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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.15 n.3 Lisboa jun. 2011

 

Atenção à saúde, direitos e o diagnóstico como ameaça: políticas públicas e as populações em situação de rua

Rubens de Camargo Ferreira Adorno*

*Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa Social em Saúde Pública, Brasil; radorno@usp.br

 

RESUMO

Nesse texto discutimos questões de interface entre a política pública e a atenção à saúde para população em situação de rua, a partir de uma pesquisa realizada com essa população, que tratava de avaliar a sua relação com o controle da tuberculose. A pesquisa utilizou a contribuição etnográfica juntamente com a coleta de outros dados de caráter epidemiológico. Através de fragmentos de narrativas etnográficas, discute-se a questão das “margens sociais” a partir de uma dualidade entre a ação técnica sanitária e os mecanismos de evitação social. Tratar do tema da tuberculose significa evocar aspectos da sociabilidade desse grupo social, de sua relação com as instituições, e permite explicitar mais um aspecto do sofrimento social.

PALAVRAS-CHAVE: populações em situação de rua, políticas públicas, intervenção sanitária, sofrimento social.

 

Health care and diagnosis as a threat: public policies and homeless people  

ABSTRACT

In this text we discuss issues of the interface between public policy and health care provided to the homeless population, from a survey of this population intended to assess its relationship with tuberculosis control. The contribution of ethnographic research has been used along with other data collection of epidemiological character. Through fragments of ethnographic narratives, we aim to discuss the issue of “social margins” taking as the starting point a duality between sanitary and technical action, and mechanisms of social avoidance. Addressing the issue of tuberculosis control among the homeless means to evoke aspects of the sociability of this social group, its relationship with the institutions, and allows for the clarification of yet a different aspect of social suffering.

KEYWORDS: homeless, public policies, health intervention, social suffering.

 

Nesse texto pretendemos, a partir de uma pesquisa realizada com as que vêm sendo chamadas no Brasil de “populações em situação de rua”, apresentar fragmentos da trajetória de um grupo estigmatizado, excluído e marcado por um intenso sofrimento social, que vem buscando ser visibilizado e “incluído” a partir do reconhecimento de suas “vulnerabilidades”, que possibilitariam o canal de acesso às políticas públicas.[1]

Vale lembrar que, na esfera governamental brasileira, as políticas de saúde têm-se utilizado do reconhecimento das diferenças, das vulnerabilidades e da participação, com uma intensa produção discursiva em torno da “inclusão” na chamada atenção integral à saúde.

Os dados que servem de base ao texto fazem parte de uma pesquisa realizada entre 2006 e 2008 na cidade de São Paulo, Brasil, com financiamento do ­Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde brasileiro. Na pesquisa que realizamos foi utilizada, além de uma abordagem de base estatística e quantitativa de interesse epidemiológico, a contribuição etno­gráfica.

Foram desenvolvidas quatro etapas de investigação de campo: um mapeamento, com a divisão da área central da cidade em dez setores que denominamos como “circuitos”, nos quais ocorria maior movimentação de moradores de rua; a realização de entrevistas a partir de um formulário, ao qual responderam 862 pessoas em situação de rua; a aplicação do chamado método de “contagem e recontagem” para realizar uma estimativa do número de pessoas de rua que frequentavam os circuitos selecionados; o registro etnográfico de situações e acompanhamento de moradores de rua que contatamos durante um período de seis a doze meses.

O uso da etnografia fez parte de nossa trajetória de pesquisa no espaço da academia e na formação de pós-graduados no campo da saúde pública. Em uma área na qual predominantemente os “sujeitos” aparecem diluídos nas tabelas numéricas e associações estatísticas, a perspectiva da imersão no campo traz para a pesquisa um aspecto fundamental, o da leitura das condições e dos modos de vida a partir dos sujeitos, e, além disso, aponta que as questões de saúde-doença, alvo da epidemiologia e da saúde pública, adquirem um caráter mais complexo do que simplesmente o de resolver o problema do acesso a um tratamento específico.

Destacamos que o campo da saúde pública, no qual a epidemiologia tem tido um papel central, com seu desenvolvimento facilitado pela aplicação dos modelos matemáticos a partir da informática, tem levado a cabo o aspecto realçado por Hannah Arendt, qual seja o de reservar para uma ciência abstrata – a matemática – a baliza de verdade para o conhecimento técnico, esvaziando a esfera reflexiva, e mais, restringindo a atividade científica ao trabalho com bancos de dados, na maior parte das vezes sem dialogar com os contextos nos quais esses dados foram gerados (Adorno et al. 2011).

A introdução das ciências sociais e, mais recentemente, da etnografia no campo sanitário, se compreendida a partir da ótica das políticas e serviços de saúde, responde a uma lógica etnocêntrica, que atribui às ciências sociais um papel “técnico” ou de ferramenta para trazer os grupos de difícil acesso para os serviços de saúde.[2] Expressões como “populações ocultas”, “populações de difícil acesso” ou “populações vulneráveis” fazem parte do repertório da saúde pública contemporânea, notadamente após a epidemia do VIH-AIDS.

Registramos ainda que a incorporação de estudos etnográficos no campo da saúde pública também acompanha um momento de mudanças dentro do próprio debate que ocorreu na antropologia, como refere Epele (2010). Tal debate envolveu o questionamento do fundamento da autoridade etnográfica em função da inserção da etnografia em territórios de intenso conflito, sofrimento, urgências que desafiavam os próprios vínculos e dinâmicas sociais, nos quais modos de sentir, viver e morrer extrapolavam os próprios limites institucionais, sociais, políticos e econômicos da sobrevivência cotidiana.

Perante situações de extrema urgência, sofrimento e violência, atinge-se um limite da capacidade de representar, pois na representação se acaba por construir uma visão metafórica ou normalizada do que sejam os seres humanos. Assim, em situações de vida e de atos extremos, o campo passa a ser um lugar em que se testemunham experiências, experiências que são compartilhadas com o pesquisador presente, e que portanto passam a ser atestadas na construção da narrativa etnográfica (Das 1999; Fassin 2006). Nessa perspectiva consideramos que o trabalho etnográfico e a antropologia podem contribuir para realizar um testemunho a partir das interfaces entre as ações públicas e o espaço de sofrimento de grupos como as populações em situação de rua, lugar também em que se colocam situações de uso crônico e marginal de drogas, populações indígenas, jovens em conflito com a lei, pessoas que tiveram diagnósticos de doenças crônicas e que a partir deles sofreram processos de exclusão e estigmatização.

Pesquisas que venham a iluminar o cotidiano através de narrativas dos sujeitos vêm colocar problemas, no sentido em que relativizam o imperativo e a autoeficácia da intervenção sanitária, questionando o lugar da “saúde” como um dos campos que ainda vem afirmando uma certa filiação à modernidade, e sua crença na ciência e na técnica como redentoras da doença e do sofrimento. A identificação desses limites das ações sanitárias e das políticas empreendidas para as “populações vulneráveis” apela ao recurso a novas sensibilidades para apreender o cotidiano de vida na sociedade (Adorno e Castro 1994).

No caso brasileiro, essa relação com as políticas públicas, especificamente as de saúde pública, necessita ser referida em uma história relativamente recente, qual seja a do contexto de redemocratização e da chamada “reforma sanitária” que ocorreu no Brasil desde finais dos anos 70, e do processo de incorporação de demandas sociais através das políticas de Estado, tendo como plano também as relações entre sociedade civil e Estado no Brasil em relação aos grupos “excluídos”.

Nossa hipótese é que, a despeito dos movimentos sociais e das tentativas de organização das populações em situação de rua, da inscrição de suas demandas e reivindicações em documentos políticos, a lógica da relação com o serviço não rompe com o assistencialismo, por um lado, e por outro chega a construir algumas redes de solidariedade entre alguns profissionais no atendimento à população em situação de rua.

