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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.59 Oeiras jan. 2009

 

Ensino superior, trabalho e emprego na actual sociedade de risco: um olhar sobre o caso de mestres e doutores

Mariana Gaio Alves*

 

Resumo

Num contexto de crescente incerteza e instabilidade, designadamente no plano profissional, que contribui para a ideia de vivermos em sociedades “de risco”, a procura de diplomas escolares cada vez mais elevados é, muitas vezes, interpretada como uma estratégia para enfrentar essas dificuldades, assegurando recursos para que se alcancem posições sociais e profissionais mais favorecidas e estabilizadas. Tendo por base os resultados de um projecto de investigação desenvolvido entre 2003 e 2006, o artigo procura aprofundar o conhecimento e a reflexão em torno desta temática, sistematizando resultados referentes às trajectórias educativas e profissionais de mestres e doutores, bem como relativos às lógicas da oferta de cursos de mestrado.

Palavras-chave universidade, trabalho/emprego, mestres, doutores.

 

Abstract

Higher education, work and employment in today’s risk society: a look at the case of master’s and PhD degree holders

Against a background of growing uncertainty and instability, in particular on a work level, which fuels the notion that we are living in “risk” societies, the demand for ever higher educational qualifications is sometimes interpreted as a strategy to confront these difficulties, guaranteeing resources for the attainment of more advantageous and stable social and occupational positions. On the basis of the results of a research project carried out between 2003 and 2006, the article seeks to extend our knowledge and reflection on this topic, systematising results on the educational and occupational careers of master’s and PhD degree holders and on the kinds of rationale involved in the supply of master’s degree courses.

Key-words university, work/employment, master’s degree holders, PhD degree holders.

 

Résumé

Enseignement supérieur, travail et emploi dans la société de risque actuelle: un regard sur les formations de 3ème cycle

Dans un contexte d’incertitude et d’instabilité croissantes, notamment au plan professionnel, qui tend à confirmer l’idée selon laquelle nous vivons dans des sociétés “ de risque ”, la demande de formations de plus en plus longues est souvent interprétée comme une stratégie pour affronter ces difficultés, en procurant les moyens d’atteindre des positions sociales et professionnelles plus favorisées et stables. À partir des résultats d’un projet de recherche mené entre 2003 et 2006, cet article approfondit la connaissance et la réflexion autour de ce thème, en systématisant les résultats relatifs aux trajectoires éducatives et professionnelles des titulaires de masters et de doctorats, ainsi qu’aux logiques de l’offre de formations masters.

Mots-clés université, travail/emploi, masters, doctorats.

 

Resumen

Enseñanza superior, trabajo y empleo en la actual sociedad de riesgo: una mirada sobre el caso de maestreados y doctorados

En un contexto de creciente incertidumbre e inestabilidad, designadamente en el plano profesional, que contribuye a la idea de vivir en sociedades “de riesgo”, la búsqueda de diplomas escolares cada vez más elevados es, muchas veces, interpretada como una estrategia para enfrentar esas dificultades, asegurando recursos para alcanzar posiciones sociales y profesionales más favorecidas y estables. Teniendo por base los resultados de un proyecto de investigación desarrollado entre 2003 y 2006, el artículo procura profundizar el conocimiento y la reflexión en torno de esta temática, sistematizando los resultados referentes a las trayectorias educativas y profesionales de maestros y doctores, así como la lógica de la oferta de los cursos de maestría y doctorado.

Palabras-llave universidad, trabajo/empleo, maestreados, doctorados.

 

Introdução: o contexto da sociedade de risco

A utilização da expressão “sociedade de risco” para designar a sociedade contemporânea constitui o título de uma obra já considerada clássica do sociólogo alemão Ulrich Beck (1992 [1986]), e tem vindo a ser amplamente difundida no quadro dos debates sobre as mudanças sociais da actualidade. Na tentativa de ultrapassar outras tipificações da sociedade contemporânea, como “pós-fordista” ou “pós-moderna”, esta proposta de Beck tem suscitado debate de ideias com outros sociólogos contemporâneos como, por exemplo, Scott Lash e Anthony Giddens (Beck, Giddens e Lash, 2000 [1994]).

Longe de pretender reproduzir este debate, adoptamos o termo “sociedade de risco” no título deste texto porque consideramos que as relações entre o ensino superior e mundo do trabalho e emprego são um dos domínios da realidade social em que a “reflexividade” e a “destradicionalização”, enquanto duas características marcantes da sociedade contemporânea (ainda que possam ser entendidadas de modo ligeiramente distinto por cada um dos autores), se têm vindo a observar.

Num contexto de mudança das relações entre ensino superior e emprego, a expressão “sociedade de risco” pretende significar a necessidade de aceitar que a incerteza e a imprevisibilidade são cada vez mais inerentes às nossas vidas individuais e colectivas, desafiando a racionalidade técnica e científica típica de outras etapas societárias e exigindo uma maior reflexividade na construção das biografias de cada indivíduo e dos nossos destinos colectivos.

Sabemos como o trabalho tem ocupado diferentes lugares em diferentes modelos de sociedade. Na Antiguidade trabalhar era um factor de exclusão social, mas na Modernidade o trabalho remunerado é o principal elemento de referência identitária e factor de inclusão social (Beck, 2000 [1999]). Na contemporaneidade é esta herança do trabalho como elemento primordial de referência identitária que nos provoca dificuldades, num contexto em que o acesso ao trabalho remunerado não se encontra nem assegurado nem garantido a não ser por períodos limitados das trajectórias dos indivíduos, traduzindo-se num clima de democratização da insegurança no emprego (Brown, 2003). O que se verifica é que, se no passado as formas burocráticas de organização pressupunham carreiras marcadas pela segurança de emprego e pela progressão, hoje em dia emergem formas alternativas de organização que desafiam os critérios de sucesso pessoal no mundo contemporâneo e tornam impossível aos indivíduos, designadamente aos diplomados de ensino superior, planear as suas carreiras a longo prazo, dada a imprevisibilidade e incerteza que caracterizam o mundo actual.

