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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. v.17 n.6 Lisboa nov. 2010

 

Hemorragia digestiva alta associada ao consumo de AAS e AINEs em Portugal. Relembrem-se da profilaxia!

Upper bleeding associated to acetilsalicilic acid and NSAIDs in Portugal. Remember prophylaxis!

 

J. Alexandre Sarmento

Assistente Hospitalar Graduado de Gastrenterologia do HSJ (Porto)

Correspondência

 

O estudo PARAINES publicado no GE1 levanta várias questões importantes sobre os problemas relacionados com as hemorragias digestivas associadas ao uso de AINEs e acido acetilsalicílico (AAS), assunto de grande actualidade, dada a prescrição cada vez mais frequente destas medicações sobretudo em doentes mais idosos e com mais co-morbilidades.

O trabalho, multicêntrico, reúne um número apreciável de doentes todos com hemorragia digestiva alta, com uso à data de inclusão, de AINEs e/ou de AAS, correspondendo a 20% do total de admissões por hemorragias digestivas altas, em seis dos nove centros envolvidos.

É de realçar nos resultados, o facto de 68,7% dos doentes terem mais do que 65 anos e terem falecido no hospital 10 doentes (3,6%). Significativamente, a média de idades foi de 71 ±16 anos (16 - 98 anos) apresentando a maioria co-morbilidades importantes sobretudo hipertensão arterial, diabetes e doenças cardiovasculares e cerebro-vasculares; os episódios hemorrágicos foram acompanhados de instabilidade hemodinâmica em 43, 1% dos casos, com hemoglobina média à admissão de 9,2 g/dl e necessidade de suporte transfusional em 62,7%, com uso em média de 3,1 ± 2,7 unidades de sangue. No total da amostra, 10 doentes (3,6%), foram enviados para cirurgia apesar de tratamento endoscópico, por vezes repetido e terapêutica concomitante com IBPs. A estadia no hospital demorou 8,4 ± 7,8 dias em média.

Trataram-se portanto de quadros hemorrágicos com mortalidade não despiciente, gravidade clínica significativa e prolongados internamentos.

Como é apontado nas conclusões deste provocativo trabalho, levanta-se a questão se muitas destas situações não poderiam ter sido evitadas e se há ou não margem para melhorar a hemostase endoscópica e a terapêutica concomitante. De facto, havia história prévia de úlcera péptica (UP) em 24,1% dos doentes, com episódios de hemorragia em 61% destes; foi feito diagnóstico de UP em cerca de 50% dos doentes na admissão (na maioria com estigmas de alto risco) havendo apenas 15% dos doentes, a fazer algum tipo de profilaxia, coma particularidade de fazerem “protecção” com sucralfate, antiácidos e/ou ranitidina, 25% destes.

Independentemente do número de doentes com complicações hemorrágicas pelo uso de AINEs, aparentemente, ser menor que o observado noutros países, importa, face aos resultados observados neste trabalho em que a maioria dos doentes fazia AAS e uma grande percentagem outros AINEs, com os coxibes em franca minoria, tirar algumas conclusões, para melhorar o panorama observado. Também alguns doentes e provavelmente cada vez mais, fazem clopidogrel e/ou estão hipocoagulados com varfarina, o que agrava ainda mais a situação.

Parece entretanto pequeno, o número de apenas 20% dos doentes com hemorragias em 6 dos 9 centros tomarem AINEs, o que pode ser devido ao formato retrospectivo do estudo, atendendo, como sabemos, à dificuldade de colheita e registo correcto de informações, nestas circunstâncias. As questões mais pertinentes que este artigo levanta e a que há que responder são:

A que doentes se deve prescrever profilaxia e qual?

Deverá também fazer-se profilaxia aos doentes a tomar só AAS em baixas doses?

Qual o papel e que atitude ter em relação ao Helicobacter pylori (Hp)?

Prescrever sempre um coxibe se o doente necessita de AINEs?

No tratamento endoscópico quais as melhores técnicas de hemostase?

No seguimento da hemostase endoscópica que medicação fazer?

As respostas a estas questões vêm muito bem fundamentadas e actualizadas, nas “Guidelines for prevention of NSAID related ulcer complications” do American College of Gastroenterology2. Refere-se no texto que 25% dos consumidores de AINEs, podem desenvolver úlcera péptica, com perfuração ou hemorragia em 2-4%, havendo nos EUA 100.000 internamentos por ano e 7.000 a 10.000 mortes neste contexto, especialmente nos chamados doentes de alto risco.

Enfatiza-se com muita propriedade que quando há necessidade de prescrever AINEs, existem dois pontos sempre a considerar: primeiro a estratificação dos doentes de acordo com os seus factores de risco gastrenterológicos e cardiovasculares e em segundo lugar, a selecção adequada das estratégias para prevenção da úlcera péptica e suas complicações2.