A tensão também passa a existir entre uma lógica compreensiva presente na prática da etnografia e nas ciências humanas e uma interpretação “técnica” e “sistêmica” por parte dos agentes de saúde.

 

A tuberculose, doença negligenciada e doença de populações negligenciadas: inovação tecnológica e tecnologias sociais

A questão da tuberculose enquanto “problema de saúde pública” insere-se hoje numa lógica sanitária “global”, a partir do momento em que essa endemia passou novamente a ser considerada de maior “risco” na conjuntura do que chamaríamos do “pós-epidemia de AIDS (sida)”;[3] o risco nesse caso torna-se uma categoria estatística, ou seja, o número de casos em determinado local e em determinado tempo ultrapassa os “diagramas de controle” que são construídos a partir do número de casos da doença notificados pelos chamados sistemas de vigilância epidemiológica como parte das ações de saúde pública em um determinado território.

Em termos de saúde pública, a tuberculose é também conhecida como participante do “elenco” das “doenças negligenciadas”, ou seja, aquelas que não mereceram investimento no tocante aos programas de atenção e tratamento e muito menos em relação à pesquisa de novos fármacos, que poderiam ter sido desenvolvidos no sentido de oferecerem menores efeitos colaterais e maior eficiência no tratamento para as pessoas diagnosticadas com a doença.

A categoria “doenças negligenciadas” foi colocada no lugar de “doenças tropicais”, que destacava o critério geográfico como determinante na prevalência de algumas doenças, refletindo ainda uma visão “colonialista” por parte da Organização Mundial da Saúde (Morel 2006). Coincidentemente, essas doenças – malária, tuberculose, hanseníase, etc. – foram negligenciadas no tocante à “inovação tecnológica”, categoria hoje presente no jargão da saúde pública para referir o desenvolvimento de novos fármacos ou novas descobertas para o controle dos agentes etiológicos das doenças.

É interessante mencionar que as chamadas “doenças negligenciadas” são as que afetam principalmente o que chamaríamos de “populações negligenciadas”, como grande parte de populações do continente africano, e aquelas que fazem parte das “margens” das cidades globais dos diversos países: populações de rua, populações encarceradas, usuários de drogas, trabalhadores do mercado sexual, etc. – no caso de países europeus, também consideradas “imigrantes” –, populações estas que coincidem com o que referimos anteriormente como as consideradas “populações de difícil acesso” para as ações de saúde pública.

Verificamos que, nas últimas duas décadas, dois aspectos foram focalizados em relação ao tema da tuberculose nos artigos publicados em ­periódicos de saúde pública: o surgimento dos bacilos multirresistentes e a chamada ­estratégia de “tratamento diretamente supervisionado” (Farmer e Kim 1998; Haddad et al. 2005; Slory et al. 2007; Terra e Bertolozzi 2008); trata-se de duas questões que se vinculam ao sucesso ou não do tratamento, sempre pensado no contexto das “populações de difícil acesso”. O problema é colocado da seguinte maneira: como os grupos vulneráveis tendem a interromper o tratamento – que exige a tomada de fármacos durante um período mínimo de seis meses, fármacos esses que em geral causam problemas gástricos ou outros incômodos –, e como essa interrupção pode levar ao surgimento de bacilos resistentes à medicação, deve-se “supervisionar” diretamente o tratamento para se ter certeza que os medicamentos estão sendo ingeridos durante o tempo prescrito.

O tratamento diretamente supervisionado, representado pela sigla DOTS, implica no desenvolvimento de estratégias de aproximação ou “sensibilização” desses grupos, de modo a que técnicos ou auxiliares dos serviços de saúde possam ter a comprovação de que os indivíduos tomaram os medicamentos exatamente como determina a prescrição médica. Essa questão passa, em geral, para o domínio da enfermagem e, no que observamos no caso da cidade de São Paulo, envolve tanto iniciativas que procuram negociar com a comunidade e o grupo alvo das ações de controle formas de levar a cabo essa “supervisão” do tratamento, como práticas daqueles que permanecem refratários ao poder corporativo e determinam que os “pacientes” apareçam diante de si para realizarem a ingestão do medicamento.

Há ainda o que chamaríamos, no mínimo, de vestígio do modelo asilar, ou da internação compulsória da população. Assim, em se tratando de “população de rua”, o tratamento de tuberculose, que se reduz à tomada diária dos medicamentos, deve ser feito em regime de internação sob vigilância.

Nesse sentido, o tratamento de tuberculose passou a envolver o uso de “tecno­logias sociais” que transitam da busca de compreensão e trocas ­intersubjetivas para a remoção para um hospital fora da cidade, onde os pacientes vão permanecer supervisionados e fora do convívio com os “sãos”. A perspectiva dos epidemiologistas contemporâneos, porém, é a de que a “inovação tecnológica” venha a “resolver” o problema da adesão ao tratamento, com o desenvolvimento de drogas que causem menor incômodo e possam ser administradas em menor espaço de tempo.

Destacamos que, em meio ao pragmatismo e ao pensamento de caráter sistêmico que predomina no campo da saúde pública, essas questões de acesso são sempre secundárias relativamente às técnicas ou à “evolução” tecnológica. Essa questão, aliás, envolve hoje a própria complexidade das biopolíticas, entendidas como a gestão dos corpos e da vida no campo do poder do Estado.

 

Populações de Rua, entre a insegurança e a cidadania “fraturada”

A história recente tem mostrado maior visibilidade pública e organização das populações em situação de rua na cidade de São Paulo, a partir de fóruns, movimentos e manifestações públicas. Como registra De Lucca (2007), na trajetória desse movimento social ocorreu um deslocamento de lugar e do plano discursivo, na relação e no sentido das reivindicações dirigidas ao Estado e à sociedade.

Em um primeiro momento, os moradores de rua eram identificados com a imagem de “sofredores de rua”, portadores de dor, agonia e sofrimento, traduzindo uma identidade construída a partir da influência dos chamados movimentos de organização de base da Igreja Católica, por sua vez influenciada pela “teologia da libertação”, presente também em outros segmentos de luta na sociedade brasileira desde a década de 1970.

A partir da década de 1990, as questões problematizadas passam a centrar-se em um modelo de construção das “vulnerabilidades” e da exposição aos riscos e à insegurança, o que leva a reivindicar do Estado a existência de políticas e serviços dispostos à proteção das “populações de rua” enquanto um direito social e de cidadania. A questão central da reivindicação também se irá deslocar, da criação de locais de trabalho ou na denúncia da condição de desemprego para a conquista do direito ao abrigo e à moradia.

A trajetória do tema das populações de rua na cidade de São Paulo e a história em algumas cidades brasileiras situam a “construção” de sua visibilidade, também ligada à história política local a partir das administrações que se posicionaram como politicamente de esquerda ou como “administrações populares”.

Assim, vamos encontrar registros da edição de coletâneas e publicação de atas de seminários sobre o tema apoiadas pela administração municipal, como por exemplo os livros População de Rua: Quem É, como Vive, como É Vista (Vieira 1992) e População de Rua: Brasil e Canadá (Rosa 1995), editados durante a gestão da prefeita Luiza Erundina.[4] Essas publicações trazem a público experiên­cias de projetos e trabalhos com essas populações, problematizando modelos de assistência, abrigo e incorporação ao trabalho.

Não se pretende descrever a trajetória do movimento e da visibilidade política aqui nesse espaço; apenas cabe mencionar que, a partir da esfera local e do apoio de administrações municipais, hoje esse movimento social se organiza nacionalmente juntamente com outros atores da sociedade civil, denominando-se Movimento Nacional da População em Situação de Rua e tendo conquistado, em dezembro de 2009, o decreto-lei sobre a Política Nacional para a População em Situação de Rua, com o objetivo de promover a inclusão através de ações e políticas setoriais a partir das áreas de governo: direitos humanos; segurança pública e justiça; trabalho e emprego; desenvolvimento urbano e habitação; assistência social; educação; segurança alimentar e nutricional; saúde; cultura; esporte e lazer (Rede Rua 2009).