Paralelamente, se no passado um diploma de ensino superior constituía um “passaporte” para o mundo profissional, o mesmo não tem vindo a suceder nos anos mais recentes, desde que a massificação do ensino superior significa que o respectivo diploma não é mais do que um “recurso” que os indivíduos mobilizam no acesso ao emprego, entre muitos outros elementos que interferem nessa transição para a esfera profissional. Com efeito, sublinhámos em trabalho anterior que, em nosso entender, o processo de inserção profissional resulta do confronto e da interacção entre um conjunto de actores com diferentes lógicas, estratégias e posicionamentos, não podendo de modo algum ser considerado uma consequência directa e exclusiva da acção do ensino superior (Alves, 2005).

Não obstante, o prolongamento dos percursos escolares dos indivíduos e a procura crescente de diplomas escolares parecem constituir, pelo menos em parte, uma estratégia que pode ser apelidada de “credencialista” e “utilitarista”, no sentido em que se orienta, predominantemente, por uma lógica consumista de acquisitive learning (Brown, 2003) associada à acumulação de diplomas escolares que se espera que favoreçam a empregabilidade. De modo constrastante, uma lógica de inquisitive learning corresponde a um interesse genuíno pelo conhecimento e pela aprendizagem em si mesmos, recusando o predomínio de finalidades “utilitaristas” ou “credencialistas” nas escolhas efectuadas durante os percursos escolares e nas trajectórias de formação ao longo da vida.

Tendo em conta estas tendências evolutivas, o presente texto pretende contribuir para o aprofundamento da reflexão e da compreensão em torno das relações entre ensino superior e mundo do trabalho, tendo por base os resultados de um projecto de pesquisa desenvolvido por uma equipa multidisciplinar de investigadores.1 Este projecto centrou-se no estudo das trajectórias profissionais e educativas de diplomados de ensino superior que escolheram frequentar mestrado e/ou doutoramento, assim como na análise das estruturas organizacionais, pedagógicas e curriculares de mestrados e doutoramentos nas universidades.

Num contexto de sociedade de risco, em que a questão não é apenas como obter um primeiro emprego após a conclusão do ensino superior, mas também como manter esse emprego ou voltar a reinserir-se profissionalmente se tal for necessário, qual é o papel dos diplomas de mestrado e de doutoramento oferecidos pelo ensino superior? Quais as suas lógicas de funcionamento na perspectiva dos seus responsáveis? Com que motivações os indivíduos os procuram? E que efeitos ocorrem nas suas vidas após a obtenção desses diplomas?

Para dar resposta a estas questões, importa analisar as lógicas e posicionamentos de diplomados, académicos e empregadores, procurando aprofundar a reflexão sobre os percursos profissionais e formativos dos indivíduos. Os empregadores não foram objecto de nenhuma recolha de informação empírica directa no quadro deste projecto, mas, de algum modo, obtivemos um conjunto de indicações sobre os seus posicionamentos, através das operações de recolha de dados junto dos académicos e dos próprios diplomados.

Metodologia da pesquisa empírica

Os resultados de pesquisa que estão na base deste artigo têm origem no projecto de investigação já referido, o qual integra operações de recolha empírica dirigidas a dipolomados de ensino superior e a académicos. Designadamente, neste artigo baseamo-nos nos dados recolhidos através de inquérito por questionário a mestres e doutores, aplicado por via postal no ano de 2005, com o objectivo de caracterizar as trajectórias de trabalho e formação desses diplomados. A equipa optou por contribuir para o autoconhecimento das instituições universitárias em que os investigadores trabalham, tendo sido inquiridos 145 mestres e doutores diplomados nas instituições de ensino superior que participam no projecto (Universidade de Aveiro, Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Lisboa/Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação e Universidade Técnica de Lisboa/Instituto Superior de Economia e Gestão), nos anos lectivos 1995/1996 e 2000/2001. Esta amostra de inquiridos corresponde a 32,95% do universo em estudo (mestres e doutores diplomados em 1995/96 e 2000/01 nas instituições referidas), o que é considerado um valor expectável para uma operação de inquirição por via postal.

Todavia, não se pode afirmar que obtivemos uma amostra representativa do ponto de vista estatístico, visto que a nossa amostra se constitui por si própria, decorrendo das decisões individuais de responder ou não ao questionário, pelo que desconhecemos com exactidão quais os motivos que levaram alguns indivíduos a não responder.2 A razão para a escolha das duas datas de conclusão dos cursos (diplomados de 1995/96 e 2000/01) está relacionada com o facto de existir uma crise de emprego entre estas duas datas, pois a taxa de desemprego teve o seu valor máximo em 1997 e foi diminuindo depois até cerca de 2001/02. Ou seja, com base no pressuposto de que o ano de obtenção do diploma é aquele em que se procura a inserção (ou reinserção) no mercado de trabalho, escolhemos inquirir diplomados daqueles dois anos lectivos, de modo a constituir dois grupos que se podem controlar reciprocamente, no sentido em que um deles engloba sujeitos que se diplomaram e tentaram a inserção numa fase de crise de emprego, enquanto os diplomados do outro grupo o fizeram num período de relativamente boa conjuntura laboral.

 

Quadro 1

Distribuição dos inquiridos por área de formação (em %)

 

 

A amostra de inquiridos inclui 27 doutores e 118 mestres de diferentes áreas científicas.

