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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.100 Lisboa dez. 2022  Epub 18-Fev-2023

https://doi.org/10.7458/spp202210025945 

Artigo Original

Inserções, identidades e competências dos sociólogos em Portugal

Professional placements, identities and skills of sociologists in Portugal

Insertions, identités et compétences des sociologues au Portugal

Inserciones, identidades y competencias de los sociólogos en Portugal

Pedro Abrantes1  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, administração do projeto, validação, visualização, redação do rascunho original, redação
http://orcid.org/0000-0001-9572-9563

Rui Banha2  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, administração do projeto, validação, visualização, redação do rascunho original, redação
http://orcid.org/0000-0002-4180-0966

Madalena Ramos3  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, administração do projeto, validação, visualização, redação do rascunho original, redação
http://orcid.org/0000-0002-3117-4498

Alexandra Aníbal4  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, validação, visualização, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0003-4834-2344

Paula Urze5  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, validação, visualização, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0003-0705-0302

1 Universidade Aberta, Portugal, E-mail: pedro.abrantes@uab.pt

2 DGEEC - Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (MCTES/ME), Lisboa, Portugal, E-mail: rui.banha@dgeec.medu.pt

3 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal, E-mail: madalena.ramos@iscte-iul.pt

4 Câmara Municipal de Lisboa/Direção Municipal de Cultura, Lisboa, Portugal, E-mail: alexandra.anibal@cm-lisboa.pt

5 NOVA School of Science and Technology, CIUHCT, Lisboa, Portugal, E-mail: pcu@fct.unl.pt


Resumo

O artigo procura contribuir para o conhecimento e a reflexão acerca das identidades e representações profissionais dos sociólogos per se e na relação com os outros profissionais, no quadro das dinâmicas organizacionais. Para isso, retoma algumas questões de fundo sobre o desenvolvimento deste campo em Portugal, analisando as respostas ao inquérito “Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia”, lançado em 2019. Explora, assim, o efeito de diferenças geracionais, de percurso formativo e de inserção profissional (dentro e fora da academia) no posicionamento dos indivíduos, em termos de identidade e representações, nomeadamente quanto ao que significa ser sociólogo.

Palavras-chave: diplomados em Sociologia; formação; profissão; identidade; práticas; representações.

Abstract

This article aims to contribute to the knowledge and reflection on the professional identities and representations of sociologists per se and in their relationship with others professionals within the framework of organizational dynamics. Some key issues on the development of this field in Portugal are addressed through the analysis of the responses to the “Professional Skills and Practices of the Graduates in Sociology” survey, which was launched in 2019. The effects of generational differences, training path and professional placement (working within or outside the academy) on identity and representations, namely of what it means to be a sociologist, are explored.

Keywords: graduates in Sociology; training; profession; identity; practices; representations.

Resumé

L’article vise à contribuer à la connaissance et à la réflexion sur les identités et les représentations professionnelles des sociologues per se et dans leur relation avec d’autres professionnels dans le cadre des dynamiques organisationnelles. Pour cela, il reprend quelques questions fondamentales sur le développement de ce domaine au Portugal, en analysant les réponses à l’enquête “Compétences et pratiques professionnelles des diplômés en sociologie”, lancée en 2019. Ainsi, il explore l’effet des différences générationnelles, du parcours de formation et de l’insertion professionnelle (au sein ou en dehors de l’académie) dans le positionnement des individus en termes d’identité et de représentations, à savoir dans ce que signifie être sociologue.

Mots clés: diplômés en Sociologie; formation; métier; identité; pratiques; représentations.

Resumen

El artículo busca contribuir para el conocimiento y reflexión sobre las identidades y representaciones profesionales de los sociólogos per se y en su relación con los demás profesionales, en el marco de las dinámicas organizacionales. Para ello, retoma algunas preguntas fundamentales sobre el desarrollo de este campo en Portugal, analizando las respuestas a la encuesta “Competencias y Prácticas Profesionales de los Diplomados en Sociología”, lanzado en 2019. Así, explora el efecto de diferencias generacionales, recorridos formativos y de inserción profesional (dentro o fuera de la academia) en el posicionamiento de los individuos en relación con su identidad y representaciones, en particular sobre lo que significa ser un sociólogo.

Palabras-clave: graduados en Sociología; formación; profesión; identidad; prácticas; representaciones.

Introdução

O que faz um sociólogo? O presente artigo pretende contribuir para compreender as identidades e representações profissionais dos sociólogos per se e na relação com os outros profissionais, no quadro das dinâmicas organizacionais em que se encontram integrados. Explora-se, portanto, o fazer sociologia, na sua dupla aceção: de quais as inserções e práticas profissionais dos sociólogos; e de quais as formações e competências que lhes são específicas. Numa perspetiva sociológica em que socialização, práticas e identidades estão intimamente associadas, ambas as noções estão interligadas, ainda que possam apresentar diferenças.

A partir de uma revisão da literatura sobre o tema, o artigo apresenta uma análise de dados do inquérito “Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia”, desenvolvido pela Associação Portuguesa de Sociologia (APS) e pela Associação Portuguesa de Profissionais em Sociologia Industrial, das Organizações e do Trabalho (APSIOT), tendo as respostas sido recolhidas entre o final de 2019 e o início de 2020 (Ramos, 2021). Além de complementar estudos anteriores sobre as inserções profissionais dos diplomados em Sociologia, este inquérito permite-nos explorá-las, de forma articulada, em dimensões como o percurso formativo, o associativismo, a identidade profissional, as funções desempenhadas, o reconhecimento organizacional, as competências mobilizadas e as representações sobre o que é ser sociólogo.