A Política Nacional para a População em Situação de Rua, como premissa da administração federal, apresenta objetivos bastante ambiciosos de articulação entre os diversos setores ministeriais, na intenção de propiciar uma rede de proteção, promoção e assistência às populações de rua. Registramos esse caráter ambicioso em duplo sentido: primeiro, pela articulação, na política pública, de setores que operam corporativamente dentro do Estado, com um histórico e processo próprios, tais como a segurança pública, que ainda se vincula a um aparato policial ligado a modelos de organização militar, ou a assistência social, que tem grande influência de um modelo assistencialista; segundo, esse documento político agrega a presença de ministérios criados mais recentemente, como o Ministério das Cidades e o Ministério da Cultura, e outras secretarias ministeriais, como as dos Direitos Humanos e da Segurança Alimentar, com um perfil de relação com a sociedade e gestão mais democrática, mas com uma menor estrutura e poder de alcance. Tudo isto nos remete ao segundo problema, o dos limites de implementação de uma política pública federal em um país de dimensão continental como o Brasil, com mais de duas dezenas de estados e milhares de municípios governados por diferentes clivagens políticas.

Destacamos também que, a partir do ideário neoliberal, se amplificou a influência do ideário político norte-americano e as teorias que lhe deram suporte foram se tornando comuns, generalizando a ideia de que a condição dos sujeitos pode ser explicada e julgada a partir de uma perspectiva moral e individual, passando a ser assim condenados pela sua própria condição; trata-se do blaim the victim que tem influenciado o enfoque e servido como justificativa para as políticas públicas, intensificando a discriminação de grupos sociais como a população em situação de rua.

Podemos registrar que a sociedade brasileira, a partir da agenda dos anos 1980, que colocava em cena os “movimentos sociais”, desde as fábricas até ao bairro, acompanhou lenta e gradualmente a transição do regime político com o fim da ditadura militar. A partir de então, grande parte do debate e da produção teórica das ciências sociais se debruça sobre o que se designaria um campo de investigação sobre as questões da “fragilização” da cidadania, abarcando desde a precarização dos serviços coletivos às questões da cidadania civil, o que envolve a ideia da exposição à violência como uma violação de direitos (Kowarick 2009).

Contrastando com a situação francesa e norte-americana, ocorre na sociedade brasileira um discurso institucional e político centrado na abrangência dos direitos e na responsabilização do Estado; contudo, no plano da sociedade civil, ele se vê por sua vez fraturado por uma condição de “subcidadania urbana” (Kowarick 2009), caracterizada por um Estado que estenderia lentamente os serviços básicos à população pobre, mas que exerceria um intenso controle social e repressivo, através da polícia, a grupos que vivem na periferia das grandes cidades – jovens, jovens negros, etc. –, deixando por sua vez precários também os serviços de segurança nessas áreas, que corroboram um “imaginário social” que associa a essas populações os atributos da vadiagem e da criminalidade.

Cabe ainda destacar o que ocorre por conta do espaço que a mídia televisiva tem na sociedade brasileira, especificamente por ação de um setor dessa mídia que, segundo Caldeira (2000), tem origens no regime militar e produz um tipo de jornalismo que, ao tratar de matérias sobre a violência, amplifica sua ameaça e a própria sensação de insegurança civil. Essa militância ativa e cotidiana dos meios de comunicação de massa, inclusive os mais populares, associa sempre a imagem do “bandido” ou do “drogado” aos pobres, marginais e moradores de áreas como as favelas, áreas deterioradas do centro das cidades, de forma tal que essas pessoas passam a ser vistas como pessoas que não têm direito a ter direitos.

No imaginário social ocorre o reforço da associação entre violência e pobreza, o que talvez direcione a questão da culpabilização para além do espectro individualista americano, mas para uma questão mais difusa de culpabilização de um conjunto social, situação que acaba por corroborar uma “mentalidade exterminatória” (Oliveira 1997). Isso leva a que uma parcela da opinião pública aprove eventos críticos marcantes, como o massacre do Carandiru[5] e o extermínio de moradores de rua.[6]

Para além dessa polêmica entre o Estado garantidor de um bem-estar social e o livre mercado, e seguindo o desdobramento dessa questão como no caso do contexto francês, vamos encontrar o caso brasileiro. Na sua história, o Brasil passou a reconhecer direitos de forma segmentada, limitados a setores da classe média e das classes trabalhadoras urbanas e, lentamente, foi estendendo a atenção a outros grupos sociais, como os trabalhadores rurais, trabalhadores informais, etc.; a partir da Constituição de 1988, professa uma doutrina universalista de promoção dos direitos à saúde, à moradia, ao emprego, ao bem-estar social para todos os cidadãos, mas essa doutrina encontra limites na própria ação política do Estado, no contexto de um país de dimensão continental e com um saldo histórico de grande desigualdade social. O que se identifica hoje no plano político é a generalização do discurso que remete o tempo todo à necessidade de resolver os problemas da pobreza e outras questões sociais, juntamente com a implementação de políticas focais.

Atualmente, na mídia política, todos os partidos falam sobre a questão social e os direitos; a diferença entre eles se coloca no estilo – obviamente, nos gastos públicos e no sentido moral da maior austeridade e segurança, no tom de compaixão religiosa com os “desfavorecidos”, na ideia de um governo voltado para combater a pobreza. O Estado, que sempre gerou diferenças ao segmentar a cidadania e distribuir privilégios segundo a inserção no mercado e no aparato estatal, assume hoje uma política que tem como prioridade o combate à pobreza, que por sua vez não remete à ideia de desigualdade, mas de inclusão dos cidadãos mais pobres no mercado, ou seja, uma política focalizadora.

O sistema de atenção à saúde no Brasil é constituído pelo Sistema Único de Saúde (SUS); tem hoje uma cobertura universal e garante o acesso a atenção à saúde em todo o território nacional, segundo os princípios de universalidade, integralidade, equidade e participação. Dentro desse sistema, nos últimos anos, a principal preocupação tem sido a produção de políticas de “inclusão” visando à integralidade, a partir da focalização de grupos sociopopulacionais e suas “vulnerabilidades”.

Um dos modelos que tiveram êxito nos programas de atenção foi a construção do Programa das DST / AIDS, paralelamente ao programa de atenção integral à saúde da mulher, articulado juntamente com as organizações feministas e de mulheres. Nos últimos anos foram focalizados os recortes da questão étnica – a discussão de políticas de atenção diferenciada e intercultural às populações indígenas, as demandas das populações afro-descendentes, de grupos nômades como os ciganos, ou ainda da população LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros) e, mais recentemente, das populações em situação de rua. Todos esses grupos vêm tendo o apoio institucional do Ministério da Saúde para que seus representantes participem na formulação de políticas e planos de ação.

Essa focalização das demandas tem tido muito pouca interferência na prática cotidiana dos serviços, na qual outras lógicas entram na formulação dos atendimentos.

Além disso, devemos frisar que as problematizações acerca de especificidades e identidades que tiveram impacto nas discussões das ciências sociais nas últimas décadas, quando passam a ser assimiladas no campo da saúde, ganham uma interpretação “técnica” ou “sistêmica”, ou seja, a que determina “protocolos” segundo o “risco” presumível em cada grupo social “vulnerável”.

