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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.30 no.4 Lisboa dez. 2023  Epub 10-Jan-2024

https://doi.org/10.24950/rspmi.2062 

Artigos Originais/ Original Articles

Pneumomediastino como Complicação de Infeção SARS-CoV-2: Série de Casos

Pneumomediastinum as a Complication of SARS-CoV-2 Infection: Case Series

1Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar de Tondela-Viseu, Viseu, Portugal

2Serviço de Medicina Intensiva, Centro Hospitalar de Tondela-Viseu, Viseu, Portugal


Resumo

Introdução:

Apesar de raro, o pneumomediastino tem sido descrito como uma complicação não desprezível nos doentes com infeção SARS-CoV-2, o que, segundo a literatura, não parece estar relacionado com o mecanismo clássico de barotrauma pulmonar. Pretende-se, com este trabalho, alertar para esta entidade nosológica e potencial fisiopatologia, através da descrição de casos de pneumomediastino em doentes com COVID-19 e revisão dos dados disponíveis até ao momento atual.

Métodos:

Análise retrospetiva e descritiva dos casos de pneumomediastino ocorridos em doentes com COVID-19, entre janeiro e fevereiro de 2021, no serviço de Medicina Interna, de um hospital central - avaliação epidemiológica e das comorbilidades de cada doente, evolução da doença, complicações e revisão da literatura disponível até ao momento.

Resultados:

Dos 400 doentes admitidos com COVID-19 ao longo dos 2 meses em estudo, 4 desenvolveram pneumomediastino: todos do género masculino, idade entre os 68 e 81 anos, com várias comorbilidades, predominantemente cardiovasculares. Todos foram submetidos a ventilação mecânica não invasiva, sendo que três deles foram adicionalmente sujeitos a ventilação mecânica invasiva. Evoluíram desfavoravelmente, acabando por falecer.

Conclusão:

O pneumomediastino, como complicação da infeção SARS-CoV-2, revelou-se de grande gravidade, com desfecho negativo em todos os doentes identificados, importando estar atento aos fatores predisponentes, para um diagnóstico precoce e uma atuação atempada.

Palavras-chave: COVID-19/complicações; Pneumomediastino/etiologia.

Abstract

Introduction:

Even though pneumomediastinum cases are t frequent, it has been described as a non-negligible complication in patients with SARS-CoV-2 infection. According to the available literature at this moment, development of pneumomediastinum in patients with SARS-CoV-2 infection does not seem to be related to the classic mechanism of pulmonary barotrauma. This work aims to raise awareness of this nosological entity and its pathophysiology.

Methods:

The authors conducted a retrospective study of all COVID-19 cases with pneumomediastinum between January and February 2021 in an Internal Medicine ward at a Central Hospital - analysis of their comorbidities, disease evolution, complications, and a review of the available literature.

Results:

From 400 patients admitted with COVID-19, in 2 months under study, 4 developed pneumomediastinum: all male, aged between 68 and 81 years, with various comorbidities, mainly cardiovascular. All were subjected to non-invasive mechanical ventilation, with three of them additionally subjected to invasive mechanical ventilation. They evolved unfavorably and ended up dying.

Conclusion:

Pneumomediastinum, as a complication of SARS-CoV-2 infection, proved to be very serious, with a negative outcome in all the identified patients. It is important to be aware of predisposing factors, for early diagnosis and timely intervention.

Keywords: COVID-19/complications; Mediastinal Emphysema/etiology.

Introdução

A infeção pelo coronavírus SARS-CoV-2 pode causar doença respiratória grave. Embora a maioria das pessoas infetadas apresente manifestações clínicas ligeiras, nomeadamente, febre, tosse, dispneia, cefaleias, mialgias e alterações do paladar/olfato, em casos mais graves, a infeção evoluiu para pneumonia com insuficiência respiratória e necessidade de ventilação. É de salientar que a ventilação mecânica não é isenta de complicações, tais como pneumotórax e pneumomediastino.1

Define-se pneumomediastino como a presença de ar no mediastino e, embora possa ser assintomático, apresenta como principais manifestações clínicas dor torácica, dispneia e tosse. Pode classificar-se em traumático [em relação com eventos como barotrauma (ventilação mecânica), trauma torácico ou iatrogenia (procedimentos/cirurgia cardíaca] ou espontâneo (sem relação com eventos prévios). Por sua vez, o pneumomediastino espontâneo pode ser subdividido em primário ou secundário mediante a ausência ou presença de patologia pulmonar, respetivamente.1