O presente artigo é composto por: uma discussão inicial de estudos anteriores; uma descrição metodológica; uma apresentação global dos resultados obtidos; uma exploração dos dados à luz de hipóteses levantadas na bibliografia, nomeadamente, relativas a diferenças geracionais, identitárias e institucionais no seio da sociologia portuguesa; e, por fim, algumas notas conclusivas.

Enquadramento

Alimentado pelas ferramentas sociológicas de reflexividade e de investigação, em Portugal, o debate sobre a identidade e as competências dos sociólogos acompanha o projeto sociológico desde o início, estando presente em estudos influentes sobre o desenvolvimento da disciplina (Nunes, 1988; Costa, 1988 e 2004; Pinto, 2004, 2007 e 2010; Machado, 2006; Neto, 2013; Silva, 2016; Lopes et al., 2020), assim como em análises sobre as inserções profissionais dos respetivos diplomados (Machado, 1996; Mauritti e Costa, 2014; Ramos et al., 2018). Em ambos os casos, a escala nacional tem sido a prevalecente, ainda que referências comparativas a estudos realizados noutros países e a diferenças regionais surjam amiúde. Não cabendo fazer uma cartografia sistemática destes estudos, exploramos aqui dois tipos de questões centrais e estruturantes, dos quais resultam algumas hipóteses de investigação que orientam a análise e discussão dos dados empíricos.

Um primeiro tipo de questões tem a ver com a própria ideia de desenvolvimento e mudança social. Apesar do carácter ainda jovem da sociologia no nosso país, decorrente da repressão que sofreu por parte do Estado Novo, tem sido comum a distinção entre um período fundacional (anos 1960-1980), mais centrado na formação académica, e um período de consolidação (décadas seguintes), no qual se assistiu a um alargamento exponencial do número de diplomados e à sua inserção em contextos institucionais e profissionais bastante diversificados, com prevalência da administração pública, tanto central como local (Machado, 2006; Pinto, 2007). Este movimento colocou desafios à identidade profissional dos sociólogos, entre os quais os riscos de fragmentação, falta de regulação, perda de credibilidade ou tensão entre formação e profissionalização.

Alguns autores mais recentes (Lopes et al., 2020) têm sugerido a existência de um terceiro período (de 2008 em diante), marcado por uma certa estagnação, resultante de políticas de austeridade que tenderam a limitar a contratação pública e o próprio papel do estado-providência, bem como das mudanças ocorridas no ensino superior, com o alargamento de graduações e pós-graduações interdisciplinares, mais focadas em responder a necessidades funcionais do mercado de trabalho - como a gestão de recursos humanos, os serviços sociais, as ciências políticas, entre outras - geradoras de novas filiações, identidades e competências profissionais.

Um segundo tipo de questões tem a ver com a diferenciação dentro da própria “cultura profissional” dos sociólogos. Costa (1988) reconhece a existência de um modelo de “dissociação” entre ciência e profissão, ao qual contrapõe um modelo de “associação”, numa tensão cuja atualidade Silva (2019) explorou num estudo sobre o tema, em que nota como as referências a uma “sensibilidade sociológica” comum tendem a ser o principal elemento agregador dos diplomados neste campo.1 Na mesma linha, autores como Fernandes (2004) ou Pereira (2007) assinalaram a importância de um modelo de articulação, sem o qual a sociologia ficaria em risco, tanto na sua vertente científica como profissional.

Também numa perspetiva diacrónica da sociologia em Portugal, Pinto (2010) considerou que o “êxito global” da mesma se ficou a dever à articulação virtuosa entre quatro polos de atividade: problematização teórica (atualização teórica e discussão sistemática entre pares no âmbito científico); investigação observacional (estudos teórica e metodologicamente informados de situações sociais concretas); reflexividade (interrogação [auto-]crítica sobre os pressupostos e fundamentos das opções teóricas e metodológicas da atividade desenvolvida); e profissionalização (sobredeterminação pelos requisitos da intervenção social em contextos objetivos circunscritos e em interação com destinatários específicos).

Numa outra perspetiva, Machado (2006) sublinhou a existência de dois “geradores institucionais” da investigação sociológica, baseados em diferentes universidades e centros de investigação: um “sociocultural” e que está mais orientado pelo racionalismo científico, característico sobretudo das instituições lisboetas; e outro “político-social”, mais fundado na teoria crítica e apanágio da Universidade de Coimbra (UC), secundada por outras instituições que mais recentemente abriram cursos e departamentos de Sociologia. Carreira da Silva (2016) apresenta igualmente esta como a principal diferença interna no pensamento sociológico português, embora refira a existência de uma terceira linha, de menor dimensão, centrada na “sociologia histórica”, com maior expressão na Universidade Nova de Lisboa (UNL) e na Universidade de Évora (UE). Será pertinente explorar se estas diferentes “escolas de pensamento” têm implicações numa certa segmentação das identidades, competências e inserções dos sociólogos em Portugal.

