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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.29 no.4 Lisboa dez. 2022  Epub 02-Jan-2023

https://doi.org/10.24950/rspmi.227 

Casos Clínicos/ Case Reports

Trombocitopenia Trombótica Imune Induzida pela Vacina Contra a COVID-19

SARS-CoV-2 Vaccine-Induced Immune Thrombotic Thrombocytopenia

1Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar e Universitário do Porto, Porto, Portugal

2Serviço de Neurorradiologia, Centro Hospitalar e Universitário do Porto, Porto, Portugal

3Serviço Medicina Interna e Medicina Intensiva, Centro Hospitalar e Universitário do Porto, Porto, Portugal


Resumo

Um ano depois de declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde, surgiram as primeiras vacinas contra o vírus SARS-CoV-2. Na literatura, dados referentes ao Reino Unido e aos Estados Unidos da América (EUA) sugerem que a vacinação - uma ou duas doses - reduziu as hospitalizações entre 67% e 94%. Em fevereiro de 2021 foram descritos os primeiros casos de trombocitopenia e trombose em locais atípicos, nomeadamente a nível do seio venoso cerebral e na circulação venosa esplâncnica, associadas à toma da vacina. Os primeiros estudos nos EUA sugerem uma incidência (provavelmente subestimada) de 1 em 533 333/indivíduos vacinados. Apesar de incomum, é um efeito adverso grave com alta taxa de mortalidade, estimada em 20%, em parte pelo diagnóstico tardio, pois a clínica inicial é muitas vezes inespecífica e frustre. Este relato de caso salienta a necessidade de um elevado índice de suspeição ab initio, que pode mudar o prognóstico destes doentes.

Palavras-chave: COVID/prevenção e controlo; SARS--CoV-2; Trombocitopenia/induzida quimicamente; Trombose Venosa; Vacina contra COVID-19/efeitos adversos.

Abstract

The first vaccines against the SARS-CoV-2 virus appea-red one year after the WHO declared COVID-19 as a pandemic, with data from United Kingdom and United States of America (USA) reporting a reduction in hospitalization about 67% e 94%, with one or two doses of an approved vaccine. In February 2021, the first cases of thrombocytopenia and thrombosis at uncommon sites (cerebral venous sinus and splanchnic venous thrombosis) induced by the vaccines were described. The incidence is still unknown, but early studies in the USA suggest an incidence of 1 in 533 333/vaccinated individuals, and this is probably underestimated. Although un-common, it is a serious adverse effect with a high mortality rate, estimated at 20%. This case report highlights the need for a high level of suspicion, which may change the prognosis of some of these patients.

Keywords: COVID-19 Vaccines/adverse effects; COVID-19/prevention & control; SARS-CoV-2; Venous Thrombosis; Thrombocytopenia/chemically induced.

Introdução

A pandemia pelo SARS-CoV-2 obrigou a uma rápida atuação pelas entidades de saúde sendo que em um ano, várias vacinas contra o vírus foram desenvolvidas.1

Relataram-se raros casos de efeitos adversos graves, sendo que em fevereiro de 2021 foram descritos pela primeira vez casos de trombocitopenia e trombose em locais pouco co-muns nomeadamente a nível da circulação venosa esplâncnica e nos seios venosos cerebrais.2 Estes eventos verificaram-se cerca de duas semanas após a toma da vacina, inicialmente descritos após a vacina da AstraZeneca (ChAdOx1 nCoV-19), e mais tarde, em abril de 2021, também em relação com a vacina Johnson & Johnson (Ad26COV2).2 Dadas as semelhanças com a trombocitopenia induzida pela heparina, denominou-se esta entidade como trombocitopenia trombótica induzida pela vacina (TTIV).3 A Agência Europeia do Medicamento estima uma incidência de TIVV após a vacina da AstraZeneca entre 1 em 125 000 e 1 em 1 000 000.3 O mecanismo exato desta entidade não é ainda totalmente compreendido.3 Parece ser mais frequente em mulheres em idade jovem (20 a 55 anos).3 O tratamento, dependendo da gravidade, passa por imunoglobulinas intravenosas e anticoagulantes - que não a heparina.3 O reconhecimento precoce é importante na medida em que poderá minimizar a morbimortalidade a longo prazo.3

