construção das estruturas físicas existentes no local, bem como a limpeza minuciosa do terreno, dos altares, dos aposentos, da louçaria utilizada no preparo de alimentos e de objetos manipulados nos rituais (gamelas para depositar ofertas, pratos, copos, machetes, jarros, etc.). A renovação do templo é indispensável para “purificar” e “limpar” o espaço, já que no festival o “poder” (shakti) das divindades é mais intenso. Para glorificar os deuses e as deusas, deve-se, portanto, tornar o templo “apropriado”, ou “propício”, à fluidez, circulação e distribuição do poder divino.

Adicionalmente, o resguardo corporal de devotos e devotas para o Big Puja intensifica-se. Para comparecer a um templo de Kali, cujos rituais semanais são realizados aos domingos, é preciso seguir, por três dias, a abstinência (fasting). Nesse período, é vedado o consumo de qualquer alimento de origem animal (inclusive ovos), a prática de relações sexuais, o uso de drogas e a ingestão de bebidas alcoólicas; mulheres menstruadas e indivíduos que tomaram parte em funerais, ou que tenham tido contato com recém-nascidos, não podem participar dos ritos.[6] No Big Puja, por sua vez, a abstinência é observada por 24 dias e os cuidados são redobrados: deve-se evitar fazer refeições fora de casa e permanecer o maior tempo possível no templo, pois engajar-se com os preparativos do festival é uma forma de “devoção” às divindades, uma maneira de glorificá-las, centrar os pensamentos nelas e, por extensão, de purificar o corpo e a mente.[7]

Em meio a todos esses cuidados e preparativos, a atenção dispensada às murtis prevalece. Todas elas são lavadas – com o propósito de livrá-las de contaminações decorrentes de contatos prévios –, repintadas, e suas vestimentas são substituídas por roupas novas; adornos, joias, pingentes e colares de ouro e prata são meticulosamente escovados e lustrados; as decorações nos templos nos quais as murtis estão depositadas, como bandeiras, flâmulas, guirlandas de plástico, utensílios natalinos, etc., são descartadas e substituídas.[8]

Fazer puja envolve, sobretudo, consagrar-se e devotar-se às murtis. Oferendas diversas, como frutos, doces cozidos, vegetais, flores, incensos, fogo, bebidas alcoólicas, cigarros, animais sacrificados, etc., são dirigidas a elas, que consomem a “matéria espiritual” das ofertas.[9] Ademais, a manifestação de deuses e deusas nos corpos de humanos, visando a realização de tratamentos terapêuticos, depende fundamentalmente das murtis, instâncias fundamentais de concentração e distribuição do shakti.[10] No Big Puja, a quantidade de ofertas aumenta significativamente, bem como os preparativos e cuidados dispensados às murtis. De modo a ilustrar essa dinâmica, apresentarei, a seguir, um conjunto estabilizado de descrições etnográficas concernentes à construção de uma nova murti da deusa Mariamma.

A primeira providência foi angariar fundos para pagar o escultor, um homem versado na construção de imagens religiosas hindus e católicas que presta serviços a Blairmont desde a década de 1970. Quase todo o montante dos recursos proveio de doações coletadas na filial do templo localizada em Nova Iorque.[11] Somando-se o valor do material necessário à construção dessa e de mais outras duas murtis encomendadas para a ocasião e o custo da mão de obra do escultor, que ofereceu um desconto, girou, no total, em torno de 1700 dólares americanos.

Dois modelos serviram de protótipo para o artista: a antiga murti de Mariamma existente em Blairmont e uma imagem popular da deusa na Índia, obtida pelo sacerdote na Internet. Primeiramente, o artista, conhecido no local como Murti man (doravante, Mm), moldou o corpo da murti com uma tela de arame atravessada por uma liga de ferro axial conectada a outras ligas que se estendiam em direção aos braços, às pernas e ao pescoço. Aos poucos, Mm inseriu cimento na tela, preenchendo o interior da estrutura com areia. Isso exige uma combinação precisa dos materiais, pois a murti não deve ficar nem muito pesada nem muito arenosa, muito menos desproporcional. Antes de o cimento secar completamente, Mm desenhou os contornos das faces, dos pés, das mãos e dos objetos portados pela deusa. Isso demandou extrema concentração e perícia, em especial no trabalho dispensado ao rosto da murti, índice central de beleza, simetria e temperamento da divindade. Por fim, lixou-se completamente a murti, antes de os últimos retoques serem feitos por membros do templo.

Meus diálogos com Mm foram breves, dado meu envolvimento com os preparativos para o festival e seu assoberbamento. Residente em Georgetown, capital do país, ele aprendeu o ofício com seu pai há mais de 40 anos, e, mesmo sendo um sanatanista (hindu ortodoxo), construía esculturas para igrejas católicas e templos hindus de outras vertentes. O resultado final de suas criações não era mero resultado de sua expertise, mas também de requisições específicas de seus contratantes, que lhe forneciam modelos para facilitar seu trabalho. No serviço realizado para Blairmont, uma das demandas não pôde ser atendida, dada a dificuldade técnica em viabilizá-la: a construção da cabeça de um demônio sob o pé direito da deusa. Uma vez que a murti não repousaria sobre uma base de sustentação, tal elemento acresceria muito peso e, portanto, poderia causar rachaduras na murti. Outro pedido – esculpir uma cobra com cinco cabeças atrás da coroa de Mariamma – exigiu-lhe imaginação. Com efeito, foi a combinação de técnica, perícia, sensibilidade e imaginação que lhe permitiu moldar a forma esculpida da deusa.

Uma vez que esse ofício provê seu sustento, a Mm não é necessário seguir à risca certas restrições. Não seria de bom tom trabalhar bêbado, por certo, mas nada o impedia de consumir fibra animal ou ingerir álcool em sua casa no interregno de construção das murtis. Certo dia, perguntei se ele precisava se abster. “Não. A murti não tem poder ainda”, respondeu. Ou seja, como a murti não estava totalmente adornada e nenhum rito de consagração fora realizado (ver adiante), nenhuma “punição” recairia sobre si, se seu corpo estivesse “impuro”. Porém, como Mm não se absteve por três semanas – prazo necessário para participar do Big Puja –, ele não pôde acompanhar de perto os ritos de instalação da murti.

