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Etnográfica

Print version ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.14 no.2 Lisboa June 2010

 

“Liderança”, “proceder” e “igualdade”: uma etnografia das relações políticas no Primeiro Comando da Capital[1]

Adalton Marques

 

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP), Brasil, adalton.marques@usp.br

 

A partir da transcrição ipsis verbis da tomada de depoimento de Marcos Willians Herbas Camacho (Marcola) pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Tráfico de Armas e de dados etnográficos sobre o “proceder” e sobre relações políticas entre prisioneiros de unidades prisionais do estado de São Paulo (Brasil), obtidos junto a presidiários, ex-presidiários, familiares de (ex-)presidiários e funcionários, procuro apontar a instauração de uma complexa dificuldade de comunicação entre (eu,) os inquiridores e o depoente, em torno da noção de “liderança”. Apostando no potencial reflexivo decorrente do mapeamento desse sistema regional de lutas, cujas linhas de força são as próprias (auto)descrições acerca de “liderança” – que encerram diferentes conceituações e diferentes juízos –, pretendi construir um indicativo do grau de complexidade da vida social em prisões “do PCC”, em suma, uma complexidade análoga.

Palavras-chave: liderança, proceder, igualdade, Primeiro Comando da Capital (PCC), relações políticas, prisão.

 

“Leadership”, “proceder” and “equality”: an ethnography of political relations in the First Command of the Capital

Based on the transcription ipsis verbis of the statement of Marcos Willians Herbas Camacho (Marcola) by the Parliamentary Commission of Inquiry on Weapons Traffic and also on ethnographic data on the “proceder” and political relations between prisoners in São Paulo, Brazil, obtained among current or ex-prisoners, their families, and prison employees, I want to point out the instauration of a complex difficulty of communication between (me,) the enquirers and the inquired around the notion of “leadership”. Betting in the reflexive potential resulting from the mapping of this regional system of struggle, where lines of force are the (auto)descriptions about “leadership” – that present different conceptualizations and different judgments – I intended to make an indicator of the complexity degree of social life in prisons “of the PCC”, in short, an analogous complexity.

Keywords: Leadership, “proceder”, equality, First Command of the Capital (PCC), political relations, prison.

 

Apresentação

Com a rebelião na Penitenciária de Avaré na tarde de 12 de maio de 2006, sexta-feira, deu-se início àquilo que viria a ser chamado de “ataques do PCC” – sigla do coletivo de presos Primeiro Comando da Capital. [2] Horas mais tarde, no início da noite, deflagravam pela Região Metropolitana de São Paulo ataques contra policiais civis, policiais militares, agentes penitenciários, guardas civis, e também contra um Distrito Policial. No amanhecer seguinte, os noticiários já anunciavam o curso de uma “megarrebelião” que abrangia mais de duas dezenas de unidades prisionais por todo o estado. No decorrer do dia, constantemente noticiavam-se atualizações das somas de ataques a órgãos públicos, bem como do número de mortos entre policiais, agentes penitenciários e “criminosos”. Aos poucos, passam a ser registrados ataques em cidades do interior do estado e da Baixada Santista. No domingo de Dia das Mães, as ações policiais são intensificadas; contudo, se verifica o início de rebeliões em outras dezenas de unidades prisionais e também em unidades da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Os ataques não cessam, vários ônibus são incendiados. Na segunda-feira, dia 16, a cidade de São Paulo se vê envolta em pânico e paralisa parcialmente: órgãos públicos, comércios, instituições de ensino fecham suas portas; linhas de ônibus deixam de operar; o rodízio de veículos é suspenso. Ainda nesse dia, agências bancárias passam a ser alvos de novos ataques e somente à noite ocorre a contenção parcial das rebeliões em andamento. Os ataques ainda prosseguiram com menor intensidade nos dias seguintes.[3]

É por conta desses eventos que o prisioneiro Marcos Willians Herbas Camacho (Marcola), considerado o “líder máximo” do PCC pela intelligentsia policial paulista, é chamado a depor para a Comissão Parlamentar de Inquéritos (CPI) do Tráfico de Armas, reunida a 8 de junho para tornar inteligível o funcionamento dos “ataques” e também para incriminar os seus responsáveis.[4]

Este trabalho resulta de uma análise da transcrição ipsis verbis dessa inquirição.[5] Contudo, não me restrinjo ao texto desse documento. Digamos que alguns dos temas levantados durante a tomada de depoimento de Marcos,[6] principalmente em torno das “regras de conduta dos presos”, ajudam-me a realizar uma exposição de dados que venho coletando desde outubro de 2004, quando iniciei uma pesquisa – junto a presidiários, ex-presidiários, familiares de (ex-)presidiários e funcionários (diretores, agentes prisionais e professores) da Secretaria da Administração Penitenciária do estado de São Paulo (SAP) – sobre um complexo conjunto de regras que os presos denominam de “proceder”. Além disso, o tema mais recorrente durante a inquirição, sobre “liderança entre os presos”, leva-me a tratar um dos pontos centrais de minha atual pesquisa, ainda intimamente relacionada ao “proceder”: o singular regime de relação política entre os presos e ex-presidiários que vivenciaram, ou vivenciam, suas experiências prisionais em unidades carcerárias sob o domínio do PCC.

Parece-me que é em torno da noção de “liderança”, principalmente – mas não só –, que se instaura uma complexa dificuldade de comunicação entre (eu,) os deputados[7] e Marcos. Creio se tratar não de um problema de estruturas cognitivas, já que o que está em questão não é um limite intransponível que condena (eu e) os deputados a jamais poder compreender o que diz Marcos; antes, trata-se de um problema intrinsecamente ligado às descrições, mais especificamente às autodescrições (Strathern 1999 e 2007). Em suma, estabelece-se entre (eu,) os deputados e Marcos diferenças de conceituação e diferenças de juízo. Entendo por conceituação uma produção de pensamento[8] que busca responder a algum problema contextual. Deste modo, o conceito de “liderança” para os deputados responde às suas atividades de inquiridores, às suas preocupações em encontrar um “líder” ou “líderes” do PCC, enfim, ao conceito de “crime organizado” com o qual conduzem o depoimento. Para Marcos, de modo diverso, como para outros presos, o conceito de “liderança” responde a um problema político, a um outro modo de proceder (e de “ter proceder”; isso ficará mais claro adiante) que não através do mando ou da chefia dos demais presos. Enfim, entendo que tais formulações conceituais podem (isso não é necessário) estar intrinsecamente relacionadas à produção de apreciações, de julgamentos, de avaliações, em suma, de juízos acerca das experiências vividas.

Da minha parte, “liderança” responde a um outro problema contextual. Pretendo utilizar essa discussão, somada aos dados de minha pesquisa, para problematizar (ou melhor, multiplicar) alguns conceitos consagrados aos regimes de relação política, tais como democracia, aristocracia e monarquia, só para ficarmos com a tríade clássica, que corriqueiramente são utilizados para explicar uma multiplicidade de relações políticas ou como referentes a partir dos quais se analisa, em termos de presença ou ausência, essas multiplicidades. Meu intuito, portanto, não tem a ver com uma pretensão de conceituar mais precisamente as descrições sobre “liderança” feitas por Marcos – como numa espécie de conhecimento positivo que não se previne dos tão falados problemas de tomar a representação pelo representado.[9] Estou mais interessado em dizer que a essas descrições não podem ser aplicados os conceitos consagrados aos regimes de relação política que compõem a tripla clássica citada acima – estou mais próximo de um conhecimento negativo que não almeja atingir a realidade descrita pelo outro, mas que nem por isso deixa de ser real.[10] Dito de outro modo, pretendo frear a indução à construção de uma forma analítica que se pretende capaz de dar conta das complexidades da vida política dos presos. Essa frenagem se faz através de um dispositivo que aciona “[…] um diálogo interno à [minha própria] linguagem de análise” (Strathern 2007: 31-32), com vistas a fazer da forma analítica apenas um indicativo do grau de complexidade da vida social; trata-se, portanto, de constituir uma complexidade análoga. Estou no seio de uma ficção que é arranjada e há uma aposta no potencial reflexivo disso.