Os resultados que estão na base deste artigo decorrem, também, de uma operação de recolha de dados dirigida aos académicos através da realização de entrevistas semiestruturadas. Foram entrevistados sete coordenadores de mestrado, que haviam sido seleccionados para entrevista pelo facto de os cursos de mestrado pelos quais eram responsáveis no momento da entrevista serem aqueles que haviam tido um maior número de respostas no inquérito por questionário a mestres e doutores.

O guião de entrevista semidirectiva divide-se em duas grandes partes, com os objectivos, por um lado, de caracterizar os cursos em termos do seu historial, público e enquadramento institucional e, por outro lado, detectar o modo como os entrevistados avaliavam os efeitos dos cursos a diferentes níveis (mestrandos, instituição universitária, articulação com o mercado de trabalho, etc.). As entrevistas foram realizadas no último trimestre de 2005 e os entrevistados eram coordenadores de cursos de mestrado de áreas disciplinares diversificadas no Instituto Superior de Economia e Gestão (dois casos), na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (dois casos), na Universidade de Aveiro (dois casos) e na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (um caso).

A perspectiva dos académicos

O debate em torno das finalidades do ensino superior tem decorrido ao longo dos séculos e encontrado diferentes respostas consoante os tempos históricos e os contextos sociais, culturais ou geográficos, dando origem a diversos modelos de universidade. Algumas abordagens, que designaremos “instrumentalistas” (Barnett, 1994 [1990]), assentam no pressuposto de que o ensino superior tem uma determinada função relativamente à sociedade envolvente, enquanto no quadro de outras perspectivas, apelidadas “liberais” (Barnett, 1994 [1990]), rejeita-se aquele pressuposto funcionalista, argumentando-se que o ensino superior tem valor por si mesmo. Estes posicionamentos correspondem a dois modelos distintos para entender a articulação entre ensino superior e mundo do trabalho, sendo ambos questionáveis mas úteis enquanto pólos opostos em permanente tensão que configuram o espaço das possibilidades daquela articulação.

Alguns autores sustentam, aliás, que um certo conflito em torno desta temática é endémico, notando-se que “enquanto os representantes do ensino superior, as mais das vezes exprimem opiniões de que o ensino superior pode ser forçado em demasia por pressões utilitaristas, os actores externos com maior frequência censuram o ensino superior por ser demasiado auto-reflexivo, demasiado parecido com uma torre de marfim, demasiado elitista” (Teichler e Kehm, 1995: 120).

É possível identificar, ao longo da História, modelos e reformas do ensino superior que se aproximam mais de um ou de outro extremo. O espírito da abordagem funcionalista parece-nos estar presente na reforma napoleónica em França, quando são reorganizadas as “grandes écoles” e criada a universidade imperial, ou ainda nos anos 60 do século XX, quando em Inglaterra se decide a criação dos politécnicos. Mas o essencial da abordagem académica parece poder ser associada a Newman, que em 1852 publica The Idea of a University, afirmando que o conhecimento e a educação universitária devem ser valorizados em si mesmos, ou a Von Humboldt que, na Alemanha do início do século XIX, defende que as escolas profissionalizantes só deveriam integrar a universidade quando a sua formação básica enaltecesse a capacidade de pensamento e imaginação e não apenas a prática.

Tomando como referência este quadro de diversas possibilidades para a articulação entre ensino superior e espaço profissional fora deste, a análise das sete entrevistas a coordenadores de mestrado permite, como seria de esperar, identificar diferentes posicionamentos que podemos agrupar em três conjuntos distintos. Estes conjuntos foram constituídos tendo em conta a informação contida nas entrevistas sobre os objectivos dos cursos de mestrado, o perfil e as expectativas do público que os frequenta e a atitude face à colaboração/parceria com instituições não académicas.

No quadro seguinte, podemos identificar os mestrados que se inserem em cada um destes conjuntos, sendo de notar que a criação de qualquer um destes cursos ocorreu no período entre meados da década de 80 e meados da década de 90, não sendo estas datas um elemento explicativo das lógicas diferenciadas subjacentes aos conjuntos.

Quadro 2

Cursos de mestrado segundo as lógicas de articulação com o espaço profissional fora do ensino superior

O grupo A3 corresponde aos cursos de mestrado cuja lógica subjacente é, sobretudo, a de constituírem um contributo para a investigação, sendo menos valorizadas as colaborações com instituições não académicas. O conjunto B engloba os cursos de mestrado que, nas suas finalidades, associam a formação para a investigação com a formação de cariz profissionalizante, atribuindo algum destaque à colaboração com instituições não académicas. O grupo C coincide com os mestrados que se caracterizam por claramente visarem a formação de profissionais, sendo bastante valorizada a articulação com instituições não académicas.

No grupo A, incluímos os dois cursos de mestrado em Ciências da Educação, considerando que ambos se vocacionam, predominantemente, para o desenvolvimento da investigação. Numa das entrevistas refere-se que “a orientação destes cursos foi sempre encarada desde início como algo que tinha como objectivo central o desenvolvimento da investigação nesse campo e portanto, digamos, quaisquer efeitos de carácter profissional eram encarados como… enfim, um resultado paralelo mas subordinado claramente à investigação”. Afirma-se também que, num período mais recente, esta linha de orientação se manteve, procurando-se “articular cada vez mais a organização dos cursos de mestrado e a orientação de teses com projectos de investigação de maior fôlego, com financiamento externo nomeadamente da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), no sentido de não dissociar, digamos, as actividades de investigação”.

Em todas as edições do curso têm predominado as mulheres, sendo que a média etária do público tem vindo a diminuir e as expectativas têm-se vindo a alterar. Nas primeiras edições eram pessoas que já tinham uma carreira profissional e que visavam a progressão na carreira (docentes dos ensinos básico e secundário ou superior ou ainda enfermeiros), ou então pessoas já em final da carreira que procuravam o mestrado por questões de prestígio ou de aprofundamento de conhecimentos. Ora, “actualmente as coisas tendem a inverter-se e a ser um público jovem que prolonga os estudos uma vez que se desvalorizam os diplomas. E portanto é um investimento em diplomas mais elevados, não é?”. Registam-se algumas parcerias, nos anos mais recentes, com organismos estatais como o IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) ou o Ministério da Saúde.