A construção da nova murti de Mariamma se deu nas extremidades de Blairmont, justamente para evitar que a murti fosse vista de forma indiscriminada. Apesar de ser desprovida de poder àquela altura, a deusa estava em estado bruto, não gozando de boa aparência. Crianças e curiosos não podiam se aproximar do local; quando o Mm encerrava suas tarefas diárias, cobertores cobriam a murti.

 

 

 

Dez dias antes do festival, Mm terminou seu trabalho, mas havia muito mais a ser feito antes de instalar Mariamma no altar do grande templo. A partir de então, Bayo, o sacerdote, responsabilizou-se pelos últimos retoques, convocando-me para assistir à finalização deles e também ajudá-lo. O primeiro cuidado foi lixar a murti completamente, por duas vezes, antes de se aplicar uma camada de massa plástica para cobrir rachaduras. Em seguida, lixei novamente a murti, enquanto Bayo remodelava, com massa corrida, os pés, as mãos, os olhos, as orelhas e o nariz da deusa. Enquanto fazia isso, o sacerdote expressou toda a sua admiração pelo trabalho de Mm, definindo-o como o melhor escultor do país. De fato, os acabamentos não eram perfeitos, mas pequenos ajustes bastavam, pontuou Bayo. Usando uma lima para extrair partes do corpo, lixas e um punhado de massa corrida, os pés foram diminuídos, o nariz afinado e os lóbulos das orelhas alongados. Após finalizar seu trabalho, que tomou certo tempo, já que era preciso esperar a massa corrida secar e lixar essas partes do corpo a cada ajuste, Bayo exclamou: “Um nariz faz toda a diferença. Os olhos também”.

O rosto, em sua opinião, era a parte mais importante da murti, pois “quando as pessoas conversam, elas olham para o rosto uma da outra”. Bayo, entretanto, gostava de admirar o corpo inteiro, por isso trabalhava com afinco para corrigir imperfeições, mesmo aquelas que seriam cobertas pelas roupas, uma vez que uma murti “deve ser tratada como um humano. Nós não gostamos de ter uma boa aparência e de nos assearmos?”, perguntou-me.

Bayo afirmava ser capaz de construir murtis, mas não tinha paciência para tanto, preferindo encarregar-se de pequenos detalhes. Aproveitando a brecha desse comentário – esse trabalho exigia concentração e silêncio –, perguntei se, após esses ajustes, a murti teria poder. “Somente depois de vesti-la e colocar-lhe os adereços”, respondeu. Por sinal, pude tirar fotos das murtis durante sua construção, mas, quando elas começaram a ser pintadas e estavam despidas, foi-me alertado que eu não deveria retratar as murtis “nuas”, ato que consistiria em “ofensa” irremediável.[12]

Comentei, propositadamente, que tal trabalho era como arte. “É arte”, complementou, com um tom de voz firme e orgulhoso. Logo depois, talvez motivado por meu comentário, explicou-me o porquê de a deusa carregar certos objetos, bem como a “simbologia” de seus gestos e de sua postura. Alterno a descrição, agora, para um extenso trecho de meu diário de campo, aqui levemente editado:

“A nova murti [Mariamma], com mais de dois metros de altura, repousava sobre uma mesa velha, corroída pelo tempo. Fios pretos – semelhantes às cordas utilizadas em varais – já estavam colados ao cimento, fazendo as vezes de cabelo – não cabia o uso de cabelo humano, necessariamente ‘poluído’. […] ‘É arte’, replicou com autoridade Bayo, que, após horas de silêncio (eu me esforçava para respeitar ao máximo o princípio de que era preciso ‘focar-se’ na Mother), passou a falar abundantemente, antecipando minhas curiosidades sobre os objetos carregados pela Mother e sobre a simbologia de seus gestos.[13]

A coroa, explicou, refere-se à soberania, à realeza e ao shakti, o poder criativo, da deusa. Já o utky – tamborim disposto na mão direita inferior da murti – foi uma ‘dádiva’ [gift] de Lord Shiva, afinal ele é o deus da destruição e o consorte de algumas formas da Mother. O utky, aliás, representava o som da criação do universo, quando nada existia, quando Kali não havia tomado forma ainda, quando apenas o ‘som cósmico’, o ‘om’, se propagava pelo universo. Senhora das serpentes, Mariamma senta-se sobre uma cobra, cujo corpo se estende por suas costas até o topo de sua cabeça. ‘Não tínhamos como fazer isso’ [isto é, construir uma cobra em volta da murti – ver acima], comentou Bayo, mas ao menos uma serpente com cinco cabeças foi modelada e fixada na nuca da murti, projetando-se acima da coroa.

A serpente, prosseguiu, é outra ‘associação’ da Mother com Shiva, ele próprio o senhor das serpentes, tal como Vishnu [o preservador], cujo assento no céu cósmico é uma cobra. A cobra também diz respeito aos órgãos sexuais, igualmente controlados pela Mother. […] Os outros dois objetos portados por Mariamma, uma espada com sangue escorrendo e um ramo de folhas neem, demonstravam o quão ‘implacável’ [14] Ela era, sendo capaz de repelir todo e qualquer mal. O tridente, seguro pela mão inferior esquerda, é uma referência ao seu triplo papel de criadora, mantenedora e destruidora dos universos. Já a cabeça do Raktabija [demônio], agarrada pelos cabelos, representa seu ímpeto guerreiro, uma alusão à batalha com os Raktabijas, vencida por Bhadra Kali, sua forma terrível. Por fim, completou, o pé esquerdo descoberto é um sinal de que os humanos devem se curvar a Ela, submeter-se a Ela.[15]

Por fim, Bayo atalhou: ‘Você vê, tudo tem um significado. Nada é à toa, meu amigo. Vamos voltar ao trabalho agora’.

Inevitável pensar: uma murti contém, em si, referências diversas aos atributos e às relações da Mother, em suas várias formas, com as divindades. Com efeito, murtis têm tradições multifacetadas. Elas não são meras atualizações de mitos já estabelecidos e dados” [diário de campo, 15 de fevereiro de 2012].

