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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.19 no.2 Lisboa jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Prazeres perigosos: o contrato e a erotização de corpos em cenários sadomasoquistas

 

Dangerous pleasures: the contract and the body erotization in sadomasochistic sceneries

 

 

Maria Filomena GregoriI

IDepartamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu/Unicamp), Brasil. E-mail: bibiagregori@uol.com.br

 

 


RESUMO

Experiências sadomasoquistas são examinadas neste artigo de modo a descortinar articulações entre gênero e sexualidade. Como novas expressões do mercado erótico contemporâneo, tais práticas permitem refinar a análise sobre processos sociais complexos relativos à ampliação ou restrição de normatividades sexuais, em particular sobre a criação de âmbitos de maior tolerância e novas normas que vão sendo impostas, bem como situações em que aquilo que é considerado abusivo passa a ser qualificado como normal.

Palavras-chave: estudos de sexualidade e gênero, erotismo, sadomasoquismo


ABSTRACT

Sadomasochistic experiences are examined in this article in order to uncover links between gender and sexuality. As new expressions of the contemporary erotic market, such practices allow the refinement of the analysis of complex social processes related to the expansion or restriction of sexual normativities. In particular, it enables further knowledge on the creation of greater tolerance spheres, on the new rules being imposed, and on situations in which what is considered abusive becomes qualified as normal.

Keywords: gender and sexuality studies, erotism, sadomasochism


 

 

Este artigo propõe um desafio: discutir as articulações entre prazer e perigo em algumas manifestações do erotismo contemporâneo. O prazer está associado à sensação de bem-estar, ao deleite, e indica uma inclinação vital. O perigo sugere uma circunstância que prenuncia um mal a alguém ou a algo. Em vez de confrontar a satisfação ao risco como se fossem expressões excludentes, pretendo tratar dos prazeres perigosos presentes no mercado erótico.

A reflexão apresentada a seguir é parte dos resultados colhidos pelo esforço prolongado de pesquisa feita no Brasil sobre novas formas de erotismo, e nelas sobre a consolidação de um mercado erótico e de toda a cultura material associada a ele. Uma breve pesquisa em lojas eróticas nos Estados Unidos, em 2001, forneceu perguntas concretas para o desenvolvimento posterior das investigações no Brasil, mostrando a emergência no mercado erótico contemporâneo do que eu chamei de “erotismo politicamente correto”, ou seja, as fantasias, imagens e objetos que constituem parte da pornografia atual valorizam a satisfação da autoestima pessoal, da saúde corporal e da capacidade dos indivíduos para realizar escolhas e estabelecer limites. Tal vertente do erotismo foi criada nos Estados Unidos, a partir dos anos 70 do século XX, por mulheres sensíveis ao feminismo que, dentre variadas iniciativas, atuaram no mercado com a abertura de sex shops como o Good Vibrations de São Francisco. A partir dos anos 90, as ideias e produtos ligados a essas iniciativas passaram a ser difundidos no universo mais amplo de produção, comercialização e consumo eróticos ao redor do mundo.[1] As variadas experiências eróticas contemporâneas mostram – seja nas modalidades de um mercado cada vez mais transnacional, seja nos usos que as pessoas fazem de objetos, técnicas e fantasias – que as prescrições de gênero e sexualidade estão sujeitas a deslocamentos e ressignificações. Trata-se, inegavelmente, de uma dinâmica viva que supõe a criação ou invenção de novas normas, bem como idiomas diversificados para velhas e persistentes restrições. Prazer e perigo permanecem combinados nos erotismos, expressando assimetrias de poder relacionadas não apenas ao gênero, mas à idade, à raça, etnia ou nacionalidade e, também, aquelas que dizem respeito à posição de classe. Hierarquias permanecem marcadas pelos mesmos eixos que produzem a desigualdade social, econômica e política. Contudo, tais marcas de diferença são também empregadas de modo a tensionar o que é sancionado, provocar um arremedo, parodiar. O efeito mais significativo de muitas das experiências investigadas foi o fato de elas submeterem as inscrições normativas à ambivalência. Inscrições fálicas são tornadas sex toys, ampliando o escopo de experimentações sociais e corporais.

Diante de novos limites da sexualidade, porém, restam algumas questões: e quando os toys são chicotes, floggers, palmatórias e cordas? E quando a relação entre passivo e ativo sexuais se dá entre pessoas que escolhem posições em um jogo de dominação e humilhação? Qual lugar simbólico ocupa o mestre e seu submisso (ou escravo) numa sociedade que reconhece os direitos sexuais?

As práticas sadomasoquistas (SM), sobretudo as que se desenvolvem em meio ao mercado erótico contemporâneo, interessam particularmente ao desenvolvimento dessas reflexões. Âmbito estratégico para a investigação antropológica, as variadas expressões SM introduziram uma retórica, técnicas e rituais sobre o lado “seguro, saudável e consensual” de práticas eróticas que lidam com o risco.

No início de minha pesquisa com os sex shops, ainda nos Estados Unidos, eu encontrei, nos catálogos e manuais sobre direitos sexuais e técnicas eróticas, material sobre SM. Ignorante e intrigada, a minha curiosidade foi atiçada ao notar a ênfase a respeito dessas práticas: “In fact, S/M has nothing to do with coercion, either sexual or non sexual. The common denomination in all S/M play is not a violent exchange of pain but a consensual exchange of power” (Winks e Seamans 1997: 210).

