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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.29 no.4 Lisboa dez. 2022  Epub 02-Jan-2023

https://doi.org/10.24950/rspmi.501 

Casos Clínicos/ Case Reports

Síndrome de Resposta Inflamatória Multissistémica do Adulto: Uma Apresentação Rara da Infeção por SARS-CoV-2

Multisystem Inflammatory Syndrome-Adult: A Rare Presentation of Infection by SARS-CoV-2

1Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Viseu-Tondela, Viseu, Portugal

2Serviço de Cardiologia, Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, Penafiel, Portugal


Resumo

Entre as demais manifestações da COVID-19, encontramos a síndrome inflamatória multissistémica (MIS), que se caracteriza por um estado hiperinflamatório em que ocorre disfunção multiorgânica.

Mulher, 22 anos, recorreu ao serviço de urgência (SU) por quadro de tosse seca, mialgias, exantema e febre com 3 dias de evolução. A pesquisa de PCR para SARS-CoV-2 positiva. Admitida em internamento em dia 5 de doença por agravamento sintomático. Apresentava lesões em placas eritematovioláceas no tronco, coxas e dorso das mãos. Em dia 7 de doença, agravamento clínico, pelo que realizou tomografia computorizada revelando achados compatíveis com hipoperfusão renal, esplénica e hepática. Ecocardiograma mostrou disfunção sistólica por hipocontratilidade global (FEVE 25%-30%). Admitiu-se síndrome inflamatória multissistémica do adulto (MIS-A), com envolvimento cutâneo, gastrointestinal e cardíaco. Cumpriu terapêutica com imunoglobulina humana, metilprednisolona e diuréticos, com progressiva melhoria clínica e recuperação da função cardíaca.

Contrariamente às formas graves mais comuns de in-feção por SARS-CoV-2, em que o envolvimento pulmonar impera, nesta síndrome o acometimento respiratório é frequentemente ligeiro, tornando-a um desafio diagnóstico.

Palavras-chave: COVID-19; Exantema; Insuficiência Cardíaca; SARS-CoV-2; Síndrome de Resposta Inflamatória Multissistémica.

Abstract

Among the manifestations of COVID-19, we find multisystem inflammatory syndrome (MIS), characterized by a hyperinflammatory state in which multiorgan dysfunction occurs.

A 22-years-old woman came to the emergency department with dry cough, myalgias, rash and fever for 3 days. PCR for SARS-CoV-2 was positive. Admitted to hospital on day 5 of disease due to symptomatic worsening. She had lesions in erythematous-violaceous plaques on the trunk, thighs and back of the hands. On day 7 of disease, clinical worsening, so a computed tomography scan was performed revealing findings compatible with renal, splenic and hepatic hypoperfusion. Echocardiogram showed systolic dysfunction due to global hypocontractility (LVEF 25%-30%). MIS-A was admitted, with cutaneous, gastrointestinal and cardiac involvement. She was treated with human immunoglobulin, methylprednisolone and diuretics, with progressive clinical improvement and recovery of cardiac function.

Contrary to the more common severe forms of SARS-CoV-2 infection, in which pulmonary involvement prevails, in this syndrome the respiratory involvement is often mild, making it a diagnostic challenge.

Keywords: COVID-19/complications; Exanthema; Heart Failure; SARS-CoV-2; Systemic Inflammatory Response Syndrome.

Introdução

Desde os primeiros casos de COVID-19 na China em 2019, já houve milhões de infetados com um número crescente de mortes em todo o mundo.1

Entre as manifestações da COVID-19, encontramos a síndrome inflamatória multissistémica (MIS), inicialmente descrito em crianças (MIS-C)2,3havendo poucos casos des-critos em adultos.4-6

Caso Clínico

Mulher de 22 anos, previamente saudável, recorre ao serviço de urgência (SU) por quadro de tosse seca, mialgias, astenia, anosmia, ageusia e odinofagia com 3 dias de evolução. Concomitantemente apresentava um exantema maculopapular não pruriginoso, inicialmente nas coxas, com progressão para o tronco e membros superiores, pou-pando a face, palmas e plantas das mãos e pés.

