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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.103 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Jan-2024

https://doi.org/10.7458/spp202310329754 

Artigos Originais

Cuidadoras de casas-lar em Curitiba, Brasil: os sentidos de suas escolhas

Female caregivers of children and adolescents in homelike settings in Curitiba, Brazil: meaning of their choices

Les femmes qui s’occupent d’enfants et d’adolescents dans des foyers d’accueil à Curitiba, au Brésil: signification de leurs choix

Mujeres cuidadoras de niños y adolescentes en hogares de acogida en Curitiba, Brasil: los significados de sus elecciones

Ana Maria Silvello Pereira1  , concetualização, curadoria dos dados, investigação, metodologia, administração do projeto, visualização, redação do original, revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-9628-0569

Marlene Tamanini2  , concetualização, curadoria dos dados, administração do projeto, supervisão, validação, visualização, redação do original, revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-7711-3693

1 Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil

2 Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil


Resumo

O artigo se limita aos sentidos das escolhas que as mulheres cuidadoras constroem em relação às crianças e aos adolescentes que são acolhidos em casas-lar. Por meio de pesquisa qualitativa, analisa as motivações delas, para ingressarem neste cuidado institucionalizado, tais como: renda, conciliação entre trabalho e maternidade, cuidado de seus filhos e amor por crianças e adolescentes em situação de abandono. Conclui-se que, não obstante ser uma política pública, esta atividade se apoia na continuidade entre ser mulher e saber cuidar. Assim, deslocam-se os sentidos da política pública tal como preconizada, para praticá-la com base nos ideais de amor e maternidade.

Palavras-chave: escolhas; amor; abandono; cuidadoras; casas-lar.

Abstract

The article is based on the meaning of the choices that these female caregivers make in connection with the children and adolescents who are welcomed in homelike settings. Through qualitative research, it analyzes the motivations reported by them to enter this institutionalized care, such as: income, reconciliation between work and motherhood, care of their children and love for children and adolescents in situations of abandonment. Despite being a public policy, this activity is based on the continuity between being a woman and knowing how to care. Thus, the meanings of a public policy as formerly advocated are shifted to a practice that is based on the ideals of love and motherhood.

Keywords: choice; love; abandonment; caregiver; homelike settings.

Résumé

L’article est basé sur la signification des choix que ces femmes soignantes font en rapport avec les enfants et les adolescents qui sont accueillis dans des cadres semblables à ceux d’une maison. Grâce à une recherche qualitative, il analyse les motivations dont elles font état pour entrer dans cette prise en charge institutionnalisée, telles que: le revenu, la conciliation entre le travail et la maternité, les soins apportés à leurs enfants et l’amour pour les enfants et les adolescents en situation d’abandon. La conclusion est que, bien qu’il s’agisse d’une politique publique, cette activité est basée sur la continuité entre le fait d’être une femme et le fait de savoir s’occuper d’autrui. Cela déplace le sens de la politique publique telle qu’elle est préconisée, afin de la pratiquer sur la base des idéaux de l’amour et de la maternité.

Mots-clés: choix; amour; abandon; soignants; foyers d’accueil.

Resumen

El artículo se centra en los significados de las elecciones que estas mujeres cuidadoras hacen frente a su dedicación a los niños y adolescentes que son acogidos en casas acogedoras. A través de la investigación cualitativa, analiza las motivaciones reportadas por ellas, para ingresar a este cuidado institucionalizado, tales como: ingresos, conciliación entre trabajo y maternidad, cuidado de sus hijos y amor por niños y adolescentes en situación de abandono. A pesar de ser una política pública, esta actividad se basa en la continuidad entre ser mujer y saber cuidar. Desplaza así los significados de una política pública normativizada para el amor y la maternidad.

Palabras-clave: elecciones; amor; abandono; cuidadoras; casas acogedoras.

Introdução

O presente artigo analisa os sentidos das escolhas que as mulheres cuidadoras constroem frente às circunstâncias em que se dedicam às crianças e aos adolescentes que são acolhidos em casas-lar, por razões de abandono, negligência, pais e mães usuários de substâncias psicoativas, em privação de liberdade, portadores de transtornos mentais, moradores de rua. O texto se desenvolve a partir da experiência de mulheres em um cuidado institucionalizado, que é parte de uma política pública voltada para crianças e adolescentes nas casas-lar localizadas no município de Curitiba, Paraná, Brasil, e administradas por organizações não governamentais.

As casas-lar como acolhimento integram projetos de proteção social especial de alta complexidade da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) no Brasil. Elas têm como objetivo garantir proteção integral, como moradia, alimentação, higienização, às crianças e adolescentes que se encontram sem referência, e/ou em situação de ameaça ou de violações, necessitando serem retiradas de seu núcleo familiar e/ou comunitário (Brasil, 2009); 1990).

Essas casas podem abrigar até dez crianças e adolescentes de 0 a 18 anos, e as atividades ficam sob a responsabilidade de uma cuidadora residente que pode morar neste espaço, sozinha ou com sua família (marido e filhos). Para este trabalho de cuidado, mesmo podendo contratar o casal, ou somente a mulher, ou somente o homem, predominam mulheres (Brasil, 2009).