Cabe referir que, embora a história da sociologia portuguesa se revele bastante singular, existem traços comuns com o observado noutros países (Llavador, 2014; Larsson e Magdalenic, 2015; Diez, 2017; Fernández-Esquinas, 2019; Siza, 2019; Borghini, 2020), entre os quais: a forte associação entre o desenvolvimento da profissão e as transformações sociais, políticas e económicas que têm marcado a modernidade, como a expansão do estado-providência e da sociedade civil; os desafios a este movimento, nas últimas décadas, resultantes de políticas de corte neoliberal ou até “iliberal”, em alguns países; as pressões para a especialização interna e a pluralidade de representações internas da disciplina (frequentemente animada por rivalidades entre sociólogos e entre instituições); uma certa dificuldade em entender a sociologia simultaneamente enquanto ciência e profissão; ou a sua relação complexa com a difusão recente de formações mais “funcionais” e orientadas para o mercado de trabalho. Estas questões poderão ser vistas como sintomas de uma identidade sempre em crise, mas também de disposições “autorreflexivas” próprias da modernidade e que promovem a vitalidade desta área científica e profissional.

A este propósito, vale a pena refletir sobre o modelo proposto por Burawoy (2005), no sentido em que assume uma pluralidade entre “tipos de sociologia” - “académica”, “crítica”, “aplicada (policy)” e “pública” - segundo os modos de relação com o conhecimento, mas também a audiência para quem se orienta. Embora se possa entender esta tipologia como especialmente adequada à sociologia universitária, uma leitura mais ampla pode ser útil, não apenas porque ajuda a compreender a sociologia num quadro de pluralidade (no qual os sociólogos, aliás, se distribuem pelos vários quadrantes, com trajetórias ao longo do tempo, em virtude de condições estruturais e institucionais, bem como da agência individual e coletiva), mas também porque permite compreender como estes vários tipos se têm relacionado, em diferentes contextos, em tensão e interdependência, confrontando-se e estimulando-se, contribuindo para o desenvolvimento da disciplina, sem omitir os riscos de fragmentação e de enfraquecimento da imagem pública.

Há ainda dois outros tipos de questões estruturantes que, face às limitações editoriais, prevemos discutir em futuro artigo, mas que consideramos relevante desde já assinalar. O terceiro tipo relaciona-se com o associativismo dos sociólogos portugueses, na sua articulação com as práticas e identidades profissionais dos mesmos, e no escrutínio sobre o trabalho desenvolvido pelas associações que os representam (APS e APSIOT), designadamente na capacidade de resposta à diversidade de papéis, funções e inserções profissionais dos sociólogos e ao estabelecimento de pontes entre os seus vários subcampos profissionais. O quarto tipo relaciona-se com a diversificação de papéis profissionais dos sociólogos e do alargamento das suas áreas de intervenção (extra-académicas), bem como das condições e dos determinantes organizacionais de exercício profissional, geradora de desafios relativos à epistemologia da profissão, nomeadamente: as condições sócio-organizacionais e cognitivas do desempenho, incluindo as margens de autonomia; as relações entre reflexividade, profissionalização e conhecimento sociológico; e a diferenciação do uso do conhecimento e da participação na produção escrita da disciplina.

Tendo em conta a estrutura conceptual enunciada nos dois primeiros tipos de questões e a miríade de aspetos discutidos em estudos anteriores sobre o tema, será, pois, relevante explorar os dados recolhidos através do inquérito realizado em 2019, nomeadamente antecipando se as inserções, identidades e competências assumidas pelos respondentes permitem constatar diferenças significativas entre “gerações”, entre cientistas e profissionais, entre os que assumem exercer a profissão de sociólogo e os que não consideram exercê-la, entre associados e não associados, entre instituições de formação ou entre representações da própria sociologia.

Método

Os estudos dedicados à prática profissional em sociologia têm assentado, por um lado, em dados de estatísticas oficiais, como sejam o recenseamento da população ou os registos de diplomados, que pouco mais permitem que quantificar o número de indivíduos por categoria profissional ou curso superior, e, por outro, em testemunhos obtidos junto de sociólogos integrados em diversos setores profissionais.

Os dados seguintes resultam de uma inquirição da responsabilidade da APS e da APSIOT, com o objetivo de conhecer as competências, práticas e representações profissionais dos diplomados em Sociologia, face à diversidade de enquadramentos organizacionais e atividades desenvolvidas. Para o efeito, foi construído e disponibilizado para preenchimento, numa plataforma online (Qualtrics), o questionário sobre “Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia”. O apelo à participação e divulgação seguiu para todos os associados da APS e APSIOT. Paralelamente, foi também desencadeada divulgação por passa-palavra e enviadas cartas para as Universidades com cursos de formação em Sociologia, bem como para os Centros de Investigação, solicitando apoio na divulgação da iniciativa junto dos respetivos diplomados e profissionais.

O questionário esteve disponível para preenchimento entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020 e os dados obtidos foram tratados com os softwares de análise estatística IBM SPSS Statistics e de análise de conteúdo MaxQDA.

Realçamos que os dados recolhidos permitiram ir além da sociografia dos diplomados em Sociologia e da sua inserção profissional, possibilitada pelo anterior levantamento da APS, em 2013 (Ramos, 2018), já que o questionário agora aplicado incluiu um conjunto de questões que não têm sido abordadas conjuntamente nos estudos efetuados sobre a profissão de sociólogo, a saber: questões abertas relativas às condições e enquadramento do exercício da profissão, à identidade profissional e às representações profissionais, nomeadamente a pergunta “O que é para si um sociólogo?”; e, ainda, um bloco de perguntas relativas à filiação associativa e às atividades de ambas as associações de sociologia.