Tal definição contesta as noções de senso comum sobre sadomasoquismo, inclusive a conceituação presente no dicionário, que define a prática como uma perversão de ordem sexual ou, ainda, como algo que descreve uma dinâmica entre pessoas envolvidas em comportamento coercitivo ou abusivo (Novo Dicionário Aurélio, edição revista e ampliada, 1986). O contradiscurso fornecido acentua, ao contrário, que SM é um exercício erótico de poder e não um abuso físico ou emocional. Suas expressões mais antigas podem ser encontradas desde o século XVIII, na Europa, mas ganham a conotação de minorias sexuais a partir dos anos 70 do século XX, nos Estados Unidos: nesse período, passam a ter visibilidade, no cenário político, grupos SM gays e lésbicos, paradoxalmente criados no mesmo momento em que apareceram alguns grupos feministas contrários à pornografia e ao sadomasoquismo (como o Women Against Pornography).[2] Os estudos a respeito indicam não ser possível entender a retórica desses grupos SM e suas propostas práticas sem levar em conta os contenciosos políticos com os conservadores e com os radicais: de um lado, com o movimento em torno da New Right, de outro, em relação de contraposição ao feminismo radical.[3]

Simultaneamente, é necessário considerar a influência que muitas práticas SM sofreram (tanto nas modalidades heterossexuais, como nas gays e lésbicas) do que a bibliografia chama de leather culture. Associada por alguns aos veteranos de guerra da Coreia e, por outros, aos jovens rebeldes e aparentemente sem causa dos anos 50, a Leather Folk começou reunindo gente que gostava de andar de motocicleta, vestida com jaquetas e calças de couro e que se encontrava em poucos bares espalhados pelos Estados Unidos. Ao que indicam alguns de seus representantes, o que era uma expressão localizada organizou um movimento de maior destaque, passando a integrar interessados em variadas modalidades de radical sex, a partir dos anos 70. Guy Baldwin, psicoterapeuta norte-americano, além de ser adepto do que designa como SM/leather/fetish erotic play desde jovem e de atender gente engajada nessas práticas, escreveu a coluna “Ties that bind”, por toda a década de 1980, na publicação Drummer (importante publicação leather, cujo aparecimento remete aos anos 70). Suas principais colunas foram publicadas em livro, no qual o autor conta que uma das fortes influências simbólicas foi a série de histórias em quadrinhos de Tom of Finland que circulou desde os anos 50, ganhando maior divulgação a partir dos anos 70 (Baldwin 1993). O conteúdo erótico é acentuado nesses desenhos, evocando o que mais tarde foi definido como radical sex: fist fucking, SM heterossexual, gay e lésbico. Baldwin informa também que parte considerável das lideranças gays e lésbicas participou dos movimentos leather. Há mesmo uma aproximação significativa entre cultura leather e SM (em suas diferentes expressões).[4]

Além disso, muito do que é praticado nas experiências SM apresenta um diálogo crítico e, em forma de paródia, tendo como referências Freud e, mais precisamente, Richard von Krafft-Ebing – sexólogo a cunhar, no final do século XIX, o sadismo e o masoquismo como psicopatologias. Em Psichopathia Sexualis (1886), ele definiu o sadismo como psicopatia, ou mais precisamente, como uma manifestação aberrante do desejo inato de humilhar, de machucar, ou ainda de destruir os outros, de modo a produzir prazer sexual para si mesmo (Von Krafft-Ebing 1886).

Desde os anos 70, alguns grupos organizados de SM escolheram adotar outras expressões: jogos de dominação/submissão, sensualidade e “mutualidade”, mágica sexual, sexo radical ou jogo de poder e confiança. Esses grupos têm o cuidado de, em suas palestras e workshops, divulgar a necessidade de as práticas SM se darem em meio a um contexto de segurança, devendo este ser estruturado a partir da negociação e comunicação entre as pessoas envolvidas: “you can't dominate your partner unless he or she allows you to take control, and you can't submit to your partner unless he or she accepts control” (Winks e Seamans 1997: 211).

No início do novo século, após intenso e longo combate à epidemia da AIDS e em contexto de mercado, essas práticas encontram lugar, bastante sintonizadas com alguns aspectos do que chamei de erotismo politicamente correto. Nos catálogos e folders a que tive acesso no Good Vibrations, há o esforço de tornar o sadomasoquismo uma alternativa erótica aceitável, a partir de uma retórica que salienta o jogo consensual entre parceiros que brincam com conteúdos e exercícios, ligados às posições de dominação e de submissão. Os chicotes coloridos e as cenas nos vídeos reforçam essa tendência. Tudo parece estar sendo cuidadosamente montado para encenar uma situação que teatraliza a humilhação. A dor parece não fazer parte dessa encenação, assim como a subjugação real ou concreta. E essa simulação vai sendo montada, no texto, a partir da explicitação de algumas fantasias sexuais: de um lado, o desejo de ser dominado e subjugado por sequestradores, estupradores, às vezes por aliens; de outro, aquele que posiciona o sujeito no controle de uma relação com uma espécie de escravo amoroso.

No limite, os textos dos manuais tentam legitimar o SM, empregando o argumento de que o jogo de poder é central na nossa imaginação erótica. A noção que está por trás de tal afirmação é a de que o sexo entre duas pessoas raramente ocorre em meio a um patamar igualitário ou de satisfação mútua, em um orgasmo simultâneo, sendo mais frequente que os parceiros se revezem no controle das sensações do outro. Sem dúvida, importa assinalar que esse tipo de sugestão incorre em uma espécie de naturalização do erotismo, como se ele fosse desencarnado de todo um mapeamento simbólico, cuidadosamente tecido em meio a processos históricos e culturais.

É interessante notar também que os manuais SM ou o capítulo sobre essa prática no manual Good Vibrations (Winks e Seamans 1997) apresentam, em contraste com os relativos a outras práticas, afirmações mais categóricas e toda uma caracterização detalhada sobre como definir quem está no controle e quem está submetido. Além disso, enfatizam a todo instante o fato de ser essa uma das expressões do sexo seguro: assim como os sex toys, os jogos SM não implicam o intercurso genital; e os manuais aconselham as pessoas a não ingerirem álcool ou drogas quando o praticam. Há um conjunto de normas que o potencial praticante deve seguir: identificar seus desejos e fantasias; encontrar o parceiro; negociar a cena; procurar o local adequado para encená-la; escolher a posição e os personagens; e cuidar da saúde e da segurança.

Minha primeira hipótese, sobretudo diante dessa vertente mercadológica, foi a de que o pragmatismo que recobre os SM plays seria resultante justamente da premência de torná-lo politicamente correto, afastando-o da violência. Indaguei, inclusive, se todo o cuidado com a segurança, saúde e consentimento não seria decorrente de um esforço de neutralização ou apagamento das desigualdades de gênero que marcam a violência. De fato, os produtos relacionados ao SM nas lojas são cuidadosos a esse respeito. Contudo, foi preciso conhecer melhor as práticas e os praticantes, bem como as referências simbólicas que estão sendo mobilizadas, de modo a reconhecer que o SM não se reduz a uma vertente tão politicamente correta e que suas variadas manifestações trazem elementos para, inclusive, contrastar com a violência, sobretudo quando a consideramos marcada por gênero.