Retomando a descrição. A derradeira etapa de modelação das murtis é pintá-las  [16] – primeiramente, o corpo, em seguida, o rosto, por último, os olhos. Independentemente de as murtis serem totalmente repintadas, receberem apenas uma demão ou pequenos retoques em partes de seu corpo, os olhos sempre são descascados – com uma faca ou um estilete – e refeitos. A murti só é dotada de poder e se torna completa depois de os olhos das murtis serem refeitos e ‘abertos’. Como demonstrarei na última seção deste artigo, os olhos de murtis têm papel central nas dinâmicas rituais hindus, na medida em que denotam a capacidade de absorção e distribuição do poder divino pelas murtis.

Quando, finalmente, os últimos reparos foram concluídos, no domingo anterior ao grande festival, se iniciaram os preparativos para a substituição da antiga murti de Mariamma, algo feito não sem muitas precauções, com a reunião de dezena de homens, adolescentes e adultos. Antes de se retirar a antiga murti do altar, que zelava pelo templo há mais de 40 anos, fez-se uma pequena puja para consagrá-la pela última vez. Minutos antes, Bayo, em creolese (ver adiante), dirigiu-se a Mariamma, dizendo

Bayo: Moda, abi nah gon replace yuh but yuh murti. Nah be jealous and nah create problems to abi, please. We beg yuh assistance and dat yuh giv abi strengt to carry yuh safely. We beg to yuh, oh, Moda.

B: Mother, nós não vamos substituir você, mas sua murti. Não fique com ciúmes e não crie problemas para nós, por favor. Nós imploramos por sua assistência e que você nos dê força para transportá-la de forma segura. Nós imploramos a você, oh, Mother.

Um dos presentes fez menção ao plano de a antiga murti ser deslocada para o topo do templo. O sacerdote, então, atalhou:

Bayo: Oh, yeah, Moda. Abi nah gon fuhgat yuh. Abi gon place yuh on top, to look afta fuh abi. Abi gon do construction, and yuh gon up, yuh hir, Moda?

Em seguida, voltando-se para os presentes, comentou:

Bayo: Ayo tink dat easy be replaced afta forty years?

B: Ah, sim, Mother. Nós não vamos esquecê-la. Nós vamos colocá-la no alto [do templo]. Você irá se elevar, para olhar por nós. Nós faremos uma construção e você vai se elevar.

Vocês acham que é fácil ser substituída depois de quarenta anos?

Logo após, o pujarie (sacerdote) alternou a modulação de sua fala para o inglês padrão e, com um tom suave e comovido, dirigiu essas últimas palavras:

Bayo: Oh, Mother, help us to complete this task. Mother, please leave to your spiritual form and we’re going to do the proper preparations to you reintroduce yourself in the new murti.

B: Oh, Mother, nos ajude a completar essa tarefa. Mother, por favor, parta para sua forma espiritual e nós iremos fazer as devidas preparações para que você se reintroduza na nova murti.

Em seguida, o sacerdote entoou uma reza em tâmil e agradeceu por todas as bênçãos recebidas ao longo de décadas.

Antes de dar prosseguimento à descrição é importante fazer um parêntese. Em curto espaço de tempo, o sacerdote, pessoa responsável por liderar as palavras dirigidas às divindades, alternou sua fala entre creolese, inglês padrão e tâmil. Como bem resumiu Rickford (1987: 41), muito embora o inglês seja a língua oficial da Guiana, no dia a dia a maioria dos guianenses fala “variações crioulizadas do inglês”. Isto é, não se observa bilinguismo na Guiana (inglês ou creolese), mas antes a alternação contínua, em “amplos espectros intermediários” (Bickerton 1975: 24), entre a língua lexificadora e transições e modulações do crioulo. Por razões de espaço, não tratarei disso com a minúcia necessária. Cabe destacar apenas que entre os guianenses tais modulações dependem do contexto, com quem se interage, quais os propósitos dos diálogos e da adequação de falar ou não em creolese. Dirigir-se a alguém em creolese pode indicar proximidade e familiaridade. Ora, o tom de sacralidade das palavras de Bayo, especialmente em suas rezas em tâmil, foi precedido por sentenças em tom informal, dirigidas a alguém (a deusa) de modo intimista e bem-humorado.

Não à toa, depois da reza, se deu continuidade ao deslocamento da nova murti para o altar. Após fazer um sinal positivo aos homens, Bayo solicitou máxima cautela a todos, não sem antes pedir perdão à deusa, caso alguém tocasse em suas partes íntimas – de fato, eu o ouvi sussurrando, quando ele mesmo tocou a murti, o seguinte: “desculpe por ter que tocar sua bunda”. Percebi que alguns dos presentes dirigiam palavras, inaudíveis, à Deusa. Retirada dali a murti foi levada para os fundos do altar e imediatamente foi coberta por um tecido nunca antes utilizado. Iniciou-se, então, a transferência da nova murti para o altar do grande templo.

Doze homens responsabilizaram-se por carregá-la. No caminho percorrido, outros se quedaram em lugares estratégicos, para evitar qualquer obstrução. No altar, alguns jovens permaneceram de prontidão, aguardando as instruções para colocar o assento da deusa no lugar exato, de modo a assegurar seu posicionamento correto e simétrico.[17] Após momentos de tensão e de gritos de ordem e satisfação, a tarefa foi completada, e todos, aliviados, agradeceram à Mother por mais essa bênção. Durante a semana, Mariamma começou a ser, por assim dizer, preenchida, para que finalmente sua murti fosse investida de poder.

Posicionada a murti, o altar foi coberto por uma cortina, onde somente algumas pessoas tiveram acesso franqueado – sacerdotes e alguns rapazes, os altar boys;[18] mulheres e sacrificadores sequer podiam adentrar o templo. Isso porque a divindade, depois de pintada, ficaria “nua”, sem roupas e adornos, e não era apropriado às pessoas vê-la em tal estado.