As mulheres cuidadoras desenvolvem cuidados preconizados como: alimentação, higiene e proteção, organização da rotina doméstica e do espaço físico e, em geral, estabelecem uma rotina afetiva personalizada e individualizada com cada criança ou adolescente; o que dá a estas casas, mesmo sendo parte de uma política pública, uma característica doméstica e ideada como um trabalho de amor e de maternidade.

Este trabalho de cuidado é marcado pela feminização e envolve carga psíquica e emocional, para as quais nem sempre cabe a neutralidade exigida em outras profissões. Nas casas-lar, as mulheres acionam ideais de cuidado circunscritos ao papel da mãe, ao amor e aos vínculos do coração que estabelecem com as crianças e adolescentes, ou de um cuidado que reproduz o doméstico, muito mais do que obtido por conhecimento, por formação, ou por suporte de profissionais, já que elas não recebem preparo para este cuidar; mesmo que se trate de uma política pública normatizada.

Elas podem se fragilizar emocionalmente e romper seu vínculo, frente às decepções psíquicas e emocionais, quando há conflitos entre elas e os acolhidos, quando as crianças e adolescentes aos quais elas se apegaram são desacolhidos, ou mesmo quando a cuidadora avalia que a saudade de sua própria família, ou de não poder cuidar de seus filhos é motivo para escolher cessar este trabalho.

Este contexto envolve emoções, afetos, corpos e conflitos, cuidados emocionais, afetivos, físicos e espaciais e desigualdades de gênero, com duplas jornadas, sobretudo nas folgas, quando cuidam de suas próprias casas. Nele torna-se dizível o que não se diz sobre uma sociedade de maternagem como ideal da modernidade e processo contemporâneo, inserido em políticas públicas familialistas.

Dito isto, analisa-se, na sequência, os sentidos que elas constroem para escolher trabalhar em casas-lar e em face de sua dedicação às crianças e aos adolescentes. É uma reflexividade vinda do campo de pesquisa, a partir de suas narrativas e que se considera em três categorias de análise. Cada conteúdo compõe um subtítulo, a saber: (a) sobre escolher e não escolher ser cuidadora, (b) razões afetivas, interesse e responsabilização e (c) o trabalho de cuidar como uma profissão e um trabalho de mãe.

Demarcando aspectos teóricos e práticos do cuidado

Os campos dos estudos de cuidado se constituem por muitas perspectivas (Tamanini, 2018, 2020). A título de localização, ressaltamos, em primeiro lugar, sem minorar as demais abordagens, as que estão ou estiveram preocupadas com a ética do cuidado na voz diferente das mulheres. Estas são construções feministas sobre a diferença que marcaram os anos 80, cujo conteúdo, para cuidado, no seu primeiro momento, se encontra no livro clássico In a Different Voice, de Carol Gillian (1982), conforme analisado por Quagliato e Tamanini (2022). Estas abordagens renderam muitas outras, tanto para a ética do cuidado, como para a problematização da universalização das essencializações da diferença que se constituem, de forma estrutural, no mercado e na cultura, sempre em detrimento da igualdade e do reconhecimento para com as mulheres (Machado, 2022; Comas-D’Argemir, 2017).

O feminismo da diferença, os estudos de gênero e ciência e do cuidado, sobretudo após os anos 80, refizeram as afirmações a respeito do fazer científico e abriram espaços para sentidos, sentimentos, subjetividade, narrativas e valores, reintroduzindo a agência das mulheres, como o lugar da problematização dos sujeitos e do fazer científico (Bandeira, 2008; Paperman, 2019). Ao contrário de reprimir a emoção, como manda uma epistemologia racional e neutra, estes estudos (Jaggar, 1997) mostraram a necessidade que se impunha ao saber científico de reconhecer a relação entre conhecimento e emoção, entre objetividade e subjetividade. O lugar dos sentimentos era importante para o fazer científico e para dar visibilidade às mulheres, nos seus processos de fazer, de conhecer e de constituir “objetos” para a ciência (Longino, 2008). Assim também o era para a moral do cuidado, e se valor, emoção, vida íntima passaram a ser pensados como presentes e necessários aos processos dos saberes e como parte do peso oculto que sombreia a racionalidade científica moderna, embora fosse negado, ao cuidado cabia explicitá-los.

Deste modo, os estudos de cuidado não ficaram ausentes desse processo mais amplo, que ocorria na ciência e foi desencadeado pelas teorias feministas. Estas demonstraram como a teoria moral universalista (Kohlberg, 1981) não possibilitava analisar a moral cotidiana interacional e nem as experiências das mulheres, já que o domínio moral e ideal de autonomia moral das teorias morais, tradicionalmente, considera aspectos do eu moral como um ser desincorporado, desembaraçado, desimpedido, racional e com base nas experiências masculinas (Benhabib, 1995; Gilligan, 1982).

Ao incluir os conteúdos envolvendo sentimentos, conflitos e tensões frente às necessidades e às tomadas de decisões a respeito das práticas de cuidado, as pesquisadoras construíram outros patamares para o processo de conhecer e também assumiram emoções e subjetividade como parte constitutiva do fazer ciência e do cuidar (Molinier e Paperman, 2015; Paperman, 2019).