Dessa forma, classificações sociomorais acabam determinando o tipo de intervenção sanitária, permanecendo viva a ideia da internação compulsória daqueles que não saberiam se cuidar. Essa tendência é hoje amplificada pelo fenômeno midiático que ocorre em relação ao que se tornou o grande problema sociopolítico do momento: a presença dos usuários de crack na cena pública, que apesar de ocorrer há mais de uma década tem hoje repercutido como uma “epidemia” em expansão.

 

Viver nas ruas: entre os lugares, os serviços e a gestão pública dos espaços da cidade

No cerne da sociabilidade das pessoas que tomam o espaço das ruas para ­firmar sua sobrevivência encontra-se a instituição da “maloca”.[7] O termo “maloqueiro” tem um sentido pejorativo, mas é usado como categoria nativa entre os moradores de rua para referir-se àqueles que compõem as malocas, ou seja, “lugares” encontrados nos espaços da cidade que possibilitam arranjos para formar uma “casa” na qual um grupo passa a coabitar, ali dormindo, cozinhando e sobrevivendo como um grupo. A maloca pode ser chamada também de “mocó”. As malocas costumam ser constituídas e dissolvidas dependendo de conflitos ou da mobilidade dos que a formam. Como nota Magni (1995), o nomadismo também compõe uma das características dessa população. Há os que têm maior mobilidade e que migram inclusive entre cidades, em busca de trabalhos temporários e subalternos, que são chamados de “trecheiros”, que por sua vez chamam de “pardais” os que vivem mais fixamente nas ruas, da coleta de coisas que são trocadas ou arranjadas para uso ou consumo (Vieira 1999).

Um fator importante de sobrevivência nas ruas é a atividade dos “catadores”, que passam o dia buscando latinhas usadas de cerveja e refrigerantes e toda a sorte de material reciclável. Nessa trilha há tanto os que buscam alguma coisa para obter algum dinheiro, como aqueles que desenvolvem essa rotina como uma atividade constante e acabam por se filiar a cooperativas de recicladores, e como tal passam a se reconhecer como trabalhadores da “reciclagem” de material, o que possibilita muitas vezes a saída da rua e a obtenção de uma habitação popular através de programas públicos.

Um hábito comum e que expressa as sociabilidades da maloca ou do mocó diz respeito ao ritual do “intera” para a formação das “rodas de pinga” (aguardente). Cada um dos participantes contribui com aquilo de que dispõe para comprar a garrafa de aguardente que é bebida em conjunto pelo grupo. A maloca é também, como descrito na etimologia do termo, uma estratégia de defesa, pois possibilita uma resistência em relação às tentativas de desalojar o grupo daquele lugar, e uma defesa de agressões externas ou ataques noturnos que possam acontecer.

É interessante notar, como destaca Walty (2005) utilizando-se do conceito de De Certeau (1994), que a população de rua utiliza “táticas” para sobreviver ou enfrentar o cotidiano. A tática seria a ação possível, na ausência de poder, para a proteção de um lugar na cidade. Também as diversas formas de angariar alimentos, roupas e alguns utensílios, assim como alguns benefícios, destacam aquilo que Gregori (2000) chamou de “viração”, que compreende as táticas utilizadas em relação às instituições públicas ou terceirizadas ou às ações de grupos que distribuem alimentos e roupas aos moradores de rua.

É através dessas táticas que, no dia a dia da perambulação da cidade, são conseguidos “lugares” no espaço urbano para servir de abrigo ou lugar de ­descanso. Para desempenhar essa tática conta-se basicamente com o corpo, que deve estar em condições de movimento, e essa é uma questão que se coloca na percepção do que seja estar doente – a doença é algo que incapacita para o exercício das táticas no cotidiano e, nesse sentido, é sempre uma situação limite.

No plano institucional, a estratégia que vem sendo utilizada em relação às populações de rua tem sido a prática da remoção das “malocas”, ou dos utensílios – colchões, caixas de papelão, cobertores, etc… – que propiciem ocupar algum lugar nos espaços da cidade, como forma de “educar” a população a buscar os serviços que a municipalidade oferece a ela: casas de convivência, tendas, albergues.

No tocante à instituição saúde, o enquadre institucional tem cada vez mais intensificado a categorização dessa população como “desviante”, justificando assim sua filiação aos enquadres da “saúde mental”; nesse sentido, o uso do álcool e de drogas tem servido de insígnia para classificá-la na categoria de “usuária de álcool e drogas” que necessita atendimento especializado. Notamos que esse enquadre passa a ser muitas vezes internalizado pela população de rua, em um sentido tanto culpabilizante como tático quando se trata de obter algum recurso. No caso específico das mulheres em situação de rua, atuar de forma agressiva como “portadora de distúrbio mental” surge como uma tática de defesa (Varanda e Adorno 2004).

Dessa maneira, é importante destacar que, perante a existência de uma constante ação intimidadora e repressiva de fixação da população de rua em espaços da cidade, a sua relação com esses espaços e serviços se dá a partir de diferentes táticas utilizadas e de maneiras de “se virar” no dia a dia.

Apesar da mobilização e da sensibilidade de setores governamentais na esfera federal para estabelecer uma política pública, o lugar social das pessoas em situação de rua explicita-se no cenário urbano pela inserção de obstáculos de cimento nos locais em que provavelmente se alojariam ou pela retirada de bancos nas praças para impedir que ali permaneçam. Nos locais em que logram pernoitar são acordados pelo jato da água de caminhões-pipa que, ao lavarem as calçadas, também atuam removendo os corpos que se encontrem ali.

Existem locais onde se aglomeram muitas pessoas para dormir: o aglomerado é uma forma de ocupar e, por isso, marcar resistência nesse lugar é uma forma de se proteger, além de ser uma forma de poder testemunhar os fatos, ainda que sejam fatais, pois “quem morre abandonado é pagão”. Nesse aspecto reside uma ambivalência que passaria a ser reforçada pela ideia de que a tuberculose podia estar depositada entre essa aglomeração, ambivalência dada pelo fato de que seu aparecimento, dadas as condições de vida, seria uma sentença de morte.

Por outro lado, preside o pânico de morrer sem ser visto, sem ser testemunhado. Assim, o sofrimento mais intenso, para quem já está apartado, é apartar-se totalmente. Desse modo, as investidas dos agentes de saúde para “detecção da doença”, ao lembrar da existência de uma doença para eles considerada mortal, passam a significar a ameaça de se amanhecer sem ser percebido, da mesma forma que sofrer uma ameaça externa, de algum agressor que venha ali praticar uma violência, significa ser exterminado.

A procura de serviços por essa população pode ocorrer para realizar cuida­dos com o corpo, como os banhos, ou para buscar abrigo noturno, quando se sente o corpo mais doente: ou seja, corresponde a “táticas” acionadas de acordo com as necessidades de momento ou as urgências. Os centros de ­assistência, ­identificados como “núcleos de serviços”, “casas de convivência”, ou “comunidades”, oferecem o banho, mas costumam ter critérios para conter a demanda, como mostra essa narrativa de uma situação que presenciamos, relativa à negociação para entrar em um centro de convivência feita com um agente social: “Olha, a gente ’tá querendo tomar um banho, tem jeito?”; o agente responde: “Só com ordem do Cape […]; entra 20 pessoas com enca­minhamento do Cape…”[8] Ao perguntarmos se ele entraria se tivesse levado uma guia de encaminhamento, ele respondeu: “Não, porque já tinha encerrado as vagas, ’tá entrando pouca gente”. A pessoa em causa ainda tinha a alternativa de procurar outro núcleo de serviços, a aproximadamente meia hora de caminhada.