Por tudo isto, a notificação destes casos é importante pois contribui para o reconhecimento e compreensão desta síndrome.4

Caso Clínico

Mulher de 68 anos, com contexto clínico de hipotiroidismo suplementado com levotiroxina e ainda medicada cronicamente com omeprazol e alprazolam, foi admitida na sala de emergência após ter sido encontrada em casa estuporo-sa. À observação na sala de emergência pontuava 6 pontos na escala de coma de Glasgow (O2V1M3), apresentava anisocoria (E>D), desvio conjugado do olhar para a esquerda, reflexo cutâneo-plantar indiferente bilateralmente, estava hipertensa, normoglicemica e com sinais de má perfusão periférica. Dois dias antes havia referido queixas de mal-estar generalizado e vómitos. Sem internamentos prévios ou toma de anticoagulantes.

Não existia história pessoal ou familiar de trombofilia ou eventos trombóticos prévios; não teve nenhum internamen-to recente, não havia toma de anticoagulantes, nomeada-mente heparina. Não havia alterações terapêuticas prévias recentes. Analiticamente apresentava 19 000 plaquetas (com contagem de plaquetas normais em estudo analítico do início do mês), com informação adicional de ausência de agregados plaquetários. Sem alteração da função renal nem do ionograma, sem alteração do painel hepático (Tabela 1). Doseamento de álcool sem níveis tóxicos e pesquisa de drogas de abuso na urina apenas com positividade para benzodiazepinas. Electrocardiograma em ritmo sinusal. Realizado TC cerebral com estudo angiográfico arterial, pela suspeita de evento vascular cerebral, que confirmou enfarte cerebral bilateral por oclusão bilateral das artérias carótidas (Figs. 1 a 4). Pela história, cedida pelo filho, de vacinação (ChAdOx1) dez dias antes, foi pedido estudo da coagulação que mostrou d-dímeros aumentados, fibrinogénio, TP e aPTT normais (Tabela 1) e anticorpos anti-PF4/heparina que foram positivos. A pesquisa de SARS-CoV-2 foi negativa. Dado o enfarte já estabelecido, com ausência de circulação anterior bilateralmente, não havia indicação para qualquer intervenção na fase aguda, estando associado a mau prognostico vital a curto prazo. O caso foi notificado ao INFARMED.

Tabela 1: Parâmetros analíticos da doente à admissão. 

Figura 1: TC, cortes axiais, desde a base do crânio até à alta convexidade. Lesões isquémicas recentes fronto-temporo-parietais cortico-subcorticais e profundas, com envolvimento estriato-capsular e da ínsula (território carotídeo bilateral). 

Figura 2: Angio-TC, cortes axiais, MIP. Ausência de preenchimento do topo das artérias carótidas internas (ACI) [setas tracejadas], artérias cerebrais médias [setas] e cerebrais anteriores [pontas de setas], contrastando com o normal preenchimento da circulação vertebro-basilar. 

Figura 3: Angio-TC, cortes coronais, MIP. Ausência da ACI direita [seta] e da ACI e ramos da ACE à esquerda [seta tracejada] - estes achados podem ser melhor interpretados na reconstrução 3D; refere-se a ausência/paucidade de ramos arteriais intracranianos. 

Figura 4: Reconstrução 3D MIP. Ausência de preenchimento das ACI direita e esquerda, e de ramos da artéria carótida externa (ACE) esquerda - oclusão da ACI direita e da artéria carótida comum (ACC) esquerda - o potencial trajeto de am-bas as ACI encontra-se representando a tracejado; refere-se a presença de ramos da ACE direita (seta), não visíveis à esquerda (oclusão da ACC). 