Esta perspectiva distancia-se da ênfase na objetividade e na neutralidade, características da ciência ocidental (Haraway, 1991; Fox-Keller, 1985; Harding, 1979). Por sua vez, integra as mulheres como protagonistas, antes ausentes da discussão da ciência; o que ocorria por meio de um antropocentrismo sexista do fazer científico e que teve consequências para as teorias do cuidado, sobretudo para a incorporação dos sentimentos (Paperman, 2019).

Gradativamente também desloca-se o mecanicismo clássico que marcou em parte as teorias do cuidado, quando separaram produção e reprodução, ou quando tratavam divisão sexual do trabalho como se fosse a teoria dos papéis sexuais. Nessas dinâmicas, se ligaram outras interdependências às teorias do cuidado, marcadas por aspectos contingentes e situacionais do conviver, conhecer e fazer (Longino, 2008). E pôde-se abordar os desafios heurísticos que se impõem à desconstrução necessária para a eterna vinculação entre maternidade e cuidado.

Esta essencialização da mãe, como construção moderna (Badinter, 1980), que já vai longe no tempo, se incorporada sem contexto e sem senso crítico e sem corresponsabilidades, invisibiliza sentidos que se forjam como se individuais fossem. Ao ressaltar o amor da mãe como constitutivo do ser mulher, escondem-se desafios políticos e de contextos mais amplos, bem como sua repercussão nem sempre positiva na vida das mulheres (Venegas e Hidalgo, 2023; Georges e Santos, 2012).

Marcar a diferença a partir de Gilligan, portanto, resgata em particular as experiências de mulheres e meninas e aponta o masculinismo das teorias. Largamente circunscritas ao estágio pré-convencional de amadurecimento no esquema avaliativo desenvolvido por Kohlberg (1981), a agência feminina era concebida de maneira limitada. Postas neste lugar de não existência teórica, sua não agência era elaborada em relação ao ciclo de vida dos homens, em relação aos quais elas deveriam agir a partir das marcas sexistas.

Neste lugar reflexivo, o campo das discussões políticas a respeito do cuidado reconecta-se aos conteúdos que apontam os desafios à sua democratização, e a complexidade que guarda a naturalização da relação mulher mãe e cuidadora como possibilidade de inserção das mulheres em certos contextos (Tamanini, 2022). Dizer isto é tenso, sabemos, porque os processos de cuidar, estruturalmente, são feminilizados, reduzidos ao privado, estratificados por gênero e marcados pela divisão sexual do trabalho e da classe (Sorj e Fontes, 2012; Falquet et al., 2010; Tronto e Fisher, 1990). Sem contar a linguagem e a representação do que é ser mãe que, indubitavelmente, é apontada no cuidado e que impacta a vida das mulheres em muitos sentidos, inclusive neste campo de pesquisa, cujo contexto é de uma política institucionalizada, mas que nele se atua como se fosse doméstico (Machado, 2022; Venegas e Hidalgo, 2023).

As teorias sobre o cuidado reportadas, portanto, à sua dimensão política filosófica e ética, desafiam a visão de que a moralidade começa quando e onde indivíduos racionais e autônomos confrontam-se mutuamente para executar as regras da vida moral (Benhabib, 1995). Elas trazem a indispensável relação com a autonomia e a independência, na qualidade de um problema que exige reflexividade pessoal, coletiva e do estado (Zirbel e Kuhnen, 2022). E trazem conteúdos como os do afeto, do amor, da necessidade e das vulnerabilidades, com os quais as pessoas têm de lidar o tempo todo, seja nas suas relações com os iguais, seja com os diferentes, ou com aqueles do seu apego. Envolvem vulnerabilidades, amores e decepções, tanto para quem é cuidado, como para quem cuida (Kittay, 1999). Estas perspectivas demonstram que cuidar e reconhecer algo como cuidado não estão livres de riscos (Tronto, 2020).

Quando a moral do cuidado se liga ao necessário olhar sobre o cotidiano, ela exige reconhecer a experiência relacional e coletiva, reconhecer de maneira realista a vulnerabilidade e a dependência, reconhecer o outro concreto em sua história, que é também afetiva e emocional, e reconhecer o caráter pessoal, íntimo e social dos sentimentos (Molinier, Laugier e Paperman, 2005), bem como os desafios para ser cuidador (Araújo, 2018).

Em relação ao cuidado, no campo dos estudos de gênero, as problematizações têm se ampliado a respeito da ética e do trabalho do care (Molinier, 2012), bem como tornou-se mais clara a necessária responsabilização do estado e da sociedade, como sujeitos a quem cabe a identificação de uma necessidade e do saber atendê-la (Le Goff, 2012). Como atividade humana vinculada às emoções e aos afetos e ao mercado, ou ao seu caráter filantrópico, as teorias têm mostrado como o cuidado traz problemas que são fundamentais à democracia e que vão além do dar-se a alguém, como fazem estas mulheres; mesmo se este fazer viabiliza uma forma de cuidado.

Metodologia

Este estudo é de perspectiva qualitativa, que se aprofunda no mundo dos sentidos e das experiências (Deslauriers e Kérisit, 2008) para visibilizar os significados das escolhas que fazem as mulheres como cuidadoras de casas-lar.