Apesar da repressão às malocas ser justificada pelo poder público como uma ação coercitiva para que a população de rua procure os equipamentos, a lógica do serviço impõe barreiras burocráticas à entrada nos centros de atendimento e nos albergues. Essas barreiras parecem responder a uma lógica da relação do Estado com essa população. Pensamos que o fato de o Estado não atuar, ou atuar de forma precária ou dificultar o acesso a quem se encontra nas margens, não significa necessariamente que esteja fraco ali, mas, pelo contrário, colocar entraves significa exercitar sua força nas margens para se reconstruir ou atualizar sua posição (Das e Poole 2008). Podemos observar como a atribuição pelo Estado de um “passaporte” para determinados grupos que se situam em suas margens serve para disciplinar o comportamento de todo o tecido social.

 

Os albergues: conflitos entre proteção e insegurança, A educação pela família, o corpo familiar em primeiro lugar

A lógica da barreira burocrática, assim como outras lógicas locais, é aplicada também nos albergues. Pernoitar em um albergue significa abrir mão dessa sociabilidade da rua, da maloca, que tem um caráter muitas vezes fluido, mas de alguma forma escolhido. Ir para um albergue é aventurar-se ao desconhecido, e assim a procura dessa forma de abrigo se intensifica nos meses de inverno, em função da pressão cada vez mais intensa por parte da polícia municipal, que passa a interpelar as pessoas que encontra deitadas na rua. A legislação municipal obriga a que durante o inverno, nas noites em que as temperaturas fiquem abaixo dos 10º C, todas as pessoas sejam recolhidas em abrigos de emergência. Essa lei “de proteção” teve o impacto de reforçar a ideia da desproteção do corpo ao frio, relacionando-se também com o risco das doenças respiratórias, a pneumonia e, por extensão, a tuberculose, assimilada então como um eminente risco.

As pessoas podem ir ao final do dia para a porta dos albergues para tentar conseguir uma vaga de pernoite, ou serem abordadas pelas vans[9] da prefeitura, que circulam no centro da cidade em período noturno recolhendo pessoas para distribuir entre os albergues. Essas vans muitas vezes circulam entre dezenas de albergues e não conseguem vagas para as pessoas que recolhem. Nos meses de inverno são erguidos abrigos provisórios em terrenos da municipalidade.

Quando realizávamos pesquisa noturna durante um mês de inverno, vivemos uma situação angustiante e tensa quando nos aproximávamos com uma van, que era confundida com a viatura da prefeitura que passava para levar as pessoas ao abrigo. Havia brigas para se colocar na frente, pois não se saberia quando chegaria outra viatura, um grande aglomerado se formava e as pessoas reagiam com raiva, xingamentos e revolta. A relação com os serviços e os seus agentes envolve momentos de tensão e conflito; quando, especificamente, se forma uma aglomeração, são insuficientes as táticas individuais de negociação para a “entrada” na via institucional e há, por outro lado, uma exposição das mazelas dos corpos, e alguns intercedem por outros apontando para doenças e deficiências.[10]

A equipe de pesquisa fazia coleta de exames de escarro em período noturno para diagnosticar a tuberculose; logo após a prefeitura começaria também sua “campanha” de diagnóstico dessa doença. Consideramos que nossa intervenção trazia mais um agravante à situação, pois apontava para um nome que ali talvez não devesse ser dito. Durante o inverno, algumas pessoas chegavam a morrer durante a madrugada ao dormir na rua expostas ao frio; a referência à tuberculose era também a referência a uma ameaça, à morte. Dormir na rua, ao relento, passava a ter o significado de tornar o corpo mais fraco e por isso de correr o risco de contrair a doença e amanhecer morto. O albergue aparecia como uma proteção, mas representava também a ameaça do desconhecido, de contrair a tuberculose do outro, que quando desconhecido não é o mesmo que compartilha o espaço da maloca; na maloca, os que se agrupam estão sempre a testemunhar o que acontece com o que está do lado, seja para proteger, seja para pedir socorro.

Os albergues são gerenciados através de convênios de repasse de verbas públicas da municipalidade para as chamadas “organizações sociais”, que estabelecem critérios para a admissão dos albergados, entre eles: não ter ingerido álcool, obedecer às regras de convivência internas e, em alguns casos, mostrar documentos de identidade. Deve-se considerar também que as vagas de pernoite ofertadas não cobrem a totalidade da população de rua do município de São Paulo. No último censo da população de rua realizado pelo município contou-se cerca de 10.000 moradores de ruas, numa cidade de cerca de 10 milhões de habitantes, e onde a rede de albergues oferecia cerca de 6000 vagas.

A disponibilidade do usuário para participar em programas internos da instituição é uma moeda de troca que pode inclusive facilitar seu acesso a uma vaga fixa. Quando se adquire o direito a uma vaga fixa pode-se ficar até seis meses pernoitando no mesmo albergue, tendo como condição o enquadramento nas estritas regras de disciplina da instituição. Os que não adquirem esse direito são chamados de “usuários de pernoites”, que estabelecem um vínculo menor com a instituição de abrigo.

Sobre os albergues escutamos ainda a narrativa do que consideramos um ritual de humilhação: todos os dias às 5 horas da manhã tocam sirenes e as luzes são acesas para que todos acordem – para sair bem cedo para as ruas. Independentemente do tempo, de estar ou não podendo caminhar, todos são obrigados a sair muito cedo para perambular pelas ruas. Referimos a narrativa que escutamos de um dos componentes de um grupo de pessoas que foram despejadas de um imóvel desocupado, onde haviam instalado sua maloca, e fora então transferido para um dos maiores albergues da cidade, onde, segundo ele, “tem que se sujeitar a conviver com todo tipo de pessoas”, e onde “as pessoas ficam expostas ao contágio de doenças”.[11] A instituição havia sido associada a situações estressantes, insalubres e perigosas: “ficavam todos juntos” – se referindo a pessoas com problemas de saúde principalmente –, “tinha roubo […]; teve rebelião lá dentro, quebraram parte das coisas […], a polícia veio e usou spray de pimenta […], tinha gente com câncer de laringe, homens com tosse, brigas”.

Um fato a ser destacado é o da associação entre o ajuntamento do albergue e o seu significado de perigo, o que nos faz pensar na questão clássica de Mary Douglas (1976): ali o perigo consiste em juntar-se a desconhecidos, e portanto conviver com corpos poluídos por doenças, além da possibilidade de transtornos morais (roubo, rebeliões, etc.).

Os albergues, constituídos pela assistência social como um espaço de ­alojamento, seguem uma lógica que não considera os princípios que se ­estabeleceriam por normas de saúde pública; dessa maneira, não separam espaços para os que referem estar doentes ou têm sintomas respiratórios. A separação entre sintomáticos respiratórios e não sintomáticos seria, sem dúvida, uma medida técnica recomendada em termos de saúde pública. Para tal, os equipamentos necessitariam de reformas e modernização, assim como de um maior espaçamento entre as camas e da diminuição do número de pessoas em cada cômodo de alojamento.

A lógica de terceirização dos serviços implementada pela municipalidade trabalha em função da organização que se disponha a oferecer o serviço por um menor custo. Em algumas administrações municipais, politicamente mais sensíveis, alguns protocolos técnicos foram definidos com uma atenção mínima à existência, por exemplo, de roupa de cama limpa, exigência de limpeza das dependências, etc.

Assumir um problema sanitário implicaria em aumento de custos; além disso, haveria a questão das competências corporativas no interior da administração pública: os padrões de exigência da assistência social não têm a mesma direção que as exigências do ordenamento sanitário, onde a governabilidade possível atende desde as questões da pressão do mercado na distribuição do orçamento público até as questões corporativas.