Discussão

A trombocitopenia trombótica imune induzida pela vacina (TTIV) é uma síndrome imune que, pelos dados disponíveis até ao momento, parece ser uma variante da trombocito-penia induzida por heparina (TIH) - dada a presença de trom-bocitopenia, trombose e tendo em conta que a presença de anticorpos anti-PF4/Heparina.1,5,6Por outro lado, e apesar da infeção pelo SARS-CoV-2 estar associada a um estado de hipercoaguabilidade, a TIIV não parece ser uma manifestação da doença já que a grande maioria dos casos relatados ocorreram em doentes com teste de RNA do SARS-CoV-2 negativo. O despoletante e os fatores de risco para a TTIV são ainda desconhecidos.7

Esta síndrome é mais frequente em mulheres com menos de 50 anos e mais raro em doentes com mais de 70 anos.2 É uma entidade com mau prognóstico e que se associa a eventos trombóticos mais frequentemente venosos, em locais incomuns nomeadamente no leito venoso cerebral e/ou esplâncnico, trombocitopenia moderada a severa, coagulopatia e anticorpos anti-PF4 positivos.2 É, até ao momento, uma reação adversa rara, e por isso os benefícios da vacina ultrapassam este risco; todavia, dado o reconhecimento tardio na maioria dos casos relatados, associou-se a uma mortalidade de 20%, sendo de cerca de 70% em doentes que se apresentaram com trombocitopenia severa e hemorragia cerebral ou trombose dos seios venosos.1,2,8Os sintomas ainda que por vezes inespecíficos, dependem sobretudo do território afetado pelo trombo, podendo haver cefaleia, alterações de visão, dor abdominal, náuseas e vómitos, dispneia, dor ou edema do membro inferior, petéquias ou hemorragia espontânea.7,9,10Habitualmente a sintomatologia surge entre o 6º e 14º dia após a toma da vacina.7,9,10Para o diagnóstico são necessários quatro critérios: vacina da COVID-19 nos 42 dias prévios (frequentemente apenas com 1 toma da vacina), a documentação imagiológica de evento trombótico arterial ou venoso, trombocitopenia e anticorpos anti-PF4 positivos (método ELISA).3 A ausência de trombocitopenia não excluiu o diagnóstico, já que o doente pode encontrar-se numa fase inicial deste quadro clínico.9,10A maioria dos doente tem d-dímeros elevados e em alguns doentes há diminuição do fibrinogénio.8,10

Na doente que apresentamos não havia fatores de risco cardiovascular. Também não se encontrou história pessoal ou familiar de trombofilia e também não existia história de eventos trombóticos prévios. Não teve nenhum internamento recente. Não havia toma de anticoagulantes, nomeadamente heparina. Conforme se pode ver na Tabela 1, não havia anemia nem parâmetros bioquímicos sugestivos de hemólise intra-vascular. A leucocitose com neutrofilia bem como o aumento da proteína C reativa foram interpretados no contexto do evento agudo.

A temporalidade entre a toma da vacina e a apresentação com trombocitopenia severa, anticorpos anti-PF4 positivos, d-dímeros muito aumentados e a comprovação imagiológica de enfarte cerebral bilateral e extenso da circulação anterior, culminou na assunção deste diagnóstico.

Sugere-se que o tratamento desta entidade seja semelhante ao da TIH nomeadamente com imunoglobulinas e anticoagulantes, que não heparinas.5,6,10Neste caso a doente apresentava-se num estado clínico grave e irreversível, sem benefícios em manter medidas de suporte avançado de órgão, tendo vindo a falecer.

Conclusão

O conhecimento desta entidade pelos clínicos permitirá um melhor e atempado reconhecimento da mesma, o que poderá permitir melhorar o prognóstico de alguns destes doentes através de uma atuação precoce. Para isto, é fundamental um alto nível de suspeição e a realização de protocolos de atuação.