Um homem, residente em Nova Iorque, encarregou-se da pintura, com uma tinta especial, aplicada com um jato compressor, cuja composição química deu um efeito novo às murtis, conferindo-lhes maior vivacidade. Após ser coberta por um sari novo, Mariamma foi adornada com colares, joias e pulseiras.[19] Enfim, seus olhos poderiam ser “abertos”, ou seja, o “olho espiritual” poderia ser “ativado” para receber o shakti, de modo que ela pudesse, também, olhar e ser vista por todos.[20]

 

 

 

Pouco antes de o festival começar, as cortinas que cobriam as murtis foram removidas, à exceção daquela no altar de Mariamma. Ansiosos, os presentes aglomeram-se no grande templo, onde o Big Puja se inicia. Após um assistente convocá-los para adentrar o recinto, o som do tapoo, uma espécie de tamborim, ressoou fortemente, anunciando a vinda da deusa, bem como de sinos, gongos e conchas. Sacerdotes entoaram cânticos invocatórios em tâmil e ofertaram diversos itens à deusa, abrindo seus olhos para que o shakti (poder divino) se instalasse na murti e se distribuísse para as outras murtis do templo. A fumaça, proveniente da combustão de carvão vegetal, gravetos de figueira e cânfora, invadiu o espaço, cuja atmosfera era repleta de sons, toques e fragrâncias. A multidão, à espreita, erguia-se com as pontas dos pés para enxergar melhor o altar. Pouco a pouco, a cortina foi sendo retirada e os devotos e as devotas, com suspiros e olhares reluzentes, deslumbraram-se ao verem Mariamma, em sua nova e majestosa forma-murti. A cena da qual guardo maior lembrança desse evento único de interação visual e sensitiva é a de uma jovem de 19 anos, cujo suspiro e brilho no olhar eram de uma intensidade e vivacidade não captáveis por palavras.

Inovações

Todas as murtis substituídas em Blairmont no período mencionado, à exceção de duas, foram guardadas em locais mais discretos e cobertas por tecidos. Tais murtis foram conservadas caso outro templo requisitasse uma doação, mas até março de 2012 ninguém havia demonstrado interesse em recolhê-las. Não soube se houve tratativas avançadas nessa direção, mas sugiro que doações dessa ordem não se processariam impunemente, por três motivos: (1) não havia certeza, entre os membros de Blairmont, de que os novos guardiões cuidariam, instalariam e reverenciaram as murtis adequadamente, em espaços propícios e puros; (2) como se comentou diversas vezes, não se deve dispensar uma murti de qualquer maneira, como se ela fosse um mero pedaço de pedra; (3) dispor de murtis recolhidas em outros templos é sinal de falta de prestígio, de incapacidade de atrair devotos dispostos a doar recursos financeiros.

Ademais, deixar as murtis velhas ao lado das novas – prática comum em alguns templos – não era algo visto com bons olhos em Blairmont. Considera-se que, postadas ao lado de murtis novas, as antigas são, comparativamente, despojadas de esplendor e, por assim dizer, diminuídas. Por exemplo, em 2011, a murti da deusa Kateri, localizada ao lado da deusa Ganga, foi substituída por uma maior e um novo templo, de maiores proporções, foi erigido, pois não se considerava “correto” abrigar a nova murti em um espaço “velho e pequeno”. Semanas após a consagração da murti de Kateri, muitas pessoas passaram a afirmar, em tom condenatório, que não se poderia esperar muito tempo para substituir a murti de Ganga, uma vez que sua aparência não era mais tão boa, pois estava ao lado de uma nova Kateri.

As murtis substituídas também são cercadas de cuidado, a não ser que estejam quebradas – nesses casos, são dispensadas impunemente em um córrego. Normalmente, uma pequena puja é realizada para agradecer as bênçãos concedidas. Apenas em situações excepcionais, procedimentos rituais mais elaborados são conduzidos. Esse foi precisamente o caso da antiga murti de Mariamma.

Como narrei acima, evitou-se ao máximo qualquer “afronta” ou “desrespeito” à deusa, e o plano esboçado foi efetivamente levado a cabo em agosto de 2012, com a construção de uma nova estrutura no topo do grande templo, onde a deusa foi instalada para “olhar por seus filhos”. Não tenho informações sobre quais foram os procedimentos rituais aí envolvidos, nem se ainda se faz puja a essa murti. Destaco apenas que essa construção é toda adornada e coberta por vidro.

Não é de pouca importância o fato de essa murti ter ocupado um novo local em Blairmont. Em primeiro lugar, trata-se de Mariamma, a deusa hierarquicamente mais importante (e poderosa) do panteão do culto à Kali. Em segundo lugar, somente ali a murti poderia ser realocada. A meus interlocutores soa absurda, e desrespeitosa, a ideia de expor uma murti em um museu, por exemplo. Mesmo sem poderes e dispostas em um recinto onde fosse impossível a visitantes tocá-las, murtis abrigadas em museus seriam vistas por pessoas com corpos e pensamentos impuros. Por fim, e como já observado, para os membros de Blairmont, dispô-la no mesmo altar da nova murti equivaleria a diminuir a imagem antiga, desrespeitando-a e alocando-a, desnecessariamente, em uma posição inferior.

A sacralidade envolvida em atos, gestos e discursos não está apartada de disputas com outros templos de Kali. O montante de recursos investidos em Blairmont nos últimos anos – possibilitado, em grande medida, pelo envio de substantivas remessas financeiras da filial de Nova Iorque e de doações de locais – sinaliza o prestígio de Blairmont nacional e internacionalmente, o que distingue, para meus interlocutores, esse templo de outros. Como verbalizado pelos dirigentes de Blairmont, “à medida que o templo cresce, as murtis devem crescer também”.

 

 

 

Há várias nuanças a esse respeito e não tenho condições de explorá-las integralmente aqui. Antes, sigo uma pista da obra de McDermott (2011) sobre os grandes festivais dedicados às deusas Durga, Jagaddhatri e Kali em Kolkata no que concerne às relações entre disputas por prestígio religioso, à padronização de atributos das murtis e aos ideais estéticos associados a imagens religiosas. McDermott deslocou-se de questões relativas ao ritual e propôs-se a abordar a iconografia hindu sob o ponto de vista das transformações históricas por meio das quais se deram a popularização e a estandardização de atributos iconográficos dessas deusas. A autora demonstra como esse processo é tributário da incorporação de técnicas, estilos e gostos europeus, da reinterpretação de tradições locais, marcadas por rivalidades e competições entre as famílias patrocinadoras dos festivais, e da ampla difusão de imagens pela cultura impressa, pela fotografia, pelo cinema e por escolas de arte. Ao mesmo tempo, esses festivais são arenas nas quais se expressam rivalidades, competições, noções de prestígio e percepções de gosto, requinte e posição social.