Uma primeira leitura global dos resultados

A amostra é constituída por 873 indivíduos, 67% dos quais mulheres. As idades variam entre os 21 e os 74 anos, sendo as idades média e mediana ambas de 45 anos (DP = 11,6). Distribuem-se por todos os distritos de Portugal continental e regiões autónomas e 92% trabalham no seu distrito de residência. A área metropolitana de Lisboa é claramente prevalecente, em termos de residência e de emprego dos inquiridos (figura 1).

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

Figura 1 Região de residência e de emprego, por NUTS II  

A maioria dos indivíduos (68%) não é sócia de nenhuma das duas associações de sociólogos portugueses, o que, sendo um levantamento por estas organizado, deixa antever o largo espectro de penetração do inquérito entre sociólogos com diversos perfis. Apenas 31% são sócios da APS e 5% da APSIOT. De referir, porém, que outros 17% já foram filiados no passado.

Quase 86% dos inquiridos são licenciados em Sociologia, sendo os demais licenciados noutras áreas com formação subsequente em sociologia. Cerca de 4% fizeram a sua formação no estrangeiro e os restantes distribuem-se pelas várias instituições de ensino superior português, com predomínio para o Iscte -Instituto Universitário de Lisboa (26%), a UNL (13%) e a UC (11%). Esta distribuição corresponde, em traços largos, à dos diplomados registados nas estatísticas oficiais (www.dgeec.mec.pt).

Posteriormente à licenciatura, a grande maioria dos inquiridos (77%) prosseguiu a sua formação. Destes, 80% frequentaram um mestrado, cerca de 54% um doutoramento e 39% uma pós-graduação, tendo muitos deles optado por continuar a sua formação na área da sociologia (41% no caso do mestrado e 30% no caso do doutoramento), o que revela padrões elevados de formação avançada ao longo da vida.

A esmagadora maioria dos inquiridos (95%) está ou já esteve empregada. No que diz respeito à condição perante o trabalho, verifica-se um claro predomínio do trabalho a tempo inteiro (86%). O vínculo mais frequente é o contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado (40%), seguido, a alguma distância, pelo contrato individual por tempo indeterminado no setor privado (17%); os contratos a termo certo (públicos ou privados) correspondem a cerca de 12% e o peso dos bolseiros é de aproximadamente 8%. Quanto à situação na profissão, é evidente o peso dos trabalhadores por conta de outrem (87%).

Quanto ao tipo de organização, os inquiridos prestam serviço predominantemente em organismos da administração pública central (32%) ou local/regional (19%). De referir também o grupo dos que trabalham em centros de investigação públicos (11%) e dos que estão inseridos em empresas privadas (cerca de 15%). Relativamente ao ramo de atividade, 38% desenvolvem a sua atividade no ramo da educação/investigação, seguindo-se o da administração pública, defesa e segurança social (26%). O grupo profissional mais representado é o dos especialistas das atividades intelectuais e científicas (54%), ao qual se segue o dos técnicos e profissionais de nível intermédio (27%).

Na organização onde trabalham, estes diplomados enquadram-se, sobretudo, nas categorias de técnico superior (37%), docente (16%), diretor/chefe/coordenador (16%) e investigador (14%). Por isso mesmo, não é de estranhar que, apesar de desempenharem, no seu quotidiano profissional, um conjunto diversificado de funções, as mais referidas tenham sido as de intervenção social direta (32%), investigação (26%), docência (25%), coordenação de projetos, de equipas ou unidades orgânicas (22%) e gestão (16%).

Os inquiridos trabalham, sobretudo, em organizações onde existem outros sociólogos (75%), inserindo-se quase metade (47%) naquelas que têm entre um e cinco sociólogos. Menos de metade foi admitida especificamente para um lugar de sociólogo (47%). Daqueles que foram admitidos para um lugar de sociólogo, 86% consideram que os sociólogos são reconhecidos na sua organização como uma mais-valia profissional.

Os diplomados afirmaram maioritariamente que os seus superiores hierárquicos reconhecem e valorizam o trabalho dos sociólogos (87%) e que têm consciência do seu contributo específico para a organização (72%). Este mesmo contributo é igualmente reconhecido pela maioria dos colegas com outras formações académicas (71%).

As razões que apontam para este reconhecimento residem nas suas competências e conhecimentos específicos, entre os quais as metodologias de análise de dados (35%), o olhar diferente e holístico na análise dos fenómenos (16%) e a capacidade de análise e reflexão críticas (13%). Referem, também, o impacto do seu trabalho/investigação (8%), assim como a polivalência, o pragmatismo (8%), a capacidade de integrar equipas disciplinares (8%) e a facilidade nas relações interpessoais (4%). Há ainda 24% que referem a inevitabilidade de serem considerados uma mais-valia, quando são a maioria dos docentes e investigadores da organização.

Para aqueles que consideram não serem os sociólogos vistos como uma mais-valia profissional para a organização (14%), as razões apontadas são, sobretudo, as de exercício de funções sem ligação à formação de base (40%), falta de conhecimento na organização sobre a sua formação específica (23%) ou a desvalorização dessa formação em concreto (12%). Com um peso muito menor, foram também referidas: a indiferenciação do sociólogo no conjunto de técnicos superiores, na administração pública central e local (8%); o espaço de intervenção estar controlado por outras áreas científicas (6%); e, residualmente, a falta de interesse e de autovalorizarão (3%) e a precariedade laboral (1%).

O grau de satisfação dos inquiridos com as funções desempenhadas é elevado. Numa escala de 1 (nada satisfeito) a 6 (muito satisfeito), mais de 50% posicionam-se nos dois últimos pontos da escala nas três principais funções desempenhadas e, no caso da função principal, essa apreciação atinge quase 60%. Cerca de 80% situam-se acima do ponto central da escala.