Foi avaliada no SU, apresentando-se normotensa, taquicardica, com temperatura timpânica de 39,3ºC, SpO2 96% (FiO2 21%), sem alterações de relevo ao exame objetivo, à exceção das alterações cutâneas descritas.

Analiticamente destacava-se anemia normocítica nor-mocrómica, trombocitopenia ligeira, hiponatremia, aumento das transaminases hepáticas e PCR aumentada (Tabela 1).

Tabela 1: Evolução analítica apresentada por dia de doença. 

A radiografia do tórax não mostrava alterações parenquimatosas (Fig. 1) e a PCR para SARS-CoV-2 foi positiva.

Figura 1: Radiografia de tórax realizada na primeira admissão no SU à esquerda e na segunda admissão à direita. 

Admitida infeção por SARS-CoV-2 ligeira com possível sobreinfeção bacteriana. Teve alta com medidas de isolamento preconizadas pela Direção Geral da Saúde e medicada com amoxicilina e ácido clavulânico.

Por agravamento da sintomatologia, cansaço para pequenos esforços, intolerância alimentar e diarreia, retornou ao SU dois dias depois.

Ao exame objetivo encontrava-se com TA 74/45 mmHg, FC 109 bpm, FR 18 cpm com SpO2 de 97% em ar ambiente, mantendo o exantema já descrito anteriormente, sem outras alterações de relevo.

Analiticamente com leucocitose, neutrofilia, linfopenia, anemia normocítica normocrómica, trombocitopenia, hiponatremia, aumento das transaminases, PCT 15,65 ng/mL e PCR 16,45 mg/dL (Tabela 1).

Gasimetricamente em ar ambiente apresentava pH 7,46, pO2 88 mmHg, pCO2 33 mmHg (relação paO2/FiO2 419), hipocaliémia (3,0 mEq/L).

A radiografia do tórax mostrava um infiltrado intersticial difuso e aumento da silhueta cardíaca (Fig. 1).

Admitida em internamento por infeção SARS-CoV-2 com possível afetação cutânea, provável sobreinfeção bacteriana, hiponatremia e hipocaliemia secundárias a vómitos e diarreia. Manteve antibioterapia instituída previamente.

Foi observada por Dermatologia com descrição de dermatose simétrica, polimorfa, constituída por manchas e placas eritemato-violáceas, não descamativas, de configuração em alvo, localizadas no tronco, coxas e dorso das mãos, mucosas aparentemente poupadas (Fig. 2). Impressão diagnóstica de eritema multiforme de provável etiologia vírica. Foram excluídas outras possíveis etiologias, como infeção por Mycoplasma, hepatites víricas, VIH, EBV e CMV.

Figura 2: Eritema multiforme no tronco, peito e membros inferiores, na admissão no internamento 

Em dia 7 de doença, apresentou agravamento clínico, com taquipneia (FR 30 cpm), TA de 86/50 mmHg e toracalgia com insuficiência respiratória tipo 1 de novo (relação paO2/FiO2 229).

Analiticamente com parâmetros inflamatórios em perfil descendente, marcadores de necrose miocárdica negativos, anemia sem agravamento, NT-pro-BNP 11140 ng/dL. ECG sem alterações sugestivas de isquemia miocárdica.

Realizou tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica com contraste que não apresentava imagens sugestivas de infiltrados ou de consolidações ao nível do parênquima pulmonar, nem sinais de tromboembolismo; moderado derrame pleural direito, fígado de aspeto marmoreado, com edema periportal, sinais de hipoperfusão renal, esplénica e hepática e moderada ascite (Fig. 3).

Figura 3: TC toraco-abdomino-pélvica, realizada em dia 7 de doença, moderado derrame pleural direito e pequeno derrame pleural esquerdo, fígado de aspeto marmoreado, com edema periportal. 