A sua fisiopatologia é fundamentalmente explicada pelo fenómeno de Macklin, que identifica o aumento da pressão intra-alveolar como o principal responsável pela distensão e subsequente rutura alveolar com extravasamento do ar para o espaço intersticial, peribrônquico, hilo e mediastino.2 Assim, manobras de Valsava vigorosas (tosse, parto, exercício físico intenso), patologia pulmonar (asma, doença pulmonar obstrutiva crónica, fibrose quística, patologia do interstício), barotrauma (ventilação mecânica ou atividade de mergulho), trauma torácico penetrante com perfuração de estruturas traqueobrônquicas, tabagismo, uso de drogas inalatórias ou infeção do mediastino por microrganismos produtores de gases são fatores que podem contribuir para o seu desenvolvimento.3

Apesar de ser uma condição clínica rara, foi constatado um aumento da sua frequência em doentes com COVID-19 (cerca de 6 vezes mais) - a associação “automática” entre pneumomediastino e mecanismo clássico de barotrauma pulmonar deve, no entanto, ser reconsiderada, já que não parece ser determinante para o seu desenvolvimento.4

Tradicionalmente, o barotrauma pulmonar em doentes com síndrome de dificuldade respiratória aguda (SDRA) tem sido explicado pelo desenvolvimento de pressões elevadas nas vias aéreas. Sabe-se que a SDRA afeta o parênquima pulmonar de forma heterogénea: enquanto uma parte apresenta uma relação ventilação/perfusão e complacência pulmonar normal, outra parte é pouco arejada exigindo valores maiores de pressão por forma a obter o valor adequado de volume corrente, o que se consegue através da ventilação mecânica. Não obstante, a exposição dos “alvéolos saudáveis” a volumes e pressões maiores, pode contribuir para a sua distensão e rutura - o extravasamento do ar próximo da bainha broncovascular tende a dirigir-se para o hilo e, pela proximidade anatómica e diminuição do gradiente de pressão, para o mediastino - aparecendo, assim, o pneumomediastino.5,6

Apesar da veracidade da afirmação anterior, estudos mais recentes têm demonstrado que a presença de ar fora da árvore traqueobrônquica (pneumotórax, pneumomediastino, enfisema subcutâneo) nem sempre está relacionada com as pressões das vias aéreas e volume corrente. A presença de doença pulmonar subjacente, sobretudo na ausência de barotrauma, também deve ser considerada como causa de pneumomediastino (como já mencionado anteriormente quer as doenças pulmonares obstrutivas quer a SDRA são fatores de risco per si para o desenvolvimento de pneumomediastino).4

Para além de alertar para esta entidade nosológica e sua fisiopatologia, este trabalho tem como objetivo avaliar as características epidemiológicas, principais comorbilidades, evolução da doença e complicações dos doentes apresentados.

Métodos

Análise retrospetiva e descritiva de todos os casos de pneumomediastino ocorridos em doentes com COVID-19, entre janeiro e fevereiro de 2021, no serviço de Medicina Interna, de um hospital central, com base nos registos de SClinic, compreendo a avaliação das características epidemiológicas, comorbilidades, evolução da doença e complicações dos doentes identificados. Por fim, procedeu-se à comparação dos dados obtidos com os estudos disponíveis, através da consulta dos artigos publicados na PubMed desde 2019, usando como terminologia da pesquisa [Pneumomediastin; COVID-19].

Resultados

Foram identificados 4 casos de pneumomediastino, em 400 doentes admitidos com COVID-19, nos 2 meses em es-tudo. Todos do género masculino, idade entre os 66 e 81 anos, com várias comorbilidades, sendo os fatores de risco cardiovascular os mais prevalentes - à admissão, apresentavam febre e dispneia como principais manifestações (Tabela 1). Todos foram submetidos a ventilação mecânica não invasiva, sendo que três deles foram adicionalmente sujeitos a ventilação mecânica invasiva, procurando-se utilizar parâmetros de ventilação protetora [que inclui monitorização dos seguintes parâmetros: volume corrente 6-8 mL/kg, pressão de platteau < 30 cm H20 e ajuste de pressão expiratória final positiva (PEEP) adequado]. Evoluíram desfavoravelmente, com sobreinfecção bacteriana e disfunção multiorgânica, que culminou na sua morte (Tabela 2). A seguir, discriminam-se os casos avaliados.