Relativamente ao exercício da profissão, aproximadamente 77% consideram que têm um desempenho profissional adequado à sua formação de origem. Todavia, cerca de 60% consideram que as suas funções poderiam ser desempenhadas por um profissional com outra formação e apenas 70% se identificam profissionalmente como sociólogos. Dos que não se identificam profissionalmente como sociólogos, sobressai o peso daqueles que se definem como funcionários públicos ou técnicos superiores (35%), diretores, dirigentes, consultores ou gestores (25%) e, ainda, docentes ou professores (12%), investigadores (8%), administrativos ou assistentes técnicos (7%).

A esmagadora maioria considera a existência de áreas na sociedade portuguesa que beneficiariam com a intervenção dos sociólogos (98%), sendo as mais referidas a educação (40%), a intervenção/desenvolvimento social (30%) e a saúde (20%). Para cerca de 1/5 dos inquiridos, todas as áreas beneficiariam dessa intervenção.

No que diz respeito às representações, o tratamento da questão aberta “O que é para si um sociólogo?” permitiu apurar uma multiplicidade de perspetivas, com alguma primazia para uma visão “instrumental/interventiva” (figura 2), seja num plano profissional (“Um profissional polivalente e preparado para todos os contextos laborais e sociais”), seja num plano analítico (“Alguém que se debruça sobre os fenómenos sociais, os explica e apresenta soluções para a sua melhoria”). De referir, contudo, as percentagens significativas daqueles que representam o sociólogo enquanto “analista social abstrato” (“Uma pessoa e um profissional que olha o mundo de uma forma peculiar”) ou como “agente de mudança social” (“Alguém que pensa sobre a realidade e utiliza esse conhecimento para promover a mudança”).

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

Figura 2 O que é um sociólogo?  

Tendo emergido de agregações das respostas recolhidas, estas quatro representações têm algum paralelismo com a tipologia de Burawoy (2005) atrás apresentada: o “profissional instrumental” é uma visão próxima do sociólogo mobilizado na intervenção social e na execução de políticas; o “analista social abstrato” reflete uma perspetiva mais académica da disciplina; o “analista social instrumental/interventivo”, uma conceção próxima da sociologia pública; e o “transformador social”, da sociologia crítica.

Uma exploração de diferenças geracionais, institucionais e identitárias

Procurou-se explorar a possibilidade de existir um efeito geracional relativamente às questões anteriormente analisadas. Assim, uma comparação entre a situação dos diplomados em sociologia com mais de 40 anos de idade face aos mais jovens, cuja entrada no mercado de trabalho terá ocorrido já no século XXI, permitiu constatar a existência de algumas, ainda que poucas, diferenças (quadro 1). Como seria expectável, entre os mais velhos prevalecem as inserções mais estáveis, a tempo indeterminado, um maior equilíbrio de género, bem como uma maior concentração em atividades de docência e de direção. Entre os mais jovens, existe uma maior feminização e dispersão, em termos geográficos, organizacionais e funcionais, sendo maior o número daqueles que assumem funções administrativas/contabilísticas e comerciais, mas também funções de investigação e intervenção social direta. É preocupante que este grupo etário apresente valores mais baixos de filiação associativa, autoidentificação enquanto sociólogo ou perceção de que o seu trabalho se encontra em linha com a sua formação, ainda que os níveis de satisfação laboral não sejam reduzidos e que uma parte deles se encontre, ainda, numa etapa inicial da carreira profissional.2

Quadro 1 Comparação de características várias, segundo a faixa etária dos diplomados em Sociologia (%) 

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

A quase generalidade dos mais jovens está a realizar ou já realizou estudos pós-graduados, fenómeno que poderá ter sido precipitado pelo encurtamento das licenciaturas, no âmbito do “processo de Bolonha”. A larga maioria dos que estão a frequentar ou já concluíram doutoramento (78%) não o fazem na área da sociologia, enquanto entre os mais velhos é mais recorrente um percurso inverso, de fora da disciplina (na licenciatura) para dentro (no doutoramento). Esta inversão pode indiciar um campo de formação/profissão que permanece “multívoco”, mas em transição de um movimento “centrípeto” para um outro “centrífugo”. É interessante observar que, nas representações do sociólogo, a figura do “analista social” (48%) prevaleça sobre a do “profissional/técnico” (38%) entre os mais jovens, ao invés do que ocorre entre os mais velhos (41% e 47%, respetivamente), o que pode ser motivado pela expansão recente de formações mais orientadas para a intervenção direta (serviço social, educação social, gestão aplicada a diferentes áreas, políticas públicas, psicologia social, comunitária ou das organizações, urbanismo, ambiente, etc.).

Assim sendo, a vitalidade e a diversificação do campo profissional dos sociólogos, observável na geração mais jovem, associada à satisfação laboral e à perceção de exercer um trabalho em linha com a sua formação, parecem remeter para a hipótese de uma relativa “estagnação” (ver revisão da literatura), para um período conjuntural e circunscrito no tempo, sobretudo entre 2010 e 2015, marcado pela crise económica e por políticas de austeridade de corte neoliberal. Ainda assim, os dados observados na geração mais nova não deixam de apontar tendências, como a fraca adesão associativa, a precariedade e a menor diferenciação laborais, a multiplicidade de áreas de formação pós-graduada, a dispersão de atividades profissionais e a menor identificação como sociólogo (associando esta identidade, sobretudo, com a função analítica), que podem remeter para mais do que as circunstâncias passageiras do início da carreira, levantando novos desafios ao desenvolvimento da sociologia em Portugal.