Os fóruns do movimento da população em situação de rua na direção de buscar o atendimento às vulnerabilidades vêm dando destaque às reivindicações no campo da saúde. Ao assistir a uma reunião voltada ao tema da saúde, na qual expusemos a pesquisa que realizamos apoiada pelo Ministério da Saúde, observamos que a denúncia do não reconhecimento das questões de saúde por parte da rede de albergues dava destaque ao tema da alimentação servida por essas instituições. Mencionava-se que as refeições servidas eram muito salgadas e acompanhadas de sumos muito doces, o que seria nocivo para os hipertensos e os diabéticos. Pensamos então em como as prescrições sanitárias especializavam as reivindicações que tomavam um modelo contemporâneo da saúde pública – o da gestão do corpo em função das doenças crônico-metabólicas para evitar complicações futuras e, obviamente, gastos com a internação por motivos de saúde.

A prevenção da diabetes e do sintoma da hipertensão segue um roteiro que hoje vem sendo criticado por voltar-se para um padrão que atende principalmente às necessidades do mercado: se as pessoas não cuidarem de si, ficarão doentes na idade madura e no envelhecimento e se tornarão um ônus para o sistema de saúde bancado pelo Estado (a mesma argumentação que têm revelado as lógicas das leis antifumo). Estaria esse modelo portador de uma governabilidade dos corpos sintonizado com as condições de vida e saúde da população em situação de rua?

O que pudemos refletir é que, de algum modo, falar em prevenção, ou falar de uma vida saudável através da alimentação, é de certa forma apontar para um constructo futuro, e como tal assumir a continuidade da vida. Prevenir uma doença como a tuberculose – que faz parte da memória e do imaginário do estigma e da morte precoce – significa acionar um tema que se traduz em maior ameaça.

Outra característica que foi possível apreender do modelo de proteção explicitado pela política dos albergues foi o fato de priorizarem e disponibilizarem melhores instalações para aqueles que não sejam homens ou mulheres sozinhos, que em geral são suspeitos e merecedores de estigma do imaginário de que, não sendo uma família, passam a vida ingerindo drogas e / ou álcool, ou apresentam problemas mentais. Há de certa forma a “promoção” do abrigo e proteção aos que se apresentem como uma família. O termo “família” é sempre mais bem assimilado e, claro, entendido dentro de padrões e modelos normativos que entendem como tal a família nuclear heterossexual. Há albergues para alojamento de famílias, e nesse caso se admite a privacidade. Também esses são os “casos” que, considerados como de “bom comportamento”, podem candidatar-se a entrar na lista para receberem uma moradia nas habitações construídas pelo Estado.

André, que “aderiu ao tratamento de tuberculose” e se mostrou disciplinado e constante em retornar a uma unidade de saúde, conseguiu a vaga a partir da intervenção da assistente social; saía cedo com a mulher e os filhos pequenos, que vão para uma creche, enquanto o casal trabalha numa cooperativa de catadores de materiais recicláveis. Ao fim do dia, a mulher pegava as crianças na creche e eles voltavam juntos para o albergue, a tempo de jantarem na instituição. No último contato que tivemos com ele, havia sido sinalizado com a possibilidade de conseguir um emprego na instituição que mantinha o albergue.

A contratação por instituições sociais e instituições conveniadas com o sistema público é mencionada como uma alternativa de emprego, nesse caso priorizando os grupos familiares. Galvani (2008), que recolheu histórias das trajetórias de inclusão experimentadas por pessoas em situação de rua, verificou que, além do emprego em instituições sociais e do trabalho com material reciclável, podem existir outras perspectivas, como, por exemplo, a participação como militante no movimento social, a conversão religiosa pela filiação a igrejas evangélicas, e as “artes e artesanato”. Nessas outras trajetórias incluíam-se também e principalmente as pessoas sozinhas, mas as famílias permanecem, no entanto, no centro da ação da assistência social.

 

A Atenção à Saúde: os agentes de rua

Como parte das estratégias do Sistema Único de Saúde, um modelo racionalizador da atenção, o Ministério da Saúde criou a Estratégia de Saúde da Família, enquanto programa de controle da saúde com bases territoriais. Na perspectiva da atenção a grupos especiais e vulneráveis, foram criados ­programas ­específicos em algumas cidades brasileiras, por exemplo o Programa de Atenção à Saúde dos Sem Domicílio, em Porto Alegre, ou o programa “A Gente na Rua”, em São Paulo. Através deste programa, a Secretaria da Saúde repassa recursos a uma organização social para a contratação de “agentes comunitários de saúde”, recrutados entre os moradores de rua para realizarem a tarefa de fazer encaminhamentos para as unidades municipais de saúde. O programa é duplamente valorizado, por manter vagas de trabalho remunerado para a massa de desempregados da população de rua e por proporcionar a esta população um atendimento exclusivo instituído a partir de sua especificidade. A ideia básica era a de possibilitar que o agente encaminhasse as pessoas que encontrasse na rua para o atendimento e dessa forma evitasse que os serviços só fossem procurados quando a saúde das pessoas estivesse bastante comprometida.

Em uma ida a campo observamos o agente Francisco na orientação a usuários de albergues e instituições de atendimento diurno sobre cuidados e tratamentos de diabetes, hipertensão, AIDS e outros casos, intermediando o contato com as unidades municipais. Verificamos que também aqui preside nessa atenção uma racionalidade sanitária típica das ações da chamada “nova saúde pública” (Petersen e Lupton 2000), voltadas à prevenção de algumas doenças crônicas, que certamente afetam a população em situação de rua. Verificamos também que no próprio decreto federal que promove a inclusão da população em situação de rua está inscrita uma lógica sanitária da “gestão saudável do corpo”, para prevenir as doenças degenerativas como a diabetes e a hipertensão. De certa forma, essa ação tem ressonância no próprio movimento social, como apontamos acima, nas reivindicações encaminhadas em relação ao cardápio alimentar dos albergues.

No entanto, recolhemos narrativas que problematizam a eficácia desse programa no atendimento a situações recorrentes vividas na rua, em especial novamente em relação a uma doença como a tuberculose. Assim nos contou Benedito: o agente marcou uma consulta para confirmação e tratamento de tuberculose, mas passados seis meses o doente não tinha conseguido ser atendido pelo médico. O encaminhamento de Regis, pelo mesmo agente comunitário, resultou no diagnóstico da tuberculose, mas ainda faltava esclarecê-lo sobre o tratamento, pois este ainda temia ser internado e perder o ponto de trabalho como catador e a vaga no albergue.

A comunicação e apresentação ao médico tornam-se extremamente complicadas por motivos de agendamento, apresentação de documentos, ou falta do profissional no dia agendado para consulta. Por sua vez, o poder hierárquico das corporações, dentro das normas de funcionamento das unidades de saúde, não dá autonomia ao agente para gerir ele próprio o atendimento e tratamento de seus pares.

Cerca de dois anos depois da realização dessa pesquisa realizamos visita aos novos equipamentos que a municipalidade havia criado para as populações em situação de rua na cidade de São Paulo. As “tendas de rua” se constituíam em equipamentos para serem construídos próximos a locais de circulação da “população de rua”, onde encontrariam sanitários, locais para tomar banho e espaços para convivência.

Na visita feita a um desses equipamentos recentemente inaugurado (em junho de 2010), em uma praça localizada em uma zona mais popular do centro, observamos uma área ampla e repleta de árvores e cercada para “convivência” da “população de rua”: abaixo de uma tenda uma televisão ligada durante todo o dia e pessoas deitadas no chão, sentadas em mesas em torno da TV, algumas jogando nas mesas. Havia um fluxo grande de entrada e saída para ir aos banheiros, bastante apertados e insuficientes, mas que ofereciam a possibilidade de se tomar banhos. Esse equipamento estava sob a gestão terceirizada de uma organização social que, por sua vez, relacionava-se com o movimento social da população de rua. Um conflito se estabeleceu na altura da visita de uma supervisora da prefeitura, que exigiu imediatamente que as pessoas deitadas se levantassem, justificando representar o poder público e não admitir “modos” impróprios em sua presença.

