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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27  supl.1 Lisboa maio 2020

https://doi.org/10.24950/rspmi/COVID19/S.Vilarinho/J.P.Pereira/S/2020 

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

 

COVID-19: Imunidade e Estratégicas Terapêuticas

COVID-19: Immunity and Therapeutic Strategies

 

Sílvia Vilarinho1
https://ordic.org/0000-0002-2099-4212

João P.Pereira2
https://ordic.org/0000-0002-5694-4938

 

1Departmentos de Medicina Interna (Seção de Doenças Digestivas) e de Patologia, Yale School of Medicine, New Haven, CT, USA.

2Departmento de Imunobiologia, Yale School of Medicine, New Haven, CT, USA.

 

Palavras-chave: Coronavírus/imunologia; COVID-19; Infecções por Coronavírus/tratamento farmacológico

Keywords: Coronavirus/immunology; Coronavirus Infections/ drug therapy; COVID-19

 

Coronavirus disease 2019 (COVID-19) é uma nova doença infeto-contagiosa causada pelo vírus designado por severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV2).1 O primeiro caso de COVID-19 foi descrito em Dezembro de 2019 na localidade de Wuhan, na China. Em quatro meses, a 28 de Abril de 2020, este vírus disseminou-se pelo planeta infetando cerca de 3 milhões de indivíduos e causando a morte a mais de 200 000 pessoas a nível global.2 Por isso, estamos a viver uma pandemia sem precedente na nossa história contemporânea. De facto, só a gripe espanhola de 1918 causada pelo vírus H1N1 se aproximou.

Há cem anos atrás, com as limitações tecnológicas, de formação e conhecimento médico-científico inerentes à época, cerca de um terço da população mundial foi infetada pelo vírus H1N1 e 50-100 milhões de pessoas não sobreviveram à infeção. É de notar que a população mundial em 1918 era de 1,8 mil milhões de pessoas, pelo que a gripe espanhola levou à morte de cerca de 1% a 5% da população global. Porém, mais recentemente, infeções respiratórias causadas pelos coronavírus severe acute respiratory syndrome coronavirus 1 (SARS-CoV1) e Middle East respiratory syndrome-related coronavirus (MERS-CoV) em 2003 e 2012, respectivamente, alertaram-nos para os possíveis riscos de uma pandemia causada por um novo coronavírus capaz de se transmitir eficazmente entre seres humanos.

Uma  pessoa  infetada  com  SARS-CoV1, MERS-CoV e SARS-Cov2 transmite o vírus a 2-4, 2,5-7,2 e 2-2,5 indivíduos, respetivamente. Em 2003, a infeção pelo SARS-CoV1 foi detetada em mais de 8000 casos e causou quase 800 mortos (taxa de mortalidade ~10%). Em 2012, o MERS-CoV infetou cerca de 2500 indivíduos, entre os quais 774 não sobreviveram (taxa de mortalidade ~30%). Estes dados mostram que SARS-CoV2 apresenta quer uma taxa de infe- tividade de ser humano para ser humano assim como uma taxa de mortalidade (~6,7%) inferiores às infeções causadas por SARS-CoV1 e MERS-CoV. Porém, a 28 de Abril de 2020, o número total de mortes causadas por SARS-CoV2 já é 125 vezes superior à mortalidade causada por ambas infeções de SARS-CoV1 e MERS-CoV.  Uma  das  principais razões pelo que se pensa que este novo coronavírus foi capaz de se propagar tão rapidamente a nível global é o fato da sua transmissão ocorrer durante o período inicial e predominantemente assintomático da infeção. Para além deste  fator,  estima-se  que  até  30%  das  pessoas  infetadas com SARS-CoV2 permanecem assintomáticas.3 Desta forma, muitos dos indivíduos infetados sentem-se bem e capazes de viajar em deslocações nacionais, internacionais e intercontinentais, transportando assim o vírus de uma forma eficaz como não há paralelo na história mundial. Por outro lado, os vírus SARS-CoV1 e MERS-CoV só se transmitem durante fases sintomáticas, o que ajudou significativamente à sua contenção através de medidas rápidas de isolamento total dos doentes. Assim, uma vez que não foi possível conter a transmissão do SARS-CoV2 de forma semelhante às infeções causadas pelo SARS-CoV1 e MERS-CoV, surge a questão de quais são as alternativas disponíveis para diminuir drasticamente a morbilidade e mortalidade associada à doença COVID-19, com vista a repôr a interação humana, o funcionamento normal dos serviços de saúde, e retomar a economia.