No caso do outro mestrado em Ciências da Educação os objectivos têm estado também ligados à investigação, tendo-se inicialmente sublinhado a necessidade de “abrir para um pensamento, uma reflexão e um estudo que extravasasse as questões do mundo escolar […] era muito essa preocupação de romper fronteiras dos contextos que, normalmente, eram objecto mais de estudo e de investigação”. Também neste curso o público tem sido sempre constituído maioritariamente por mulheres, registando-se alguma evolução na média etária. Igualmente se constata que nas primeiras edições estava um público mais adulto, para quem o mestrado não era uma sequência da licenciatura, pelo que se apostava no “potencial formativo e de construção de conhecimento que a experiência tinha dado às pessoas”, com inserções profissionais diversificadas (em escolas, centros de formação profissional, câmaras municipais, etc.) e que procuravam o mestrado motivadas pela progressão na carreira, e outras apenas pelo aprofundamento do conhecimento e da reflexão. Hoje em dia o curso é frequentado por um público em média mais jovem. Não se registam parcerias com instituições não académicas, mas considera-se que essa deverá ser uma área na qual investir no futuro.

O conjunto B abrange o mestrado em Economia, que terá sido o primeiro curso deste tipo neste domínio científico em Portugal. Inicialmente dirigido para os sujeitos que estavam na carreira académica, ou seja, para “formar fornadas de assistentes aqui na escola e prepará-los para doutoramento”, o perfil do público tem vindo a alterar-se. Actualmente frequentam o curso, por um lado, indivíduos que se inserem num percurso académico em que o mestrado é a etapa obrigatória que medeia entre a licenciatura e o doutoramento, mas, por outro lado, sujeitos que trabalham em grandes empresas (referidos os exemplo da EDP e PT) ou em grandes organismos estatais, já com alguma experiência profissional de três ou quatro anos, e que têm como expectativa um “aprofundamento de natureza teórica ou instrumental na área da Economia e é por isso que eles vêm”. O público do curso é constituído, equilibradamente, por homens e mulheres. Os protocolos com empresas têm tido lugar pontualmente, em diferentes momentos da história deste mestrado.

O curso em Electrónica e Telecomunicações também integra o grupo B, pois tem procurado desde a sua criação “responder a duas questões: à necessidade de formar investigadores nesta área e para ir ao encontro das necessidades do tecido económico/empresarial”. O público é fundamentalmente masculino (cerca de 90%), registando-se uma evolução no sentido de uma maior diversidade ao nível de idade e do número de anos de experiência profissional. Inicialmente havia muitas pessoas recém-licenciadas apenas com um ano de experiência, mas hoje em dia a maioria são indivíduos que terminaram a licenciatura há dois ou três anos, embora também existam alguns já com dez anos de experiência. A maior parte está ligada a empresas e uma minoria a centros de investigação ou institutos politécnicos. De acordo com os inquéritos que se realizam periodicamente sobre as expectativas dos mestrandos, conclui-se que estes procuram a progressão na carreira mas sobretudo uma “valorização profissional”. Há colaboração com a indústria por parte do departamento, bem como se desenvolvem esforços no sentido de estabelecer parcerias com empresas no âmbito do curso de mestrado.

O terceiro curso de mestrado a incorporar neste grupo é o de Supervisão, que tem como objectivo “desenvolver um conjunto de conhecimentos, capacidades, estratégias e criar um espaço de reflexão e investigação sobre a problemática da supervisão”, articulando-se com áreas profissionais diversificadas que abrangem desde os professores, aos bancários e profissionais das áreas da saúde e formação profissional, e sendo escolhido também por docentes do ensino superior com o objectivo de progredirem na carreira. O mestrado tem como critério que os sujeitos têm de ter alguma experiência profissional, sob pena de o curso não ter para eles qualquer sentido, tal como é sublinhado na entrevista: “em muitos outros mestrados que eu sei que estes jovens desempregados acabam a licenciatura e imediatamente se matriculam no mestrado e que vão. Nós aqui procuramos que não seja… embora tenhamos gente ainda jovem, com pouca experiência”. Neste curso, as mulheres são tendencialmente em maior número. As expectativas do público, de acordo com questionários que anteriormente realizavam, parecem ser bastante para progressão na carreira e com a intenção de protagonizar alguma mobilidade profissional, mas também “muito genuinamente para aprenderem mais”. Existiu colaboração com empresas do sector bancário numa das edições e com organismos ligados à saúde noutras edições.

No grupo C, o mestrado em Qualidade dos Materiais terá sido, desde a sua origem, “patrocinado sempre com o apoio do PEDIP […] o objectivo era apoiar a indústria portuguesa”. Actualmente esse apoio desapareceu, registando-se, por um lado, uma diminuição do público que frequenta o curso e, por outro lado, uma evolução desse mesmo público, que deixa de ser composto apenas por quadros de empresas industriais ou prestadoras de serviços às indústrias, passando a englobar desempregados e recém-licenciados. As expectativas do público vão no sentido de colmatar “alguma carência de conhecimentos em certas áreas que no seu dia-a-dia das suas empresas não tiveram correspondente formação universitária”. Há colaboração com as empresas, procurando-se aproveitar todas as oportunidades neste domínio, pois essa colaboração é considerada vital para o desenvolvimento do mestrado.

