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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.82 Lisboa set. 2016

https://doi.org/10.7458/SPP2016829463 

RECENSÃO

Lisboa Multicultural [M. Margarida Marques (org.), 2014, Lisboa, Fim de Século]

 

Carlos Fortuna*

* Professor de Sociologia, Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Av. Dias da Silva, 165, 3904-512 Coimbra. E-mail: cjfortuna@gmail.com

 

Lisboa: uma paisagem etnocultural renovada

Não erro ao afirmar que as pessoas se sentem mais atraídas por cidades do que por estados-nação.[1] Quem não reconhece que, de uma visita aos Estados Unidos da América ou a França, as pessoas recordam sobretudo as cidades de Nova Iorque ou Paris?… Vem isto a propósito do recente Lisboa Multicultural (organizado por M. Margarida Marques), um livro que regista uma mudança profunda na configuração etnocultural de Lisboa. Não há cidade que não tenha em algum momento da sua história procurado ser uma outra. Assim sucede com esta Lisboa que, ao longo das quase 500 páginas da coletânea, surge narrada como crescentemente heterogénea e cosmopolita. Sintomaticamente, num dos capítulos do livro, assinado por Francisco Carvalho, a Lisboa alfacinha está a converter-se numa Lisboa africana sem deixar de ser também uma outra Lisboa da diversidade e assumir a diferença cultural como seu traço constituinte.

O livro abre com um texto de José Leitão sobre as peripécias jurídico-formais que enquadram o “imigrante empresário” que é, afinal, o sujeito central da reflexão que aqui se comenta. Um outro enquadramento, que não o jurídico, é o que Sofia Santos, uma prolixa autora deste livro, oferece ao debruçar-se sobre a conversão da atual diversidade sócio-etno-cultural de Lisboa em “ativo estratégico” crucial para o planeamento da cidade. No processo de municipalização da política e da diversidade cultural, o texto antecipa o que Francisco Costa, outro autor regular da coletânea, enuncia como a “etnicização positiva” da (nova) dimensão cultural de Lisboa.

Este estudo mostra de forma clara como a cidade é muito mais do que uma coleção de settlements com alguma contiguidade nos espaços e nas linguagens. Repare-se nos três textos que compõem a parte 2 do livro e no modo como ilustram a variedade de acontecimentos identitários e oferecem uma imagem, dir-se-ia, de totalidade, não de um somatório de fragmentos. Os media tendem a devolver-nos essa imagem de totalidade como ressalta do escrito de Nuno Domingues sobre como o jornal Público relata a presença dos imigrantes em Lisboa, entre 1996 e 2000. É uma narrativa sobre a diversidade percebida, centrada principalmente na música, no artesanato, no cinema e na TV, e em outras expressões culturais, como a literatura, a dança e os festivais, sem que o autor deixe de nos alertar para a possível marca cultural de segmentos das elites culturais como responsáveis pelos acontecimentos de maior cobertura jornalística.

Francisco Lima Costa regressa de novo à escrita para falar de (des)ordenamento do território, noção heuristicamente riquíssima, com que procura caraterizar os (des)ajustamentos das categorias geográficas e estatísticas utilizadas desde 1930 (do “distrito de Lisboa” à “grande Lisboa” e à “região metropolitana de Lisboa”). Ao lado da oscilante nomenclatura estatística, o texto dá conta da recente multiplicação por dez do número de estrangeiros residentes em Lisboa (de 14.500 em 1970, para 147.800 em 2011), que se pode “experimentar” na viagem que o autor propõe desde a Lisboa dos “bairros de lata” até aos espaços de imigração de hoje, marcados por (i) um edificado envelhecido, (ii) alojamentos sobrelotados e arrendados e (iii) uso intenso de transportes coletivos.