O campo de pesquisa foi se definindo com a aproximação da primeira autora, das casas-lar, em 2012, durante o seu mestrado sobre cuidadoras, o que a levou a implementar as “rodas de conversa” coordenando-as até 2015, como professora no Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Paraná/Brasil.

A pesquisa ganhou definição em 2017, com seu ingresso no doutorado em Sociologia da UFPR e, a partir de 2018, foram negociadas as condições para realizar as entrevistas, junto às gestoras de duas organizações não governamentais (ONG), mantenedoras de seis casas-lar.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFPR e, após a autorização das gestoras, a pesquisa foi realizada nas duas instituições. Foram entrevistadas seis cuidadoras, em sala privativa, no local de trabalho e no horário definido por elas; considerou-se como critério de escolha das cuidadoras que elas residissem na casa-lar.

Nesse período, houve a solicitação das gestoras das ONG para que a primeira autora retomasse as “rodas de conversa” realizadas junto às cuidadoras durante o seu mestrado. Este fato foi incorporado ao campo de pesquisa da tese, defendida em 2021, como conhecimento já realizado e anterior ao doutorado, mas também como novo espaço de fala e de discussão a respeito deste trabalho. As “rodas de conversa” agregaram conhecimentos diferentes daquele vindo das entrevistas e permitiram conhecer de maneira menos circunscrita estas experiências, porque as “rodas de conversa” envolviam um contexto de trocas com mulheres diferentes e que fizeram parte das casas-lar, em temporalidades diferentes. Estes conteúdos permitiram conhecer as nuances deste cuidado, seus dilemas, seus desafios, seus sentidos e a necessidade que essas cuidadoras tinham de falar e de serem ouvidas. Para este texto, utiliza-se o conhecimento deste contexto mais amplo e foca-se nas narrativas das entrevistas, com o pleno conhecimento de que estes conteúdos das entrevistas são expressões de vivências que seriam compartilhadas por outras cuidadoras das casas-lar e que, portanto, como o é em pesquisa qualitativa, também permitem certo grau de generalização.

As participantes são apresentadas na sequência, com seus nomes fictícios, assim como elas os escolheram.

1. Roberta, 30 anos, cor branca, solteira, vivia com seu filho de seis anos na casa-lar. Nas suas folgas como cuidadora compartilhava uma casa alugada com sua irmã, até seu casamento, marcado para 2019. Formada em técnica de administração, estava vivendo a sua primeira experiência como cuidadora em casas-lar.

2. Sofia, 55 anos, cor parda, casada e mãe de seis filhos adultos e casados. Tinha 11 netos, possuía casa própria e cursou até o quarto ano do antigo primário. Teve experiências como faxineira e auxiliar de cozinha em restaurante. Não se capacitou para cuidar de crianças, iniciou como faxineira na casa-lar e, após alguns meses, passou a desempenhar a função de cuidadora.

3. Roseli, 58 anos, cor branca, divorciada, cursou até o 3º no de magistério, mas não o concluiu devido ao casamento e à maternidade. Trabalhou na confecção de roupas e como cuidadora em casa-lar. Morava sozinha em casa alugada e tinha uma filha de 34 anos.

4. Flor, 44 anos, cor branca, casada, possuía casa e carro próprios. Morava com o marido e com dois dos três filhos (25, 17 e 12 anos) na casa-lar. Cursou até o ensino médio, mas não o concluiu. Trabalhou como confeiteira e doméstica. Fez curso de capacitação para educadores(as) de crianças na Igreja Batista e Assembleia. Foi voluntária durante seis anos na casa-lar, onde trabalhava atualmente.

5. Luciana, 38 anos, cor parda, morava com a única filha de 18 anos na casa-lar. Possuía carro e casa próprios. Completou o ensino médio, trabalhou como segurança durante seis anos e como copeira.

6. Maria, 45 anos, cor parda, casada, morava na casa-lar com o marido e com a filha mais nova de 17 anos. Relatou ter casa e carro próprios. Trabalhou como babá, doméstica, costureira, vendedora de roupas, sócia de um restaurante, funcionária de sorveteria e lanchonete. Não fez cursos de formação para ser cuidadora e trabalhava na casa-lar há seis anos.

Cuidadoras e sentidos de suas escolhas

a) Sobre escolher e não escolher ser cuidadora

Parece ser muito estranho anunciar sentidos de escolhas e falar a respeito de quando não se escolhe, mas este é um tema relevante, dadas as circunstâncias em que as mulheres vivem suas decisões, como elas leem sua realidade e que aspectos elas consideram que são pessoais e próprios de um contexto individual, mas que são levados em conta na tomada de decisões, bem como mostra-se rico para visibilizar como atua a instituição frente à necessidade de contratação de cuidadoras.

Sofia, Roberta e Roseli expressam razões econômicas como importantes à tomada de decisão, ao mesmo tempo em que consideram elementos tais como a possibilidade de cuidar dos próprios filhos durante o trabalho, a experiência anterior com crianças acolhidas em casas-lar, a proximidade entre trabalho e moradia e a empatia por crianças institucionalizadas e separadas temporariamente da família de origem. E porque “não precisa ser muito ensinado”, já que se pensa que se aprende no cotidiano e que uma mulher sabe fazer coisas cotidianas como o faz em sua casa.