O segundo curso que englobamos neste conjunto é o mestrado em Gestão (mais tarde MBA), que inicialmente esteve vocacionado para a formação de assistentes da carreira académica que pretendiam progredir na mesma, mas “progressivamente passou a haver mais gente ligada à indústria que… se interessou pelo curso e em meados da década de 90 […] o mestrado passou a assumir-se como mestrado marcadamente profissionalizante, portanto como um MBA”. Neste sentido, o objectivo é a formação de gestores e a expectativa do público a de “procurar potenciar a capacidade que têm para fazer uma carreira profissional, basicamente é isto. A noção que eu tenho é a de que existe uma noção no mercado… hoje em dia, de que fazer um MBA é bom para potenciar a capacidade de sucesso de um indivíduo promissor no interior de uma organização.” Assinala-se que o curso é frequentado maioritariamente por homens de média etária relativamente jovem (cerca de 29 ou 28 anos), pois são sujeitos com cerca de quatro ou cinco anos de experiência. A ligação às empresas é considerada fundamental para o desenvolvimento do mestrado.

Em síntese, procuramos com esta breve análise criar uma tipologia dos cursos de mestrado analisados que permita explicitar diferentes lógicas, no modo como se equacionam os objectivos e finalidades da aprendizagem no quadro do mestrado e as colaborações com instituições exteriores ao meio académico. Consideramos relevante sublinhar que, globalmente, parece verificar-se uma tendência no sentido de uma maior aproximação entre os cursos de mestrado e o mundo profissional (seja empresarial ou estatal), muito embora a situação seja bastante diversificada consoante os cursos de mestrado e a área disciplinar em que se situam. Em alguns domínios (grupo C) esta ligação já está bastante consolidada, enquanto noutros existem apenas algumas experiências pontuais (grupo B) que noutros casos são mais incipientes (grupo A). As explicações para estas diferenciações têm de ser procuradas na diversidade de filosofias subjacentes ao funcionamento de cada curso, que não são dissociáveis do perfil da área disciplinar em que cada um deles se insere.

O ponto de vista dos diplomados

Na tentativa de aprofundar a compreensão sobre as relações entre ensino superior e mundo do trabalho, do ponto de vista dos diplomados, importa ter em conta diversas dimensões de análise, das quais destacamos as motivações/expectativas destes sujeitos relativamente aos mestrados e doutoramentos oferecidos pelo ensino superior, as articulações entre trajectórias profissionais e percursos formativos, ou ainda as características dos percursos dos indivíduos que podem ser associadas à formação frequentada no ensino superior. No estudo destas diferentes dimensões de análise importa destrinçar claramente os mestres dos doutores, não só porque sabíamos desde o início que os dois grupos têm perfis bastante diferenciados relativamente a diversos aspectos, mas também porque o número de doutores inquiridos é diminuto (apenas 27 doutores e 118 mestres num total de 145 inquiridos).

No que diz respeito às razões apresentadas pelos sujeitos para frequentar mestrado e doutoramento, podemos notar que aspectos como “contribuir para o desenvolvimento intelectual”, “adquirir mais conhecimentos” e, no caso do doutoramento, “pertencer à comunidade científica” são considerados importantes ou muito importantes por uma maioria de inquiridos (cerca de 90% em qualquer dos casos). Paralelamente, também a razão “poder fazer melhor o meu emprego” é considerada importante ou muito importante por cerca de 85%, quer dos mestres quer dos doutores.

Entre as razões que os inquiridos consideram pouco ou nada importantes para escolher frequentar mestrado ou doutoramento, destacam-se “não ter expectativas de emprego”, “iniciativa da entidade patronal” e a “família sempre esperou que fizesse um curso”, bem como, no caso do mestrado, a “exigência da entidade patronal” (em qualquer um dos casos com valores acima dos 80% ou mesmo dos 90%).

A observação do quadro seguinte, e a análise das razões consensualmente mais e menos importantes para frequentar mestrado e doutoramento, permitem questionar a noção de que o mestrado e o doutoramento são procurados, sobretudo, por indivíduos que não conseguem aceder a um emprego no mercado de trabalho actual. Do que se trata, aparentemente, não é de procurar aceder ao emprego, mas sim de desempenhar melhor o emprego.4

Quadro 3

Razões dos inquiridos para a frequência de cursos de mestrado e doutoramento (em %)

Paralelamente a estas motivações profissionais, razões relacionadas com o desenvolvimento intelectual e a aquisição de conhecimentos são importantes para escolher mestrado e doutoramento. Tal parece revelar que as formações na universidade são procuradas por motivações relacionados com a esfera profissional da vida dos indivíduos, mas também por elementos que traduzem uma valorização daquela instituição como um espaço de aprendizagem e desenvolvimento pessoal.

Um outro aspecto que os dados que temos vindo a apresentar permitem questionar é o interesse e incentivo que as entidades empregadoras demonstram sobre o facto de os seus empregados frequentaram este tipo de formação. Como já referenciámos, assumem um carácter de pouca ou nenhuma importância o incentivo e exigência das entidades patronais para a frequência deste tipo de formação,5 bem como o apoio financeiro destas mesmas entidades no pagamento de propinas. Na verdade, quer o mestrado quer o doutoramento significam custos significativos que são suportados fundamentalmente pelo próprio (54,9%) ou através de bolsas de organismos públicos (24,3%) e raramente pela entidade empregadora (13,2%). É de notar, adicionalmente, que quando interrogados sobre se os aspectos financeiros constituem um obstáculo à frequência de outros cursos e formação, cerca de 40% afirmam que são um grande obstáculo e 33,1% consideram este aspecto um pequeno obstáculo, existindo cerca de 1/4 que afirma que tal não constitui obstáculo.