 

“Regras de convívio” que independem de “liderança”

Num determinado momento da tomada de depoimento, o relator da CPI, deputado Paulo Pimenta, indaga Marcos sobre a existência de uma organização dentro dos presídios. Marcos responde-lhe: “Existe uma regra de convívio em todos os presídios do Brasil, isso é óbvio, independente de PCC, de organização criminosa ou não.” (p. 24) O relator, no entanto, na busca por um princípio organizador, por uma origem, enfim, por uma explicação acerca da “regra de convívio”, questiona se ela é “estabelecida pelas lideranças” (p. 24). A resposta de Marcos multiplica o princípio organizador, a origem e a explicação ao fornecer-nos outra coisa que não “líder” ou “líderes”: “Em todas as cadeias do Estado de São Paulo, todas as cadeias do Rio de Janeiro, todas as cadeias do Rio Grande do Sul, todas as cadeias do Brasil em geral existe uma disciplina interna criada pelos próprios presos. É óbvio.” (p. 24) “Os presos” é a fonte que nos é fornecida; fonte anônima, impossível de ser pega (e de ser presa!). Antes que o relator pudesse alçar uma nova pergunta, Marcos concluiu:

 

Não organizações criminosas. […] Uma disciplina. Porque senão o cara vai lá e vai querer fazer sexo com a mulher do outro, por exemplo. Se ele for mais forte e o outro mais fraco, naturalmente que ele poderia fazer isso. Mas, pela própria regra que existe dentro da prisão, isso coíbe esse tipo de atitude. (Marcos, p. 24)

 

Aqui inicio uma primeira menção aos meus dados de campo. As “regras de convívio” ou “disciplina” citadas por Marcos estão diretamente ligadas àquilo que os presos denominam de “proceder”. No interior das prisões, o “proceder” é uma enunciação que orienta parte significativa das experiências cotidianas, distinguindo presos de acordo com seus históricos “no crime”, diferenciando artigos criminais, alicerçando resoluções de litígios entre presos, estabelecendo modos de se portar na chegada à prisão, modos de utilização do banheiro, modos de habitação das celas, modos de se portar no refeitório, modos de se portar durante os dias de visita, modos de se despedir do cárcere, etc. Mas essa é só uma parte da história, a do seu uso enquanto substantivo: “o proceder”. Há mais. Derivado para uma forma adjetivante, o “proceder” é um atributo daquele que tem sua experiência prisional considerada pelos outros presos como estando em consonância ao “proceder” (substantivo). Um indivíduo nessa condição é denominado “cara de proceder”, “sujeito homem”, “ladrão” etc., possuindo, portanto, os requisitos para viver num espaço denominado de “convívio”. No mesmo sentido (enquanto forma adjetivante), mas tomando o exemplo contrário, o “proceder” é aquilo que falta ao indivíduo que é exilado no espaço “seguro” ou morto em decorrência de um “debate” (Marques 2006).[11]

Identifico três divisões que estão intrinsecamente ligadas ao “proceder” prisional: uma divisão moral, uma divisão populacional e uma divisão espacial. A primeira corresponde à oposição entre “ter proceder” (“ser pedreira”, “ter atitude”, “ser cabuloso”, “ser sujeito homem” etc.) e “não ter proceder” (a negativa de todos esses atributos); a segunda corresponde à oposição entre, de um lado, “os pedra noventa”, “os caras de atitude”, “os cabuloso”, “os ladrão” etc. e, de outro, “os safados”, “os pilantras”, “os talaricos”, “os nóias”, “os caguetas”, “os duque treze” etc.; a terceira corresponde à oposição entre “convívio” e “seguro”.[12] A efetivação dessas divisões correlatas se dá através de “debates” instaurados para resolver litígios entre presos, que decidem sobre absolvições ou punições cabíveis para cada tipo específico de infração das regras do “proceder”. Os “debates” muitas vezes envolvem uma “assembléia”, devendo os “faxinas”, os “cozinheiros” e o “patronato” (posições políticas cujo exercício já se fazia antes do estabelecimento das facções),[13] ou os “pilotos” (posição política que surge com o estabelecimento das facções),[14] ser consultados para tais decisões. Desse procedimento resultam punições que podem ser “intimadas” (desabono moral e / ou físico público), “mandar para o seguro” ou até a morte.

Voltando à letra do depoimento, já pela página 157, o deputado Paulo Pimenta ainda se embaraça ao tentar entender o que são as “regras de conduta”: “Então, há uma regra, que não é aquela antiga, foi atualizada, digamos assim, o estatuto do PCC foi atualizado…” Presume-se que a reticência significa uma interrupção de Marcos: “Não do PCC, pô! São regras internas do sistema penitenciário.” Neste mesmo contexto do depoimento, uma interessante pergunta do deputado ajuda-nos a compreender as punições decorrentes da quebra do “proceder”: “E quem não cumpre essas regras?” Marcos responde: “Quem não cumpre essas regras, de alguma forma, ele vai ser justiçado […] Eu não sei agora qual é a forma, o senhor entendeu?” Marcos não sabe a forma específica de punição que pode ser imposta a alguém que quebra o “proceder”, não só porque está falando em termos genéricos de incumprimento de regras e, portanto, genericamente de punições, mas porque nada está previsto na lógica prisional antes que um “debate” aconteça. A questão subseqüente posta pelo deputado é novamente uma recorrência à questão da “liderança”: “Quem é que decide os que morrem?” (p. 158) Marcos multiplica mais uma vez a carta que o deputado guarda na manga – um Ás de “liderança” – apresentando um baralho completo de prisioneiros anônimos: “Não é a questão… A própria população carcerária […] eles repudiam […] repudiam, e o cara é justiçado.” (p. 158)

Apenas para ficar mais clara a diferença entre as “regras de convívio” e a existência de facções, diferença essa que Marcos tenta continuamente pontuar, e que se mostra tão difícil de ser compreendida pelos deputados, farei referência a um momento do depoimento, agora já pela página 178, em que o mesmo deputado faz uma proposta ao depoente: “Tu não nos entregas rota de arma, não nos entregas rota de munição, não… E de crack, tu não podias nos dar uma informação, já que vocês são contra o crack?” Marcos responde-lhe: “A partir do momento em que eu começar a citar nomes, pessoas, acabou o respeito, acabou eu também. […] É uma regra. […] Mas isso já vem bem de antes de eu chegar no sistema penitenciário.” (pp. 179-180) O que deve ser retido dessa afirmação é que as “regras de convívio” são anteriores ao surgimento das facções. Com efeito, o avanço de minha argumentação depende da reconstrução de um cruzamento desses dois distintos planos de relação, o “proceder” e as “facções”.

Uma outra referência aos dados etnográficos por mim coletados se faz necessária. É possível mapear de muitos modos as considerações que meus interlocutores fazem sobre o “proceder”, e a cada conversa informal que com eles tenho mais e mais se complexificam, para mim, essas realidades. Por tudo isso, não poderia, nem que quisesse, apresentar “o” ponto de vista nativo. Falo apenas de uma construção possível feita a partir de algumas vozes nativas. Entre essas vozes há aquelas de (ex-)presidiários que viveram suas experiências prisionais antes do surgimento das facções e que descrevem o que é o “proceder” de um modo específico, há aquelas de (ex-)presidiários que viveram (ou vivem) suas experiências prisionais em unidades dominadas pelo PCC e que fazem uma outra defesa do que é o “proceder”, há aquelas de (ex-)presidiários que viveram (ou vivem) suas experiências prisionais em unidades dominadas por “oposições ao PCC” – Comando Revolucionário Brasileiro do Crime (CRBC),[15]   por exemplo – e que constroem outra definição acerca do “proceder”. Contudo, essas três posições artificiais não dariam conta da multiplicidade de vozes prisioneiras.

Para os propósitos deste trabalho devo me deter às considerações do segundo grupo. Nele afirma-se que “há mile anos o que tinha era guerra entre os ladrões”,[16] um período em que se permitiam extorsões contra “presos novatos”, comercialização de crack e mortes diariamente, contexto no qual as coordenadas do “proceder” eram constantemente deturpadas. Os “presos novatos”, afrontados por “quadrilhas de pilantras”, passavam a ter suas vidas ameaçadas caso suas famílias não atendessem as reivindicações dos extorsionários. Sob a alegação de se seguir um pretenso “proceder”, permitia-se que presos se afundassem num uso brutal da “pedra” (crack), vendida por outros presos que mais tarde os matariam ou mandariam para o “seguro”. Nesse regime, os papéis do “faxina” e dos “debates” eram postos em segundo plano em meio a tantas resoluções de litígios entre presos e quadrilhas que não passavam por consulta pública. No entanto, com o surgimento do PCC, cada unidade prisional que passou a estar sob seu domínio sofreu drásticos rearranjos que, em suma, podem ser definidos por duas políticas. A primeira é caracterizada pelo estabelecimento de medidas que visam diminuir o alto índice de assassinatos entre os próprios “ladrões” e, com isso, pretende-se que haja a “união do crime”. Entre tais medidas está o fortalecimento do papel do “faxina” – agora freqüentemente chamado de “piloto” –, que passa a ter ampla participação nas resoluções de litígios entre presos, tornando, portanto, maiores as possibilidades de resolver tais querelas sem prejuízo para nenhuma das partes, o que freqüentemente é chamado de “botar uma pedra na questão”. Outra medida que visa claramente frear os “acertos de contas” está literalmente expressa num símbolo: enquanto a bandeira do “Partido” – esse é outro modo como o PCC é denominado, além de “Comando” – estiver hasteada no pátio, “ninguém pode trocar com ninguém”.[17]

 

Caderno de campo: conversa com a mãe e com o irmão de Azul (2005)[18]

Numa das visitas feitas a seu filho, já em Parelheiros, esta mãe ficou perplexa ao verificar uma grande bandeira feita em lençol branco, hasteada no pátio da prisão, com a menção “Paz, Justiça e Liberdade” no ponto mais alto, um grande revólver desenhado no meio, quatro dígitos seguidos da sigla PCC mais abaixo, e, ainda mais abaixo (e em letras menores), três dígitos seguidos da sigla CV (Comando Vermelho).[19] Ao indagar a seu filho sobre o significado daquela bandeira, ele respondeu que enquanto ela estivesse estendida não poderia haver qualquer acerto de contas no interior da prisão, e que, portanto, nos dias de visita impreterivelmente ela estaria hasteada.[20]

Uma expressão recorrente nos relatos resume bem essa primeira política: “paz entre os ladrões”. Marcos a define de modo preciso:

 

O PCC evitou várias dessas mortes, porque impunha, na época, esse negócio de paz. Tem que ter paz dentro do sistema penitenciário. Então, às vezes… O cara, às vezes, tinha matado o pai do outro cara e que, numa situação normal, o outro iria já matá-lo. Isso é normal dentro do sistema. E devido a essa imposição de paz… (p. 158).