Embora não possua elementos para apresentar uma descrição pormenorizada dessas transformações em solo guianense, nem me proponha a esboçar uma sociologia do gosto estético, não me furto de tecer algumas considerações a respeito desses tópicos. Para McDermott, a imensa difusão de imagens religiosas hindus é um processo recente, consolidado por meio da “popularização e da estandardização de determinadas representações das deusas”. A autora destaca como a difusão de materiais iconográficos reproduzidos por novas tecnologias mecânicas possibilitou a “disseminação pública e o consumo de massa de imagens relativamente padronizadas das deusas” (McDermott, 2011: 103-105, 110, 120, 162).

Seria despropositado postular quaisquer semelhanças entre contextos tão díspares – os festivais em Bengala têm propósitos muito distintos daqueles existentes na Guiana. No entanto, contextos mais próximos indicam algumas semelhanças. No caso de Guadalupe e da Martinica, países nos quais trabalhadores indianos também foram recrutados e vertentes hindus semelhantes às guianenses mostram-se tenazes até hoje, Benoist, Desroches, L’Étang e iPonaman (2004: 32-33) sugerem que até os anos 70 as murtis eram, essencialmente, reminiscências do período imigratório. Desde então, o incremento de trocas comerciais possibilitou a emergência de um novo estilo, que não afetou os rituais, mas que apresenta a inserção de novos elementos, como objetos de bronze, e esculturas importadas. Da mesma forma, o acesso de fotos e gravuras provenientes da Índia serve de inspiração para escultores. Já em Trinidad e Tobago, a circulação de gravuras da Índia é igualmente importante, bem como a influência de sacerdotes guianenses na própria formação do panteão de divindades nos templos de Kali do país (McNeal 2010: 214).

No caso guianense, há uma ampla difusão de imagens divinas produzidas na Índia por meio de tecnologias visuais e escritas. Ao mesmo tempo, o fato de que poucos indo-guianenses dominem os vernáculos indianos e de que haja escassez de recursos para adquirir livros não impede a grande circulação de escrituras e manuais hindus, principalmente por meio das redes estabelecidas com parentes e amigos residentes em Toronto e Nova Iorque. Da mesma forma, filmes de Bollywood e programas televisivos transmitidos da Índia – cujas histórias, não raro, tratam de aspectos relativos ao hinduísmo – são vistos diariamente pela população indo-guianense. Assim, uma pesquisa histórica poderia revelar como se deu o processo de popularização e padronização da iconografia hindu na Guiana, para a qual a influência de missionários indianos, presentes no país desde as primeiras décadas do século xx, e a difusão dos meios de telecomunicação nas décadas posteriores, certamente imprimiram suas marcas.

Para os propósitos aqui delineados, interessa chamar a atenção para o fato de que todos os meus interlocutores dispõem, em maior ou menor medida, de uma grande quantidade de imagens de várias divindades, as quais circulam entre residências, templos, círculos familiares e em redes sociais. Boa parte de meus amigos e amigas têm por costume compartilhar fotos das divindades em suas contas no Facebook. O estilo de tais imagens varia bastante, abarcando desde representações clássicas das divindades, até fotos de murtis em templos espalhados pelo mundo (há uma predileção por compartilhar as fotos tiradas em templos da Índia) e imagens que muito se assemelham às representações de super-heróis de histórias em quadrinho e de deuses gregos.

As murtis existentes nos templos sediados nos Estados Unidos e no Canadá, feitas de mármore, são consideradas, esteticamente, as mais bonitas, e nos últimos anos tem-se buscado seguir o mesmo padrão estético, com a diferença fundamental de que na Guiana as murtis têm dimensões maiores, dado que em Nova Iorque e Toronto o custo dos imóveis torna inviável a construção de grandes templos. O apreço pelo mármore explica o uso de tintas especiais na pintura das murtis no Big Puja de 2012 (ver acima). O efeito desejado foi, conforme expresso explicitamente por meus interlocutores, melhorar a aparência das murtis, como se de mármore fossem. Não se trata, nesse caso, de mero artifício. Qualquer gesto que vise melhorar a aparência das murtis é considerado um ato de devoção. Assim, se a primeira murti de Mariamma na Guiana foi feita com o tronco de uma árvore sagrada, a neem, soaria absurdo construir, hoje, uma murti com o mesmo material. Em resumo, a substituição de murtis deve ser algo razoável. De nada adianta construir uma nova murti se ela não for maior, mais bonita e mais imponente do que a anterior. Quando levei uma cópia do livro escrito pelos antropólogos Stephanos Stephanides e Karna Singh sobre o culto à Kali na Guiana, que contém fotos de murtis existentes em Blairmont na década de 80, o comentário comum de quem folheou a obra foi sempre o mesmo: “como essas murtis são velhas”. Membros e frequentadores de Blairmont não se cansam de ressaltar que Blairmont é um dos únicos templos de Kali na Guiana a dispor de tantas murtis novas, compostas de materiais importados (tintas, por exemplo) e construídas graças ao acúmulo de doações.

 

 

 

Tantas mudanças – ou, como dizem meus interlocutores, “melhorias” (improvements) – são particularmente sensíveis ao se comparar os atributos formais das antigas murtis com os das novas. É inevitável perceber diferenças formais e estéticas entre elas, notadamente nas faces e nos membros. Tome-se como ilustração as murtis da deusa Ganga, ambas construídas pelo mesmo escultor.

A face da murti anterior é, comparativamente, mais arredondada do que a nova, e os braços mais grossos. Essas diferenças não decorrem de um incremento da técnica do Murti man – além dele próprio, membros mais antigos do templo pontuaram que as diferenças nas construções se deviam a uma “adequação” ditada por julgamentos acerca do que atualmente lhes parecia mais “apropriado” e “bonito”. Nesse caso, um detalhe a considerar é que uma das formas de Ganga é a de sereia, e sua antiga murti foi modelada, precisamente, a partir de tal protótipo. Isto é, o tronco e as faces da deusa assemelhavam-se à estrutura anatômica humana, enquanto a parte inferior era composta por uma cauda.[21] Por questões de “gosto” e para “seguir o padrão” das outras murtis, decidiu-se projetar a nova murti com pés e pernas no lugar da cauda, além de esculpir-se seu veículo, um jacaré.