Neste sentido, diferentemente de persistir na ideia da inserção socioprofissional bem-sucedida das novas gerações de sociólogos, os dados apurados aconselham um maior foco na qualidade do trabalho e das funções que desempenham, nas condições do seu exercício profissional e nas dificuldades enfrentadas.

Os resultados obtidos para a faixa etária até aos 29 anos, ainda que questionáveis na sua representatividade (face ao número de casos inquiridos) e a carecer de confirmação em estudos ulteriores, sugerem ainda o acréscimo do peso das mulheres (3/4), maioritariamente, pela primeira vez, a trabalhar no setor privado (3/5) e em categorias profissionais menos diferenciadas ou não qualificadas (1/2), em grande medida como consequência do seu recrutamento minoritário para lugares de sociólogo (1/3).

A partir da revisão da literatura, uma outra hipótese que explorámos foi a da existência de eventuais divergências entre sociólogos dedicados à docência e/ou investigação - os “cientistas” (30%) - e os que exercem outras funções - os “profissionais” (70%).3 A análise das funções profissionais agregadas exercidas - em que os inquiridos poderiam indicar até três funções (o que ocorreu na grande maioria dos casos) - revelou não se tratar de grupos mutuamente exclusivos: no “polo científico”, muitos indicaram também funções de intervenção social direta (54% dos docentes e 30% dos investigadores); no “polo profissional”, estando patente uma grande diversidade de funções desempenhadas, cerca de 1/5 indicaram a docência e cerca de 1/4 a investigação.

Apesar de a maioria se identificar como sociólogos, existe um contingente considerável que não o faz: 1/5 dos “cientistas” e cerca de 1/3 dos “profissionais”, com pequenas variações internas. A esta diferença não será alheio o facto de quase 3/5 dos docentes e investigadores terem sido recrutados especificamente para um lugar de sociólogo e mais de 4/5 considerarem ter um desempenho profissional em linha com a sua formação de origem, reduzindo-se esses valores para menos de metade e 3/4, respetivamente, no caso dos que trabalham fora da academia (quadro 2).

Quadro 2 Comparação de características várias, segundo o perfil profissional dos diplomados em Sociologia (%) 

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

Existem três áreas em que, efetivamente, observamos diferenças significativas. Primeiro, os “cientistas” caracterizam-se por percursos formativos mais longos, ainda que 3/4 dos “profissionais” também tenham realizado estudos pós-graduados. Curiosamente, entre os primeiros até é maior a percentagem daqueles que não são licenciados em Sociologia (25%, contra 15%), mas o mesmo é compensado por uma muito maior proporção de mestrados e doutoramentos em Sociologia (respetivamente, 57% e 65%, face a 39% e 27%). Segundo, os “cientistas”, sobretudo os docentes, estão mais inseridos em instituições educativas e de investigação do setor público, nas quais trabalham habitualmente com outros sociólogos. Distintamente, no “polo profissional”, existe uma maior diversidade institucional, entre serviços centralizados do estado (32%), administração regional e local (21%), empresas privadas (16%), centros de investigação públicos (11%) e organizações não governamentais e de solidariedade social (6%). Terceiro, os “cientistas” apresentam valores superiores nas seguintes práticas: contacto com a instituição onde estudou sociologia; filiação pelo menos numa associação profissional; e leitura intensiva de livros e artigos de sociologia.

Por seu lado, existem muitas outras variáveis em que esta dicotomia parece ter pouco impacto. São os casos de sexo, idade, região de residência e de emprego, nível de precariedade e de satisfação laboral (em que as diferenças são mais expressivas entre docentes e investigadores, do que na comparação com os “profissionais”), mas também de reconhecimento laboral ou relação com outros sociólogos fora do contexto laboral.

De igual forma, a resposta à pergunta “O que é para si um sociólogo?” revela uma proximidade de conceções nos dois polos: a representação social prevalecente, em ambos, é a de um “profissional instrumental/interventivo”, logo seguida pela de um “analista social abstrato/interpretativo” (quadro 3). De referir, contudo, a existência de algumas diferenças entre perfis profissionais, dentro de cada um dos polos. As representações minoritárias de “analista social instrumental/interventivo” e de “agente de mudança social” são mais destacadas, respetivamente, pelos investigadores e pelos docentes.

Quadro 3 “O que é para si um sociólogo?”, segundo o perfil profissional dos diplomados em Sociologia (%) 

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

Quanto à pergunta sobre o tipo de competências exercidas que associa à formação em sociologia, as respostas estão muito relacionadas com os perfis profissionais dos inquiridos (quadro 4): os “cientistas” destacam as competências inerentes à docência e à investigação; os técnicos superiores, as de diagnóstico, planeamento e resolução de problemas; os dirigentes, as de administração, direção e coordenação. Em ambos os polos, ainda que em valores mais baixos, é partilhada a importância das competências teóricas, metodológicas e analíticas, sendo mais diverso o naipe de competências expressas pelos “profissionais”.

Quadro 4 Competências principais exercidas que associa à formação em Sociologia, segundo o perfil profissional dos diplomados em Sociologia (%) 

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

Uma outra linha de análise tem a ver com eventuais diferenças entre universidades de formação dos sociólogos, na sua qualidade de “geradores institucionais” com especificidades na inserção profissional e nos modos de conceber e praticar a sociologia. Neste caso, comparamos as quatro universidades de formação mais referidas pelos respondentes - Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa (UNL), Universidade de Coimbra (UC) e Universidade do Porto (UP) - agregando as restantes num quinto grupo de “outras” (quadro 5).