REFERÊNCIAS

1. Scully M, Singh D, Lown R, Poles A, Solomon T, Levi M, et al. Pathologic Antibodies to Platelet Factor 4 after ChAdOx1 nCoV-19 Vaccination. N Engl J Med. 2021;384:2202-11. doi: 10.1056/NEJMoa2105385. [ Links ]

2. Gowthami M. Arepally, Thomas L. Ortel; Vaccine-induced immune thrombo-tic thrombocytopenia: what we know and do not know. Blood. 2021; 138: 293-8. doi: 10.1182/blood.2021012152 [ Links ]

3. Aleem A, Nadeem AJ. Coronavirus (COVID-19) Vaccine-Induced Immune Thrombotic Thrombocytopenia (VITT) [Updated 2021 Jul 18]. Treasure Is-land: StatPearls Publishing; 2022. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih. gov/books/NBK570605/ [ Links ]

4. Cines DB, Bussel JB. SARS-CoV-2 Vaccine-Induced Immune Thrombotic Thrombocytopenia. N Engl J Med. 2021;384:2254-6. doi: 10.1056/NEJMe2106315. [ Links ]

5. Greinacher A, Thiele T, Warkentin TE, Weisser K, Kyrle PA, Eichinger S. Thrombotic thrombocytopenia after ChAdOx1 nCov-19 vaccination. N Engl J Med. 2021;384:2092-101. doi: 10.1056/NEJMoa2104840. [ Links ]

6. See I, Su JR, Lale A, Woo EJ, Guh AY, Shimabukuro TT, et al. US Case Reports of Cerebral Venous Sinus Thrombosis With Thrombocyto-penia After Ad26.COV2.S Vaccination, March 2 to April 21, 2021. JAMA.2021;325:2448-56. doi: 10.1001/jama.2021.7517. [ Links ]

7. Wolf ME, Luz B, Niehaus L, Bhogal P, Bazner H, Henkes H. Thrombo-cytopenia and intracranial venous sinus thrombosis after "COVID-19 Vac-cine AstraZeneca" exposure. J Clin Med. 2021;10:1599. doi:10.3390/jcm10081599 [ Links ]

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9. Hematology.org [Homepage na Internet]. Washington DC: COVID-19 re-sources. [consultado a 23 setembro 2021]. Disponível em: https://www. hematology.org/covid-19/vaccine-induced-immune-thrombotic-thrombo-cytopeniaLinks ]

10. Alalwan AA, Abou Trabeh A, Premchandran D, Razeem M. COVID-19 Vaccine-Induced Thrombotic Thrombocytopenia: A Case Series. Cureus. 2021;13:e17862. doi:10.7759/cureus.17862 [ Links ]

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

4Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

5Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

6Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

8Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

9Patient Consent: Consent for publication was obtained.

10Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer re-viewed.

11© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2022. Re-utilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial. © Author(s) (or their employer(s)) and SPMI Journal 2022. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.

Recebido: 17 de Dezembro de 2021; Aceito: 18 de Fevereiro de 2022

Correspondence / Correspondência: Diana Isabel Rocha - dianaisabelrocha@gmail.com Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar e Universitário do Porto, Porto, Portugal Largo Prof. Abel Salazar, 4099-001, Porto

Declaração de Contribuição DIR - Redação do caso VSA - Diagnóstico Imagiológico e discussão do artigo proposto AN - Discussão do artigo ARC - Diagnóstico clínico e discussão do artigo MA - Diagnóstico clínico e discussão do artigo proposto Todos os autores aprovaram a versão final a ser submetida. Contributorship Statement DIR - Drafting the case VSA - imaging Diagnosis and discussion of the proposed article AN - Discussion of the article ARC - Clinical diagnosis and discussion of the article MA - Clinical diagnosis and discussion of the proposed article All authors approved the final draft

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

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