Tabela 1: Caraterísticas epidemiológicas e sintomas à admissão dos doentes apresentados. 

Tabela 2: Evolução ao longo do internamento. 

CASO 1

Homem, 66 anos, autónomo, obeso [índice de massa corporal (IMC) 31], com antecedentes de diabetes mellitus tipo 2 (DM2), esteatose hepática, trombocitopenia crónica, descrito como incumpridor terapêutico.

Recorreu ao serviço de urgência (SU) por dispneia, mialgias e febre com cerca de 4 dias de evolução. À admissão, apresentava saturação periférica de oxigénio (O2) de 88% com FiO2 de 21%, tensão arterial (TA) de 153/86 mmHg, frequência cardíaca (FC) de 101 bpm. Gasimetricamente, com insuficiência respiratória tipo 1 com necessidade de O2 suplementar de 2-3 L/min para PaO2/FiO2 de 209. Analiticamente, com trombocitopenia (59 000 G/L), rabdomiólise [CK 9x o limite superior da normalidade (LSN)] e elevação das enzimas de citólise hepática (aspartato aminotransferase 3xLSN e alanina aminotransferase 2xLSN). Radiologicamente, com infiltrado intersticial bibasal. Admitido em internamento, por infeção SARS-CoV-2 doença grave (dia 4 de doença) e as alterações analíticas supracitadas.

Durante a permanência na enfermaria, evoluiu com necessidades crescentes de oxigenoterapia até máscara de alta concentração (MAC), com má resposta ventilatória. Ao quarto dia de internamento, iniciou ventilação mecâ-nica não invasiva (VNI), que manteve durante 4 dias com boa evolução, com posterior desmame progressivo para oxigenoterapia por máscara de Venturi. Ao oitovo dia de internamento, por deterioração neurológica ("agitado, não colaborante, não abre os olhos") realizou tomografia crânio-cervical (TC-CE) que não evidenciou lesões agudas. Por manter alteração do estado de consciência e agravamento da insuficiência respiratória, reiniciou VNI ao 10º dia de internamento, desta vez sem resposta e com necessidade de escalada de FiO2 (gasimetricamente, sob PEEP 10cmH20 e FiO2 60%, apresentava PaO2/FiO2 de 75).

Clinicamente, com taquipneia e sinais de dificuldade respiratória. Ao 13º dia de internamento, realizou angiotomografia (angio-TC) do tórax que evidenciou “alterações no parênquima pulmonar em quase toda a totalidade (opacidades em vidro despolido difusas que envolvem entre 75% a 90% do pulmão, associada a consolidações dos lobos inferiores, sem cavitações pulmonares), com pequeno pneumotórax à direita e pneumomediastino, com enfisema subcutâneo à esquerda, sem derrame pleural nem sinais de tromboembolismo pulmonar” (Fig. 1).

Figura 1: Angio-TC, caso 1: Opacidades em vidro despolido, com pneumomediastino e enfisema subcutâneo à esquerda. 

Ao 13º dia de internamento/ 17º dia de doença, foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente (UCIP). Iniciou ventilação mecânica invasiva e dexametasona de acordo com o protocolo de corticoterapia em doentes com pneumonia a SARS-CoV-2, mas evolui para choque sético com ponto de partida em pneumonia e bacteriemia a Klebsiella pneumoniae (antibioterapia em curso piperacilinatazobactan e vancomicina), com disfunção hematológica, hepática, renal e cardiovascular, mioneuropatia e encefalopatia multifatorial. Foi também diagnosticado nessa altura com hepatite C. Apesar da terapêutica instituída, o doente evoluiu com disfunção multiorgânica, vindo a falecer ao 27º dia de internamento.

CASO 2

Homem, 73 anos, autónomo, com antecedentes de doen-ça renal crónica (DRC estadio 3b), regurgitação mitral de grau ligeiro, nódulo tiroideu benigno e dislipidemia.

Recorreu ao SU por dispneia, febre, tosse, congestão nasal, cansaço e mialgias com cerca de 8 dias de evolução, com diagnóstico há 3 dias de infeção SARS-CoV-2. À admissão, com saturação periférica de O2 de 70% (FiO2 21%), TA de 170/80 mmHg, FC 130 bpm e febre (38,5ºC - temperatura timpânica). Gasimetricamente, com insuficiência respiratória tipo 1, sob FiO2 50% apresentava PaO2/FiO2 de 86. Analiticamente, com leucocitose (2070x10^9/L), anemia normocitica e normocrómica, lesão renal aguda (LRA) KDIGO 3, com aumento dos marcadores inflamatórios. Radiologicamente, com infiltrados periféricos dispersos. Admitido em internamento, por infeção SARS-CoV-2, doença grave (dia 3 de doença), com sobreinfeção bacteriana.

