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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.20 no.3 Lisboa maio 2013

https://doi.org/10.1016/j.jpg.2012.12.003 

EDITORIAL

 

Hemorragia digestiva obscura na insuficiência renal crónica

Obscure gastrointestinal bleeding in chronic renal failure

 

Julieta Félix

Departamento de Gastrenterologia e Endoscopia Digestiva, Hospital da Luz, Lisboa, Portugal

Correio eletrónico: doc_julieta@hotmail.com

 

A hemorragia gastrointestinal é uma complicação frequente da insuficiência renal crónica (IRC) avançada, estando associada a uma maior mortalidade quando comparada com a da população geral1. Neste subgrupo de doentes a principal causa de hemorragia digestiva baixa são as malformações vasculares (angiodisplasias), localizadas maioritariamente no cólon direito, representando 19-32% de todas as hemorragias baixas (apenas 5-6% na população geral)2. Quanto à hemorragia digestiva alta, a úlcera péptica, a gastrite e a esofagite erosiva são os diagnósticos mais representativos3.

Apesar de existirem muitos estudos e publicações sobre o envolvimento do aparelho digestivo superior e inferior na hemorragia digestiva no subgrupo de doentes com IRC avançada, os dados relativamente ao intestino delgado são ainda escassos. Com o advento da enteroscopia por videocápsula (EVC), introduzida na prática clínica em 2001, tornou-se possível, através de um método de diagnóstico não-invasivo e simples, estudar o espectro de lesões do intestino delgado responsáveis pela hemorragia digestiva média (hemorragia do intestino delgado com origem entre a papila de Vater e a válvula ileocecal), estabelecendo fatores clínicos preditivos associados a uma maior acuidade diagnóstica e possibilitando definir uma estratégia terapêutica visando melhorar o prognóstico desta patologia. Num estudo de Reena Sidhu et al.4, de 2009, com 427 doentes, cujo objetivo foi estudar os fatores preditivos da acuidade diagnóstica e de intervenção terapêutica na hemorragia digestiva obscura (HDO), investigada por EVC, foram identificados como fatores preditivos de uma maior acuidade diagnóstica a idade avançada, o uso de varfarina e a doença hepática crónica. A presença de comorbilidades (doença cardiovascular, doença respiratória crónica, insuficiência renal crónica, doenças hematológicas, doença hepática, doença reumatológica e neoplasia maligna) e um diagnóstico de angiodisplasias na EVC (identificadas em 52% dos doentes) foram fatores preditivos de uma mudança na abordagem terapêutica.

Apesar de a etiologia das lesões angiodisplásicas e a sua correlação com a IRC avançada não estarem bem esclarecidas, a incidência acrescida neste subgrupo de doentes sugere condições particulares para a sua ocorrência. Entre estes fatores predisponentes encontram-se a hipoxia da mucosa intestinal secundária à doença aterosclerótica vascular periférica, alterações do metabolismo do cálcio conduzindo à hipercalcémia e a discrasia hemorrágica subjacente (resultante da disfunção plaquetária, do uso frequente de antiagregantes e do uso de heparina e filtros de diálise, típicos deste subgrupo de doentes)5.

As formas de manifestação mais frequentes da HDO nos doentes com IRC avançada são a anemia e a pesquisa de sangue oculto nas fezes (PSOF) positivo, sabendo-se que 19% dos doentes com IRC avançada e 6% em hemodiálise têm PSOF positivo6.

Em artigo publicado neste número do Jornal Português de Gastrenterologia, R. Herculano et al.7 apresentam os resultados de um estudo prospetivo observacional unicêntrico que teve como objetivo documentar o papel da enteroscopia por videocápsula na abordagem da hemorragia digestiva obscura (HDO), em doentes com IRC em hemodiálise (HD). Neste estudo foram comparadas variáveis clínicas (idade, sexo, comorbilidades, formas de apresentação da HDO), variáveis relacionadas com a técnica (% de exames incompletos, tempos de esvaziamento gástrico e de trânsito do intestino delgado, acuidade diagnóstica e espectro de lesões) e fatores de prognóstico, com um grupo controlo de doentes com função renal preservada. Os autores concluíram que existe uma associação independente entre o diagnóstico de angiectasias na EVC e a IRC em HD, em doentes com HDO, à semelhança do que já era conhecido para o cólon e tubo digestivo superior. Este resultado corrobora os resultados de estudo prévio, de Karagiannis et al.8, que documentou, pela primeira vez, a existência de uma associação independente entre o diagnóstico de angiectasias na EVC e a IRC avançada (incluindo não só doentes em HD, mas também doentes em pré-diálise ou transplantados renais com insuficiência renal moderada a grave). No contexto do presente estudo, creio que teria sido interessante uma descrição mais detalhada das características das angiectasias (única, múltiplas), assim como a descrição da sua localização em ambos os grupos. A constatação de uma maior prevalência de estenose aórtica (33 vs. 3%) no grupo de doentes com IRC e a sua conhecida associação a uma maior prevalência de angiectasias do tubo digestivo podem ter contribuído para a maior percentagem de doentes com angiectasias no grupo de estudo da IRC. Como limitação deste estudo, destaco a ausência de discriminação da terapêutica (farmacológica, endoscópica, imagiológica, nenhuma?) a que os doentes de ambos os grupos, com o diagnóstico de angiectasias, foram submetidos, avaliando se esta teria implicações nos resultados apresentados no período de seguimento, nomeadamente no que se refere às necessidades de suporte transfusional e de internamento hospitalar.

A emergência da enteroscopia assistida por balão veio modificar significativamente o paradigma da intervenção terapêutica na patologia do intestino delgado, sobretudo na abordagem da HDO. Num estudo de May et al.9, de 2011, com 50 doentes e um tempo de seguimento de 5 anos, foi avaliado o prognóstico a longo prazo dos doentes com hemorragia digestiva média submetidos a tratamento de malformações vasculares com árgon-plasma, através da enteroscopia de duplo balão, tendo-se demonstrado que estas podem ser efetivamente tratadas. Os dados do seguimento a longo prazo confirmaram um aumento significativo dos valores de hemoglobina e uma consequente diminuição da necessidade de suporte transfusional e do número de internamentos hospitalares.

O presente estudo representa um contributo para um maior conhecimento do espectro de lesões responsáveis pela incidência de HDO nos doentes com IRC avançada. Salienta-se, no entanto, a necessidade de uma investigação mais abrangente, direcionada para avaliar o impacto do tratamento das angiodiplasias na qualidade de vida neste subgrupo de doentes, e a sua relação custo-benefício.

 

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7. Herculano R, Bispo M, Barreiro P, Couto G, Santos S, Chagas C, et al. Insuficiência renal crónica em hemodiálise: um factor de risco independente para angiodisplasias na enteroscopia por videocápsula na hemorragia digestiva obscura. GE J Port Gastrenterol. 2012. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpg.2012.12.002        [ Links ]

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