Pesquisas etnográficas começam a ser feitas no Brasil, acompanhando a difusão e visibilidade das práticas sadomasoquistas, na última década. Regina Facchini (2008), ao analisar a sexualidade de mulheres na cidade de São Paulo, apresenta uma rica investigação sobre uma rede de adeptas do BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo, masoquismo). Essa sigla é empregada pelos sujeitos de sua pesquisa como forma de salientar a diversificação de práticas, para além daquelas inscritas nas liturgias e rituais SM. Bondage, por exemplo, é uma atividade de privação de movimentos ou sentidos, normalmente utilizando cordas. O importante a remarcar aqui, segundo a autora, é que se trata de um campo complexo que reúne diferentes concepções de liturgia, de dominação profissional, da relação entre o intercurso sexual e o BDSM e distinções relativas aos temas caros nesse universo, como a consensualidade e o risco compartilhado.

A rede de praticantes é formada por pessoas da classe média paulistana que criaram, no início dos anos 90, o SoMos, uma comunidade de adeptos SM, responsáveis pelas primeiras reuniões no país e ainda hoje atuante. Naquele período, as pessoas interessadas nessas práticas se encontravam no clube Valhala – que fechou – e, durante os primeiros dez anos desse século, se encontraram no clube Dominna, criado há 13 anos. Atualmente, esse clube não opera como espaço físico próprio. Contudo, são realizadas festas com frequência mensal, com encenações de FemDom (dominação feminina), podolatria, bondage e as play parties (momentos mais íntimos da comunidade e que se realizam em espaço separado).

O estudo de Facchini aborda experiências observadas e narradas e decifra a formação e os contornos de uma comunidade (ou confraria), a partir das intrincadas relações entre as práticas e escolhas eróticas referentes ao BDSM e aquelas que são vividas no cotidiano, fora do clube e distantes da Internet, qualificadas por seus informantes como “mundo baunilha”. Dessas relações de contraste e oposição saltam intrigantes considerações sobre normas de gênero e sexualidade. A autora assinala que, no meio BDSM que investigou, os marcadores de diferença relacionados ao sexo, gênero e orientação sexual são mobilizados de modo bastante flexível, sem que sejam demarcadores de segmentação entre comunidades SM, como no caso das experiências norte-americanas. Além disso, segundo seus termos,

“a descontinuidade entre desejos, práticas e identidades relacionados à ‘orientação sexual' convive, em intrincados esquemas classificatórios, com distinções entre ‘sexo biológico' e expressões ou ‘identidades de gênero', mas sobretudo com classificações que remetem a desejos e práticas BDSM ou fetichistas […], ainda que haja coincidência entre desejos e práticas, ela não necessariamente leva a identidades que substantivem condutas em personagens, conduzindo-nos a considerar o BDSM como prática ou mesmo arte erótica que, embora tome parte na produção de subjetividades, não são transpostas, de modo substantivado, como algo que possa descrever os sujeitos” (Facchini 2008: 214).

Bruno Zilli (2007) estudou, a partir de sites brasileiros da Internet, o discurso de legitimação do BDSM. Ele mostra como a linguagem e conclusões psiquiátricas do século XIX, a respeito das fronteiras entre os comportamentos patológicos e os de natureza moral, ecoam nas reivindicações de direitos às identidades BDSM. O advento da Internet, inclusive, é um fator decisivo na difusão dessa forma de erotismo em nosso país, sobretudo nas interações entre adeptos e a criação de suas comunidades. No Brasil, até a década de 1990, o acesso a informações sobre as técnicas, os objetos e as possibilidades de encontrar pessoas interessadas nessas práticas era bastante reduzido: na cidade de São Paulo havia um sex shop, no centro, que oferecia produtos e serviços SM, segundo informação que me foi fornecida por uma informante, atualmente proprietária de loja e vendedora nos anos 80. Os interessados ainda poderiam estabelecer contatos através de anúncios classificados em jornais ou revistas eróticas (Facchini 2008), seguindo o mesmo padrão dos entusiastas SM dos anos 50 até os anos 70 em cenário norte-americano (Rubin 1991).

Chama atenção o fato de que, no Brasil, tais práticas ganharam visibilidade recentemente, com a expansão do mercado na direção dos produtos e bens eróticos. Tal aspecto delimita, entre nós, um universo singular de relações sociais, bem como de referências, imagens e práticas, se comparado à diversidade de expressões SM nos EUA, visíveis desde os anos 70 do século passado. É preciso lembrar que as variadas alternativas sadomasoquistas em cenário norte-americano tiveram destaque e participaram ativamente nos contenciosos políticos de diferentes posições feministas, do movimento lésbico e do movimento gay. No Brasil, como salienta Facchini, os adeptos, a discussão, o debate “BDSM não está inserido na agenda política dos ‘direitos sexuais', também não está no campo de interesses do movimento feminista” (Facchini 2008: 196). Aqui, o SM é uma das expressões das novas faces do erotismo, particularmente daquelas alternativas que estão se desenvolvendo e se difundindo no marco do que tenho chamado de erotismo politicamente correto (Gregori 2003).

 

24/7

As pessoas no clube se apresentam com seus nicknames, todos ou a maioria compatíveis com os apelidos empregados na Internet. São nomes escolhidos que já assinalam a posição ou status que o sujeito tem nas relações SM. Assim, nicks como Mestre K ou Y, Rainha Laura, Domme Virgínia são comuns, bem como nomes dos escravos(as) ou submissos(as) que são grafados em minúsculo e que incorporam uma letra que faz referência ao nome do seu senhor(a), como por exemplo, o caso de marYa, esposa do Mister Y. As posições de status são eminentemente relacionais: Dominatrix, Dom/Domme, Dono/Dona ou Mestre/Mistress se afiguram em relação aos subs (submissos/as) e escravos. Ainda existem os que se qualificam como sádicos e outros como masoquistas. Caso especial, me parece, são os switchers: as pessoas que podem ocupar posição de dominação ou submissão, dependendo da relação escolhida.