Assim, muito embora a análise das entrevistas a coordenadores de mestrado permita colocar a hipótese de que há alguma aproximação entre as universidades e as instituiçãos empregadoras, os dados que agora apresentamos parecem indicar que estas últimas não valorizam significativamente a frequência destas modalidades de formação por parte dos seus empregados.

Para melhor compreender todas estas articulações, parece crucial caracterizar sucintamente as situações e actividades profissionais, bem como as entidades patronais dos inquiridos. De notar que, na actualidade, os mestres e doutores se ocupam maioritariamente em profissões que se enquadram no grande grupo dos “especialistas das profissões intelectuais e científicas” (82,1%), detendo também um valor assinalável os “quadros superiores da administração pública, dirigentes e quadros superiores de empresas” (15%). Em termos de situação na profissão são, sobretudo, trabalhadores por conta de outrem (89,1%) que, em mais de metade dos casos, têm um contrato sem termo (58,3%), estando os restantes distribuídos por formas mais precárias de contratação. Apenas 10,4% dos inquiridos já estiveram desempregados desde a conclusão da licenciatura, dos quais 9% apenas por uma vez.

Os graus de satisfação com a situação profissional actual são bastante elevados, afirmando-se os sujeitos “muito satisfeitos” (53,9%) e “satisfeitos” (31,2%). As razões apontadas para justificar estes elevados níveis de satisfação estão, em grande parte dos casos, relacionadas com a progressão futura, do tipo “possibilidade de melhorar a situação profissional” ou “possibilidade de evoluir na carreira profissional”.

Quadro 4

Graus de satisfação com a formação académica (em %)

 

No que diz respeito aos graus de satisfação com a trajectória académica, importa notar que os inquiridos se afirmam maioritariamente satisfeitos ou muito satisfeitos, sendo esta tendência mais acentuada no caso dos doutores.

Consequentemente, há 88,6% dos inquiridos que afirmam que, no caso de terem de escolher novamente, mantinham o mesmo percurso académico. No grupo minoritário daqueles que não fariam o mesmo percurso académico, quase metade teriam optado por um curso de doutoramento, dispensando a etapa do mestrado, e apenas um ou dois inquiridos colocam a hipótese de um percurso escolar que não incluisse o ensino superior. Ou seja, estamos perante uma população com elevados níveis de escolaridade, que parece manifestar satisfação por completar graus ainda mais elevados. Tal observação está em concordância com aquilo que havíamos concluído em trabalho de investigação anterior (Alves, 2005) sobre o facto de os indivíduos com mais elevados níveis de escolaridade protagonizarem trajectórias profissionais em que há uma maior apetência para continuar um percurso escolar e formativo, seja através do retorno ao sistema educativo, seja pela frequência de acções de formação.

A observação do quadro 5 sobre os contributos que, na opinião dos inquiridos, estas formações no ensino superior significaram em diversas vertentes, permite perceber um pouco melhor as perspectivas dos mesmos sobre os efeitos do mestrado e doutoramento.

 

Quadro 5

Contributos do processo de formação académica de mestres e doutores (em %)

 

A observação do quadro favorece o entendimento de que, para a quase totalidade dos inquiridos, os contributos do processo de formação académica que se inscrevem no plano da aprendizagem e desenvolvimento pessoal (98,7% dos mestres e 97,4% dos doutores consideram que os cursos contribuíram ou contribuíram muito para “aprender coisas novas e desenvolver no plano pessoal”) e no quadro do conhecimento científico (94,9% dos mestres e 97,4% dos doutores apontam como contributo “desenvolver a cultura científica”, enquanto 91,9% dos mestres e 94,7% dos doutores indicam “construir conhecimento na área científica”) são muito valorizados. Inversamente, os aspectos para os quais os cursos parecem ter contribuído de forma menos significativa correspondem a “garantir um estatuto social elevado” (76,5% dos mestres e 59,5% dos doutores consideram que o curso contribui pouco ou nada nesta vertente) e “alterar a situação familiar” (89% dos mestres e 78,4% dos doutores consideram que contribuiu pouco ou nada).

Procurando detectar o destaque conferido às opções de resposta mais ligadas à esfera profissional que, como vimos, são importantes razões para justificar a frequência dos cursos, apercebemo-nos de que as mesmas alcançam valores bastante elevados. Contudo, essas razões não são objecto de um consenso tão alargado como os elementos ligados à aprendizagem e desenvolvimento pessoal:

- no que diz respeito a “conseguir responder às necessidades no plano profissional”, 73% dos mestres e 83,3% dos doutores consideram que os respectivos cursos contribuíram ou contribuíram muito;

- no que se refere a “progredir na carreira profissional”, 69,6% dos mestres e 78,9% dos doutores indicam que os respectivos cursos contribuíram ou contribuíram muito;

- quanto a “participar para a organização do trabalho em que exerce a actividade profissional”, 71,9% dos mestres e 89,2% dos doutores afirmam que os respectivos cursos contribuíram ou contribuíram muito;

- em termos de “estabelecer contactos pessoais e profissionais para o desenvolvimento do percurso profissional”, 53,3% dos mestres e 69,2% dos doutores apontam que os respectivos cursos contribuíram ou contribuíram muito.

De notar também que, no plano de “elevar o rendimento económico”, os mestres dividem-se quase em igualdade entre os que consideram que o curso contribuiu ou contribuiu muito e os que indicam que contribuiu pouco ou nada, enquanto entre os doutores 66,7% afirmam que contribuiu ou contribuiu mesmo muito.

Em síntese, esta sucinta apresentação de alguns resultados do questionário realizado permite considerar a perspectiva dos diplomados, apontando para que possa existir alguma concordância entre as expectativas dos diplomados face aos cursos e os efeitos desses mesmos cursos. Nomeadamente, nota-se que aspectos ligados à esfera profissional têm destaque, a par com dimensões relacionadas com a aprendizagem e desenvolvimento pessoal, na justificação da escolha de frequentar mestrado e doutoramento, sendo os efeitos destes cursos sobretudo destacados a nível de aprendizagem e desenvolvimento pessoal e também, embora menos consensualmente, no plano profissional. Ainda que assim seja, os inquiridos manifestaram-se bastante satisfeitos com a sua formação académica.