No seu outro texto sobre a revitalização urbana e os mercados da diversidade, Sofia Santos coloca-nos perante a valorização cultural decorrente da disponibilidade de novos produtos comerciais (veja-se o exemplo trazido noutro capítulo, do ato banal da compra de chá), resultante da atividade empresarial de muitos imigrantes. Tal cenário de renovado consumo, visível na oferta de bens de consumo doméstico, na restauração e no artesanato, produz um efeito de boa convivência local (veja-se como Frederica Rodrigues enuncia o acolhimento das empresárias de salões de beleza e manicure), tanto em espaços residenciais, como em espaços históricos e turísticos da cidade, ao mesmo tempo que sedimenta uma relação dupla: por um lado, coétnica (partilha dos outros com os seus iguais) e, por outro lado, exoétnica (procura pelos locais dos lugares dos outros).

Em si, tanto bastaria para considerar este Lisboa Multicultural um relato socioantropológico notável, que convida a refletir sobre a urbanidade de uma cidade que se transforma, quer ao sabor da sua própria história, quer de outras histórias. É disso que trata o livro e não tanto da outra mudança turística que, por enquanto, traz muitos lisboetas extasiados com o radioso negócio do turismo internacional.

Lisboa Multicultural lê-se como se fosse um livro de contos. E essa é uma vantagem enorme. O conto, aqui chamado “capítulo”, é por natureza um texto curto. Sempre se chega ao fim. Além disso, o estudo é também, obviamente, atual. Primeiro porque trata de um tempo urbano contemporâneo que nos surpreende a cada instante. Depois porque é feito de linguagens modernas e retóricas atualizadas que geram intertextualidade e comunicação entre capítulos, ampliando a coerência ao conjunto. Este Lisboa Multicultural é ainda fonte de cautelosas “traduções”, isto é, de aplicações rigorosas de conceitos forjados em outros contextos e que aqui se testam e aplicam com génio e criatividade. Na voragem do tempo que fustiga Lisboa, este livro permanece atual, apesar de já datado. Mas todos livros são datados, sobretudo os que temos por “clássicos”. E, creio, este Lisboa Multicultural partilha dessa virtude dos “clássicos” ao tratar de uma espécie de “presente eterno”, uma novidade que se vai prolongar no tempo como tudo parece indiciar.

O renovado enlace etnocultural que se revela na leitura do livro configura um cosmopolitismo progressista, já que a presença dos outros assinala uma condição de cidadania que faz deles atores a ter em conta no planeamento estratégico da própria cidade. Na Lisboa “de outras eras”, se cosmopolitismo existia, era profundamente conservador e a “diversidade” era marcada pela subjugação e destituição. Agora, como sujeitos e não já mero décor da evolução urbana, os recém-instalados em Lisboa, vindos de África, da Ásia, da América do Sul, ou da antiga Europa de Leste, negoceiam, vivem e pluralizam os espaços públicos e, mais que isso, participam diretamente, embora limitadamente ainda, no devir da cidade.

No texto de abertura, Margarida Marques (MM) — a organizadora do livro — dá testemunho aturado desta mudança. O relevo concedido aos empresários reforça o papel dos pequenos comércios que marcam distintivamente o novo “espírito de cidade”. Aqui, MM faz lembrar Robert Park, que ousou um dia definir a cidade como um “estado de espírito” para surpresa de todos. Está MM a dizer, bem entendido, que além das ações de arquitetos, urbanistas e decisores políticos, as cidades são feitas da realidade humana e da sua quotidianidade que importa trazer para o desenho ajustado do futuro urbano e sociocultural desta cidade. Aprecio esta forma quase militante como o texto introdutório assume a “descoberta” do potencial estratégico que a diversidade cultural representa para Lisboa. Não podendo ser “romantizado”, este potencial aproxima Lisboa de outras cidades, cujo sucesso depende de conexões geoculturais complexas, como bem assinalou Anthony King quando fez notar que a história da Manchester industrial estava inscrita em Bombaim, o que tornava impossível compreender uma cidade sem se entender a outra… A Lisboa de hoje encontra na teia imperial as raízes da sua modernidade e o que ela é, e há de ser no futuro, deve-o a outras paragens e a outras (cumpli)cidades… A Luanda e a Bissau, à Praia e a Maputo, a Goa, mas também ao Brasil e à China…