Existem diferenciações estabelecidas nessas posições. Dominatrix é a dominadora profissional (a que vende seus serviços na dominação feminina), Dom/Domme é o par dominador dos subs, Mestre/Mistress domina com ênfase no castigo e no sadismo. A Rainha é a escolhida pela comunidade e que supera qualquer Mestre ou Dom. Não existe uma distinção muito clara entre ser sub e ser escravo. Masoquista é alguém que está numa posição de submissão, mas que busca a dor corporal.

Facchini (2008) chama atenção que essas relações são produzidas em meio a uma comunidade, como uma espécie de confraria imaginada, definida por contornos (litúrgicos ou normativos) e por controles. Assim, é preciso ter em mente que as relações não são essencialmente diádicas. Elas podem se estabelecer entre um dono/dona e variados subs ou escravos e, fundamentalmente, são definidas a partir de um conjunto de prescrições partilhado coletivamente. Tal controle comunitário “por outro lado, não deixa de propiciar um campo de conflitos, fazendo com que a comunidade se estruture em um equilíbrio tênue entre vaidades, fofocas, posições isolacionistas, debates de concepções, solidariedade e busca de respeito” (Facchini 2008: 198).

Além de termos que contemplar as relações entre as pessoas no marco de uma comunidade, existe outro aspecto que me parece especialmente importante: as posições ocupadas pelas pessoas e as interações estabelecidas entre elas não são pautadas pelo sexo biológico dos parceiros. Ser mulher ou homem não é critério de dominação ou de submissão. Também não há uma exigência de que essas posições sejam estipuladas a partir da orientação sexual. É possível que um heterossexual seja sub ou mestre de alguém do mesmo sexo. Também, há a possibilidade de o jogo erótico envolver uma relação sem, necessariamente, haver sexo.

Na primeira visita ao Libens, conheci narinha e Mestre Sargitarius. Ela é uma moça de aproximadamente 25 anos, estudante de administração de empresas, morena parda com os cabelos pintados de dourado. Mestre S, dez anos mais velho, é branco e presta serviços de informática. Ele se vestia com uma roupa comum de trabalho, calça e camisa clara de mangas curtas. Narinha, ao contrário, estava arrumada para a “noite”: escarpins altos e estampados, meia arrastão 7/8, um vestido preto curto e justo, cabelo cortado reto, frisado, preso por presilhinhas, maquiagem leve. O conjunto sugeria uma “meninota”, uma sedutora Lolita. Já se apresentaram com seus nicks e logo narinha caracterizou sua posição e relação com Mestre S como sendo D/s (de dominação e submissão), com componentes de sadismo.

Ele, calado a princípio e “siderado” nela, que, eloquente, transmitia enorme vivacidade. Ela nos disse que a relação deles é 24/7 (vinte quatro horas por sete dias), o que significa: ela é escrava, mas também esposa dele. Mesmo tendo se conhecido há menos de um ano, eles já estão morando juntos. Para narinha, como a relação SM é 24/7, o casal estabeleceu que ele detivesse o controle e ela presta contas de tudo o que faz durante o dia. Não só relata como pede permissões. Na hora do almoço, quando está no trabalho, ela o avisa dos horários de saída e pede autorização sobre o que comer. Em casa, faz a comida para ele, serve, faz toda a limpeza e lhe dá banho.

Na narrativa, Mestre S usou imagens que supostamente estariam relacionadas com a escravidão no passado para descrever como vivem. Mesmo sem saber como era exatamente, o que importa para eles é o que se estabelece como fantasia. O repertório serve como cenário e inspiração para as práticas. Em dado momento, ao comentarem sobre a distinção entre escrava, submissa e masoquista, narinha explicou: a sub é aquela que deseja servir; a escrava é a que pode ou não servir, e costuma questionar, contestar; e a masoquista vai querer provocar seu dominador para ser punida. O Mestre assinalou tratar-se de um jogo de recompensas e castigos, o que ela completou se referindo a como se comporta, enquanto escrava, de modo a obter o que quer. Esse “o que quer” foi entoado de modo a demarcar o seu consentimento na subjugação e o prazer que essa relação proporciona.

O enlace entre narinha e seu Mestre apresenta uma conotação contratual, como, aliás, está na base da relação masoquista a partir da interpretação de Deleuze (1983) sobre a obra de Sacher-Masoch, indevidamente ignorada em contraste à significativa visibilidade de seu nome, designando uma perversão. É o contrato que exprime não simplesmente o consentimento da vítima, mas, sobretudo, a sua habilidade em persuadir, em seduzir e até ensinar o seu algoz. Ele produz uma espécie de efeito de tipo jurídico que, segundo Deleuze, diferencia cabalmente a dinâmica erótica do masoquismo em comparação ao efeito institucional provocado pelas cenas de Sade. Enquanto Masoch dá particular importância à forma estética (na arte e no suspense) e à forma jurídica (o contrato e a submissão), Sade acentua o naturalismo, a partir de um sistema movido a um mecanismo de moto perpétuo. O pensamento de Sade se exprime em termos de instituição: as interações entre libertinos e vítimas são baseadas em um estatuto de longa duração, segundo uma configuração involuntária (a vítima é presa da vontade soberana do libertino), sendo os direitos e deveres substituídos por um modelo dinâmico de ação, de poder e de potência (Deleuze 1983: 84). A submissão no caso dos personagens de Masoch não é passiva. Severino apela a tornar-se escravo de sua Deusa das peles, primeiro em sonho, em fantasia, e em seguida em um relacionamento que ele pretende eterno. A sua escolhida, Wanda, é a vizinha misteriosa que passa a ser, na narrativa em forma de suspense, a sua Vênus. Ele a seduz com tempo e calma, convencendo-a a amá-lo e, a partir de então, ensina a ela como submetê-lo e como provocar nele a sujeição física.