Na esfera dos fóruns, do movimento social e das agências estatais – especificamente no âmbito da política federal –, muitas reuniões e documentos detalham a especifidade das populações de rua e sua inserção em todos os segmentos assistenciais a partir da assistência social à educação, à política urbana e, de maneira acentuada, à política de saúde (saúde da mulher e do idoso, VIH-AIDS, tuberculose, resgate, etc.), instituindo uma racionalidade técnica de atenção de acordo com um modelo construído de “vulnerabilidades” de saúde. Ao mesmo tempo, as relações entre esses usuários especiais e as instituições continuam a ser regradas pelas práticas cotidianas carregadas de poder e discriminação, segundo os modelos de governabilidade que se baseiam na disciplina e no escrutínio moral. Assim, a postura e o pertencimento são indicadores usados para a inclusão: comportar-se como um assistido que reverencia quem presta assistência e pertencer a uma família passam a fazer diferença.

Ilustrativo ainda dos desencontros das políticas públicas é o fato empírico de que, sendo essa população exposta cotidianamente a acidentes, entre eles o atropelamento, quando eles ocorrem as pessoas são resgatadas e levadas a atendimento de emergência e, caso tenham sofrido politraumatismos, acabam sendo internadas e passam meses em cirurgias e intervenções hospitalares; recebem depois a alta hospitalar e voltam imediatamente para a circulação das ruas, sem acompanhamento fisioterápico, reabilitação e recuperação dos movimentos, embora com o corpo cheio de “pinos” e “próteses”, como um cyborg colocado novamente em circulação. Trata-se nesse caso de ser alvo de uma política urbana de gestão do trânsito e da circulação na cidade, na qual o atropelamento é categorizado como uma violência urbana, nesse caso alvo do Programa de Redução das Violências empreendido pelo Ministério da Saúde.

Há certo paralelismo entre as ações da remoção dos descartes urbanos e dos corpos em via pública. Entretanto, não se tratando de um acidente de trânsito, quando alguém telefona para o serviço de resgate e, ao ser inquirido sobre a morada do paciente, responde que se trata de uma pessoa que possivelmente mora na rua, é comum ouvir a resposta de que o serviço de remoção médica domiciliar (SAMU) não atende “moradores de rua”. Sobre esse fato discutimos um dia com enfermeiros e médicos que trabalhavam no Sistema Único de Saúde, que objetaram existir uma “norma” para urgências. O acidente seria uma urgência, como também se alguém é alvo de violência, ou apresenta sintomas graves e reside em uma casa. Em outra ocasião presenciamos uma reunião técnica no próprio Ministério, com a participação de representantes da “população de rua”, na qual discutia-se da implementação da política dirigida a esses segmentos; o que foi considerado era a necessidade de um prazo para que representantes do sistema de remoção domiciliar de cada Estado fossem convocados para um novo treinamento e “sensibilização” para a situação das populações em situação de rua.

Mais contrastante ainda é o fato de que estas pessoas, ao sofrerem atentados violentos como as práticas de extermínio – que acabam, como dissemos, tendo o apoio de parte da opinião pública, por se tratar, no imaginário social, de “pobres” ou “possíveis bandidos” –, são recolhidas para unidades de recuperação intensiva em estado de “coma”, até falecerem dentro dos hospitais. Por outro lado, as ações de identificação dos agressores exigidas pela justiça esbarram nas delegacias, que acabam por não identificar os agentes. As testemunhas “desaparecem”, como ocorria durante o regime militar.[12]

 

Tramas Sanitárias Assistenciais, instituição e práticas de mobilização social e visibilidade na gestão da vida nas margens

Existe, portanto, uma hierarquia

técnico-política de gestão da cidade que, ao focar a população em situação de rua, estabelece tramas que vão da racionalidade técnica sanitária à gestão moral da assistência social.

A invisibilidade ou visibilidade de uma doença como a tuberculose parece causar um desarranjo em diversas situações e assim nos remete a uma discussão sobre a contemporaneidade e a presença das doenças infecciosas, como se fossem elas a ameaça de outra época que paira sobre uma organização da vida que separou os que se incluem no sistema para viver e os que podem morrer com uma morte silenciada.

Um fato que adquire positividade no campo da atenção à saúde é quando se identifica nela uma dimensão intersubjetiva; algumas unidades de saúde concentram profissionais que tomam a “causa” das populações em situação de rua e, a partir daí, subvertem os processos institucionais, viabilizando uma atenção para além dos dispositivos de adaptação dos sujeitos a modelos de disciplina e de adesão a “procedimentos técnicos”.

Fassin (2004, 2006), analisando a realidade francesa, chama atenção para a questão trazida para as instituições sociais a partir de uma semântica que vai das políticas de albergamento, emprego e imigração para uma perspectiva de mobilização da ação social a partir da solidariedade, assistência, religiosidade e espiritualidade. O que podemos sublinhar é que essas iniciativas convivem com práticas reprodutoras de humilhação e desqualificação.

Biehl (2001) destaca a encruzilhada entre a tecnologia e a gestão das margens sociais, realçando o esvaziamento do campo intersubjetivo perante a ação técnica, e a existência de lugares que se tornam depositários dos corpos que ali se deixam morrer. Outras etnografias, como a de Pereira (2007), focalizam a formação de espaços que separam aqueles que, usuários de drogas, portadores de AIDS / VIH, sem vínculos afetivos formais ou visíveis, acabam sendo depositados em comunidades gestadas pela assistência e caridade, e ali se condenam a deixar morrer.

O que pudemos verificar no caso da cidade de São Paulo é a existência de uma tensão no dispositivo que pode ser enunciado como a gestão das populações em situação de rua, que estabelece uma lógica que nem se subordina totalmente a um critério epidemiológico, tal como estabelecido por um padrão global de gestão de uma doença negligenciada, nem a um padrão de assistencialismo cabal, ao qual se oferecem resistências cotidianas e ações públicas de denúncia e reivindicações.

No caso da gestão da tuberculose, uma política de supervisão de tratamento e o combate ao surgimento de um bacilo multirresistente implicaria um reforço do cordão sanitário para separar uma população na qual a prevalência da tuberculose é, segundo cálculos de nossa pesquisa, 60 vezes maior do que na população em geral. O que se verifica é que a ação de controle depende muito mais da vontade ou do engajamento de determinadas “figuras urbanas” de saúde pública, ou de profissionais que estabelecem vínculos políticos e prioridades de ação social com determinados grupos da população.

Assim, no caso do tratamento da tuberculose, como salientamos na introdução do texto, existe um protocolo que tem sido utilizado internacionalmente, o da administração assistida do medicamento. As populações consideradas vulneráveis devem ser acompanhadas cotidianamente na administração dos remédios por técnicos. Esse protocolo é, por sua vez, interpretado de acordo com questões corporativas do campo da saúde; assim, por exemplo, a enfermagem “convoca” as pessoas para que tomem o comprimido às suas vistas. Encontramos entre os profissionais aqueles que se tornaram mais próximos das redes locais em que se integravam os moradores de rua, procurando distribuir o medicamento para outras pessoas que se lembrassem da administração do remédio ao portador de tuberculose, e havia instituições e pessoas que entravam em contato diário com o circuito dessa população e que às vezes também ficavam com o medicamento para fornecê-lo quando encontrassem com aquela pessoa no seu percurso cotidiano.