Outro aspecto que importa sublinhar, relaciona-se com o facto de não ser possível associar linearmente a ausência de expectativas de emprego e as dificuldades no acesso ao mesmo com a procura de cursos de formação pós-inicial no ensino superior. Muito embora esta associação possa ter algum significado em grupos restritos de sujeitos, não constitui uma tendência generalizável ao conjunto da população em estudo que, aliás, se caracteriza por situações profissionais que os próprios consideram bastante satisfatórias.

Conclusão: convergências e divergências entre académicos, diplomados e empregadores

O trabalho empírico que está na base deste artigo não tem qualquer pretensão de originar resultados que sejam estatisticamente generalizáveis a todas as universidades, diplomados e empregadores de diplomados de ensino superior, uma vez que abrange um número restrito de instituições e sujeitos em apenas algumas áreas disciplinares. No entanto, consideramos que constitui um contributo significativo face à escassez de estudos desta natureza, em particular no caso português, pelo que importa reflectir sobre os resultados alcançados, formulando hipóteses e interrogações que permitam aprofundar o nosso conhecimento e a nossa compreensão sobre as matérias em análise.

Existem, naturalmente, diferentes interpretações possíveis. Poderíamos fazer uma leitura interpretativa dos dados que nos levaria a sublinhar a necessidade de adequar as universidades às necessidades dos profissionais, como muitas vezes fazem a opinião pública e os empregadores. Contrastando, é possível uma outra leitura interpretativa dos nossos resultados, que desse relevo à importância conferida ao ensino superior, sobretudo pelos académicos e diplomados, enquanto espaço de aprendizagem e desenvolvimento pessoal e intelectual, traduzindo o posicionamento daqueles que consideram que a empregabilidade não deve ser uma das preocupações do ensino superior.

Contudo, os resultados do nosso estudo apontam para a necessidade de evitar estes dois extremos dicotómicos e os equívocos que ambos encerram, considerando-os antes como orientações contrastantes mas coexistentes.

Com efeito, por um lado, a análise das motivações expressas pelos diplomados inquiridos para procurarem cursos de mestrado e de doutoramento revela que nas mesmas se combinam elementos que valorizam os aspectos profissionais — o que pode ser associado àquilo que no início deste texto designámos como uma lógica consumista de aquisitive learning (Brown, 2003), no sentido da acumulação de diplomas escolares para melhorar o desempenho profissional — com elementos que valorizam a aprendizagem e o desenvolvimento pessoal possibilitados pela frequência do ensino superior — o que pode ser relacionado com uma lógica de inquisitive learning (Brown, 2003), que corresponde a um interesse genuíno pelo conhecimento e pela aprendizagem em si mesmos.

Por outro lado, também a análise das lógicas subjacentes aos cursos de mestrado revela a coexistência de orientações mais próximas do desenvolvimento sobretudo da investigação — que podem ser associadas a posicionamentos de tipo “liberal” (Barnett, 1994 [1990]) —, com orientações que valorizam a relevância dos cursos de mestrado para os contextos e percursos profissionais — as quais podem ser relacionadas com perspectivas “instrumentalistas” (Barnett, 1994 [1990]). Aliás, o modo como estas duas orientações se combinam, dando mais relevo a uma ou a outra, permitiu a criação da tipologia de cursos de mestrado que atrás explicitámos.

Ainda que assim seja, importa notar que, aparentemente, é conferido algum destaque aos aspectos profissionais nas motivações para frequentar cursos de mestrado, mas que os efeitos que esses cursos parecem ter para aqueles que os frequentaram tendem a ser menos consensualmente identificados no plano profissional do que no plano do conheciemnto e desenvolvimento pessoal. Tal não implica que os sujeitos se revelem globalmente insatisfeitos com a frequência de formação académica, mas indicia que os efeitos da formação académica no plano profissional, embora assinalados por muitos inquiridos, não parecem ser tão consensualmente valorizados, nem pelos próprios diplomados nem sobretudo pelos seus empregadores.

Noutros termos, os dados apresentados revelam que existem em algumas vertentes convergências e noutras divergências entre as lógicas e intencionalidades de académicos, diplomados e empregadores. Note-se, porém, que entre os académicos podemos registar alguma intencionalidade de aproximação das lógicas dos cursos aos contextos profissionais fora do ensino superior, mas a informação que pudemos recolher sobre os empregadores aponta para que os mesmos tendam a desvalorizar a formação pós-inicial nas universidades. Ou seja, as convergências parecem ser mais procuradas pelos académicos e universidades.

Por seu turno, os diplomados tendem, como sabemos, a procurar cada vez mais a frequência de cursos de formação pós-graduada nas universidades,6 o que é, por vezes, justificado como uma estratégia que visa fazer face a situações de emprego precárias, ou pelo menos incertas e desfavoráveis. Contudo, aparentemente, não pudemos associar linearmente a procura de formação pós-inicial universitária aos sujeitos que se encontram excluídos do mercado de emprego, até porque essa formação encerra custos relativamente elevados, que tendem a ser suportados essencialmente pelos próprios.

A procura de cursos de mestrado e doutoramento parece ser constituída, muito significativamente, por indivíduos que visam melhorar a sua situação e/ou desempenho profissionais. Ou seja, os diplomados tendem a investir em qualificações mais elevadas, num clima de “democratização de insegurança no emprego” (Brown, 2003) e de percursos profissionais marcados pela incerteza e pela imprevisibilidade. Mas acresce que, como os dados também revelam, as razões para frequentar formação pós-inicial que se relacionam com a esfera profissional surgem estreitamente associadas a razões que têm a ver com o gosto pelo aprofundamento do conhecimento e com a sua realização pessoal.