 

A segunda política promovida em “cadeias do PCC” pode ser caracterizada por um duplo movimento de repúdio e “guerra” à administração prisional e, principalmente, à polícia.[21] Num movimento, constroem-se as categorias “irmão” e “primo”[22] para identificar os indivíduos que são “do crime”, em oposição à “coisa”, que serve para identificar tanto os presos que não estão de acordo com as políticas do “Partido” – portanto não são “do crime” – quanto os policiais e funcionários da administração prisional. Noutro movimento, além de declarar “guerra aos polícias”, decreta-se uma nova conduta a ser seguida por todos os presos, basicamente significada na expressão “quebrar cadeia”, segundo a qual deve-se ter uma postura favorável à realização de fugas. Desse modo, todo preso que não segue a política de “guerra contra os polícias” e “quebrar cadeia”, compõe, junto aos “polícias” e funcionários da administração prisional, a categoria “coisa”. É nesse sentido que os presos de cadeias do CRBC são considerados “coisas” pelos presos de “cadeias do PCC”. Além desse adjetivo, também é empregada a expressão “gosta de tirar cadeia” para definir tais presos, cujas condutas, segundo os presos de “cadeias do PCC”, revelam uma constante tentativa de obter benefícios dos funcionários da administração prisional, procedimento completamente dissonante da segunda política do “Partido”.

Numa das vezes em que Marcos é indagado sobre o CRBC ele marca bem a diferença que recorrentemente me aparece no campo: “[…] porque eles lá ainda podem assaltar dentro da cadeia, podem extorquir, eles ainda têm… eles são muito primários…” E completa: “[…] lá, eles mesmo não deixam o outro preso fugir”. Marcos conclui explicando por quê os próprios presos impedem que outros presos tentem fugir: “[…] existe uma chantagem toda do Estado também. Fala: ‘Se fugir alguém daqui, a gente pega os líderes e manda pra cadeia da outra organização’.” (p. 196)

Ainda no depoimento, é interessante o momento em que o relator, após inúmeras insistências com o Ás de “liderança” e recorrentes respostas de Marcos com o baralho-multiplicidade de “presos”, questiona se a proibição do uso do crack foi obra dos presos. Dessa vez a resposta é outra! Marcos responde:

 

Foi essa organização criminosa, que viu a degradação a que os presos estavam chegando e viu que estava totalmente sob… em falta de controle. Não tinha como controlar o crack dentro da prisão. Então foi simplesmente abolida, pro cara… Como se abole uma droga que faz o cara roubar a mãe, matar a mãe e tudo o mais? É difícil. Então, tem que mostrar a violência e falar: Ó, cara, se você usar isso, pode te acontecer… (p. 26)

 

Após incisivos deslocamentos de Marcos diante da hipótese de que as “regras de conduta” derivam da ação de “lideranças”, o relator se depara com a afirmação de que a abolição do crack é obra de uma organização criminosa, e não dos presos! Todo o esforço de enformar – no sentido literal de colocar na forma (ou na fôrma!) ou de dar forma – a experiência prisional com modelos de organização derivados de regimes de relação pautados na liderança é reativado pelo deputado: “Agora, para se chegar a uma decisão sobre isso, é preciso que haja um comando.” (p. 26) Desta vez Marcos opera uma desterritorialização (Deleuze e Guattari 2007) sobre o território “organização criminosa”, tão dependente da raiz “comando”, levando-nos para outro território de experiência política. Ao invés de “um comando”, Marcos nos diz:

 

Um consenso. […] Alguém dá uma idéia, por exemplo. Alguém pensa, raciocina e fala: “Ô, gente, o que que vocês acham de a gente abolir o crack dentro da prisão?” Isso é mandado pra todas as penitenciárias, todas as penitenciárias do Estado. […] Aí os presos de todas as penitenciárias vão expor suas opiniões, contrárias ou a favor. Se a maioria for a favor de abolir o crack, o crack vai ser abolido, conforme o caso. A maioria foi a favor de se abolir o homossexualismo. […] O cara estuprar outro preso. Isso aí tinha muito dentro do sistema penitenciário de São Paulo, e o Estado jamais teve condições de suprimir isso. Aí veio essa organização, raciocinou que isso era algo que afrontava a dignidade humana […]. (pp. 26-27)

 

O problema do exercício das “regras de convívio” independente de uma “liderança” parece ter se dissipado até mesmo para o relator; a “liderança” já não se mostra capaz de enformar os “presos”. Contudo, o advento do PCC e suas constantes intervenções sobre as relações de força que vigoravam entre os presos, narradas por Marcos, parecem suscitar um outro problema que se apresenta na ordem do depoimento: essa espécie de colonização das “regras de convívio” pelas políticas do PCC se faz a partir de um “comando” ou a partir de um “consenso”? Essa é a problemática com a qual me ocuparei na próxima seção.

 

Um regime de relação política que independe de “comando”

O PCC surgiu em 1993 e “[…] tomou força, de 95 em diante” (Marcos, p. 86). Sua fundação marcou uma reação à condição indigna na qual os presos da Casa de Custódia de Taubaté[23] viviam e àquilo que ficou conhecido por Massacre do Carandiru:[24] “[…] o diretor do Carandiru foi para Taubaté, e lá ele impôs a mesma lei de espancamento. Então, quer dizer, juntou a situação do Carandiru com a de Taubaté, deu o PCC.” (Marcos, p. 99) Uma reação às injustiças do Estado, mas também uma reação ao estado de coisas que vigorava nas relações entre prisioneiros. Um processo duplo: uma política de lutas contra as “injustiças” do Estado e uma política de reabilitação e reforma do “proceder pelo certo”. Marcos estava preso nessa época de fundação (p. 86). No entanto, no ano de 1999, ao ser preso novamente (p. 16), se deparou com uma deturpação dos princípios que marcaram seu surgimento: “Quando retornei já existia uma organização dentro do sistema penitenciário, só que era uma organização contra o preso, ela tinha fugido totalmente da ideologia que era aquela coisa de conscientização, de melhorar…” (pp. 68-69). O PCC passara a estabelecer relações segundo a imagem de uma figura “piramidal” (p. 71). Havia o domínio de uma “cúpula” (p. 68) composta por, pelo menos, três presos: Geleião (José Márcio Felício dos Santos), Cesinha (César Augusto Roriz) e Bandejão (José Eduardo Moura da Silva). Marcos faz um diagnóstico: “[…] as pessoas ligadas a essa liderança se embriagaram com esse sucesso todo. […] E acabaram cometendo atrocidades pior do que aquelas que eles vieram para coibir. […] É, muito abuso de poder. Eram 80 presos, 90 presos assassinados por ano.” (p. 70)