Deleuze acredita que esse romance traz todos os elementos que fornecem a base do masoquismo e que foram desconsiderados pela psicanálise: a presença de uma significação especial de fantasia, ou melhor, a recorrência de uma forma de fantasma que aparece nas cenas sonhadas, dramatizadas ou ritualizadas; o emprego frequente do que ele chama de “fator suspensivo” (a espera, o atraso como forma de tensionar o apelo sexual); a recorrência no texto de um traço demonstrativo, ou seja, persuasivo (o escravo ou submisso clama e exibe a humilhação); a provocação, como se, ao demandar a punição, o masoquista aliviasse a angústia de ansiar um prazer proibido; e, finalmente, o contrato que supõe a vontade dos contratantes, estabelecendo direitos e deveres e por um tempo determinado.[5]

No final de uma das edições de Vênus das Peles (Sacher-Masoch 1976 [1870]) são apresentados três diferentes contratos estabelecidos pelo próprio Masoch com suas mulheres e amantes.[6] O primeiro foi o contrato estabelecido, por ele, na idade de 33 anos, com Fanny Pistor Bagdanow, sua amante no período. Reproduzo, a seguir, um pequeno trecho:

“Sob palavra de honra, Leopold de Sacher-Masoch compromete-se a ser o escravo de Madame Pistor, e a executar absolutamente todos os seus desejos e ordens, e isto durante seis meses.
Por sua parte madame Fanny de Pistor não lhe pedirá nada de desonroso (que possa fazer-lhe perder a sua honra de homem e cidadão). Além disso, deverá deixar-lhe seis horas diárias para os seus trabalhos e não lhe verá nunca as cartas ou escritos. Por cada infração ou negligência, ou por cada crime de lesa-majestade, a dona (Fanny Pistor) poderá castigar ao seu gosto o escravo (Leopold de Sacher-Masoch). Em resumo, o sujeito obedecerá à sua soberana com uma submissão servil, acolherá os seus favores com um dom encantador, não fará valer nenhuma pretensão de amor nem nenhum direito sobre sua amante. Por seu lado, Fanny Pistor compromete-se a usar freqüentemente e sempre que possível peles, principalmente quando se mostre cruel” (começado a executar em 8 de dezembro de 1869; Sacher-Masoch 1976 [1870]: 247).

Essa dimensão do contrato, mesmo sem a referência explícita feita pelas pessoas que conheci na cena SM, parece estar inteiramente de acordo com a bandeira “são, seguro e consensual” que sustenta as práticas contemporâneas, tanto no Brasil como no exterior. Há um “zelo escrupuloso com a lei” que, segundo a leitura de Deleuze (1983: 96), leva ao absurdo. Voltarei a essa reflexão, a seguir. Trata-se aqui de entender que, mesmo no caso do autor que dá origem simbólica a essa expressão do erotismo, há a operação de elementos que conferem “agência” aos escravos e uma maior permeabilidade entre a cena literária ou encenada, no clube, e a vida cotidiana das pessoas. Nesse sentido, o 24/7 implica uma fronteira tênue com o que está presente na liturgia das cenas praticadas pelos membros das confrarias. A sensação que fica é a de uma dinâmica que certamente terá que ser mais investigada, de que os limites entre a vida no mundo SM e no “baunilha” vão esvaindo, mas ao preço de um esforço enorme em ir estabelecendo, até inventando, rotinas ritualizadas. Por mais irônico que possa parecer, não é fácil garantir a experiência do domínio e da servidão, em meio a uma vida organizada para a autonomia dos indivíduos. Não se trata, apenas, de evitar o estranhamento público (ou privado) quanto às assimetrias acentuadas presentes nessas relações. No caso de narinha e Mestre S, foi preciso ir criando um conjunto de prescrições para o dia a dia, o que, certamente, deve ser exaustivo.

Provavelmente o senso comum imagina que existam muito mais dominadores(as) do que submissos. Outra das idiossincrasias interessantes dessas experiências é que ocorre justamente o contrário. É muito comum ouvir, no clube, uma queixa em relação à exiguidade de pessoas que ocupam essas posições. São muitas as atribulações das Rainhas, Mestres ou Mistresses. A eles cabe inventar as punições, criar o material apropriado, não hesitar no controle às solicitações e provocações dos subs. Além disso, Mestre S alertou que um dos cuidados que um dominador deve ter, em uma relação 24/7, é o de estimular que os escravos não parem de estudar, de trabalhar, de terem amigos e que não rompam seus laços familiares. É preciso evitar, segundo ele, a dependência relativamente ao Dono quando as relações chegam a termo. A palavra “guiar”, aliás, foi bastante empregada por ele: “o Dono deve guiar sua peça, cuidar dela”.

Patrick Califia (1991), fundador do Samois e uma das maiores referências do cenário SM norte-americano, discute os aspectos paradoxais da relação top/bottom.[7] A partir de sua posição como top, ele indaga sobre as razões da significativa escassez de dominadores nesse campo e argumenta que a fantasia de dominação, com o paradigma da dissimetria de status (idade, classe, educação), é pouco vivenciada. Tal disparidade é ainda mais intrigante pela natureza consensual que caracteriza o processo de negociação entre parceiros. De modo levemente irônico, ele reclama que, ao ser basicamente um sádico, não tem interesse em roupas ou no comportamento submisso do que diz serem as empregadas francesas ou em bondages. Diz que as subs que conhece não acreditam nele. Aliás, pontua: elas escolhem não acreditar nele. De um lado, tal fato tem a ver com a pouca experiência da maioria dos parceiros e o parco conhecimento disponível sobre a variedade de dominadores e de subs. De outro, ele já se sentiu, em inúmeras ocasiões, como se fosse um objeto na mão de suas escravas ou submissos, sendo demasiadamente solicitado. Os subs não precisam ter habilidades ou competências, não são desafiados e não precisam ter energia. Além de a comunidade não oferecer treinamento aos Donos – o que exige deles imenso esforço –, ele afirma que, nas discussões sobre segurança e consentimento, o foco de atenção está inteiramente direcionado para a proteção do sub, quanto aos eventuais danos físicos ou psicológicos. O top que apresenta seus limites, inclusive, nem é considerado como um verdadeiro dominador.