Quadro 5 Comparação de Características várias dos diplomados em Sociologia, segundo a universidade da licenciatura (%) 

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

Tal permite constatar que a percentagem de desempregados entre os licenciados é residual e varia pouco entre universidades de formação, assim como a proporção dos que desempenham atividades administrativas ou pouco qualificadas. A ampla maioria considera ter um desempenho profissional em linha com a sua formação, sendo as diferenças entre instituições também pouco expressivas.

Embora os valores não sejam muito díspares, é possível observar uma maior presença dos sociólogos formados na UC em empresas do setor privado, organizações não governamentais e instituições particulares de solidariedade social, situação que poderá explicar uma maior precariedade dos vínculos laborais e maior dispersão de funções, incluindo proporções um pouco mais elevadas em funções comerciais, de gestão de recursos humanos, de formação ou de elaboração de pareceres e diagnósticos. Quanto às competências exercidas que associam à formação em sociologia (quadro 6), os sociólogos licenciados em Coimbra destacam-se por uma menor relevância concedida às competências docentes e de investigação, teóricas e metodológicas, a par de uma maior importância atribuída a competências analíticas e reflexivas aplicadas na intervenção e na resolução de problemas, incluindo na produção de diagnósticos, desenho de projetos, avaliação, entre outras. Os licenciados da UC destacam-se, ainda, por valores mais reduzidos de associativismo profissional e de contacto recente com a sua alma mater. É possível questionar o quanto dessas variações resultará da própria formação universitária e o quanto será devido a especificidades do tecido produtivo e das atividades laborais na região Centro, face a uma maior concentração dos serviços da administração pública em Lisboa, ainda que se deva também considerar que os resultados da UP, sediada na região Norte, se aproximam mais aos da capital.

Quadro 6 Tipo de competências exercidas e associadas à formação em Sociologia, segundo a universidade da licenciatura (%) 

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

Não deixa de surpreender que, entre os graduados na UNL, uma menor proporção afirme identificar-se como sociólogo, inferior até ao valor observado nas universidades de menor dimensão (quadro 5), enquanto que nas UC e UP os valores são muito próximos aos do Iscte-IUL, tanto mais que o peso dos que afirmam terem sido admitidos para um lugar de sociólogo é idêntico para as várias instituições.

Por fim, os sociólogos formados no Iscte-IUL destacam-se por uma representação mais frequente do sociólogo enquanto “profissional/interventivo” ou “analista social abstrato/interpretativo”, em contraste com a tendência dos diplomados da UC para o conceberem enquanto “transformador social/agente de mudança”. Estas especificidades podem resultar de uma socialização em “geradores institucionais” distintos (Machado, 2006), ainda que seja importante notar que se trata de assimetrias relativamente ténues (quadro 7). Assim, a par de uma prevalência da visão do “profissional/interventivo” entre os graduados em todas as universidades, as variações encontradas revelam, sobretudo, que a heterogeneidade de representações sobre a própria profissão é um traço comum aos licenciados das várias instituições, o que remete para a complexidade dos processos de formação das perspetivas dos sociólogos sobre o seu campo científico e profissional, assim como para a abertura e a pluralidade existentes em cada uma das universidades.

Quadro 7 Representações do sociólogo, segundo a universidade da licenciatura (%) 

Fonte: “Inquérito às Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” (APS, APSIOT, 2020).

Notas conclusivas

O artigo tem como ponto de partida o debate que tem acompanhado o percurso da sociologia em Portugal, centrado na perspetiva identitária do sociólogo nas suas vertentes académica e profissional. A informação resultante do inquérito “Competências e Práticas Profissionais dos Diplomados em Sociologia” permite-nos alargar a compreensão sobre o tema, através da densidade empírica e teórica que a reflexão sobre os dados oferece.

Os resultados sugerem que os sociólogos em Portugal têm desenvolvido funções variadas, integrando-se em diferentes categorias socioprofissionais e contextos institucionais, com predominância para categorias técnicas altamente qualificadas da administração pública e do ensino superior, com níveis elevados de satisfação profissional e desempenho adequado à formação. Porém, um número considerável não se identifica como sociólogo ou entende que as suas funções poderiam ser desempenhadas por profissionais com outras formações. Assim, as respostas parecem indiciar, por um lado, que a prática da sociologia detém um espectro alargado, porventura, conflitual, com outras áreas de conhecimento ou de competências em áreas afins e, por outro, que as funções desempenhadas encerram características abrangentes que se coadunam com áreas científicas diversas.

Observando-se mais convergências do que divergências, incluindo um número elevado de sociólogos, em diferentes gerações, com funções simultâneas dentro e fora da academia, não deixam de se revelar riscos de segmentação, já discutidos em trabalhos anteriores, e que apelam à necessidade de um diálogo reforçado entre os campos profissional e académico, capaz de enriquecer ambas dimensões do trabalho sociológico.

Não esquecendo que os indicadores apurados para os sociólogos mais jovens exprimem o início de um percurso profissional e que a maioria dos indicadores mais negativos tenderá a melhorar com o tempo, não deverá ser desvalorizada a sua inserção profissional precária. Acresce que esta precariedade poderá ter ainda um potencial de ampliação, face, por um lado, à manutenção de uma oferta escassa de emprego no setor público e à persistência de uma discriminação de género no mercado de trabalho, e, por outro, à própria composição crescentemente feminina do grupo dos diplomados em Sociologia e ao seu enfrentamento com uma oferta de trabalho no setor privado, em grande medida inespecífica e desigual (Machado, 2012: 115).