Divergências de opinião entre Marcos e Geleião iriam produzir um novo desdobramento na história do PCC. Segundo Marcos, Geleião “[…] era muito radical […] queria explodir a Bolsa de Valores” (p. 20); além do mais, “[…] ele era muito vaidoso […] ganhava dinheiro […] o dinheiro acabava indo para a mão dele” com o esquema piramidal a partir do qual o PCC estava organizado (p. 136). Há ainda um suposto acontecimento que pode ter acirrado o descontentamento de Marcos em relação à política da “cúpula”: o assassinato de sua ex-esposa, Ana Maria Olivatto, que foi amplamente atribuído pela mídia à Netinha (Aurinete Felix da Silva), esposa de Cesinha.[25] Este suposto acontecimento foi objeto de questionamento do deputado Neucimar Fraga; contudo, Marcos disse que não podia afirmar nada a esse respeito (p. 62). Seja como for, no momento em que Marcos defrontou a “cúpula”, seus componentes “[…] foram escorraçados – é a palavra – pelo sistema penitenciário…” (pp. 112--113) A noção de “sistema penitenciário” equivale aqui à expressão “presos”, proferida a propósito da discussão sobre as “regras de conduta”. É novamente um baralho-multiplicidade. No entanto, o deputado Jovino Cândido também joga com cartas-unas: “Não foi pelo grupo?” (p. 113). A resposta de Marcos multiplica: “Não, pois o grupo simboliza o sistema, porque o sistema é o grupo.” (p. 113) Essa resposta poderia até nos levar a postular um Marcos rousseauniano, trabalhando com a equivalência entre a sentença “o sistema é o grupo” e a sentença “[…] uma associação […] pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” (Rousseau 1973: 38). Se percorrêssemos essa aposta talvez encontrássemos a fórmula: todos os presos (sistema) como partes do grupo (PCC) e submissos à vontade geral. Mas a relação entre “sistema” e “grupo” que ­Marcos nos aponta parece-me melhor qualificada na noção nativa de “responsa”, que nesse contexto específico aproxima-se daquela palavra inglesa de difícil tradução: responsiveness (“responsividade”).[26] Creio que a fala subseqüente do depoente exemplifica bem essa “responsa” do “grupo” para com o “sistema”: “Porque tudo que o grupo faz, ele não faz aleatoriamente. Ele faz tudo conversando com o sistema. O sistema apóia o grupo. Isso aí o senhor pode ter certeza.” Geleião e os demais componentes da cúpula deixaram de ser “responsivos” para com o “sistema”:

 

[…] ele perdeu financeiramente, ele perdeu na vaidade, perdeu em todos os sentidos e ainda corria o risco de ser assassinado dentro da prisão, porque o sistema inteiro queria matá-lo, entendeu? Porque abriram os olhos e viram que foram extorquidos, que foram violentados de várias formas. (Marcos, p. 136)

 

Na mídia foram veiculadas diversas matérias noticiando que Geleião havia procurado o delegado Ruy Ferraz Fontes no início de dezembro de 2002 para realizar denúncias sobre o PCC, esperando, com base na Lei n.º 9.034 / 95 (delação premiada), ter sua pena e a de sua mulher, Petrô (Petronília Maria de Carvalho), reduzidas. Pelas “regras de convívio”, inevitavelmente lhe foi jurada morte. Diversas reportagens também noticiaram que Cesinha, junto com Geleião, criou o TCC (Terceiro Comando da Capital), facção que passou a manter domínio sobre a Penitenciária Dr. Danilo Pinheiro (Sorocaba I). Cesinha foi assassinado em 13 de agosto de 2006 na Penitenciária de Avaré I, quando submetido a Regime Disciplinar Diferenciado (RDD),[27] numa ala ocupada apenas por integrantes do TCC. Segundo o delegado que cuidou do caso, Georges Zedan Chehade, o preso que assumiu a autoria do assassinato, Paulo Henrique Bispo da Silva, havia dito que “[…] Cesinha queria liderar o TCC da mesma maneira que agia no PCC: extorquindo integrantes e condenando à morte quem contrariasse suas regras.”[28] Enfim, outras tantas reportagens informaram que Bandejão foi morto na penitenciária de Iaras (Orlando Brando Filinto) após o término da visita de sua mulher, por volta das 16 horas, no dia 17 de maio de 2003; sua mulher foi morta, pouco depois, a quatro quilômetros da penitenciária.

Com a destituição da “cúpula”, a questão óbvia na ordem do depoimento pode bem ser exemplificada pela pergunta do deputado Arnaldo Faria de Sá: “Quem comanda hoje?” (p. 21) Marcos responde:

 

Hoje não existe um comandante, porque o que aconteceu… Com a lição que houve por parte deles mesmos, que era uma estrutura piramidal – tinha uma base e ia fechando até lá em cima –, aí eles resolveram… descentralizou totalmente e um não tem acesso à parte do outro. (p. 21)

 

Num outro momento, o mesmo deputado insiste: “Você tem que abrir mão da liderança?” (p. 71) Marcos responde: “Mas eu não tenho uma liderança. A partir do momento que eu distribuí, entenda, a partir do momento que foi dividido… acabou a piramidal. A partir daquele momento que acabou, a minha liderança também acabou […].” (p. 71) Marcos nos apresenta um novo movimento, já que, entre a destituição de Geleião – e sua antiga cúpula – e o movimento de descentralização do “comando” do PCC, houve um instante em que ele próprio se tornou o pólo detentor desse “comando”: “Por um momento, quando eu defrontei com os líderes, eu fui colocado nessa situação de chefão. Eu nunca aceitei ser essa situação de chefão. Eu nunca quis isso, nunca busquei isso e nunca aceitei ser isso.” (pp. 112-113) Entre os presos essa transição foi concretizada: “Que que eu fiz? Peguei um número de pessoas e distribuí o poder.” (Marcos, p. 71) No entanto, segundo o próprio Marcos, para além das relações entre os próprios presos a sua imagem como “líder máximo” foi mantida: “Quem construiu foi esse sistema, que construiu essa imagem de Marcola, porque o Marcola não é esse Marcola que o senhor está com esse papel[29] na mão aí.” (p. 114; ver também pp. 70-71, 78, 84, 112-113 e 127-128) Dessa vez “sistema” é algo bem diverso de “presos”, trata-se antes de um conjunto de forças (administração prisional, polícias, promotores, mídia etc.) que, ao se oporem ao PCC, precisam de um alvo definido para o travamento do combate; precisam de um inimigo organizado, com estruturas de “comando” e com um chefe imponente. É aqui que podemos verificar um Marcos teórico das próprias relações de força nas quais está inserido e capaz de captar o próprio poder que o captou, poder esse que lhe jogou luzes – o mostrou –, transformando-o num infame (Foucault 2006a), ou quem sabe cedendo-lhe a glória (Deleuze 1992: 134).

É incrível o que disse o próprio Geleião a respeito da pseudo-liderança de Marcos, quando intimado a depor para essa mesma CPI:[30]

 

[…] porque ele na realidade não é uma pessoa que procura uma liderança. Eu podia até querer falar alguma coisa, mas eu jurei aqui falar a verdade. Então, eu acredito que, apesar de ele ser meu inimigo, mas eu não confio que ele está como cabeça das coisas. […] Hoje automaticamente o PCC está sem comando, na realidade. Todo mundo está mandando. […] Hoje se faz mais uma cúpula de uma reunião do primeiro escalão, do segundo escalão. De primeiro, não. De primeiro existia um comando, porque a palavra final era nossa. Todo mundo podia optar, mas quem dava a palavra final era só nós. […] Não vou dizer que ele não seja, mas muitas coisas mais… tanto é que ele passou agora de um tempo para trás ele passou uma ordem para o sistema que quem quisesse fazer rebelião faria, cada um assumiria os seus atos. Isso não faz papel de um líder. […] Mas um líder não pode passar para todos os piloto para passar para o sistema penitenciário que quem quiser fazer faça, que cada um assume o que fizer. Então, não existe uma liderança. Você está fugindo da liderança, porque, se todo vai fazer, assumir, não ­precisa consultar um líder. […] Não. No nosso tempo nunca teve esse sistema de rodízio. Nós éramos os fundadores, nós éramos as últimas palavras e os outros eram os pilotos. E eram pilotos mesmo, obedeciam ao que nós mandávamos fazer. Não tinha que ficar 2, 3, 4 consultando 20 opiniões. A palavra final era nossa. (pp. 57-78)

 

As palavras de Geleião estão acima de qualquer suspeita; ele é o principal inimigo de Marcos. À luz de suas palavras, podemos compreender melhor a intervenção que Marcos faz em resposta à pergunta que o deputado João Campos começava a formular em determinado momento do depoimento. Comecemos pela pergunta do deputado: “Ao falar sobre a organização e algumas medidas que ela tomou ao longo do tempo, como por exemplo, abolir o crack nos presídios, você disse: ‘Toma-se essa decisão e passa para todos os presídios’.” (p. 79) Marcos rebate: “Não, toma decisão, não. Pega essa opinião, passa para todos os presídios […].” (p. 79) Marcos é contundente ao se desviar das posições de “comando”. Ao ser indagado pelo deputado Luiz Couto sobre a figura do “general” no PCC, responde: “Isso foi o Geleião que criou pra ele mesmo. […] Ele era vaidoso.” (p. 138) Portanto, não há mais o “líder máximo”, mas apenas líderes: em “Toda penitenciária tem lideranças, senhor.” (Marcos, p. 135) O ponto central de inflexão é que esses líderes fazem algo diverso de “comandar”: “Existem várias formas de liderança.” (Marcos: 135)

A pesquisadora Karina Biondi foi a primeira a problematizar o qualificativo “chefia” comumente atribuído às atividades dos líderes do PCC:

 

Assim, em certo sentido, a legitimidade da liderança dos irmãos incorre na impossibilidade de exercer a chefia. Se o irmão abusa de sua autoridade, oprimindo e dando ordens aos outros presos, ele é acusado de não estar obedecendo aos valores do Comando, e perde toda a sua legitimidade enquanto líder. É nesse sentido que um preso, repreendido por não ter cumprido o trato de vender um rádio para outro, evocou essa questão: “Eu não sou obrigado a nada, não é, irmão?” Essa pergunta foi colocada em forma de ameaça, não uma ameaça de agressão física, mas que colocava em risco a legitimidade do irmão, possível por ser ele um representante local dos ideais do PCC que, por sua vez, proíbem a submissão de um preso por outro, submetendo todos ao poder do Comando que, no entanto, tem como uma das características principais a impessoalidade. Nesse sentido, nenhuma decisão pode ser tomada por um só indivíduo ou, como dizem os nativos, “decisões não podem ser isoladas” (Biondi 2007: 9-10, itálicos no original).