Em geral, para diminuir significativamente a transmissão de doenças infeto-contagiosas entre seres humanos é necessário que 75% a 94% da população seja imune para a doença em causa.4 Este fenómeno é designado de imunidade de grupo. De acordo com os dados disponíveis a 28 de Abril de 2020, estima-se que apenas 0,04% da população mundial foi exposta ao SARS-CoV2. Apesar de ainda não haver evidência científica de que indivíduos infetados desenvolvem imunidade contra SARS-CoV2, espera-se que a grande maioria dos sobreviventes desenvolvam algum tipo de imunidade a este vírus, e há alguns relatórios esporádicos de indivíduos que desenvolveram anticorpos protetores. Estes casos, por muito anedóticos que ainda o sejam, alimentam a esperança de se poder desenvolver estratégias terapêuticas eficazes.

Atualmente, a nossa sociedade global atinge a necessária imunidade de grupo para uma variedade de doenças infeto-contagiosas através da vacinação. Assim, a opção mais desejada para controlar a infeção por SARS-CoV1, e poder voltar a um estilo de vida mais perto da “normalidade” pré-pandemia, é o desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz. Há vários grupos de investigação, na academia e na indústria, a trabalhar arduamente para que esta seja uma realidade o mais rapidamente possível, isto é, entre 1 a 2 anos. Até 9 de Abril de 2020, haviam 115 vacinas a serem desenvolvidas e testadas em modelos animais, sendo que algumas já estão a ser administradas em seres humanos. Convém lembrar que na história da medicina nunca uma vacina foi desenvolvida em tão curto espaço de tempo. A mais rápida a ser desenvolvida até hoje foi a vacina contra a parotidite epi- dérmica (vulgo papeira, infeção causada por paramixovírus) que levou 4 anos a desenvolver. Desta forma, a estimativa de 1-2 anos para o desenvolvimento de uma vacina contra SARS-CoV2 representa o cenário mais otimista possível.

Entretanto, há várias estratégias terapêuticas para a doença COVID-19 que estão a ser investigadas e que se centram no objetivo de reduzir significativamente o número de casos de doença moderada e severa que exigem hospitalização e cuidados de saúde muito diferenciados. Para atingir este objetivo, há a considerar os três estadios da doença: estadio I (forma ligeira); estadio II (forma moderada doença pulmonar, sem (IIa) e com hipóxia (IIb); e estadio III (forma severa, caraterizada pelo síndrome de hiperinflamação sistémica).5 A fase inicial da doença consiste na infeção das células do epitélio da cavidade nasal pelo vírus e a sua proliferação. Esta por sua vez leva à ativação do sistema imunitário, produção de citocinas (predominantemente interferão alfa e gama) o qual na grande maioria dos casos é capaz de controlar a proliferação vírica. Porém, certos indivíduos desenvolvem uma doença pulmonar moderada (estadio II) e cerca de 5%-12% desenvolvem uma resposta inflamatória exacerbada (contra o vírus), a qual persiste mesmo na ausência de vírus detetável (estadio III) e causa danos severos ou até a morte do hospedeiro. Por estas razões, há três estratégias terapêuticas possíveis que estão a ser investigadas. A primeira está focada no teste de agentes anti-vírico(s), para ser(em) admistrado(s) enquanto o vírus é detetável. Um dos anti-víricos em ensaios clinicos é o remdesivir. Este é um fármaco experimental, o qual demonstrou atividade anti-vírica contra os coronavirus SARS-CoV1 e MERS-CoV em modelos animais, e que foi testado em dois grupos de doentes COVID-19, um na China e outro nos Estados Unidos, sendo que os resultados apontam para um ligeiro efeito positivo.6,7