Centrando-nos na análise das representações dos sociólogos mais velhos e mais jovens, vale a pena sublinhar que a figura de “analista social” é a prevalecente entre os mais jovens, indiciadora de uma perspetiva mais “colada” à vertente académica, mais “purista” relativamente à prática sociológica, ao passo que os mais velhos traduzem uma visão tendencialmente mais utilitarista, pragmática, ligada à ideia de profissão e associada às competências que mobilizam em contexto de trabalho.

Os dados mostram também que há um contingente considerável de inquiridos que não se identifica como sociólogo, o que sugere que as profissões, elas próprias, se sobrepõem à formação sociológica, esbatendo o corpus identitário do sociólogo. O espectro alargado de atividades poderá mostrar, numa primeira leitura, um aparente enfraquecimento da identidade do sociólogo, mas o processo de profissionalização “divergente” (referido por Costa), indicar-nos-á, numa leitura mais fina, ser justamente essa diversidade que alimenta a identidade do sociólogo.

Em termos de penetração da sociologia nas diferentes organizações, há claramente um empregador maioritário que é o estado. No quadro das instituições privadas, há uma maior dispersão e um consequente enfraquecimento da pertença ao grupo de sociólogos, bem como um presumível aumento da confrontação entre campos profissionais.

No paralelo entre os “cientistas” e os “profissionais”, verificámos que, além de não se tratar de grupos mutuamente exclusivos, a representação social prevalecente sobre o sociólogo, em ambos os casos, não deixa de ser a de um “profissional instrumental/interventivo”, seguida pela do “analista social abstrato/interpretativo”. A presumível dicotomia também não se afirma no uso de variáveis como sexo, idade, região de residência e de emprego, nível de precariedade e de satisfação laboral, reconhecimento na organização ou relação com sociólogos fora do trabalho. Porém, os “cientistas” distinguem-se por: uma maior identificação profissional como sociólogos, associada ao facto de, maioritariamente, terem sido recrutados para esse perfil e, assim, considerarem ter um desempenho laboral em linha com a sua formação académica; percursos formativos mais longos; maior inserção em instituições educativas e de investigação do setor público, habitualmente com mais sociólogos; e apresentarem valores superiores de contacto com a instituição onde cursaram sociologia, de filiação associativa e de leitura de livros/artigos da disciplina. Esta diversidade perpassa nas competências exercidas que associam à formação em sociologia e que não deixam de estar muito vinculadas às suas práticas profissionais.

Considerando as universidades de origem dos sociólogos, sob um denominador comum de grande diversidade, observam-se algumas variações percentuais, em termos de percursos e representações, as quais podem estar relacionadas com a formação inicial e com oportunidades em termos de mercado de trabalho, no âmbito regional. Este cenário leva-nos a uma outra questão relativa a preocupações dos inquiridos mais ligadas à prática profissional da sociologia em contextos fora da academia, o que entendemos estar relacionado com a sua menor ligação ao associativismo. Tal permite-nos levantar a hipótese da predominância, nas associações profissionais dos sociólogos, de dinâmicas facilmente identificáveis com o trabalho e as práticas profissionais académicas, sendo importante reforçar esta reflexão em análises futuras e no quadro das mesmas associações.

A representação do sociólogo enquanto “profissional/interventivo” é prevalecente ao nível dos diplomados pelas várias universidades, o que poderá indicar a identificação com uma vertente mais técnica e operacional, inscrita na profissão de sociólogo, independentemente de nos referirmos ao contexto de academia ou fora da academia. Por outro lado, as demais representações associadas aos diplomados das várias universidades poder-nos-ão conduzir à narrativa das escolas e à própria estrutura dos cursos, abrindo-se, deste modo, o caminho para futuras investigações neste domínio.

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1Em trabalho posterior sobre o “campo científico-profissional” dos sociólogos, Costa (2004) complexificou esta análise, ao partir da constatação de que a sociologia se insere numa modalidade de formação/profissão multívoca e num processo de profissionalização divergente (“partindo de uma área científica, abertura para um leque alargado de papéis profissionais”). Neste texto, o autor distingue entre conhecimentos, competências e práticas, assim como estabelece uma tipologia de quatro perfis: (a) integrador—integração produtiva da formação científica e da prática profissional; (b) rotinizado—aplicação ritualística de técnicas de investigação empírica; (c) desistente — recurso apenas a saberes práticos adquiridos em contexto de trabalho, por rejeição dos instrumentos e produtos cognitivos da sociologia, por incapacidade de os transpor eficazmente para a ação profissional; (d) academicista—rejeição da dimensão profissional da sociologia, por considerar o exercício da disciplina como um “estado de graça epistemológico”.

2Um estudo anterior já observara a tendência de feminização, bem como o facto de a perceção de alinhamento entre formação e atividade profissional, entre sociólogos, ser mais comum numa fase mais adiantada da carreira do que nos anos iniciais (Ramos, 2018).

3Dos docentes, apenas foram considerados “cientistas” aqueles que concluíram um doutoramento, não incluindo assim professores do ensino secundário, assistentes ou formadores.

Recebido: 02 de Dezembro de 2021; Aceito: 09 de Março de 2022

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