A atividade de cuidadora em casas-lar, sob este ponto de vista, se apoia na continuidade entre ser mulher e saber cuidar, esperando que as experiências de cuidar como mães as preparem para o trabalho de cuidadoras (Nogueira e Costa, 2005). Revela a já conhecida e estruturante naturalização do trabalho reprodutivo como necessariamente feminino (Badinter, 1980) e que segue hoje sendo reconhecido socialmente como uma “obrigação” das mulheres (Melo, Considera e Di Sabbato, 2016). Essa continuidade mulher/mãe/cuidadora e a falta de especialização para o trabalho de cuidadoras em casas-lar dificultam o reconhecimento da necessidade de qualificação (Guimarães, Hirata e Sugita, 2011) e não dão amparo para as tensões e conflitos vividos nas relações afetivas e emocionais. Escancaram também como as normativas preconizadas nos documentos, que implicam formação de nível médio e capacidade específica, bem como a desejável experiência em atendimento a crianças e adolescentes (Brasil, 2009), não são levadas em conta na contratação.

A necessidade de ter uma fonte de renda e de experimentar uma nova atividade profissional que não envolvia, no primeiro momento, a compreensão sobre o que era ser uma cuidadora, levou Sofia, por exemplo, a aceitar a proposta da gestão de deixar a faxina para ser cuidadora. Assim, ela vivenciou sua primeira experiência nessa atividade. “Pela necessidade, porque eu preciso, né? […]. Agora, o que me mantém aqui são as crianças” [Sofia]. A experiência de Sofia como cuidadora modificou sua forma de pensar o acolhimento institucional e lhe permitiu valorizar o trabalho de cuidar em casas-lar, motivando-a a permanecer nessa atividade durante um ano e meio, considerada a data da entrevista. Ela reforça que foi sua relação com as crianças que a motivou a permanecer. “Eu achava que as mães maltratavam as crianças, que judiava, sei lá, eu tinha essa ideia, depois com a convivência eu vi, né, que a mãe não judiava, daí eu comecei a dar valor, entendeu?”.

Roberta afirma o fator renda como importante, mas a ele se associa o fato de que este trabalho na casa-lar, com sua característica de casa e de doméstico, lhe permitia conciliar os cuidados com um filho de seis anos. Era sua primeira experiência como cuidadora remunerada e viu na casa-lar uma maneira de passar mais tempo com seu filho, de poder acompanhá-lo nas tarefas escolares, levar ao médico, dentista, além de assistir filmes infantis com ele, durante o período em que as crianças da casa-lar estavam na escola. A escolha de Roberta foi pelo tipo de trabalho e não pelo trabalho em si. Recebia melhores salários no emprego anterior, mas não se sentia bem, porque não podia acompanhar o desenvolvimento escolar do filho e não tinha tempo livre para ficar com ele durante o dia; quem cuidava era sua irmã. Sua decisão pela casa-lar guarda um senso de inteligência reflexiva diante das situações e comporta dimensões analíticas e relacionais que se expressam no deslocamento da perspectiva a respeito do que é “justo” para o que é “importante” no imediato. Ela considera elementos morais, vindos das exigências do afeto e da convivência com a inserção de um filho e dela própria em uma rede de cuidados; sem isto, não ficaria.

Isso implica reconhecer relações possíveis e fugir dos determinismos da biologia (Kuhnen, 2010), ao mesmo tempo em que envolve riscos e perdas (Tronto, 2020), dada a exigência para que mulheres assumam o exercício da maternidade, conforme apontado por Kestering, Quagliato e Tamanini (2022), mesmo em contexto pandêmico.

Autoras como Fontoura e Araújo (2016), Urrutia, Faúndez e Contreras (2017) e Machado (2022) discutem a reorganização da vida doméstica em função da ordem profissional ou vice-versa. Roberta percebeu, no contexto das casas-lar, uma possibilidade de acompanhar o desenvolvimento do único filho nas atividades escolares e nas atividades lúdicas, principalmente durante o período em que as crianças acolhidas permaneciam na escola. Tal possibilidade a animou a trabalhar nesse contexto que lhe permitia conciliar maternidade e carreira profissional, um lugar ao qual se somava o benefício afetivo, social e pessoal.

Esses fatores não são incomuns na vida das mulheres, conforme podemos ver nas análises de Araújo e Scalon (2005); as autoras mostram como elas fazem arranjos com o tempo de trabalho remunerado e a casa, buscando outras compensações, ainda que com perdas de direitos e salários.

Na narrativa de Roseli, o aspecto econômico e o fato de morar perto da casa-lar são fatores motivacionais, porém estes aspectos fazem parte de uma dinâmica mais complexa, relativa também à dificuldade das casas-lar de encontrar cuidadoras. Isso faz com que mulheres interessadas tenham a possibilidade de escolher a melhor localização e o melhor salário. Além disso, existe o seu interesse por crianças em situação de vulnerabilidade.