Do ponto de vista das instituições assistenciais e das políticas públicas, o que a pesquisa mostrou, ao se propor seguir o tratamento de casos de ­tuberculose detectados durante o campo, foi que aqueles que buscavam formas de se integrar aos serviços oferecidos, especificamente ao crivo estabelecido pela ­assistência social para atendimento especial a “famílias”, foram ­suficientemente apoiados para o término do tratamento. Mas não foram os únicos, outra parte se tornou “sadia” por fazer parte de organizações como as cooperativas de catadores, participar dos fóruns e movimentos da população em situação de rua, ou se incluir na rede de serviços gerida pelos profissionais sensíveis ou de alguma forma engajados na saúde pública como um movimento social. Nesse último caso pode-se dialogar com o que Fassin (1998) chama de redes formadas pelas “figuras urbanas de saúde pública”, que articulam militâncias em torno de questões sanitárias.

De uma forma ou de outra, essas questões derrubam a premissa da construção de “tecnologias sociais” de tratamento, entendidas como aquelas que utilizam o “social” como ferramenta para uma ação técnica sanitária, como descrevemos no início do texto.

Ainda como questão emergente no trabalho etnográfico cabe a própria apreensão da questão ética ao lidar com temas como o da saúde, quando ela aparece como ameaça diária, identificada pelos corpos que não acordam no dia seguinte, como é constante nas narrativas cotidianas do viver nas ruas.

Além disso, pudemos destacar a vida da população em situação de rua como tensionada por duas “ordens” na gestão da cidade. Em primeiro lugar, há uma “arquitetura da evitação” ou do cimento, do concreto armado que aliás se confunde com a estética da própria cidade de São Paulo (de uma arquitetura cinza). Nesse ordenamento são retirados bancos de praças públicas, colocados obstáculos de concreto nos baixos dos viadutos e pontes, cercas de ferro e outros instrumentos para evitar a ocupação, da mesma forma que as lojas e os estabelecimentos privados colocam cercas ou ferros pontiagudos nos limites de sua entrada para evitar que pessoas durmam ali durante a noite. Ou seja, são ações que em nome de uma evitação afetam a qualidade do espaço público para o conjunto de seus habitantes. Um segundo aspecto deriva do fato de essa ordem se vincular à circulação sistemática do chamado “rapa”: caminhões da prefeitura que circulam todo o dia, apoiados por viaturas da polícia civil metropolitana (polícia da cidade), retirando os pertences dos moradores – cobertores, papelões, pequenos colchões, sacolas, etc. Esse material é juntado pelos moradores, que em sua circulação recolhem o que encontram pelas ruas da cidade, e são objetos úteis a seu “conforto” ou com os quais estabelecem alguma relação de posse, de “identidade”, ou objetos que têm um valor de troca (aguardente, alguma droga, ou aquilo que convier). São mecanismos para estabelecer “reciprocidades”, ou seja, para infundirem sobre o cerne de sua vida na cidade a solidariedade existente na instituição da maloca ou dos mocós, em que se realiza uma economia das emoções.

Estabelecer um canal de reivindicação para políticas públicas compreende sem dúvida a “promoção” da visibilidade da vida, o que entretanto pode tomar um sentido contrário ao das sociabilidades estabelecidas no cerne dos agrupamentos que se formam na rua.

 

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NOTAS

[1]       Consideramos que as assim chamadas “populações em situação de rua” no Brasil, “sans domicile fixe” na França, ou “homeless” nos países anglo-saxônicos, compõem um fenômeno social, presente nas ruas das cidades mais ricas e emergentes da atualidade, e que passam a ocupar as margens e viver do descarte que essas mesmas sociedades criam. Também vêm construindo o reconhecimento de sua identidade a partir da reivindicação de seus direitos, como a habitação, saúde e trabalho.

[2]      No Brasil temos referência da incorporação das ciências sociais em estudos de saúde pública a partir da década de 40 do século XX; o uso da etnografia de forma mais autônoma vai aparecer nos anos 90.

[3]      A referência ao “pós-epidemia de AIDS” pretende marcar a distinção entre o momento histórico do surgimento dessa epidemia moderna, que se tornou visível a partir dos casos ocorridos com as ­comunidades gays e passou a mobilizar participantes dessa comunidade em diversos países (no caso do Brasil, apresentou-se como um movimento de organização de ONG que passaram a ter um papel decisivo na montagem dos programas, na mobilização da solidariedade e da prevenção, decisivos para o “sucesso” de programas como aquele em que a distribuição dos anti-retrovirais é feita a partir do sistema público de saúde), e um momento seguinte em que ocorre a “pauperização” da AIDS, e a expansão da epidemia para mulheres das camadas mais empobrecidas da população, bem como sua expansão em países da África e da Ásia. A tuberculose torna-se uma endemia que vai associar-se a essa disseminação do HIV-AIDS, vitimizando principalmente as populações em situação de pobreza, “exclusão”, ou o que passou a ser construído como os grupos ou populações “vulneráveis”.

[4]      Luiza Erundina de Souza foi eleita prefeita da cidade de São Paulo em 1992, sendo a sua eleição um marco da história democrática do país, pois seu perfil contradizia os padrões hegemônicos da elite paulista e brasileira. Era uma mulher independente, migrante nordestina, assistente social, militante das lutas por saúde e habitação, integrante dos movimentos populares. Foi uma das fundadoras do PT – Partido dos Trabalhadores, e atualmente exerce o cargo de deputada federal pelo Partido Socialista do Brasil.

[5]      O episódio conhecido como “massacre do Carandiru” começou com uma briga de presos no Pavilhão 9, da Casa de Detenção, conhecida como Carandiru, localizada em São Paulo e então considerada a maior unidade prisional da América Latina. A polícia militar invadiu o presídio com a justificativa de acalmar a rebelião e acabou realizando uma chacina no local. Foram afinal contabilizados 111 mortos, com a polícia atirando naqueles que haviam já se rendido ou estavam dentro de suas próprias celas. Não houve nenhum policial morto. O coronel da Polícia Militar que comandou o massacre teve uma primeira condenação, em 2001, a 632 anos de prisão. No ano seguinte foi eleito deputado estadual, e como a sentença não fora executada, houve um novo julgamento feito pelos desembargadores mais antigos do Tribunal de São Paulo, que o absolveram em 2006. O que acabou levando a protestos e indignação de organizações de direitos humanos e da sociedade civil. No mesmo ano o coronel foi morto sem aparente ligação com o fato. No muro do presídio, que depois foi demolido, apareceu uma pichação com a inscrição: “aqui se faz, aqui se paga”.

[6]      Em 2004 sete moradores de rua foram agredidos a pauladas enquanto dormiam durante a madrugada. Foram socorridos a hospitais onde vieram a falecer; a partir de então ocorrem manifestações todo ano na data em que ocorreram as agressões.

[7]      “Maloca”, segundo o Dicionário Aurélio, seria um termo emblemático no contexto latino-americano: originário do idioma nativo araucano, significava “fazer hostilidade” depois da “pacificação dos pampas”; no espanhol “platino” passa a designar a “aldeia de índios”, enquanto que no Brasil também é entendido como a “casa dos índios”, para, finalmente, designar uma casa urbana que passa a ser habitada por várias famílias, chamada também de “cortiço”. No Brasil, portanto, o termo passa a ter, de palavra nativa, um sentido pejorativo para discriminar outros “nativos” que moram nas habitações pobres, designando também “gente que não inspira confiança”, “bandidos”, “salteadores”.

[8]      Cape designa a Central de Atendimento para população em situação de rua instituída pela Prefeitura Municipal.

[9]      Vans: carrinhas.

[10]     Um relato acerca do serviço de emergência para transportar pessoas para o albergue é realizado por Daniel De Lucca Reis, que apresenta um quadro descritivo dessas tensões (De Lucca 2009).

[11]      O centro da cidade de São Paulo possui dezenas de grandes edifícios desocupados; o movimento pela moradia estima que a utilização social desses imóveis responderia à demanda por moradia dos “sem-teto”.

[12]     Referências sobre um massacre estão disponíveis em <http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=387> (acesso em 21 / 04 / 2010).

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