Durante a permanência na enfermaria, cumpriu 7 dias de ceftriaxone e dexametasona. Iniciou VNI logo à admis-são no internamento, com necessidade múltiplos ajustes dos parâmetros ventilatórios, alternando posteriormente com MAC. Ao nono dia de internamento, sob VNI, mantinha agravamento respiratório (gasimetricamente, sob PEEP 10 cm H20 e com FiO2 90%, apresentava PaO2/FiO2 de 76), pelo que realizou angio-TC tórax que revelou “tromboembolia pulmonar aguda (TEP), envolvendo a artéria segmentar latero-basal posterior do lobo inferior direito e seus ramos, ainda com pequenos trombos em artérias segmentares posteriores e basais do lobo inferior direito, moderado enfisema subcutâneo, volumoso pneumomediastino e pequeno pneumotórax e várias adenopatias envolvendo os diferentes compartimentos mediastínicos” (Fig. 2). Assim, procedeu-se à redução dos valores de pressão e iniciou pulsos de metilprednisolona durante 3 dias, seguidos de prednisolona, em esquema de desmame. Iniciou enoxaparina em dose terapêutica dado TEP. Dessaturação periférica para 84%-86% após tentativas de redução da PEEP para 8 cm H2O.

Figura 2: Angio-TC, caso 2: Enfisema subcutâneo, com pneumomediastino e pneumotórax. 

Ao 11º dia de internamento/14º dia de doença, o doente foi admitido na UCIP onde foi submetido a ventilação mecânica invasiva. Apesar dos ajustes ventilatórios, mantinha de forma persistente, PaO2/FiO2< 100, tendo realizado TC-tórax ao 19º dia de internamento que revelou “exuberante pneumomediastino; enfisema subcutâneo exuberante; pneumoperitoneu e extenso padrão em vidro despolido; TEP no lobo inferior direito”. Do ponto de vista cardiovascular, evoluiu com instabilidade e necessidade de suporte aminérgico. Realizou rastreio sético para despiste de complicação infeciosa e foi instituída antibioterapia empírica de largo espetro (meropenem). Apesar das medidas terapêuticas instituídas (sem identificação de agente microbiológico) e da otimização da terapêutica ventilatória, veio a falecer ao 22º dia de internamento.

CASO 3

Homem, 73 anos, autónomo, com antecedentes de DM2, hipertensão arterial (HTA), hiperuricemia, dislipidemia e com hábitos etílicos (40 g álcool/dia).

Recorreu ao SU por síndrome confusional, com saturação periférica de O2 de 71%, com FiO2 de 21%, gasimetricamente, sob MAC, apresentava um gradiente PaO2/FiO2 de 116. Analiticamente com trombocitopenia (126000 G/L), elevação das enzimas de colestase 2-3xLSN e aumento dos parâmetros inflamatórios. Radiologicamente, com infiltrado intersticial bibasal. Admitido em internamento por pneumonia a SARS-CoV-2 (dia 1 de doença) com insuficiência respiratória tipo 1.

Durante a permanência na enfermaria, cumpriu 8 dias de dexametasona e 7 dias de antibioterapia empírica com ceftria-xone por sobreinfeção bacteriana. Iniciou VNI logo à admissão, mas manteve agravamento da insuficiência respiratória, com necessidades crescentes de FiO2 até 75% (gasimetricamente, sob PEEP 9 cm H20 e FiO2 75%, apresentava PaO2/FiO2 de 87). Ao 8º dia de internamento, realizada angio-TC do tórax que revelou “pneumomediastino, com ar a dissecar também os tecidos da vertente anterior da região supradia-fragmática, bilateralmente, com enfisema para a região cervical e extensas áreas de atenuação em vidro despolido, numa extensão de pelo menos 75% do parênquima” (Fig. 3).

Figura 3: Angio-TC, caso 3: Opacidades em vidro despolido, com pneumomediastino. 