Há, nessas trajetórias, certas circunstâncias que marcam as decisões a respeito de aceitar ou não trabalhar em casas-lar, tais como: necessidade econômica da cuidadora; necessidade de cuidadora na casa-lar, ter certa habilidade para este tipo de cuidado, confiança e empatia pelas crianças; e a possibilidade de cuidar dos próprios filhos no local de trabalho.

b) Razões afetivas, interesse e responsabilização

Luciana, Maria, Roseli e Flor desejavam fazer a diferença na vida das crianças acolhidas na instituição; relatam que tinham compaixão, empatia por crianças em situação de vulnerabilidade social e se sentiam motivadas para o trabalho de cuidado em casas-lar. Mas, além destes aspectos, existem outras relações envolvidas e que jogam peso na tomada de decisão a respeito das escolhas.

Luciana teve dificuldades para conciliar o trabalho com a maternidade, não pôde se manter em “bons empregos”, porque não conseguia conciliar o trabalho com os horários da creche onde deixava a filha quando pequena; estava com 18 anos na ocasião da entrevista. O uso do tempo em casa e fora de casa, a falta de infraestrutura de creches públicas tornaram-se um empecilho ao seu crescimento profissional, aspecto também apontado por Sorj e Fontes (2012), para outros contextos. Por isso, Luciana se viu obrigada a mudar de emprego muitas vezes e, não podendo contar com uma rede de solidariedade familiar, como irmã e mãe, que é bastante acionada no Brasil, ela se responsabilizou pelos cuidados da casa, da família e da filha. Deste modo, também possibilitou ao seu marido se especializar profissionalmente, postergando o próprio desejo de construir uma carreira profissional. Na época, naturalizou-se para o casal que o trabalho reprodutivo estava associado a um dos sexos, a mulher. Ela fez um arranjo que manteve a diferença nas jornadas de trabalho reprodutivo e produtivo e comprometeu sua existência para além da casa, em sua profissão e cidadania pública (Pinheiro, 2016). Sua narrativa, acerca de como se sente e como fez nos leva a considerar de que crises e impactos positivos e negativos vivem muitas mulheres, no exercício da maternidade e de suas exigências, conforme analisam Venegas e Hidalgo (2023).

No relato de Luciana, contudo, há o aspecto do afeto pelas crianças como um sentido de reorganização das razões de sua inserção na casa-lar. Ela diz que, percebendo as dificuldades e necessidades das que estão separadas de suas famílias biológicas, entendeu que podia fazer algo para melhorar sua vida. Segundo narra, ela se descobre como profissional do cuidado durante seu trabalho na casa-lar. Desde a primeira visita à casa-lar, foi “[…] um amor à primeira vista: eu gosto muito […] tem uma coisa dentro de mim, que eu morro de compaixão, de empatia, pelas pessoas, pelas crianças quando elas chegam para o acolhimento, eu tenho muito essa coisa de acolher”.

Esta visão de poder mudar a vida das crianças também aparece na narrativa de Roseli, de Maria e de Flor. Roseli afirma que, além da necessidade financeira, que era uma necessidade imediata, sempre se interessou por crianças em situação de vulnerabilidade social e que precisavam ser acolhidas em instituições. Diz que o sonho de poder trabalhar como cuidadora a motivou a aceitar o trabalho em uma casa-lar, permanecendo durante um ano e quatro meses. Roseli pensava que poderia melhorar a vida de crianças e adolescentes que, por diversas razões, não puderam permanecer junto da família natural ou de origem. Ela se preocupava com essas crianças, com o sofrimento e com a vida que levavam e não se tranquilizava somente com a garantia de direitos, tais como os de moradia segura e protetiva, oferecida pelas instituições, com as refeições diárias e com os serviços de saúde. Roseli ressaltou os sentimentos de solidariedade e de amor para com a população de crianças e adolescentes acolhidos em instituição e agregou suas lutas por essa causa social a uma forma de trabalho de cuidado remunerado em casas-lar. Estes aspectos nos reportam para a necessidade de cuidados como coletividade, tais conforme analisados por Zirbel e Kuhnen (2022).

Maria enfatizou “amar trabalhar com crianças” e se diz “mãe coruja”. Aos 18 anos de idade, ficou responsável pelo grupo do coral de crianças, entre 9 e 12 anos, na escola dominical da igreja que frequentava; a convite de Luciana, que também participava do grupo do coral, foi conhecer a instituição. Maria se interessou de imediato, candidatando-se para a próxima vaga que abrisse para o cargo, no qual se mantém até hoje. Maria relata como se sentiu ao conhecer o trabalho: “Daí ela me trouxe aqui, eu vim visitar e me apaixonei, nunca mais quero sair daqui”.

Luciana, Roseli, Maria e Flor relataram o desejo de cuidar de crianças e adolescentes e poder fazer uma diferença na vida deles. Elas sentem empatia, que permite que a pessoa se coloque no lugar do outro, entenda seu semelhante e possa sentir compaixão por ele; sentir o que o outro sofre. Elas não estavam se referindo aos cuidados a familiares ou às pessoas conhecidas com as quais possam já existir vínculos de afeto e cuidado; elas se referiam ao “cuidar de” outros, conforme analisa Tronto (2007), a crianças que não conheciam e que sofreram violências, negligência e outros tipos de abusos e foram acolhidas por ONG como forma de proteção social e cuidado (Brasil, 2009).