 

 

 

Percebe-se nitidamente transformações, inovações e incorporações de novas técnicas e gostos. Entretanto, não deve passar despercebido que o protótipo de murtis é governado por tradições iconográficas consolidadas que definem precisamente as características particulares à divindade cuja imagem é esculpida (Fuller 2004 [1992]: 58). O número de braços, os objetos, as armas de guerra e os animais carregados pelas murtis são peculiares a cada divindade, que pode ser identificada uma vez reconhecida a iconografia.

Lagrou (2007: 38-41, 84-88), em uma passagem na qual revisa a obra de Alfred Gell, chama a atenção para as limitações da estética, disciplina que lida com valores de distinção e de gosto desde o momento de definição de seu objeto, enquanto a antropologia desconfia, a priori, de juízos de valor. Essa é a razão pela qual a estética foi atacada tão veementemente por autores como Gell (1998), Overing (1996 [1993]) e Gow (1996 [1993]). Ainda assim, pontua a autora, não se pode ignorar os julgamentos estéticos nativos, tanto acerca de produções materiais quanto de ações. No caso estudado por Lagrou (2007: 86), a antropologia da arte, da estética ou do estilo deveria consistir em um projeto de entender os significados das qualidades sensíveis na percepção, expressão e cognição nativa.

A construção de novas murtis, motivada por (novos) padrões estéticos, é apenas um dos aspectos da contínua transformação de Blairmont. A readequação de templos, altares e outras construções não é algo acessório. Foi a substituição das murtis, também suscitada por disputas com outros templos e por práticas de devoção, que propulsionou tais mudanças. Na última seção deste artigo, ensaio um passo complementar e argumento que murtis não são meros objetos de contemplação ou repositórios de gostos e inovações estéticas. Transações entre devotos e murtis estão imbricadas em relações de diversas ordens, cujos efeitos se expandem para além do templo e de altares, encarnando-se em corpos e na vida das pessoas.

A expansão das murtis

Em diversas ocasiões meus interlocutores e minhas interlocutoras percorreram Blairmont comigo, menos para exaltar padrões estéticos e/ou prestígio do templo e mais para “ensinar” sobre a “religião”, conduzindo-me de altar a altar, de templo a templo, para me instruir enquanto via as divindades (ou seja, as murtis). A familiarização de neófitos, crianças e estrangeiros com o culto à Kali se dá, em grande medida, por meio da transmissão de conhecimentos encarnados nas murtis, formas-imagens (Fuller 2004 [1992]: 57) assumidas pelas divindades para facultar aos humanos maior entendimento acerca de seus atributos, assim como para facilitar a celebração de rituais – ou, nas palavras de Gell (1998: 98), uma forma arbitrária em um corpo particular habitado com o propósito de ser cultuado. Nesse sentido, a vida social (Appadurai 1986) de murtis traça caminhos, emaranha-se em relações e produz efeitos diretamente atrelados às ações de humanos, embora não se reduzam a elas.

Imagens religiosamente estipuladas como murtis são, de certo modo, materializações de mitos e dos conteúdos transmitidos por escrituras hindus, melhor dito, instâncias reconhecíveis de índices de presenças divinas. De todo modo, tais imagens não são meras representações de ordens cosmológicas, mitológicas ou simbólicas. Como notou Lagrou (2007: 52), o modo como as pessoas incorporam o conhecimento é mais importante do que a maneira como o conhecimento é estocado em objetos externos. No culto à Kali, o conhecimento é adquirido, em larga medida, por meio de contatos e interações visuais. Não à toa, quando devotos e devotas se dirigem às murtis e às manifestações, nunca dizem “eu irei falar com a deusa”, ainda que a atividade oracular seja um aspecto central dos rituais. O verbo empregado é ver: “eu irei ver Kateri”, por exemplo.

Desde o trabalho de Diana Eck, publicado originalmente em 1981, as interações e transações visuais nos rituais hindus têm sido destacadas na bibliografia especializada (ver, dentre outros, Babb 1981; Eck 1998 [1981]; Fuller 2004 [1992]; Hawley 1996; Mines 2005; Mello 2014: 340-356, 2018; McNeal 2012; Nabokov 2000; Stephanides e Singh 2000). Alfred Gell, que realizou trabalho de campo na região central da Índia no final da década de 1970, sintetizou bem essas dimensões em sua seminal obra póstuma. Em seus termos:

“[…] in image-worship, the devotee does not just see the idol, but sees herself (as an object) being seen by the idol (as a subject). The idol’s ‘seeing’ is built into the devotee’s own self-awareness at one remove as the object which is seen by the idol. She sees herself seeing the idol sees her, kneeling before it, gazing upwards. In that she can see herself seeing the idol, the idol must see her, because when she sees herself seeing the idol (from her point of view, a datum of immediate experience) the idol is seen by her as seeing her. The ‘idol seeing her’ is a nested component of ‘her seeing herself seeing the idol’  ” (Gell 1998:  120 [grifos no original]).

Transações visuais entre murtis e devotos conformam uma lógica na qual, de um lado, os humanos buscam ativamente ser vistos pelas divindades e, de outro, divindades apresentam a si mesmas para serem vistas e para concederem dádivas e bênçãos aos humanos.[22] A visão, englobando tanto o olhar quanto o ser visto, não é uma atividade distanciada, apartada do mundo. Ver e ser visto constitui uma espécie de toque que dilui fronteiras interpessoais por meio da troca de perspectivas (Gell, 1998: 68, 96-98). Assim, transações visuais mobilizam o corpo e sensibilidades, conformando aquilo que Cruz (2016: 97) chamou de “encontros táteis”, isto é, contatos sensíveis que suscitam sensibilidades, percepções e conhecimentos entre humanos e artefatos.