Ainda que os marcadores de diferença sexual não possam ser considerados como critério para posicionar o dominante ou o submisso nessas relações, é preciso admitir que as tensões de gênero permanecem atuantes. Não se trata de uma operação de inversão que irá garantir a transgressão, como erroneamente imaginou Deleuze ao acentuar que a posição de dominação deveria ser ocupada por uma mulher. Esse não é o elemento inovador, até porque no cenário SM não existe sequer a preponderância de um dos sexos no lugar da submissão. Me parece relevante atentar é no caráter marcado, até exagerado, dos gestos e sinais que indicam o mando ou a obediência. Assim, o que marca em termos de gênero as assimetrias de poder é acionado, produzindo um efeito quase caricatural. As tensões são escrupulosamente ativadas como para afastar a verosimilhança, expondo a armação contingente que trama o poder. De fato, o lado contestador dessas iniciativas quanto às normas de gênero está nessa espécie de ritualística que expõe as posições de mando e controle, que ainda marcam as relações de gênero, de um modo extrapolado e causando uma sensação de algo inapropriado.

 

Quando a pele vira carne

Deleuze afirma que os textos de Masoch (e também os de Sade) não constituem propriamente pornografia. Ele cria o neologismo “pornologia”, de modo a definir esse gênero de linguagem erótica, cujo traço marcante não é o do mero comando e descrição, mas da demonstração (em Justine, por exemplo, há toda a discussão com a vítima) ou da persuasão (no modelo literário de Masoch, ele é um educador da mulher déspota). Assim, a fórmula “faça isso – faça aquilo” seguida por obscenidades é substituída pela abundância de palavras que passam a agir sobre a sensualidade. A ênfase na linguagem literária, me parece, deve ser acrescida de outro elemento fundamental para a compreensão do SM: a encenação da prática do flagelo.

A encenação começa pela atenção aos objetos e, em particular, pela invenção de aparatos que são criados e cuidados com enorme zelo. O fetiche pertence essencialmente à dinâmica erótica do masoquismo, daí a exuberância das peles, o rigor e altura dos saltos dos sapatos e, em particular, o gosto pelos chicotes.[8] Mestre S e narinha mostraram seu arsenal, guardado em um estojo especialmente escolhido para abrigá-lo. Havia uma chibata de cabo fino, leve e de ponta macia. Narinha explicou que ela servia para aquecer a pele para receber o spanking. Havia floggers, um de tiras plásticas, como cerdas grossas de uma vassoura, e outro era um chicote artesanal feito por um amigo Mestre, de cabo curto de borracha e com tiras de couro sintético, um pouco mais duras e pesadas do que as feitas de camurça. Havia nozinhos na ponta de boa parte dos fios, o que provoca muito mais dor quando do contato com a pele. Havia também um conjunto de canes: uma era praticamente uma vara de marmelo e outras moldadas em madeira ou látex. Segundo narinha, as canes são os instrumentos que mais ferem. É preciso saber usá-los, esperar passar a dor de uma pancada para dar outra, senão a pessoa passa a não sentir mais nada. Uma das canes tinha quatro pontas soltas, como se fosse um flogger. Essa, disse a submissa, era a escolhida para o castigo: as varinhas se abrem quando batem e é como se quatro canes batessem ao mesmo tempo. Havia ainda um relho de couro cru.

Causou impressão, não apenas a descrição detalhada de cada chicote e seu uso, mas o brilho no olhar dela ao manusear, esticar e torcer, movimentando o ar com um chiado peculiar. A cada peça, uma demonstração, experimentando as texturas e o volume sobre as mãos espalmadas. Este modo de lidar com os objetos não é muito diferente da relação das pessoas com os dildos e vibradores. O chicote é também um acessório erótico. Porém, um objeto a produzir hematomas.

Não que a dor seja menor em função de um corpo já calejado. Dor é dor, ainda que a tolerância a ela possa ser expandida. Para o casal, não se trata de prazer com a dor, em si, pois essas são sensações discerníveis. Eles contextualizam o espancamento em meio a um jogo erótico que envolve recompensas e castigos, de modo a envolver a dor em outros elementos da fantasia. Além disso, lembram que ela, provocada dessa maneira, ativa a produção de endorfina, elevando a pessoa ao que eles chamaram de subspace, espaço no qual o martírio físico fica submerso numa situação de prazer. Uma designação própria, porém não muito distinta da noção de êxtase de Georges Bataille (1987): algo que evoca imergir em um plano não tangível, liminar e, simultaneamente, mágico.

Elaine Scarry (1985), em seu The Body in Pain, diz que a resistência à linguagem é algo essencial à dor: ela é inefável, ainda que não possa ser negada. O que se objetiva em discurso diz respeito muito mais às reações que ela enseja. Ela não é contabilizável e as caracterizações não especificam tipos, além de aproximações como a “dor profunda” ou a “dor ardida”. O que essa abordagem ensina é que, ao lidarmos com a dor, evitemos reificações. Portanto, a qualidade de, a partir dela, alçar à transcendência ou à purificação – presente no repertório de variados rituais de expiação –, no caso do casal SM aparece como retórica a traduzir, me parece, pele em carne.

“Quando fomos ao Libens, assisti a uma encenação. Sentada em uma das cadeiras, vi Mister Y, vestido de jeans e camiseta, espancar marYa que vestia apenas a roupa de baixo preta e portava uma coleira. Ele é um rapaz grande e ela, bem branca, tem o corpo opulento. A brancura do corpo seminu parecia trazer luz àquele espaço escuro. Bem devagar e concentrada, ela se ajoelhou sobre um suporte que permitia apoiar o tronco, de barriga para baixo. O movimento lento fez revelar as nádegas, arrebitadas e expostas. Ele acendeu duas velas grossas uma contra a outra, produzindo gotas gordas de cera que, ainda quentes, foram derrubadas sobre o dorso dela. Na medida em que caíam, a pele parecia enrugar, criando um segundo volume, para além do corpo. Um a um, os pingos azuis foram ocupando a superfície, descendo em direção às coxas. Ela sequer murmurou. Toda a operação lenta, ­olhares ao redor, silêncio absoluto. Com os dedos, ele tirou a cera, apertando a pele como carícia. Depois, ele escolheu um único chicote usado durante toda a cena: um flogger de camurça. Deu a primeira chibatada abaixo da asa esquerda dela e, a pele branca, antes pontuada de pingos azuis, foi avermelhando. Cada batida parecia estudada. A força dele no chicote estalava a pele, entoando um som, acompanhado de perto pelo gemido dela. Não era grito. O chicote parecia mole e pesado ao tocar a parte dura das costas. Os músculos contraíam. Eventualmente ela levantava a mão e ele parava imediatamente, ia até perto do seu rosto, ouvia algo e acariciava o lugar batido. Esperava a pele rubra acalmar. Voltava a chicotear, dirigindo cada batida para as partes mais baixas do corpo. Comecei a notar um encadeamento sonoro: o som do couro no corpo, cadenciando o gemido, como uma percussão estranha. Mas o corpo não era tratado como tambor. A cada movimento do flogger a lisura da superfície ia dando lugar a reentrâncias, ondulações, volumes moles. A pele sendo tornada carne. Como se o chicote pudesse produzir orifícios e penetrar. Terminada a cena, ela se levantou e beijou os pés dele.” [Caderno de campo da autora]