Mas há outras “geografias” críticas pertinentes para a leitura deste livro. Entre elas, sobressaem as que ensinam a ver uma cidade sem os limites e as fronteiras espaciais (psicológicas?) que subjazem a categorizações tantas vezes desajustadas e erróneas. Algumas referem-se ao binarismo das linguagens académicas recheadas de “centros” e “periferias”, de “nortes” e de “suis”, de “ocidentes” e “orientes”. Estes pares de mundos diversos nunca estiveram tão próximos e tão íntimos. O raper Edson Silva dos Força Suprema, angolano residente há mais de 20 anos na região metropolitana de Lisboa, afirma-o com eloquência (Ípsilon, 12/06/2015): “Gostamos da Linha de Sintra. Dá para ir ao Fórum Sintra e sentirmos que estamos na Europa e dá para ir à Damaia e comprar mandioca na rua. Somos desses dois mundos!”

Ser destes dois mundos é uma implicação da condição urbana e democrática de hoje. Atravessá-los sem impedimentos é hoje um direito. A diversidade cultural atravessa a cidade sem limites a toda a hora, por toda a parte. Anytime/anywhere, como dizia de Niro do Taxi Driver de M. Scorcese, parece ser o lema de tudo o que hoje se move, incluindo os novos fluxos migratórios e étnicos que Lisboa regista.

No seu Fronteiras Perdidas — Contos para Viajar, a páginas tantas J. Eduardo Agualusa relata o episódio em que o assaltante, de bons modos e viajando num carro de grande estilo, se dirige ao jovem objeto do assalto: “Também dizem que nós destruímos este país. Destruir? Estamos simplesmente a reajustá-lo a África, aos nossos hábitos culturais. Luanda, por exemplo, era uma cidade europeia, um corpo estranho relativamente ao resto do país. Foi preciso corrompê-la para a libertar”. Este livro, como que replicando o bandido, ensaia devolver a Lisboa a imagem de uma condição estrutural que só na escavação histórica e antropológica da usurpação do outro se pode compreender no seu atual reajustamento.

Como evoluirá no futuro a multiculturalidade lisboeta abordada neste livro? O livro não nos responde. Que Lisboa teremos em resultado dessa evolução? Uma Lisboa mais diversa, mais plural, mais democrática? Ou antes uma Lisboa regressiva, cosmopolita sim, mas conservadoramente cosmopolita que atende às reivindicações dos turistas mas não dos imigrantes… mais fechada e segregadora? Receosa dos outros que a procuram como refúgio ou como espaço de oportunidade e emancipação?

“Os ares da cidade libertam”… diziam os subjugados camponeses alemães que rumavam às cidades em busca da sua medieval libertação. Esse era um dramático grito que, paradoxalmente, volta a ecoar hoje, lancinante, por toda a região mediterrânica europeia. Sabemos que outrora os ares da cidade não libertaram como se esperava. E sabemos também que, por aqui, à vista das vagas mediterrânicas, os ares europeus continuam quase tóxicos e irrespiráveis. Temos de continuar a limpá-los. Sem esmorecer. Este livro pode ser visto como uma metafórica higienização do ar que respiramos. Em Lisboa e fora dela. A leitura liberta! — apetece dizer. Daí o meu convencimento de que este livro vai ser lido por gente jovem em busca de ares límpidos de uma cidadania plural e diversa, como aqueles que brotam das reflexões postas neste Lisboa Multicultural.

 

Notas

[1] Recupera-se parcialmente o texto de apresentação pública do livro (8 de julho de 2015).

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