 

Se outrora o PCC foi fundado, entre outras coisas, para reparar as constantes quebras do “proceder” que imperava entre os presos, após a destituição da antiga “cúpula” pode-se dizer que houve uma refundação, uma nova tentativa de fazer da política do PCC algo que passa ao largo daquilo que entendemos por mando ou chefia:

 

Caracteriza essa socialidade os constantes esforços e tentativas de racionalizar seus processos e de desenvolver uma filosofia nativa acerca dos sentidos da “Igualdade” que fora incorporada no lema “Paz, Justiça e Liberdade”. Este lema fora importado do Comando Vermelho e, segundo os nativos, a adição do princípio da igualdade funda a diferença entre os comandos. (Biondi 2007: 12)

 

Sob os atuais “valores do Comando”, sejam “pilotos”, sejam “irmãos”, ou simplesmente “primos”, não se pode mais travar relações de “comando” e nem tomar “decisões isoladas”. E essa orientação está intimamente ligada à adição do princípio da “igualdade” ao lema do PCC.[31] Até aqui temos um “Comando” sem “comando”, a inexistência de um “líder máximo” e a atividade de “líderes” que devem se orientar por princípios que impedem o exercício da chefia. Marcos nos fala, razoavelmente, quem são esses “líderes” e o que fazem:

 

Não existe um ditador. Não existe um cara que… Embora a imprensa fantasie, romanticamente, que exista esse cara, né, o líder do crime e tal. Mas não existe isso. Existem pessoas esclarecidas dentro da prisão, que com isso angariam a confiança de outros presos. Por quê? O preso vem com um problema, você dá uma solução pra ele, mostra uma lógica, mostra a forma que ele está sendo tratado ou a forma que ele deveria ser. O senhor entendeu? (p. 30)

 

Essa explicação ressoa fortemente no modo como conceituei “piloto”: posição política protuberante nas relações entre os próprios presos e desses com a administração prisional. Mas com isso não quero justapor “pilotagem” e “liderança”, suprimindo suas diferenças, já que a efetuação da última independe do exercício da primeira. De qualquer modo, o sentido de “liderança” está intimamente ligado a uma expressão que escuto com freqüência no campo: “linha de frente”. A propósito, em outro trabalho, falei da atuação de um “irmão” em meio a um tiroteio durante uma rebelião no Dakar III de Pinheiros (Marques 2008). Na ocasião, após o fim das munições dos prisioneiros, e de um dos presos ser baleado por um “sentinela”, esse “irmão” “[…] saiu rapidamente para o pátio da ‘galeria’ e já sobre a quadra desenhada no chão, justamente na linha de fogo dos policiais, gritou para um ‘dos sentinelas’: ‘Aê safado, acabou a bala aqui, covardão’”, fazendo com que o tiroteio fosse interrompido (Marques 2008: 287). Esse “irmão” é um “linha de frente”. A esse respeito, é interessantíssima a situação pela qual passou Biondi durante uma rebelião no CDP de São Bernardo do Campo no ano de 2006:[32] após travar um diálogo com policiais fortemente armados, sob a mira de suas armas, comunicando-lhes que no espaço sob suspeita só havia “visitas” e não presos rebelados, e conseguindo que os policiais entrassem ali de modo menos brusco, Biondi foi questionada pelas demais “visitas” se se tratava de uma “cunhada” – denominação atribuída às companheiras dos irmãos, membros do Primeiro Comando da Capital – e recebeu agradecimentos pela coragem de “enfrentar” os policiais (Biondi 2007: 14-15). A pesquisadora-“visita” não foi identificada como relacionada ao “Partido” por ter cometido um delito ou por ter exercido algum tipo de mando ou chefia, mas por ter conduzido uma situação de modo que as “visitas” não sofressem algum tipo de violência policial.

Os relatos sobre a atuação de “presos comuns”, “irmãos” e “pilotos” são abundantes para confirmar essa argumentação. Porém, outra questão surge com grande ímpeto: se na atual conjuntura do PCC não se tem “comando”, não se tem um “líder máximo” e nem “líderes” que “ordenam”, como explicar que os ataques de maio de 2006 tenham acontecido “[…] ao mesmo tempo, em série, e, quando foi para encerrar, foi ao mesmo tempo” (deputado João Campos, p. 78)? Essa pergunta é o mote da próxima seção.

 

Devires

A tomada de depoimento de Marcos pela CPI do Tráfico de Armas ocorreu no calor da hora dos ataques de maio, promovidos pelo PCC. E ainda ocorreria uma segunda onda de ataques entre a madrugada do dia 11 (terça-feira) e a tarde do dia 13 (quinta-feira) de julho. Por tudo isso, não é de se espantar que a primeira concessão de voz dada ao depoente tenha sido para que ele comentasse aquilo que estava acontecendo: “Então tu tens a palavra pelo tempo que desejar, para contar a tua versão sobre tudo isso que está acontecendo.” (deputado Moroni Torgan, p. 10) Marcos, então, contou sua versão:[33]

 

[…] nós fomos tirados 6 horas da manhã das nossas penitenciárias, que a gente estava normal, regime comum, porque não tinha motivo pra estarmos em RDD; fomos colocados nos bondes, que são os caminhões, e fizemos uma viagem dolorosa, de sete, oito horas, até chegar em Presidente Venceslau II; chegamos todos mortos de cansados, porque é horrível esses bondes; chegamos mortos de cansado, com fome, com frio, com todas as necessidades básicas de higiene também, e permanecemos por mais sete horas dentro desses caminhões, respirando gás carbônico. Quando fomos colocados dentro das celas, fomos sem nada, sem roupa, só com uma calça, uma camiseta e um chinelo, sem manta, sem nada, sem condição nenhuma. Não foi-nos dada alimentação. Chegando lá, não no pavilhão que eu estava, que era um pavilhão de segurança máxima, mas nos outros pavilhões havia telefones celulares que estavam lá desde a rebelião anterior que tinha havido lá. Os presos simplesmente foram lá, tiraram esses telefones do chão, dos lugares que eles sabiam onde estavam, e naquele momento de revolta de todos os presos – foi generalizada a coisa –, naquele momento de revolta, vários presos telefonaram pra vários setores, pra vários amigos, pra várias pessoas e pediram providências, entendeu? Quer dizer, aí foi deflagrada essa situação toda que ocorreu, que foi excessiva em todos os sentidos. Mas não tem como falar… Como vai me acusar, dizer que fui eu, que foi o Marcos Willians que fez isso daí? É absolutamente impossível, porque, do momento em que fui transferido de Avaré pra Venceslau II até o momento que eu vim pra cá e tudo o mais, eu não tive acesso a comunicação nenhuma, nem a advogado nenhum, só à polícia. (p. 12)

Então, aí o que aconteceu? Eu estava em Venceslau com fome, com frio, revoltado, como todos os outros presos, muito mais, porque domingo seria a visita do Dia das Mães… Quer dizer, a gente não tinha cometido falta disciplinar nenhuma que justificasse um regime mais rigoroso pra gente naquele momento. Nada foi dito à gente. Pra nós nada foi explicado. Simplesmente nos jogaram numa penitenciária sem as mínimas condições materiais pra nos receber. No mínimo, no mínimo, no mínimo, houve aí uma incompetência do Sr. Secretário.[34] Mas eu acho que é muito mais do que isso. Eu acho que houve uma provocação. Não sei. Eu não posso afirmar, mas foi feito de uma forma muito, muito contundente no sentido de nos fazer sofrer, o senhor entendeu? E, como vários líderes estavam ali – não existe um líder, vários líderes estavam ali também –, quer dizer, era natural que houvesse uma reação. Por toda a experiência da Secretaria, ela saberia que haveria essa retaliação, ou não essa exatamente, que isso ninguém esperava, mas algum tipo de retaliação, o senhor entendeu? (p. 13)