A encenação é uma operação de erotização dos corpos. São gestos, sons, cores e luzes e, também, chicote, volumes de corpo e olhos. Todos articulados em uma combinação material, carnal e simbólica. Não me pareceu ocorrer a preponderância de um elemento sobre os demais. Entrecruzamento é a expressão mais próxima do que vi. Meus alunos me contaram que nunca viram uma cena de sexo num dungeon de clube SM: normalmente, não é proibido, mas as pessoas não o fazem. Eu acho que fazem sim, pois testemunhei um intercurso sexual sem o advento dos genitais.

 

A performance do risco

A literatura sobre sadomasoquismo é bastante vasta, especialmente nas abordagens no âmbito da psicanálise e dos estudos sobre sexualidade, no marco da tradição aberta pela sexologia. Também não é possível desprezar as perspectivas vindas do campo da crítica literária e dos estudos filosóficos.

Além dessas contribuições inspiradoras, sobretudo pela sua riqueza, existe um debate sobre o sadomasoquismo no marco das identidades e das minorias sexuais, relevante para os propósitos antropológicos.

Anne McClintock (1994) e Lynda Hart (1998) trabalham o sadomasoquismo no registro dos exercícios simbólicos mobilizados, seja como manifestações subculturais (McClintock), seja como performances (Hart). Seus estudos operam no registro do teatro e na análise de várias expressões SM como escolhas e práticas sexuais que só podem ser inteligíveis como encenações, colocando em suas cenas, nos cenários e personagens, aspectos que fazem parte das ­contradições que emergem no interior das dinâmicas do poder social. Menos do que ver no sadomasoquismo uma cópia ou reprodução do que constitui o cerne da sexualidade heterossexual, modulada como norma pelo patriarcalismo – principal crítica apontada pelas feministas antissadomasoquismo –, as autoras sugerem que consideremos o seu lado contestatório. Seguindo tal perspectiva, o SM comercial, o lesbianismo SM e as manifestações SM entre gays masculinos constituem alternativas que, no limite, problematizam os modelos que supõem naturalidade e normalidade entre as fronteiras que delimitam homens e mulheres e, mais particularmente, o comportamento sexual masculino como sendo ativo e o feminino como sendo passivo, além de esfumaçarem os limites que separam o prazer da dor, o comando e a submissão.

Essas são experiências que ousam lidar com o risco social, ou melhor, com aqueles conteúdos e inscrições presentes nas relações entre a sexualidade e as suas assimetrias em termos de gênero, de idade, de classe e de raça. ­McClintock (1994) chega até a afirmar que o SM performa o poder social como um script, de modo que as assimetrias que constituem tal poder passam a ser encenadas, teatralizadas, tratadas como contingentes e sujeitas a mudanças e novas inflexões.

Lynda Hart (1998) estuda os casos SM entre lésbicas, experiências que ameaçam certas noções das teorias feministas, principalmente desenvolvidas sobre as relações mulher/mulher, que alimentam a ideia da igualdade ou de um “não poder” como estratégia de libertação. Segundo a autora, tal forma de SM, ao trazer nos plays as piores cenas heterossexistas, desafia a definição ética e política envolvida no lesbianismo, sobretudo a noção de irmandade. Seguindo a orientação de Deleuze em que também me baseio, ela chama atenção para o fato de que o componente crucial da relação masoquista é o contrato, um acordo sempre formalizado que pressupõe o consentimento, a reciprocidade e que não afeta os indivíduos fora dos limites de cada encenação.

Além disso, como Deleuze também já havia formulado, o cuidado extremoso com liturgias ou com a “lei” pode ser interpretado como um movimento que, ao ser intensificado, provoca o efeito oposto: “toma-se a lei ao pé da letra; não se contesta o seu caráter último ou primeiro; faz-se como se, em virtude desse caráter, a lei reservasse para si os prazeres que ela nos interdita”; a lei é “revirada humoristicamente, obliquamente, pelo aprofundamento das consequências” (Deleuze 1983: 96).

Contudo, é preciso ponderar que esse lado do contrato não deve nos levar a desconsiderar que as experiências constituem um empreendimento de risco, a partir de atos que implicam negociações delicadas. Os riscos, bem como as operações de produção de consensualidade e segurança das várias modalidades de SM, indicam que é preciso empreender esforços para analisar detalhadamente os vários contextos em que elas se apresentam, bem como as relações sociais e pessoais envolvidas. A preocupação com a segurança e com a ­consensualidade funciona como uma espécie de ideal. Nenhum desses termos é facilmente acessível ou garantido.

Outro elemento a considerar sobre os riscos está relacionado ao fato de serem práticas que implicam uma tríplice relação: a entrega da pessoa que se submete – e essa entrega, como, por exemplo, a amorosa, indica uma confiança cultivada em relação ao parceiro; o cuidado da pessoa que domina que, como já indicado, exige um aprendizado constante; e, finalmente, o controle da comunidade ao propiciar atividades pedagógicas e uma atenção singular diante de casos que venham a extrapolar o “são, seguro e consensual”. Facchini e Machado (2013) descrevem a ocorrência de um contencioso nas páginas de discussão da Internet em 2007, a partir de um caso de abuso que envolveu participantes de uma das cenas BDSM. A profusão de posicionamentos de membros da comunidade revela o controle estrito de problemas desse tipo, tendo como solução provável o isolamento ou ainda a expulsão de quem apresente uma conduta inadequada. De modo arguto, as autoras analisam esse debate na comunidade, assinalando que houve nessa crise uma tendência – que até então, no Brasil, nunca estabeleceu vínculo de tipo político – para falar na organização de campanhas públicas de esclarecimento, acalentando certo desejo de se constituir enquanto um movimento. Assim, a violência é controlada, dando espaço para uma atuação que legitima práticas que avizinham o prazer da dor.