Realizou ecocardiograma transtorácico, que mostrou disfunção sistólica moderada por hipocontratilidade global (FEVE 25%-30%), ventrículo direito com diminuição da função sistólica longitudinal, insuficiência mitral moderada e insuficiência tricúspide grave.

Assim, na ausência de evidência de alterações pulmonares condizentes com afeção pulmonar por COVID-19, presumiu-se insuficiência respiratória tipo 1 em relação com insuficiência cardíaca aguda com disfunção biventricular e consequente hipoperfusão multiorgânica. Transferida para a UCIC para monitorização e avaliação da evolução da função cardíaca.

Admitiu-se MIS-A, com envolvimento cutâneo, gastrointestinal e cardíaco. Iniciou Imunoglobulina humana 1 g/kg, endovenosa, dividida em duas doses, metilprednisolona 1 mg/kg bid e terapêutica diurética.

Ao terceiro dia após admissão na UCIC, ecocardiograma TT sumário mostrou ventrículo esquerdo com função sistólica global melhorada (FEVE 48%), boa função do ventrículo direito e insuficiência tricúspide e mitral ligeira a moderada. Boa evolução clínica e sintomática, com possibilidade de redução progressiva de oxigénio, terapêutica diurética e de corticoterapia.

Analiticamente parâmetros inflamatórios em decrescendo, transaminases hepáticas e NT-pro-BNP com tendência a normalização (Tabela 1).

À data de alta, em D16 de doença, apresentava melhoria sintomática franca, com lesões cutâneas hiperpigmentadas vestigiais na face interna das coxas e região torácica, quase impercetíveis (Fig. 4). Cumpriu esquema de desmame de corticoterapia no domicílio.

Figura 4: Reminiscentes lesões cutâneas hiperpigmentadas vestigiais na face interna das coxas e membros superiores, à data de alta. 

Reavaliada em consulta externa, referindo melhoria clínica significativa, sem sintomas de novo desde a alta.

Realizou ecocardiograma transtorácico após a alta, que revelou válvula tricúspide com regurgitação de grau mínimo, cavidades esquerdas de dimensões normais, boa função sistólica global (FEVE 64%); sem evidentes alterações da motilidade segmentar e cavidades direitas de dimensões normais e boa função sistólica longitudinal.

Discussão

Novas manifestações da infeção por SARS-CoV-2 foram surgindo, entre as quais a MIS, uma entidade cuja fisiopatologia não está completamente esclarecida.

Apesar de poder haver envolvimento respiratório na MIS-A, ao contrário das formas mais comummente observadas de infeção por SARS-CoV-2, geralmente os sintomas são ligeiros podendo mesmo estar ausentes.4,5

Na MIS-A, é frequente a presença de sintomas gastrointestinais, e o envolvimento cardíaco com arritmias, elevação da troponina, disfunção ventricular esquerda ou direita e miocardite, assim como a febre, hipotensão e choque.4-7

O Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, definiu quatro critérios para o seu diagnóstico: 1. Idade ≥ 21 anos; 2. Ausência de diagnóstico alternativo; 3. Presença de pelo menos 3 critérios clínicos, nomeadamente febre, doença cardíaca severa, rash e conjuntivite não purulenta, sinais e sintomas neurológicos de novo, choque ou hipotensão não atribuível a terapêutica médica ou trombocitopenia e 4. Presença dos critérios laboratoriais, infeção confirmada ou exposição a SARS-CoV-2 e elevação de proteína C reativa, ferritina, IL-6, procalcitonina ou velocidade de sedimentação.8

A suspeita deste diagnóstico na doente apresentada, que cumpria critérios diagnósticos de MIS-A, permitiu uma abordagem atempada com uma boa resposta à terapêutica instituída.