Uma série de outras transações entre murtis e devotos de Kali tem lugar no templo, transações essas que ensejam a extensão de presenças divinas para além de espaços e corpos delimitados. Tal dinâmica é evidente no consumo, pelas divindades, da matéria espiritual das ofertas depositadas aos pés das murtis, nos altares. Trata-se de um ato de infusão do shakti (poder) nas ofertas, que se tornam “sagradas”. Ao término dos rituais semanais, o prasad, alimento abençoado, é ingerido pelas pessoas para “energizar, fortalecer e purificar” seus corpos. Ou seja, por meio da ingestão das “sobras” do que foi consumido pelas murtis, os humanos incorporam parte do poder divino em si mesmos.[23] Uma vez que o prasad sempre é consumido, os devotos e as devotas absorvem a própria essência divina em suas pessoas corporais (Nabokov 2000: 9). Em suma, compartilhar alimentos e ser alimentado pelas murtis constitui uma espécie de combinação entre sentimento (devoção), substância e alimentação mútua (Carsten 2000: 22).

Outro momento-chave dos rituais do culto à Kali consiste na manifestação das divindades nos corpos de marlos – especialistas religiosos que se tornam receptáculos temporários de deuses e deusas para conduzir tratamentos terapêuticos. A manifestação depende de uma série de atos, muitos dos quais dirigidos às murtis, lócus de concentração e irradiação do shakti. Em minha tese e em outro texto (Mello 2014, 2018), detalhei extensamente os atos necessários para a própria ocorrência das manifestações. Para os fins deste artigo, basta apontar que os primeiros procedimentos realizados nas sessões rituais são dirigidos justamente às murtis, pois as divindades são convidadas a ali se “instalar” para disseminar o shakti e suas bençãos entre pessoas, corpos e demais coisas – ramos de folhas empregados para repelir malefícios, por exemplo. Com efeito, o poder divino necessariamente passa pelas murtis, antes de deuses e deusas se manifestarem nos corpos de marlos.[24]

O material apresentado neste texto conflui para a proposição geral de Ingold (2010, 2012) de reinserir as coisas nos fluxos generativos do mundo dos materiais por meio dos quais elas são feitas, vêm à existência e continuam a subsistir. De fato, a descrição das combinações de materiais e de forças envolvidas na construção e consagração das murtis, bem como dos emaranhados de agregados vitais nos quais elas se encontram imbricadas, revela as limitações de análises fixadas em objetos materiais e da ênfase na agência dos objetos. Não obstante, para além de reservas para com definições um tanto universalizantes da vida, considero que outras abordagens, algumas delas criticadas severamente por Ingold, também oferecem pistas interessantes para pensar o caráter relacional das transformações que se passam entre sujeitos e objetos, humanos e não humanos.[25]

Etnografias sobre contextos diversos oferecem pistas para se pensar esses aspectos ao se debruçarem sobre as conexões entre imagens divinas, altares, coisas e corpos. Assim, no caso do candomblé, o processo de construção da pessoa envolve orixás e seus outros corpos, os assentamentos, partes vitais de humanos e orixás. Assentamentos são instâncias de presenças distribuídas dos orixás (Sansi 2005, 2007); não representam nem simbolizam, mas fazem e tornam presentes os santos, sendo resultado de um processo contínuo de transformação e crescimento, um “processo de vida” (Sansi 2009: 153). No espiritismo cruzado em Porto Rico e Cuba, cada altar é um tipo especial de poder, relacionado a campos de energia específicos, criando um espaço de diálogo entre as várias forças ali representadas (Bettelheim 2010: 295). Já no caso dos espíritos (mistérios) cuidados ritualmente por dominicanos em Porto Rico, artefatos, imagens e substâncias que compõem altares criam e recriam ambiências, trazendo à tona existências que não se alijam em incrustações espaciais: altares geram formas de coabitações entre humanos e seus mistérios (Cruz 2014: 131-136).

No que concerne ao culto à Kali, as imagens não são fixas. Murtis são imagens-vivas, cujos altares não se encerram em si mesmos. Murtis fazem parte da “pessoa distribuída” (Gell 1998) de divindades, cujos campos de ação se ampliam para além de limites corporais e espaço-temporais. Assim, construir murtis, instalá-las em templos e altares, ativá-las ritualmente, consagrá-las e devotar-se a elas envolve complexos atos de manipulação de materiais que visam captar a atenção e o poder das divindades (Wirtz 2014), bem como absorver parte de suas essências por meio de trocas e intercâmbios de alimentos, olhares e substâncias. Imagens religiosas podem ser vistas como pessoas que ocupam tanto a posição de sujeito quanto de objeto, exercendo influências múltiplas sobre os humanos, produzindo transformações em virtude de sua participação intrínseca na criação de outras pessoas (Espírito Santo e Tassi, 2013: 8-10, 17). Investidas de poder, murtis não estão atreladas em absoluto a um corpo físico e a objetos materiais. Elas se distribuem em torno de ambiências (Gell 1998: 106-108). E poderíamos acrescentar: distribuem-se na própria constituição das experiências, dos corpos e dos modos de percepção e de ser dos devotos e das devotas de Kali.

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Receção da versão original / Original version  2018 / 01 / 19 Aceitação / Accepted      2019 / 11 / 18

Notas

[1] Este artigo resulta de pesquisa de campo financiada pela Capes, pelo CNPq e pela FAPERJ, seja por meio da concessão de bolsas de estudos, seja por dotações orçamentárias específicas, via edital do programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Agradeço a Olívia Maria Gomes da Cunha e Carlos Gomes de Castro pela leitura de versão anterior deste texto, bem como por suas sugestões.

[2] Neste texto, grifos em itálicos correspondem a expressões e conceitos nativos que não correspondem à língua portuguesa; quando em português, esses termos são apresentados entre aspas.

[3] Tradições hindus originárias no sul da Índia foram continuamente reelaboradas no contexto caribenho por meio de trocas, intercâmbios e influências mútuas com outras práticas hindus provenientes do norte da Índia – ver McNeal (2011), para mais detalhes para o caso de Trinidad e Tobago, e Stephanides e Singh (2000) e Younger (2010), para o caso da Guiana. Além da Guiana, vertentes hindus de origem sul-indiana ainda são vibrantes na Martinica, em Guadalupe, em Trinidad e Tobago e no Suriname – nesses dois últimos países, a influência de guianenses na reelaboração de dinâmicas rituais é notável.