Ultimamente, tem-se observado com alguma frequência, complicações cardiovasculares com os inibidores da ciclooxigenas e tipo COX-2 e outros AINEs, a juntar aos problemas da prevenção de hemorragia digestiva. Em alguns ensaios, mesmo fora dos que levaram à retirada do mercado de dois coxibes, os acidentes vasculares foram maiores com os COX-2 do que nos doentes que tomaram placebo e dos AINEs não selectivos, só o naproxeno pode ser recomendado nestes casos, por não estar associado a aumento de acidentes cardiovasculares3.

Vários trabalhos mostraram que doentes com mais de 65 anos, tomas de doses altas de AINEs, história curta de uso dos AINEs (menos de um mês, ou noutros menos de três meses), assim como a toma concomitante de corticóides ou anticoagulantes, aumentava significativamente o risco de complicações hemorrágicas.

Em grandes séries de doentes com artrite reumatóide, foi observado maior risco em doentes com mais de 75 anos, com história anterior de úlcera ou de hemorragia gastrointestinal4,5.

Também, numerosa literatura, tem mostrado aumento do risco de hemorragia em doentes a tomar AAS em baixas doses, apresentando-se um risco relativo de 2,07 de sangramento significativo, em doentes a fazer doses de 75 - 325 mg, numa meta-análise de 14 trabalhos que incluíram 57.000 doentes6.

Confere também a estes doentes, alto risco, o facto da grande maioria serem idosos com numerosas co-morbilidades especialmente cardiovasculares, muitos serem hipocoagulados e a tomar concomitantemente AINEs tradicionais e corticóides. Em relação ao Helicobacter pylori (HP), embora haja informações contraditórias, várias meta-análises revelaram maior risco hemorrágico em doentes a tomar AINEs na presença de Hp7,8; embora a erradicação do Hp não seja suficiente por si só, como prevenção secundária de hemorragia por UP, parece ser recomendável, especialmente antes de um doente começar tratamento longo com AINEs, fazer a tentativa de erradicação do Hp. Serão necessários mais trabalhos de longa duração, para avaliar se há também benefício de erradicar o Hp, em doentes a fazer baixas doses de aspirina.

Em estudos comparativos entre o misopostrol versus IBP versus ranitidina, os inibidores da bomba de protões mostraram mais eficácia na prevenção de úlceras e complicações potencialmente hemorrágicas, sendo indiscutivelmente os fármacos de eleição para este efeito.

Num trabalho recente, doentes a tomar AINEs ou COX-2, foram randomizados para tomarem 20 mg ou 40 mg de esomeprazol versus placebo; 20,4% dos doentes sem profilaxia tiveram UP, contra 5,3% no grupo de terapia combinada com 20 mg de esomeprazol e 4,7% com 40 mg9.

Há abundante literatura comparando AINEs COX-2 e anti-inflamatórios não selectivos, com indiscutível benefício dos primeiros, em relação a minorar o risco hemorrágico. Em três ensaios randomizados com 34 doentes 8,11 com artrite a tomar etoricoxib ou diclofnac, verificou-se significativa redução de hemorragias pouco graves no grupo a tomar coxib, embora não houvesse diferenças em relação a episódios mais graves de hemorragia, perfuração ou obstrução10. Uma revisão sistemática Cochrane revê a segurança gastrointestinal dos inibidores da COX-2 demonstrando diferenças significativas na incidência de úlceras e suas complicações. Em relação aos AINEs não selectivos11.

No entanto, está demonstrado que não é suficiente mudar para AINEs tipo COX-2, pois ainda há lesões hemorrágicas, embora em menor percentagem que com os AINEs não selectivos. Em resumo, as recomendações do American College of Gastroenterology indicam que:

1. Um doente que necessite de iniciar AINEs mas que tenha alto risco (úlcera péptica anterior, história de hemorragia, idade avançada, etc.) deve fazer um inibidor COX-2 em conjunto com IBP em dose alta.

2. Um doente de risco moderado pode ser tratado com um COX-2 isoladamente ou com um AINEs não selectivo ao qual se junte um IBP.

3. Doentes de baixo risco poderão tomar AINEs não selectivos, sem protecção.

4. Em doentes que necessitem de anti-inflamatório/analgésico que também tenham que tomar AAS em baixas doses por doença cardiovascular, pode-se prescrever naproxeno com IBP.

5. Doentes com risco moderado em termos gastrointestinais, mas alto risco cardiovascular devem ser tratados com naproxeno mais IBP. Doentes com alto risco gastrointestinal e cardiovascular não devem fazer AINEs nem coxibes.