[…] quando eu estava em Venceslau, simplesmente os funcionários foram e me retiraram, juntamente com outro preso, falando que eu tinha que ir pro DEIC.[35] Até então eu nem imaginava o que poderia vir a acontecer, ou por que eu estaria indo para o DEIC. A gente não sabia nem que estava tendo a rebelião em Iaras e em Avaré. Então, o que aconteceu? Fomos para o DEIC. Chegando ao DEIC, o Dr. Godofredo[36] falou pra mim que nem ele sabia por que eu estava lá, porque ele mesmo não tinha feito nenhum tipo de requisição nesse sentido. Aí foi visto lá que parece que o secretário de Segurança, Dr. Saulo,[37] é que tinha solicitado a minha ida pra lá, porque já tinha o serviço de informação analisado que iria haver alguns atentados e queria que eu de alguma forma procurasse brecar isso, o senhor entendeu? Aí eu respondi a eles que eu não poderia fazer isso porque simplesmente eu não sabia nem de onde ia partir, quem que ordenou… Então como é que eu ia saber onde chegar pra poder acabar com isso? Porque eu também não concordaria em inocentes, várias pessoas serem assassinadas. Isso eu jamais iria concordar com um fato desse. Aí eles falaram pra mim que, como eu sou líder perante a imprensa, tinha que partir de mim, porque senão, no fim, como sempre iria sobrar pra mim. Isso foi conversado abertamente. Tinha uns 15 delegados, não só o Dr. Godofredo. (p. 15)

Então, aí foi explicado pro Dr. Bittencourt o que que era necessário, o que que eu achava necessário pra que se cessasse ali a situação, porque tinha mais presos lá no DEIC que poderiam fazer esse contato telefônico com várias pessoas e eu chegar aonde estava partindo a situação. E poderiam, de alguma forma, coibir o que viria a acontecer. Aí ele falou o que que eu queria. Eu falei: “Eu não quero nada. Eu só quero que seja cumprida a lei.” Qual que é a lei? Que a gente, quando a gente é transferido, que nos dê roupa, nos dê um agasalho, que nos dê uma manta – ó o que eu pedi, uma manta –, nos dê alimentação, que nós estávamos dois dias sem comer, nos dê alimentação, porque isso é um princípio básico, e eu acho que a lei é bem clara, a que diz que nós temos direito a comida, a nos vestir, a não passar frio, e que nos dê a visita de domingo, que é a visita do Dia das Mães, pra que as ­nossas famílias vejam que a gente está tudo bem, que nossa integridade física, pelo menos, foi preservada. Foi pedido isso. Ele falou: “Isso daí é algo que é bastante lógico e eu concordo com você.” O Dr. Bittencourt falou isso pra mim: “Concordo com você e vou passar isso pro Nagashi.” Aí ele foi, ligou pro Nagashi, e o Nagashi falou simplesmente que não, que não iria fazer concessão nenhuma, que não tava ali pra negociar. Foi intransigente de uma forma que não tinha sentido, porque a gente tava pedindo simplesmente pra que a lei fosse obedecida, não tava pedindo nada além disso, o senhor entendeu? E o Nagashi, num momento de intransigência – eu nunca tinha visto ele dessa forma, porque eu já venho me relacionando com ele há muitos anos –, não entendi por quê, parece um jogo político mesmo, simplesmente foi intransigente ao máximo e falou que a gente ia continuar sem cobertor – quem não tinha não tinha –, sem visita, sem banho de sol, um mês trancado, sem justificativa, sem nada. Quer dizer, a revolta foi generalizada. Presos nessas condições, com certas lideranças muito fortes dentro da penitenciária e ­telefone celular… É isso. (pp. 16-17)

Eu acho que ali não foi algo planejado, no meu ponto de vista. Eu não posso afirmar taxativamente, porque eu também não sei exatamente o que aconteceu, porque eu estou trancado esse tempo todo. […] Eu acho que começou com essa revolta de Venceslau. Na minha opinião começou com essa revolta de Venceslau, com os presos pedindo socorro para os bandidos que estavam na rua, e a coisa foi tomando proporções incontroláveis, justamente por não ter uma liderança, o senhor entende? Por não ter uma pessoa ali para falar “pára” ou “faz isso” ou “faz aquilo”. Então, a coisa se generalizou. Esse é meu ponto de vista. Posso estar enganado, o senhor entendeu? Mas o meu ponto de vista é isso, fugiu ao controle total de todo mundo, justamente por não ter tido controle. Foi uma coisa… Um ligou daqui, outro ligou de lá, outro ligou de lá, quer dizer, foram várias ligações para várias pessoas, que saíram… Essa é a minha opinião. (pp. 60-61)

Até agora eu não entendo como que foi encerrado, porque não tenho noção disso, entende, doutor? Porque estou aqui, e aqui a gente não tem acesso a nenhum tipo de informação nesse sentido, nem televisão, nem rádio, nem jornais. Até os nossos advogados são, talvez, gravados, filmados. Então, eles ficam com medo de falar alguma coisa nesse sentido. Então, não tem como a gente saber exatamente. Eu entendo o que o senhor está querendo me dizer. Da forma que foi feito, da forma que começou e da forma que parou, a impressão que fica é que foi alguma coisa orquestrada mesmo. […] Só que eu garanto ao senhor que não, porque justamente foi uma revolta generalizada. Quem teve acesso à comunicação expôs… O problema é que pode ter exposto tudo no mesmo lugar. Aí, eu não sei. Lá fora, a liderança lá de fora é que resolveu toda essa situação. Agora, interno, dentro do sistema penitenciário não teve uma liderança que pudesse fazer isso, não teve. Porque essa liderança estava num pavilhão que não tinha nenhum tipo de contato com ninguém, que é o 1º Pavilhão de Venceslau II. É onde eu estava, inclusive. (p. 79)

 

Esse é um ponto de vista, como bem pontuou Marcos, específico acerca dos ataques de maio de 2006. Nele não podemos coletar nenhuma raiz de “comando” que pudesse causar a deflagração dos ataques. O que temos, na verdade, é uma descrição sobre variações ontológicas dos “presos” em suas relações com o fora (o mundo de exterioridade):[38] foram afetados pela transferência de “líderes” para o RDD, revoltaram-se. Mas se trata também de uma variação ontológica do fora em suas relações com os “presos”: foi afetado pela revolta dos presos, sofreu ataques e mega-rebelião. Em suma, Marcos não nos fala sobre resultados previstos porque produzidos por um planejamento, mas sobre afecções e um desdobrar histórico incontrolável.

 

“Humildade”, “Cabulosidade” E “Igualdade”

Vimos o “proceder” pronunciado como substantivo e derivado para uma forma adjetivante. O “ter proceder” é sim estar em consonância com esse complexo conjunto de regras que, aliás, modifica-se ao longo do tempo (Marques 2007a), mas não só, já que dos “caras de proceder” se espera mais do que conformidade a uma orientação, espera-se que sejam “humildes” e, ao mesmo tempo, que sejam “cabulosos”. O “humilde” deve ser entendido exatamente como aquele que “não humilha os humildes”. O “cabuloso”, por sua vez, é justamente aquele que “não leva psicológico”. “Dar um psicológico”, expressão de meus interlocutores que serviu de título a uma comunicação (Marques 2007b), conota a capacidade de um indivíduo produzir cautela ou receio (no limite, medo) num outro com o qual se relaciona, seja através de palavras, de gestos ou de atitudes. Num certo sentido, “dar um psicológico”, sempre num outro, já que se trata de uma relação, é tentar pô-lo na condição de sentir-se “pelo errado” (ou “sem proceder”). Segundo meus interlocutores, muitas vezes um preso “pede seguro” por não suportar o “psicológico” de outro preso, sem, no entanto, estar errado na questão discutida. Um interlocutor (ex-presidiário) com o qual travei diálogos durante minha pesquisa de graduação, relatou-me que falou a seu irmão, que estava preso e envolvido num litígio com outro preso, para não pedir transferência de cela, pois mesmo que estivesse “pelo certo” (em consonância com o “proceder”) seria cobrado por não ter permanecido na cela e enfrentado seu desafeto (Marques 2006: 54). Escuto constantemente a seguinte formulação: “na cadeia é só psicologia; tem que ser cabuloso pra viver aqui (ou lá)”. Em suma, o “cabuloso” não “gela” (não se amedronta) e nem “amarela”; é sugestivo que o “seguro” muitas vezes seja chamado de “amarelo”.

Aqui surge uma outra figura entre os “homens de proceder” e “homens sem proceder”: o “lagarto”. Ele é aquele que permanece no “pano” (na proteção) de um “ladrão” – se fazendo também de “ladrão” – fazendo-lhe tudo o que pede: “é um esquema”. O “esquema” é aquele que é tolerado, ao invés de ser mandado para o “seguro”, para ser um serviçal. Acontece que, do ponto de vista de presos que vivem em cadeias sob o domínio do PCC, essa experiência possível é formulada justamente para criticar a socialidade de outras “facções”. Em suma, um “lagarto” seria execrado em cadeias do “Partido”; seria perigosíssimo a um preso assumir-se “lagarto” ali, justamente porque o “lagarto” não é “cabuloso”.