Retomando as motivações, para além da dimensão econômica, que motivou Sofia e Roberta a serem cuidadoras em casas-lar, as narrativas de Roseli, Luciana, Maria e Flor mostraram sentimentos de compaixão e empatia com o sofrimento das crianças que se encontram em casas-lar por terem sofrido diferentes tipos de violências e abusos (Missagia, 2020).

Nessa perspectiva, algumas cuidadoras se identificaram com a vulnerabilidade e a dependência dessas crianças e assumiram o trabalho de cuidado atribuído tradicionalmente às mulheres. A identificação com os grupos de crianças vulneráveis e dependentes e a percepção de que somos todos dependentes de cuidados é uma forma de compreender a motivação de Luciana, Roseli, Maria e Flor para a entrada em casas-lar, quando as participantes referiram empatia pela situação vivida por essas crianças e adolescentes (Tronto, 1997). Estas interdependências de razões, contudo, não são só privadas, tampouco só pessoais; trata-se de relações que integram laços com muitos lugares, sentimentos e expressões de si. Assim como se ligam às interdependências com os sofrimentos contingentes e situacionais e aos sentimentos (Longino, 2008).

c) O trabalho de cuidar como uma profissão e um trabalho de mãe

Este é o último aspecto que ressaltamos neste texto, e é relativo à tensão que se coloca entre a profissão de cuidadora e as necessidades impostas por um cotidiano doméstico que remete ao amor de mãe. O termo “profissão” foi utilizado pelas cuidadoras, não para se afirmarem como profissionais, mas para explicar que não é possível comparar o que fazem com outra profissão. Para elas, um dos aspectos que dificulta a definição de sua atividade como uma profissão consiste no fato de que o trabalho de cuidar exige elementos como sentimentos e afetos, capacidade de ter empatia, disponibilidade para ouvir e para se envolver em reflexões sobre os mais diversos assuntos, contato visual e físico com o corpo do outro, durante um abraço ou durante o banho, além do contato com os medos e com as dores corporais e psíquicas de uma criança, aspectos que nem sempre existem em outros campos profissionais.

Além do mais, esse trabalho exige uma convivência de 24 horas, incluindo fazer refeições juntos e assistir programas na televisão juntos, ocupar os mesmos espaços durante o dia e a noite; as muitas trocas às vezes acalmam e outras desestabilizam, porque nem sempre as crianças e adolescentes correspondem.

Assim, Maria, Flor e Sofia explicaram que trabalham por “amor” pelas crianças. Maria enfatiza a diferença entre um trabalho profissional exigido por uma empresa: “E se a gente for levar por esse lado, a gente não fica aqui - e eu falo por experiência própria, não fica”. “[…] As emoções fazem parte das relações entre quem cuida e quem é cuidado” e os conflitos também; e isto demanda administrá-los (Soares, 2012). Esses são alguns dos aspectos do trabalho de cuidado que Maria viu como um trabalho diferente. E completou: “Se você não tiver amor, você não fica, porque você vai dizer: ‘que desaforo, eu poderia passar minha noite tranquila. Meus filhos são grandes, não dão mais trabalho’ ”.

Não há uma concordância nas opiniões, mas na forma de viver neste cuidado (Laugier, 2008) que se encontra entre Maria, Flor, Sofia e Roseli sobre o uso da palavra “amor” para definir o trabalho que realizavam nas casas-lar. Na pesquisa que Molinier (2014: 28) realizou com cuidadoras, a palavra “amor” significa o trabalho do cuidado possível, corresponde a “trabalhar bem” e “trabalhar com o coração”; por isso, a autora não descartou a palavra “amor” para que pudesse apreender como as mulheres percebiam o trabalho que realizavam.

Sofia apresenta a dimensão de gostar do que você está fazendo ali. “Além do amor, é gostar do que você tá fazendo ali, não pelo dinheiro, não pelo salário, entendeu?” Sobre o aspecto salarial, ela afirma que não é possível fazer este cuidado e ficar pensando em sua remuneração.

Flor ressaltou que sua família tem estabilidade financeira, possui bens como casa e carro próprios e que não depende do salário de cuidadora, salário não é sua motivação. Talvez este ponto pese menos na vida de Flor porque ela tem recursos, o que lhe permite afirmar mais livremente que o faz por amor. Ela diz: “Olha, eu acredito que fiz por amor. Não acredito que a gente faça pelo financeiro. Não sei, algo dentro da gente diz que isso é uma missão, a gente tem que fazer”. Ela também estende este entendimento para as demais cuidadoras quando afirma: “Se você olhar as cuidadoras daqui nós temos a nossa vida fora daqui nós estamos estabilizadas, temos o nosso chão” “[…] temos casa, carro, todas têm”. “[…] É um amor que a gente tem”. Sofia e Flor associam o trabalho de cuidar ao amor e o dissociam do dinheiro, ou seja, separam a esfera afetiva da econômica do trabalho de cuidar. Embora Flor também traga algum conflito, quando ressalta que o tempo dedicado às crianças acolhidas na casa-lar é maior do que o tempo dedicado aos próprios filhos, que no caso das casas-lar tem o agravante de que os filhos estão no mesmo espaço físico. “A gente doa a nossa vida, não estamos aqui pelo financeiro, os nossos filhos nos doam também, porque os nossos filhos, a atenção que eles têm da gente é mínima”.