6. Todos os doentes independentemente dos factores de risco que vão iniciar AINEs tradicionais, devem fazer pesquisa de Hp e tratados, se positivos.

Como se vê não há recomendações para os doentes a tomar só baixas doses de AAS, mas atendendo ao risco demonstrado de hemorragia, poderão ser tratados como os que necessitam de AINEs, embora, provavelmente seja necessário aguardar dados mais definitivos. A junção de clopidogrel tem também que ser equacionada.

De qualquer modo, observando-se a pequena quantidade de doentes a tomar medicação adjuvante eficaz no estudo que comentamos (realizado em 2006), há seguramente um longo caminho a percorrer para estes doentes serem convenientemente protegidos, embora esta problemática tenha sido muito discutida nos últimos 4 anos e possa a situação estar diferente actualmente.

A abordagem endoscópica das lesões também está seguramente diferente, pois ao contrário do que era feito em 2006 com injecção de adrenalina e esclerosante, mudou-se de atitude, quando foi verificado que a adição de eslerosante à injecção de adrenalina não acrescentava eficácia nem à hemostase, nem às recidivas hemorrágicas das úlceras.

Por outro lado a generalização do uso de clips hemostáticos, de árgon plasma e outros métodos térmicos, mudou seguramente o prognóstico das hemorragias agudas por úlceras relacionadas com os AINEs, esperando-se uma oportuna actualização deste interessante trabalho, especialmente no que concerne ao impacto destas técnicas nos prognósticos das hemorragias. Por último, foi bem demonstrado que há vantagens em fazer IBPs em perfusão, depois da hemostase endoscópica12.

Dado, como se viu, haver profundas modificações introduzidas nos últimos anos neste contexto, seria altamente recomendável que este estudo fosse repetido, particularmente num modelo prospectivo, quem sabe por exemplo em 2011, cinco anos depois do trabalho em discussão…!

 

REFERÊNCIAS

1. Couto G, Macedo G, Ribeiro F. Hemorragia digestiva alta associada ao consumo de ácido acetilsalicílico e de anti-inflamatórios não-esteróides em Portugal. Resultados do estudo PARAINES. GE - J Port Gastrenterol 2010;17:200-206.        [ Links ]

2. Guidelines for prevention of NSAID related ulcer complications. Am J Gastroenterol 2009;104:728-738.

3. Kearney PM, Baigent C, Godwin J, et al. Do selective cyclooxygenase 2 inhibitors and tradicional non-steroidal anti inflammatory drus increase the risk of Atherothrombosis? Meta analysis of randomized trials. BMJ 2006:332:1302-1308.

4. Fries JF, Williams CA, Bloch DA, et al. Nonsteroidal anti inflammatory drug associated gastropathy: incidence and risk factor models. Am J Med 1991;91:213-222.

5. Silverstein FE, Graham DY, Senior JR, et al. Misoprostol reduces serious gastrointestinal complications in patients with rheumatoid arthritis receiving nonsteroidal anti-inflammatory drugs - a randomized, double blind placebo controlled trial. Ann Intern Med 1995;123:241-249.

6. McQuaid KR, Laine L. Systemic review and meta-analysis of adverse events of low dose aspirin and clopidogrel in randomized controlled trials. Am J Med 2006;119:624-638.

7. Huang JQ, Sridhar S, Hunt RH. Role of Helicobacter Pylori infection and non steroidal anti-inflammatory drugs in peptic ulcer disease: a meta-analysis. Lancet 2002;359:14-22.

8. Vergara M, Catalán M, Gisbert JP, et al. Meta-analysis: role of Helicobacter Pylori eradication in the prevention of peptic ulcer in NSAID users. Aliment Pharmacol Ther 2005;21:1411-1418.

9. Scheiman JM, Yeomans ND, Talley NJ, et al. Prevention of ulcers  by esomeprazol in at risk patients using non selectiveNSAIDs and COX 2 inhibitors. Am J Gastroenterol 2006;101:701-710.

10. Laine L, Curtis SP, Cryer B, et al. Assessment of upper gastrointestinal safety of etoricoxibe and diclofnac in patients with osteoarthritis and rheumatoid arthritis in the Multinational Etoricoxib and diclofnac arthritis long term (MEDAL) programme: a randomized comparison. Lancet 2007;369:465-473.

11. Rostom A, Muir K, Dubé C, et al. Gastrointestinal safety of cycooxygenase -2 inhibitors: a Cochrane collaboration Systematic review. Clin Gastroenterol Hepatol 2007;5:818-828.

12. Sung JJ, Barkun A, Kuipers EJ, et al. Intravenous esomeprazol for prevention of recurrent peptic ulcer bleeding: a randomized trial. Ann Int Med 2009;150:455-464.

 

Correspondência

E-mail: jalexsarmento@gmail.com