Assim sendo, em nosso entender, os dados desta investigação reforçam a necessidade de recusar “perspectivas instrumentais e adequacionistas” da educação, contribuindo para a valorizar também como processo de aprendizagem e de construção pessoal. Como refere Canário (1999), importa evitar uma “visão adaptativa e instrumental” da educação face ao trabalho/emprego, salientando que não se trata de ajustar a primeira ao segundo, reflectindo sobre os conhecimentos e competências que preenchem necessidades sentidas no mundo do trabalho. Alternativamente, importa encarar a educação como processo que tem como referência o próprio sujeito, conduzindo à construção de conhecimento e da sua visão de si próprio, dos outros e do mundo envolvente.

Uma nota final centra-se no facto de os dados discutidos neste texto se referenciarem a um “contexto pré-Bolonha”, o que não significa, em nosso entender, uma menor pertinência dos resultados da investigação realizada. Pelo contrário, numa época em que as instituições de ensino superior têm vindo a reformular a sua oferta formativa, o conhecimento sobre os percursos escolares, formativos e profissionais dos diplomados e sobre os cursos de formação pós-graduada afigura-se-nos particularmente relevante, de modo a apoiar a reflexão e a decisão sobre modalidades e estratégias de formação inicial e contínua a privilegiar neste nível de ensino. De facto, também no interior do ensino superior os movimentos de “reflexividade” e “destradicionalização”, características da “sociedade de risco”, são desafios marcantes da contemporaneidade.

 

Referências bibliográficas

Alves, Mariana Gaio (2005), “The entry into working life of higher education graduates: an educational perspective”, European Journal Vocational Training, 34, pp. 28-39.         [ Links ]

Ambrósio, Teresa, e outros (2006), Relatório Final do Projecto Telos II — Aprendizagem ao Longo da Vida: Efeitos em Diplomados de Ensino Superior (POCTI/CED/46747/2002), UIED, FCT/UNL (policopiado).

Barnett, Ronald (1994 [1990]), The Idea of Higher Education, Buckingham/Bristol, Society for Research in Higher Education and Open University Press.

Beck, Ulrich (1992 [1986]), Risk Society. Towards a New Modernity, Londres, Sage Publications.

Beck, Ulrich (2000 [1999]), The Brave New World of Work, Londres/Nova Iorque, Polity Press.

Beck, Ulrich, Anthony Giddens, e Scott Lash (2000 [1994]), Modernização Reflexiva. Política, Tradição e Estética no Mundo Moderno, Oeiras, Celta Editora.

Brown, Phillip (2003), “The opportunity trap: education and employment in a global economy”, European Educational Research Journal, 2 (1), pp. 141-179.

Canário, Rui (1999), Educação de Adultos. Um Campo, uma Problemática, Lisboa, Educa.

Teichler, Ulrich, e Barbara Kehm (1995), “Towards a new understanding of the relationship between higher education and employment”, European Journal of Education. Research, Development and Policies, 30 (2), pp. 115-132.

 

1 Trata-se do projecto “Telos II—Aprendizagem ao Longo da Vida: Avaliação de efeitos em Diplomados de Ensino Superior”, apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia entre 2003 e 2006, do qual Teresa Ambrósio foi coordenadora científica e Mariana Gaio Alves foi coordenadora executiva. Da equipa fizeram também parte Ana Luísa de Oliveira Pires (Unidade de Investigação Educação e Desenvolvimento — FCT/UNL), Margarida Chagas Lopes (Instituto Superior de Economia e Gestão), António Maria Martins (Universidade deAveiro) e Belmiro Gil Cabrito (Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa).

2 Importa ressalvar, contudo, que o questionário foi enviado por via postal aos diplomados depois de ter sido realizado, através de telefone e/ou correio electrónico, o trabalho de confirmação/ actualização das moradas que constavam dos ficheiros dos serviços académicos das quatro instituições universitárias.

3 Todas as fases escritas entre aspas nesta secção são transcrições retiradas das sete entrevistas realizadas.

4 Salientamos que o inquérito foi realizado junto de diplomados que terminaram em 1995/96 e 2000/01 e que pode acontecer que este aspecto tenha sofrido alterações no caso dos sujeitos que mais recentemente ingressaram em mestrado ou doutoramento. Na verdade, recorde-se que os coordenadores de mestrado assinalam que a média etária dos públicos dos respectivos cursos tem diminuído, e tenha-se em conta também que o aumento das dificuldades de acesso ao emprego por parte dos diplomados de ensino superior nos anos imediatamente a seguir à conclusão da licenciatura pode induzir alguns a procurar continuar a sua formação através de mestrado e mesmo de doutoramento.

5 No caso dos doutores e da razão “exigências da entidade patronal” encontramos uma excepção à linha de argumentação que estamos a desenvolver, mas que facilmente se torna compreensível notando que a maioria dos doutores inquiridos eram antes do início do doutoramento docentes ou investigadores no ensino superior, pelo que quer a sua progressão na carreira quer a manutenção do seu emprego estão dependentes da obtenção do grau de doutor.

6 Analisando, a título ilustrativo, dados do OCES (Observatório da Ciência e do Ensino Superior), verificamos o crescimento progressivo da procura de mestrados e doutoramentos em Portugal ao longo da última década, nomeadamente: em 1997/98 diplomaram-se no nível ISCED 6 (que inclui mestres e doutores) 2492 indivíduos, sendo o mesmo valor de 5342 em 2005/06.

 

* Mariana Gaio Alves. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-UNL).

E-mail: mga@fct.unl.pt.

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