Para discutir a questão do amor e do dinheiro recorremos Zelizer (2011), que analisa a economia do care e ressalta como pesquisadoras feministas “[…] unem esforços para romper as dicotomias tradicionais de mundos hostis que equivocadamente dividem transações econômicas e relações pessoais íntimas” (Zelizer, 2011: 247).

As atividades de cuidado surgem nas narrativas como se esse trabalho não pudesse ser pago, assemelhando-se ao que ocorre na esfera privada, envolvendo a família e os filhos. Contudo, o pagamento do trabalho de cuidar não deteriora as relações afetivas e permite dar lugar aos sentimentos, possibilitando relações menos assimétricas (Zelizer, 2012).

As narrativas de Luciana, Maria, Roberta e Roseli não associam o aspecto econômico com as relações afetivas, mas mostram, por sua vez, como o trabalho é extenuante. Flor diz: “a gente doa, é um trabalho de doação 24 horas, a gente doa, é uma forma de doação, a gente doa a nossa vida”. Sofia, mesmo que revele empatia pelas histórias ouvidas das crianças e adolescentes, e como resposta dedica integralmente seu tempo e energia, também expressa o cansaço. “Às vezes, nem sentar para comer eu sento, não me cuido; para mim, o tempo que tenho é com eles. Eu acho que posso descansar a partir do momento em que eles estão todos dormindo”.

Esta realidade é complexa, porque este envolvimento não é tratado como se faria em profissões nas quais existem tempos de trabalho e separação entre vida privada e local de trabalho. Como diria Molinier (2014), o que torna suportável o trabalho neste contexto é sua inscrição num contexto de compartilhamento de proximidade, de intimidade e de calor humano. Contudo, conforme percebe Flor, é preciso estabelecer algum descanso e algum distanciamento para cuidar dos seus: “Porque se você ficar 24 horas, você perde os teus, porque aí você faz uma coisa inversa, você abraça os outros e você perde os teus; então, eu estipulei uma rotina para mim”. Flor estipulou o horário máximo das 20:00h para que as crianças estivessem deitadas para dormir e ela pudesse dedicar atenção à sua família.

Considerações finais

Os estudos de cuidado têm demonstrado como andar por este campo complexo, muitas vezes, impõe desvencilhar-se de uma ordem simbólica e representacional negativa, marcada pela compreensão de que o cuidado sempre necessita acionar a abnegação feminina, conforme argumenta Noddings (1984) como dom de si e característica apriorística do feminino. Contudo, observa-se que, para além dos impactos negativos desta estruturação do cuidado, para que uma cuidadora se mantenha em uma casa-lar, ela reconhece a importância do amor, do afeto e da necessária ligação afetiva com as crianças. A natureza desta ligação é carregada de interdependências e, sem ela, mesmo sendo tensa e ambígua, estas mulheres afirmam que não poderiam ser cuidadoras. O “amor”, nestas narrativas, se destaca sobre um pano de fundo que se narra a partir das vozes diferentes deste cuidar. E exige entrar neste mundo das cuidadoras, para se obter a compreensão do seu significado (Molinier, 2014), que não está estabelecido pela crítica apriorística a este modo de fazer e de ser maternal.

Essas decisões e implicações se constroem, tanto da parte da instituição quanto da parte da cuidadora, como resposta às necessidades concretas da casa-lar; e, em geral, não se trata de provimento de profissionais com conhecimento preconizado e ensinado. Estar neste lugar, com o envolvimento emocional e afetivo que ele exige, traz satisfação, mas também traz dúvidas, sentimentos de angústia e de impotência, como desafios diários.

Nas palavras de Garrau e Le Goff (2010), ele caracteriza-se justamente pela ausência de um núcleo que se reduza a uma atitude ou disposição, sendo uma prática complexa que envolve diferentes conteúdos e articulações de uns com os outros. Sendo assim, o cuidado traz desafios à autonomia, à liberdade, à justiça e à interdependência (Kittay, 2011), e nem sempre quem se dedica a cuidar consegue resolver o dia a dia, de maneira a lhe trazer equilíbrio e paz.

Como política pública, um cuidado que se apoia na continuidade entre ser mulher e saber cuidar, esperando que as experiências de cuidar como mães as preparem para o trabalho de cuidadoras, também forja dificuldades ao seu reconhecimento profissional. Essa continuidade e a falta de especialização dificultam o reconhecimento social, familiar e das responsabilidades do estado. Faz-se, pois, necessário reconhecer estes conteúdos profissionais, para inserir o cuidado na perspectiva da justiça, prevendo descanso, renda, formação, apoios e suportes emocionais, também para a cuidadora.

Por último, devemos dizer que a institucionalização deixou muitas marcas na vida daqueles que viveram essa experiência, sendo um tema de debate entre pesquisadores da área que concordam e aqueles que discordam sobre essa forma de acolhimento. Para muitas crianças e adolescentes, porém, a instituição ainda é a melhor alternativa para superar a história de violência vivida, entendendo que nem sempre o “lugar institucional é um lugar ruim, como nem sempre a família é o lugar de cuidado e proteção” (Arpini, 2003: 72).

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Recebido: 16 de Fevereiro de 2023; Aceito: 27 de Abril de 2023

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