Ao oitavo dia de internamento/oitavo dia de doença foi admitido na UCIP, tendo sido submetido a ventilação mecânica invasiva. Necessitou inicialmente de suporte aminérgico e esteve sob antiarrítmicos para controlo de fibrilação auricular (FA).

Identificou-se depois infeção respiratória por Acinetobacter baumanii, tendo cumprido 7 dias de meropenem. Ao 13º dia de internamento, apresentou agravamento da função respiratória, mantendo PaO2/FiO2<150. Ao 14º dia, evolui para quadro de choque sético por pneumonia com disfunção cardiovascular, refratário à terapêutica aminérgica, com PaO2/FiO2<100 e trombocitopenia severa. Apesar das medidas instituídas e otimização da terapêutica ventilatória, o doente veio a falecer ao 27º dia de internamento.

CASO 4

Homem, 81 anos, autónomo, com antecedentes de HTA, DRC estadio 3a, estenose carotídea esquerda, doença coronária isquémica e FA.

Recorreu ao SU por queda, com pesquisa de SARS-CoV-2 positiva, sem critérios de internamento. Regressou novamente ao SU por novo episódio de queda com traumatismo crânio-encefálico e vómitos, constatando-se agravamento da função renal, elevação das enzimas de citólise hepática (2xLSN) e rabdomiólise. Radiologicamente, com infiltrado intersticial bibasal, mais evidente na base direita, pelo que realizou angio-TC para melhor esclarecimento, constatando-se “presença de padrão em vidro despolido visível em todos os lobos de ambos os campos pulmonares”. Admitido em internamento por pneumo-nia a SARS-CoV-2 (dia 2 de doença) sem insuficiência respiratória e lesão renal aguda enxertada em doença renal crónica.

Ao quinto dia de internamento, por febre persistente com 48 horas de evolução, tosse produtiva e insuficiência respiratória iniciou dexametasona e antibioterapia empírica com amoxicilina e ácido-clavulânico, alterada depois para levofloxacina (que cumpriu durante 7 dias). Houve progressivo agravamento, com necessidades crescentes de oxigenoterapia, tendo iniciado VNI ao 11º dia de internamento, contudo manteve PaO2/FiO2 de 120 sem resposta favorável ao VNI. Ao 13º dia realizou angio-TC do tórax que revelou “aspetos em vidro despolido na vertente posterior de ambos os campos do hemitórax, extensa consolidação associada na vertente posterior de todo o pulmão, extenso enfisema subcutâneo e pneumo-mediastino, com pequeno pneumoperitoneu e derrame pleural esquerdo” (Fig. 4). Suspendeu VNI, tendo-se estabelecido que não teria indicação para escalada de nível de cuidados ventilatórios. Por expetoração purulenta e agravamento analítico, foi assumida sobreinfeção bacteriana e realizou meropenem, durante 7 dias. Ao 17º dia de internamento, apresentou hipercaliemia grave refratária. Dado a refratariedade às medidas médicas instituídas, privilegiaram-se medidas de conforto, aca-bando o doente por falecer ao 18º dia de internamento.

Figura 4: Angio-TC, caso 4: Opacidades em vidro despolido, com pneumomediastino. 

Discussão

Relativamente aos casos aqui expostos, todos os doentes são do género masculino, com idades compreendidas entre os 66 e os 81 anos, apresentando várias comorbilidades, nomeadamente fatores de risco cardiovascular, concordante com a bibliografia disponível até ao momento na qual se verifica um predomínio dos casos de pneumomediastino em pessoas do género masculino, com faixa etária entre 60-70 anos de idade, com comorbilidades, nomeadamente diabetes mellitus e hipertensão arterial.4

Também em concordância com os estudos, a febre e dispneia foram as principais manifestações clínicas presentes à admissão no internamento - de acordo com os dados disponíveis, acredita-se que poderá existir uma relação entre a duração dos sintomas e o risco de desenvolvimento de pneumomediastino - quanto mais tempo o doente permanecer sintomático, maior o risco de desenvolver esta complicação.3,7De facto, nos casos representados, no momento de diagnóstico de pneumomediastino (entre o oitavo e 13º dia de internamento // dia 8-17 de doença), todos os doentes apresentavam ainda sintomas, nomeadamente dificuldade respiratória agravada (uma das principais manifestações clínicas de pneumomediastino, aliada à dor torácica e enfisema subcutâneo).8