Este caso ilustra a necessidade de alerta para possíveis complicações cardiovasculares da infeção por SARS-CoV-2, reforçando que a MIS é uma entidade que pode ocorrer na idade adulta. Este estado hiperinflamatório e possivelmente imunomediado, pode levar, num curto período de tempo, ao desenvolvimento de doença crítica.9

O tratamento tem-se baseado principalmente em relatos clínicos, tendo por base terapêutica de suporte e anti-inflamatórios, nomeadamente imunoglobulina intravenosa e corticosteroides.10

REFERÊNCIAS

1. covid19.who [homepage na Internet]. World Health Organization: Corona-virus Disease 2019 Dashboard. [consultado 2021 Aug 30]. Disponível em https://covid19.who.int/. [ Links ]

2. Godfred-Cato S, Bryant B, Leung J, Oster ME, Conklin L, Abrams J, et al. California MIS-C Response Team. COVID-19-associated multisys-tem inflammatory syndrome in children - United States, March-July 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020; 69:1074-80. doi: 10.15585/mmwr.mm6932e2. [ Links ]

3. Feldstein LR, Rose EB, Horwitz SM, Collins JP, Newhams MM, Son MBF, et al. Multisystem Inflammatory Syndrome in U.S. Children and Adolescents. N Engl J Med. 2020; 383:334. doi: 10.1056/NEJMoa2021680 [ Links ]

4. Morris SB, Schwartz NG, Patel P, Abbo L, Beauchamps L, Balan S, et al. Case Series of Multisystem Inflammatory Syndrome in Adults Associated with SARS-CoV-2 Infection - United Kingdom and United States, March-August 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020; 9;69:1450-6. doi: 10.15585/mmwr.mm6940e1. [ Links ]

5. Bastug A, Aslaner H, Bilir YAm Kemirtlek N, Gursoy FM, Bsstug S, et al. Multiple system inflammatory syndrome associated with SARS-CoV-2 infec-tion in an adult and an adolescent. Rheumatol Int. 2021;41:993-1008. doi: 10.1007/s00296-021-04843-1. [ Links ]

6. Chau VQ, Giustino G, Mahmood K, Oliveros E, Neibart E, Oloomi M, et al. Cardiogenic Shock and Hyperinflammatory Syndrome in Young Males With COVID-19. Circ Heart Fail. 2020; 13:e007485. doi:10.1161/CIRCHEAR-TFAILURE.120.007485. [ Links ]

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8. Centers for Disease Control and Prevention. Multisystem Inflammatory Syndrome in Adults (MIS-A) Case Definition Information for Healthcare Providers; October 7, 2021; [consultado 2021 Aug 30]. Disponível em: https://www.cdc.gov/mis/mis-a/hcp.htmlLinks ]

9. Veyseh M, Webster P, Blanco I. COVID-19-associated inflammatory syndrome in an adult woman with unexplained multiple organ failure: staying vigi-lant for COVID-19 complications as the pandemic surges. BMJ Case Rep 2021;14:e242034. doi: 10.1136/bcr-2021-242034. [ Links ]

10. Tung-Chen Y, Algora-Martín A, Rodríguez-Roca S, Díaz de Santiago A. COVID-19 multisystemic inflammatory syndrome in adults: a not to be mis-sed diagnosis. BMJ Case Rep 2021; 14:e241696. [ Links ]

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

4Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

5Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

6Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

9Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

10Patient Consent: Consent for publication was obtained.

11Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer re-viewed.

12© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2022. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial. © Author(s) (or their employer(s)) and SPMI Journal 2022. Re-use permit-ted under CC BY-NC. No commercial re-use

Recebido: 14 de Março de 2022; Aceito: 09 de Junho de 2022

Correspondence / Correspondência: Dora Gomes - dorag2908@gmail.com Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Viseu-Tondela, Viseu, Portugal Av. Rei D. Duarte, 3504-509 Viseu

1ª autoria partilhada/first co-authors

Declaração de Contribuição DG, DD - Pesquisa científica, análise de dados e redação do manuscrito CO, AV - Revisão científica, redação e aprovação do manuscrito JC, IA - Revisão científica Todos os autores aprovaram a versão final a ser submetida. Contributorship Statement DG, DD - Scientific research, data analysis and manuscript writing CO, AV - Scientific review, drafting and approval of the manuscript JC, IA - Scientific review All authors approved the final draft.

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

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