Uma outra figura é o extorsionário (e o extorquido, por relação). Lembremos da crítica de Marcos, que já expus, à antiga cúpula e ao CRBC. Em ambas configurações políticas permite-se (no caso da antiga cúpula, permitia-se) que haja extorsão entre presos. O extorsionário é aquele que deixou de ser “humilde” e o extorquido é aquele que deixou de ser “cabuloso”. Sob os “valores do Comando” é condenável assumir-se como extorsionário. Ocorre o mesmo problema em qualquer relação de chefia ou mando estabelecida entre presos, já que, inevitavelmente, resulta num duplo movimento: por um lado, aquele que manda perde a “humildade”, por outro, aquele que é mandado perde a cabulosidade.[39]

Existe desigualdade entre “ladrão” e “lagarto”, entre extorsionários e extorquidos, entre mandantes e mandados, relações que são atravessadas, em algum momento, pela classificação “ter proceder” / “não ter proceder”. É interessante notar que tais relações também são vistas como desarranjos do ideal de “igualdade” do PCC. Ora, é justamente aqui que podemos vislumbrar um cruzamento mais intensivo entre o plano de relações denominado “proceder” e esse plano de relações reformado, no limite refundado, denominado “valores do Comando”: o “humilde” que “não humilha humilde” e o “cabuloso” que não se deixa subtrair a um “psicológico” se encontram numa (quase, diria) perfeita simbiose junto à “igualdade” reformadora da política do PCC.

Por tudo isso, creio que a clássica questão a que Weber buscou responder – por que um homem obedece a um outro? – não é um problema produtivo quando indagamos “ladrões”. Contudo, diversos escritos que vêm sendo feitos enformam as singulares relações sociais estabelecidas entre presos de cadeias sob a égide do PCC em modelos de organização – oriundos de outros regimes de relação – que explicitamente carregam a raiz “comando”, tais como o modelo estatal,[40] o modelo sindical (Souza 2006),[41] o modelo de máfia,[42] etc. De minha parte, esses homens não obedecem uns aos outros, mas, antes, permanecem na “mesma caminhada”, ou, dito de outro modo, são “do crime” (“têm proceder” e se orientam pelos “valores do Comando”).

Com efeito, nem haveria o porquê de se cogitar a possibilidade de trabalhar com os modelos da tríade clássica – democracia, aristocracia e monarquia –, já criticados por mim na apresentação, pois seria um descabimento falar de governo de um só (“Marcola, o líder máximo”!), ou de governo dos melhores (os “líderes”), ou ainda, de governo do povo (“presos”). Se eu guardasse alguma pretensão de conceituar positivamente o singular regime de relação política estabelecido entre esses homens, nem mesmo poderia empreender uma tradução grega para atingir um embelezamento do conceito, já que, se por um lado a noção de “humilde” me permitiria construir a noção de prayscracia (prays = humilde, kratos = governo), por outro, não existiu nenhum grego “cabuloso”! Essa aparente brincadeira, ou ironia, na verdade pode ser entendida apenas como um último recurso deste trabalho para não construir uma forma analítica pretensamente capaz de explicar a complexa vida política dos presos; em suma, eu quis apenas produzir um indicativo sobre a complexidade da realidade prisional.

Mas ainda tenho que dizer que o deputado Arnaldo Faria de Sá bateu na trave: “Para chegar ao topo do PCC é morte?” (p. 87) Marcos responde: “Incrível, não é. (Riso) […] Eu estou vivo não sei como. (Riso) Porque acho que talvez eu não seja esse topo que se imagina, não é?” (p. 87)

 

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, 2002, “O nativo relativo”, Mana, 8 (1): 113-148.

 

Notas

[1]      Este artigo é uma versão revisada do texto “‘Proceder’ e relações políticas entre presos do Estado de São Paulo: diferenças de conceituação e diferenças de juízo numa inquirição da CPI do Tráfico de Armas”, apresentado no Encontro do NUFEP / UFF (PRONEX e FINEP), realizado em 5 de junho de 2008, na cidade de Porto Seguro (BA). Agradeço imensamente ao amigo Gabriel Pugliese (PPGAS / USP) e à amiga Karina Biondi (PPGAS / UFSCar), pelas impagáveis e incontáveis contribuições dadas à minha pesquisa; a Antonio Rafael Barbosa (UFF) e a Giuseppe Cocco (UFRJ), por me estimularem a publicar este trabalho; a Gabriel Feltran (CEBRAP), à minha orientadora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (USP) e às minhas colegas Ana Gabriela Mendes Braga (doutoranda pela FDUSP), Bruna Angotti (PPGAS / USP) e Carmen Fullin (PPGAS / USP), pelas leituras e sugestões valiosas; a Jorge Villela (UFSCar) e à Ana Claúdia Marques (USP), pelos sempre produtivos diálogos. Enfim, este trabalho não poderia ser produzido sem o valioso material da CPI do Tráfico de Armas fornecido por Dario Luis Borelli (IEA-USP). Devo mencionar que minha pesquisa vem sendo construída com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[2]      Um corpus discursivo sobre esse coletivo é formado, gradativamente, ao longo deste artigo, estratégia fundamental para o funcionamento da reflexão. É imprescindível pontuar, já de início, que as políticas do PCC, segundo minhas impressões de campo, vigem em pelo menos 90% das 147 unidades prisionais do estado de São Paulo.

[3]      As quantificações acerca desse episódio permanecem controversas. Para se ter uma idéia da magnitude desse acontecimento, vale a pena consultar o balanço divulgado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, em 22 de maio de 2006 (disponível em <http://www.ssp.sp.gov.br/noticia/lenoticia.aspx?id=10109>.

[4]      Essa inquirição ocorreu durante a reunião fechada n.º 0871R / 06, com início às 13h30m e término às 17h43m, nas dependências da penitenciária de Presidente Bernardes, localizada no oeste paulista. Contou com um quorum de oito presentes: deputado Moroni Torgan (PFL; presidente dessa CPI), deputado Neucimar Fraga (PL; 3.º vice-presidente), deputado Paulo Pimenta (PT; relator), deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB), deputado João Campos (PSDB), deputado Jovino Cândido (PV), deputado Raul Jungmann (PPS) e deputado Luiz Couto (PT). Além desses membros da CPI, estavam presentes um representante do Ministério Público e o diretor do Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes, Luciano César Orlando.

[5]      Realizada pelo Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara dos Deputados. As referências a esse documento serão feitas através da citação do nome dos inquiridores ou do depoente e da página em que foi registrada a fala. Quando estiver explícito quem é o falante, citarei apenas a página.

[6]      Durante a inquirição, indagado pelo deputado Raul Jungmann sobre como preferia ser chamado, se como Marcos Camacho ou como Marcola, o depoente respondeu simplesmente “Marcos” (p. 91). Daqui por diante eu o chamarei assim.

[7]      Sei dos problemas de tomar os “deputados” como uma unidade; contudo, não é também problemático tomar “eu” ou “Marcos” como unidades? Nessa minha opção arbitrária considero as posições estratégicas de “deputados”, “Marcos” e “eu”: inquiridores, réu e analista, respectivamente.

[8]      Com isso, em absoluto, não desejo fazer referência a um campo simbólico ou a estruturas significantes que determinam ou são determinadas por práticas sociais, mas considerar a existência de diversos modos de acontecimentos (o pensamento entre esses modos), que compõem distintos níveis da realidade, que não têm os mesmos alcances espaciais, que não possuem as mesmas amplitudes temporais e, enfim, que não têm as mesmas capacidades de produzir efeitos (Foucault 2006b: 5).

[9]      A prevenção contra esses problemas foi formulada há muito pela crítica pós-moderna. Ver Clifford (1998) e Clifford e Marcus (1986).

[10]     É justamente nesse ponto que a crítica pós-moderna revela toda a sua esterilidade: ver as críticas de Rabinow (1999) a Geertz e a Clifford. De modo mais contundente, Foucault e Deleuze, antes da voga pós-moderna na antropologia, mas em plena voga pós-moderna na filosofia e literatura, já nos mostravam que não era preciso temer a palavra ficção: “Pois em Deleuze não se ouvirá lamúrias nem profecias sobre o fim do sujeito ou da história, da metafísica ou da filosofia, das metanarrativas ou da totalidade, do social ou do político, da ideologia ou da revolução, do real ou mesmo das artes” (Pelbart 2003: 181). Através do próprio Deleuze é possível estender essas considerações a Foucault: acerca de um impactante enunciado de Foucault – “Nunca escrevi senão ficções…” –, Deleuze escreveu: “Mas nunca a ficção produziu, tanto, verdade e realidade” (2005: 128); ou: “Foucault soube inventar, sintonizado com as novas concepções dos historiadores, uma maneira propriamente filosófica de interrogar, maneira nova e que dá nova vida à História.” (Deleuze 2005: 58-59; grifo meu)

[11]     “Pedir seguro” é o mesmo que pedir proteção à administração prisional por correr risco de vida no local onde se cumpre pena. “Seguro”, em uma de suas acepções, é justamente um local reservado pela administração prisional para abrigar os presos que estão nestas condições. “Convívio” é todo local de cumprimento de pena dentro da prisão que não é “seguro”. “Debate” é a realização de uma discussão que pretende resolver um litígio entre presos.