Todos os doentes foram submetidos a ventilação mecânica não invasiva, sendo que 3 deles foram adicionalmente sujeitos a ventilação mecânica invasiva - apesar da possível associação clássica entre barotrauma pulmonar pela ventilação mecânica e o desenvolvimento de pneumomediastino, salienta-se em concordância com a bibliografia atual, que este não parece ser o mecanismo principal para o desenvolvimento desta complicação em doentes com COVID-19.4 De facto, nestes doentes, existe uma elevada incidência de pneumomediastino mesmo quando os critérios de “ventilação protetora” foram cumpridos, reforçando a ideia de que a sua fisiopatologia não parece estar relacionada com o mecanismo clássico de barotrauma pulmonar.4

Um estudo série de autópsias em doentes com COVID-19 revelou que o principal fator (e comum a todos os doentes) na fisiopatologia da infeção SARS-CoV-2 consiste no dano alveolar difuso com evidente resposta inflamatória mononuclear em torno de pequenos vasos sanguíneos trombosados. Uma resposta imunitária inadequada pode intensificar estas alterações, tornando a parede alveolar mais suscetível à rutura com extravasamento do ar para o mediastino.1

Sabe-se, por exemplo, que em relação a outras infeções virais como o vírus influenza, o desenvolvimento de pneumo-mediastino está relacionado com a resposta inflamatória alveolar difusa e com a elevação da pressão intra-alveolar (em parte agravada pelos acessos de tosse), fator que parece ser, então, preponderante também nos doentes com COVID-19.9

Todos os doentes do presente estudo faleceram, o que pode estar relacionado com as comorbilidades e complicações desenvolvidas ao longo do internamento (nomeadamente sobreinfecção bacteriana/sépsis, tromboembolia pulmonar), pela própria extensão do pneumomediastino e afeção do interstício pulmonar pela infeção SARS-CoV-2.4 Segundo os dados disponíveis até ao momento, constata-se uma maior mortalidade em doentes com COVID-19 e pneumomediastino comparada com aqueles que não desenvolvem esta complicação. Também se verifica que doentes idosos, obesos, com DM2 ou patologia pulmonar de base têm uma maior propensão para apresentar um desfecho negativo (caraterísticas presentes nos doentes identificados).7

Conclusão

Segundo a literatura disponível até ao momento, registou-se um aumento dos casos de pneumomediastino em doentes com infeção SARS-CoV-2, admitindo-se que o principal mecanismo associado ao seu desenvolvimento não parece estar relacionado com o barotrauma pulmonar imposto pela ventilação mecânica, mas sim com a resposta inflamatória e dano alveolar imposto pelo próprio vírus. Por outro lado, existem outros fatores que podem incrementar o risco de desenvolvimento desta complicação - na amostra identificada, os fatores de risco cardiovasculares foram prevalentes, carecendo de mais estudos que permitam entender o seu contributo para este processo fisiopatológico.

Em suma, importa estar atento a esta entidade nosológica, sobretudo na presença de fatores predisponentes, sendo imperativa a vigilância e monitorização de doentes com COVID-19, para uma atuação atempada e adequada, dada a elevada mortalidade associada a esta condição.

Apresentações prévias

Trabalho apresentado, como abstract/poster, no Congresso Europeu de Medicina Interna em 2022.

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3Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

4Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

5Proteção de Pessoas e Animais: Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia revista em 2013 e da Associação Médica Mundial.

6Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

8Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

9Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

10Protection of Human and Animal Subjects: The authors declare that the procedures followed were in accordance with the regulations of the relevant clinical research ethics committee and with those of the Code of Ethics of the World Medical Association (Declaration of Helsinki as revised in 2013).

11Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer re-viewed.

12© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2023. Reutilização permitida de acordo com CC BY. Nenhuma reutilização comercial. © Author(s) (or their employer(s)) and SPMI Journal 2023. Re-use permitted under CC BY- commercial re-use.

Recebido: 27 de Junho de 2023; Aceito: 31 de Outubro de 2023

Correspondence / Correspondência: Joana Gomes da Cunha - joanagcunha95@gmail.com Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar de Tondela-Viseu, Viseu, Portugal Av. Rei Dom Duarte, 3504-509 - Viseu

Declaração de Contribuição JGC, AL, RSA, SSP, RV, BQ, VR - Participação na avaliação dos doentes, elaboração do artigo Todos os autores aprovaram a versão final a ser publicada. Contributorship Statement JGC, AL, RSA, SSP, RV, BQ, VR - Participation in patient assessment, article writing All authors approved the final draft.

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

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