A segunda estratégia é a identificação de fármacos capazes de controlar/suprimir a hiperinflamação caraterística da progressão da doença em indivíduos que desenvolvem formas moderadas e severas da COVID-19.  Como  parte desta segunda estratégia, corticósteroides estão a ser utilizados (embora ainda não exista evidência do seu benefício na COVID-19); e o uso de inibidores da interleucina-6, da interleucina-2, bem como da família de enzimas responsáveis pela transdução do sinal celular destas citoquinas, designada “janus kinase” (JAK) estão a ser testados em ensaios clínicos. A terceira estratégia é possivelmente a combinação destas duas modalidades terapêuticas, com o objetivo de suprimir a replicação vírica e controlar a magnitude da resposta imunitária de forma a que esta seja eficaz na eliminação do vírus mas à custa do mínimo de danos colaterais a outros órgãos do hospedeiro. A hidroxicloroquina, cuja eficácia também está a ser investigada em ensaios clínicos, (i) previne a entrada do SARS-CoV2 na célula, uma vez que se liga ao receptor celular que permite a sua entrada designado angiotensin converting enzyme-2 (ACE2); (ii) previne acidificação dos endossomas, interrompendo as funções celulares e a replicação vírica; e (iii) tem propriedades imunomoduladoras. Um outro tratamento, com mais de cem anos, que está a ser testado é a transfusão de plasma de indivíduos que sobreviveram a COVID-19, o qual está enriquecido em anticorpos contra  o  vírus  SARS-CoV2.  Quando  conseguirmos  tornar COVID-19 numa infeção curável ou tratável com uma taxa de mortalidade inferior ou comparável à gripe sazonal estaremos mais próximos de combater esta pandemia.

Todavia, enquanto uma vacina ou terapêutica eficaz não é uma realidade, e uma vez que mais do que 99% da população mundial ainda não foi exposta ao SARS-CoV2, o risco de ondas sucessivas de infeção até à “imunidade de grupo” ser alcançada vão ser muito provavelmente uma realidade. Por esta razão, é tão importante o seguimento de um plano de desconfinamento estratégico e rigoroso, o qual deve incluir acesso a testes de diagnóstico rápidos e fidedignos, de forma a identificar e isolar os casos positivos muito rapidamente assim como todos os seu contatos.

Se esta pandemia traz algo de positivo, é a demonstração em tempo real do valor do conhecimento e da investigação científica, e do avanço da Medicina em geral. Em particular, COVID-19 amplifica a importância dos benefícios da vacinação para atingir imunidade de grupo, processo essencial na proteção humana contra uma variedade de doenças infeto-contagiosas. De uma forma simples e elegante, esta pandemia mostra como a solução para esta crise global se encontra na investigação científica. As populações e governos em todo o mundo estão obrigadas a reconhecer o quanto o investimento em investigação científica é fundamental para o equilíbrio das sociedades modernas e por conseguinte para o bem-estar do ser humano. COVID-19 é um marco numa geração!

 

REFERÊNCIAS

1.     Coronaviridae Study Group of the International Committee on Taxonomy of Viruses. The species Severe acute respiratory syndrome-related coronavirus: classifying 2019-nCoV and naming it SARS-CoV-2. Nat Microbiol.2020;5: 536-44.         [ Links ]

2.     World Health Organization. Coronavirus disease 2019 (COVID-19) Situation Report - 99. [accessed 25 April 2020] Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200428-sitrep-99-covid-19.pdf?sfvrsn=119fc381_2        [ Links ]

3.     Qiu J. Covert coronavirus infections could be seeding new outbreaks. Nature. 2020 (in press). doi: 10.1038/d41586-020-00822-x.         [ Links ]

4.     What is Herd Immunity? [accessed 25 April] Available from: https://www.pbs.org/wgbh/nova/article/herd-immunity/        [ Links ]

5.     Siddiqu HK, Mehra MR. COVID-19 Illness in Native and Immunosuppressed States: A Clinical Therapeutic Staging Proposal. J Heart Lung Transpl. 2020 (in press). doi: 10.1016/j.healun.2020.03.012        [ Links ]

6.     NIH Clinical Trial Shows Remdesivir Accelerates Recovery from Advanced COVID-19 [accessed 25 April 2020] Available from: https://www.niaid.nih.gov/news-events/nih-clinical-trial-shows-remdesivir-accelerates-recovery-advanced-covid-19.         [ Links ]

7.     Wang Y, Zhang D, Du G, Du R, Zhao J, Jin Y, et al. Remdesivir in adults with  severe  COVID-19: a randomized,  double-blind,  placebo-controlled, multicenter trial. Lancet. 2020 (in press). doi: 10.1016/S0140-6736(20)31022-9.         [ Links ]

 

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares.

 

Ethical disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interestto declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Provenance and Peer Review: Commissioned; without externally peer re-viewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY- NC. No commercial re-use.

 

Correspondence/Correspondência:

Sílvia Vilarinho - silvia.vilarinho@yale.edu

M Departamentos de Medicina Interna e Patologia, Yale School of Medicine, New Haven, CT, USA

 

Received/Recebido: 03/05/2020

Accepted/Aceite: 03/05/2020

 

Publicado / Published:8 de Maiode 2020

 

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