[12]     “Talaricos” são aqueles que “dão em cima” da mulher de outro homem; “nóias” são aqueles que contraem dívidas por conta do uso excessivo de drogas; “caguetas” deriva de “alcagüete” e significa delator; “duque treze” são os estupradores, assim chamados devido ao artigo criminal de estupro, n.º 213.

[13]     Trata-se de posições protuberantes nas relações entre presos e desses com a administração prisional. Há uma homonímia entre essas posições políticas e os cargos de faxineiro, cozinheiro e chefes de oficinas, disponibilizados pela administração prisional para a população prisional. É imprescindível notar que tais cargos possibilitam uma maior circulação no interior das construções prisionais, servindo, assim, como ocupações estratégicas para tal exercício político.

[14]     “Pilotos” também são saliências nas relações sociais dos prisioneiros. Contudo, nem sempre ocupam cargos disponibilizados pela administração prisional.

[15]     Já ouvi relatos em que essa sigla aparece como Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade ou Comando Revolucionário Brasil Criminal. Durante uma ida a campo em outubro de 2007, um diretor confirmou o domínio do CRBC nas seguintes unidades prisionais: Penitenciária José Parada Neto (PJPN), Penitenciária de Itirapina II, Centro de Detenção Provisória (CDP) II de Guarulhos. Não soube me responder (ou não quis) se alguma das três penitenciárias de Franco da Rocha ou o CDP de Franco da Rocha estava sob o domínio do CRBC; alguns interlocutores já me falaram sobre o domínio do CRBC numa cadeia dessa cidade; o deputado Arnaldo Faria de Sá e Marcos também citam Franco da Rocha – mas sem especificar se I, II, III ou CDP – como unidade sob o comando do CRBC (p. 190).

[16]     A expressão “há mile anos”, utilizada freqüentemente pelos meus interlocutores, equivale à expressão “há muito tempo”.

[17]     Tal expressão quer dizer que está proibida qualquer luta entre presos, estejam desarmados ou com facas. Em comunicação pessoal, a pesquisadora Karina Biondi disse-me que em seu campo não havia bandeira hasteada, mas era do conhecimento de todos a vigência da bandeira branca. Ou seja, o não hasteamento da bandeira não é sinal de uma não-vigência da bandeira branca.

[18]     Ao longo de minha pesquisa recorri à mudança dos nomes de meus interlocutores. Por vezes passaram a se chamar A, B ou C, outras vezes Azul ou Amarelo, ou simplesmente “um interlocutor”.

[19]     Coletivo de presos que surgiu no final da década de 70 no interior do Instituto Penal Cândido Mendes, também conhecido como Presídio da Ilha Grande, localizado na baía de Angra dos Reis, Rio de Janeiro.

[20]     Também reproduzido em Marques (2007a). Ao ler este relato, Biondi me explicou que os dígitos são, respectivamente, 1533 e 321, e que também os havia etnografado em outras “cadeias do PCC”. Para obtê-los basta substituir as letras do alfabeto por uma seqüência numérica iniciada em 1; C=3, P=15, V=21.

[21]     Através do seqüestro do repórter Guilherme de Azevedo Portanova e do auxiliar técnico Alexandre Coelho Calado, ambos da Rede Globo, ocorrido em agosto de 2006, integrantes do PCC conseguiram exibir em rede nacional uma gravação na qual uma das afirmações é de que lutam contra os governantes e os policiais – algo que se aproxima daquilo a que Foucault (2004) chamou mecanismos de produção, manutenção e reprodução do fenômeno da delinqüência (sistema policial, sistema penal e sistema judiciário).

[22]     “Irmãos” são os presos filiados (“batizados”) no PCC; “primos” são presos que, apesar de não pertencerem ao PCC, permanecem no convívio com os “irmãos”, respeitando e compartilhando suas regras. Verifica-se, também, o emprego do predicado “leal” a primos: “primo leal”.

[23]     O PCC surgiu no interior do Centro de Readaptação Penitenciária da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, unidade prisional conhecida pelos brutais maus-tratos infligidos aos prisioneiros.

[24]     Ocorreu no dia 2 de outubro de 1992 no interior do pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, o maior presídio da América Latina à época. Segundo a versão oficial – controversa para numerosos prisioneiros que viveram tal acontecimento – 111 detentos foram mortos quando a Tropa de Choque da Polícia Militar invadiu esse pavilhão para conter uma rebelião em curso.

[25]     Em 5 de dezembro de 2002, atenta a esses acontecimentos, a revista Isto É (em sua versão eletrônica) publicou a reportagem “PCC vai à lona”.

[26]     Em uma tradução aproximada, significa a disposição de representantes para adotar políticas preferidas pelos representados.

[27]     A Lei n.º 10.792, de 1 de dezembro de 2003, tornou legítimo aos gestores prisionais brasileiros utilizar o RDD para coação de presos, provisórios ou condenados, suspeitos de “envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando” (cf. art. 52.º, inciso II).

[28]     Em 14 de agosto de 2006 o jornal O Estado de São Paulo, também conhecido como Estadão, publicou em sua versão eletrônica a reportagem “Inimigo n.º 1 do PCC é assassinado em Avaré”.

[29]     Referência à reportagem “O silencioso chefão”, publicada pelo site da revista Época em 04 de abril de 2003 e que foi lida pelo deputado Jovino Cândido.

[30]     Transcrição ipsis verbis da tomada de depoimento de Ruy Ferraz Fontes e de José Márcio Felício dos Santos pela CPI do Tráfico de Armas, em 17 de maio de 2005.

[31]     Indagado sobre supostos lemas do PCC, Marcos responde: “Os lemas que eu ouvi é paz, justiça, liberdade, igualdade.” (Marcos, p. 143)

[32]     Biondi realizou parte de sua pesquisa como “visita” de um preso.

[33]     Opto por utilizar a própria descrição de Marcos. Contudo, isso não tem a ver com uma devolução da fala ao nativo “sem intermediários nem distorções” – Magnani (1986) já criticou essa medida pretensamente “salutar” – ou alguma demanda pós-moderna por atingir uma escrita dialógica. Faço porque as palavras do próprio Marcos são eficazes para minha ficção.

[34]     Referência ao Dr. Nagashi Furukawa, secretário de Estado da Administração Penitenciária à época.

[35]     Departamento Estadual de Investigações sobre o Crime Organizado.

[36]     Delegado Godofredo Bittencourt Filho, diretor do DEIC à época.

[37]     Dr. Saulo de Castro Abreu Filho, secretário de Estado da Segurança Pública à época.

[38]     Sobre a noção de fora, ver Deleuze (1974). Ver, também, Viveiros de Castro (2002). O fora está sempre ancorado em um ponto de vista; trata-se de uma composição de termos e relações que (de)formam a extensão, bem como a intensidade, alcançada pelo termo que acede ao ponto de vista. Nesse caso, obviamente, é o ponto de vista dos “presos” que se abre para o fora. Com efeito, pode-se dizer que Marcos tem um ponto de vista sobre o ponto de vista dos “presos”.

[39]     Meus interlocutores não possuem esta substantivação do atributo “cabuloso”.

[40]     São inúmeras as vozes, principalmente na grande mídia, que classificam o PCC como um Estado-paralelo.

[41]     Ver, também, a reportagem “Partido do crime atua como sindicato”, publicada pelo jornal Folha de São Paulo em 21 de maio de 2006. Segundo Mingardi, a formação do PCC é marcada pela utilização de um discurso sindical para conquista de adeptos. Para o autor, as características que definem as organizações criminosas são: hierarquia, previsão de lucros, divisão do trabalho, planejamento empresarial e simbiose com o Estado. No desenvolvimento da argumentação, o autor define três distintas modalidades de crime organizado: a tradicional, a empresarial e a endógena. Enfim, entende que os grupos originários da cadeia, como o PCC, estão gradativamente adquirindo as características do modelo tradicional (Mingardi 2007).

[42]     Para paralelos entre a Máfia italiana – e até a Al Qaeda – e o PCC basta uma breve consulta aos textos do especialista em crime organizado Walter Fanganiello Maierovitch, fundador e coordenador de pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanni Falcone (ver <http://www.ibgf.org.br>). Adorno e Salla (2007) não consideram o modelo de máfia apropriado para dar conta das singularidades da criminalidade organizada no Brasil. Contudo, entendo que a noção de criminalidade organizada, elegida por esses autores em detrimento da de crime organizado, permanece intimamente conectada a uma noção de liderança que guarda em seu âmago a necessidade de um quadro hierarquizado de administração: “[…] as lideranças estavam sustentadas em uma organização mantida por um quadro hierarquizado de ‘funcionários’, disciplinados e obedientes, capazes de executar ordens sem questioná-las” (p. 9).

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