[4] Os altares são chamados ora de shrines, ora de altars.

[5] Descrições sumárias do Big Puja na Guiana foram apresentadas por Philips (1960), Younger (2002) e por Stephanides e Singh (2000). A cada seis meses, os altares são renovados, não havendo margem para a acumulação sucessiva de objetos (apenas sáris utilizados por murtis de deusas são reutilizados em casamentos). Nada se compara em proporção, entretanto, ao Big Puja, em termos de renovação e aquisição de materiais como guirlandas, flâmulas e decorações natalinas.

[6] Boa parte de meus interlocutores consome peixes, frutos do mar, bodes e aves no seu cotidiano. O consumo de carne bovina e suína é estritamente vedado. Mulheres menstruadas podem, eventualmente, comparecer ao templo, mas não devem cozinhar, tocar em qualquer utensílio ritual ou ingressar em templos e em altares.

[7] Do mesmo modo, animais a serem sacrificados devem permanecer o maior tempo possível no templo para alimentar-se do pasto e da grama do local, tidos como mais puros e nutritivos.

[8] Ver Preston (1996: 20-22), para uma análise em outro contexto.

[9] Ofertas de bebidas alcoólicas, cigarros e animais sacrificados limitam-se a certas divindades, especialmente aquelas que realizam tratamentos terapêuticos e/ou que, por seu temperamento, demandam sacrifícios animais.

[10] Este tópico recebeu atenção detalhada em outro texto (Mello 2018) e em minha tese (Mello 2014: 323-374). Muito resumidamente, a forma espiritual das divindades é convidada, e invocada, para se “instalar” nas murtis antes de distribuir-se pelos corpos das pessoas, propiciando a manifestação.

[11] Com a migração de milhares de guianenses para o exterior, em especial para os Estados Unidos e o Canadá, filiais de templos de Kali da Guiana, como Blairmont, foram inauguradas em cidades como Nova Iorque, Miami, Toronto, Londres e San Fernando (Trinidad e Tobago).

[12] Karna Singh, antropólogo guianense que realizou pesquisas sobre o culto à Kali nas décadas de 1970 e 1980, não obteve permissão para tirar fotos de murtis em alguns templos, pois seus interlocutores consideravam tal gesto desrespeitoso (K. Singh 1978: xviii).

[13] Mother é um dos nomes para se referir à deusa Mariamma, assim como a outras deusas.

[14] A espada era feita de plástico e foi amarrada com uma corda em uma das mãos da murti.

[15] Eis a descrição da simbologia dessa murti, segundo Stephanides e Singh: “Four arms extend laterally. The forward right hand is raised in the mudra of benevolence and compassion: fear not. In antithesis, the forward left hand clutches by the hair the bleeding head of a rakshasa, a human being who attempts to usurp her mystical powers for egoistic ends. This gesture represents the destruction coming to those who attempt to harness her mystical powers for selfish ends rather than for purposes of healing and spiritual guidance. In her rear right hand she holds a wild-cane stick, used for the chastisement of ignorance. This staff of authority is wrapped and enfolded within a mass of neem leaves and oleander flowers, her antithetical but complementary instruments of healing. The top of the cane is crowned with a lime representing a guard. In the upper left and she clasps a trident, depicting the triple functions of divinity: creation, preservation and destruction. Her asana (posture) of one leg pendant and one leg folded indicate that she is benignly presiding over her sportive play. Mother Kali, like a traditional Hindu married woman, is dressed in a sari, wears colorful necklaces and bracelets, and has a bindi or tika (the mark of sindoor or red powder) on her forehead. She wears a crown, and behind her murti is the tirwachi (triumphal arch) which encloses and defines the innermost circles of her divine emanation” (Stephanides e Singh 2000: 121-122).

[16] Ou repintá-las, no caso de murtis já existentes.

[17] O assento é feito de tijolos grudados uns aos outros e cobertos por veludo.

[18] Altar-boys são pré-adolescentes que realizam treinamento e se familiarizam com preceitos hindus com vistas a tornarem-se sacerdotes.

[19] Joias de ouro e prata são colocadas nas murtis somente no Big Puja e no Small Puja. No restante do ano, elas são guardadas no cofre de um banco.

[20] Em outro artigo (Mello 2018), apresentei mais detalhes sobre a abertura dos olhos, às vezes referida, simplesmente, como opening.

[21] Não pude tirar foto da parte inferior dessa murti, porque a cauda, sustentada em uma base retangular, era totalmente coberta por um sari; quando a murti foi substituída e desnuda, não cabia fotografá-la nesse estado.

[22]  Sucede algo diferente, então, do que ocorre no candomblé, em que a experiência de não ver também deve ser aprendida (Rabelo 2015a), conformando uma verdadeira “arte de ocultar” (Rabelo 2015b). No caso do candomblé, o poder das imagens divinas não decorre apenas da visibilidade, mas, em grande medida, da invisibilidade (Sansi 2009: 151-152).

[23] Uma abordagem clássica sobre processos de transferência de essências de pessoas entre pessoas (humanas e não humanas) pode ser encontrada em Marriott (1976).

[24] Não à toa, quando marlos “desmanifestam” eles/elas saltam em direção às murtis, já que o shakti retorna às formas esculpidas das divindades.

[25]  Ver, por exemplo, as ponderações de Pitrou (2016: 8): “Mais que falar de ‘a’ vida, como se estivéssemos diante de um fenômeno unitário, seria mais rigoroso e profundo estudar a multiplicidade de processos vitais. É especialmente indispensável que haja uma variação, no tempo e no espaço, nas inferências que os diferentes povos do mundo mobilizam para tornar inteligíveis esses processos. Ao declarar conhecer o que é a vida, autores como Ingold (‘a vida como movimento’, 2011) ou Kohn (‘a vida como processo semiótico’, 2013), excelentes antropólogos que são, aliás, põem-se numa posição ambígua, para não dizer contraditória, em relação aos saberes nativos: que interesse haveria em conduzir pesquisas etnográficas se já dispomos de uma definição universal? Antes de saltar bruscamente para o universal, parece mais prudente começar a esmiuçar a multiplicidade das teorias da vida, integrando nessa abordagem as controvérsias internas às próprias ciências ocidentais sobre esta questão”.

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