Se no marco das experiências SM essa tríplice relação indica a neutralização de abusos e relações violentas, o problema do risco não pode ser inteiramente abandonado. Margot Weiss (2011), a partir de uma etnografia recente e bastante completa sobre BDSM em São Francisco (EUA), sugere que é preciso considerar os incômodos efeitos do mercado e, em particular, o que a bibliografia norte-americana atual assinala como neoliberalismo, de modo a apreender em que medida o SM corre o perigo de alimentar desigualdades, inclusive as baseadas em gênero e sexualidade. Basicamente, o argumento elaborado é que o neoliberalismo deve ser tratado como uma formação cultural que articula ideias como as de liberação e liberdade individual com o direito à propriedade privada, livre mercado e livre comércio. No limite, é um modo de governo e racionalidade que supõe uma disjunção entre um mundo público e social “real” e, de outra parte, um mundo privado, individualizado, constituído por escolhas livres e no qual as fantasias de raça e gênero, por exemplo, não teriam nada a ver com “sexismo” e o “racismo” do mundo real. Do ponto de vista da autora, o capitalismo contemporâneo e sua forma cultural (o neoliberalismo) produziram um sentido de transgressão sexual baseado na ideia da fantasia das cenas como espaços seguros para os desejos privados que justificam e reforçam desigualdades.

Ainda que as articulações entre mercado e práticas eróticas mereçam um esforço analítico para empreender uma teorização crítica, essa argumentação peca pelo mecanicismo. Além de reduzir o neoliberalismo a ser uma forma cultural, descontextualizando os processos sociais, econômicos e políticos que nele estão tramados, trata-se de uma abordagem que elimina qualquer indagação mais sofisticada sobre os deslocamentos normativos gerados por essas práticas, a partir das paródias e das desnaturalizações que elas provocam. O interesse em investigá-las reside, precisamente, no fato de elas mobilizarem e mostrarem com força dramática, a partir de todo um repertório de convenções culturais e sociais disponíveis, as assimetrias de poder, as materializações e corporificações de normas de gênero, de sexualidade, bem como de outros marcadores de diferença, como classe, raça e idade. Para além da ideia presente no senso comum de que o teatro não é a vida, tratar essas práticas e decifrar seus enredos, cenas e cenários permite entender – até por seus intrincados paradoxos – as convenções que organizam, também de modo idiossincrático, as relações entre violência, gênero e erotismo.

 

Bibliografia

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NOTAS

[1] Além do mapeamento do mercado erótico e da pesquisa em sex shops em São Paulo, no Brasil, eu entrevistei usuários de produtos eróticos e investiguei um dos nichos desse mercado, o relativo às práticas sadomasoquistas, em clubs, festas e eventos. Para maior detalhamento, consultar Gregori (2003, 2011, 2012, 2014).
[2] As primeiras organizações explicitamente SM foram criadas nos anos 70: os grupos heterossexuais The Eulenspiegel Society e Society of Janus foram criados, respetivamente, em 1971 em Nova Iorque e em São Francisco em 1974, e o Samois – grupo S/M lésbico – foi fundado em 1978 (Rubin 1991).
[3] Para maiores explicações sobre feminismo radical e New Right, consultar Gregori (2003). Vale considerar a bibliografia sobre lesbianismo e, em particular, as análises e abordagens críticas em relação ao sadomasoquismo. Bom exemplar nessa direção é a coletânea editada por Robin R. Linden et al. (1982), Against Sadomasochism: A Radical Feminist Analysis.
[4] As afinidades entre essas diferentes modalidades de práticas gays e lésbicas estão analisadas com requinte por Gayle Rubin (1991, 1993) e inteligentemente sintetizadas por Camilo Braz (2010), de modo a pensar seus efeitos sobre homossexualidades masculinas e como as convenções leather viajaram dos Estados Unidos para outros países. A pesquisa de Braz contemplou experiências de “sexo duro” entre homens, em São Paulo e em Madrid.
[5] Deleuze critica na psicanálise, sobretudo, a ausência de um exame mais depurado da forma narrativa presente na origem literária que deu base ao masoquismo e, consequentemente, não ter identificado a centralidade do elemento de contrato.
[6] Essa edição de Vênus das Peles foi publicada pela Livros do Brasil, de Lisboa, em conjunto com a novela Diderot e Catarina II e traz em anexo, com o subtítulo “Fragmento de Psychopathia Sexualis”, três contratos, segundo Von Krafft-Ebing (1886) coletados por Schlichtegroll (Sacher-Masoch 1976 [1870]: 246-247).
[7] Califia nasceu mulher e assumiu identidade lésbica nos anos 70. Escritora de inúmeros livros de ficção e ensaios sobre sexualidade, ela foi uma das fundadoras do Samois (e no grupo, assinalou os elementos da leather culture), participou das sex wars ao lado das feministas e lésbicas pró-sexo, contrárias à lei antipornografia de coautoria de Catherine MacKinnon. Um dos seus livros mais populares é Macho Sluts, publicado no final da década de 1980. Em meados dos anos 90, Califia decidiu-se pela transição de gênero e adotou o nome Patrick. Hoje se autodefine como uma pessoa transgênero bissexual.
[8] O fetichismo, definido por Freud, implica a presença de um objeto – substituto do falo feminino – que é a imagem imediatamente posterior à descoberta de que a mãe não possui pênis. Deleuze lembra que o fetichismo é, nessa perspectiva teórica, inicialmente denegação (não, à mulher não falta o pênis); em seguida, neutralização defensiva (mesmo sabendo que ela, na realidade, não possui o pênis, esse conhecimento fica em suspenso); e, finalmente, neutralização protetora (o falo feminino se põe à prova, fazendo valer os direitos do ideal contra o real). Para Deleuze, “o fetichismo, assim definido pelo processo de denegação e do suspense, pertence essencialmente ao masoquismo” (Deleuze 1983: 35). Importante grifar que o relevante, no seu caso, não é a definição em termos psicanalíticos, mas sim a sua rentabilidade para demarcar uma qualidade estética.

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