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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.24 no.1 Lisboa mar. 2017

 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

Intoxicação Alimentar por Ciguatera

Ciguatera Fish Poisoning

Ana Isabel Costa, Alexandra Malheiro, Andreia Pestana, Tiago Esteves Freitas, Pedro Balza, Maria da Luz Brazão

Serviço de Medicina, Hospital Central do Funchal, Funchal, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

A intoxicação alimentar por ciguatera está relacionada com o consumo de pescado de zonas com corais, contaminado por ciguatoxinas produzidas pelo Gambierdiscus toxicus. Este prolifera em microalgas que se desenvolvem habitualmente em águas tropicais ou subtropicais nos oceanos Índico, Pacífico e Mar do Caribe. O primeiro caso registado na Europa foi em 2004 nas ilhas Canárias. Na ilha da Madeira o primeiro relato aconteceu em 2008. O aquecimento global poderá tornar estas intoxicações mais frequentes. Os sintomas podem ser gastrintestinais, neurológicos ou cardíacos, sendo os últimos menos frequentes. O tratamento é essencialmente de suporte. Os autores apresentam um surto de 12 pescadores que iniciam quadro de náuseas, vómitos, diarreia e dor abdominal 3 horas após consumo de peixe-porco pescado nas ilhas Desertas. Nove doentes apresentaram hipotensão, a totalidade apresentou bradicardia, sendo que quatro destes necessitaram de terapêutica com atropina. O diagnóstico de intoxicação por ciaguatera é um diagnóstico de presunção.

Palavras-chave: Ciguatoxinas; Intoxicação por Ciguatera; Peixes.

 


ABSTRACT

 

Ciguatera fish poisoning is a foodborne illness caused by the ingestion of coral reef fish contaminated with toxins that arise from Gambierdiscus toxicus that grows on coral reefs in Indian and Pacific Ocean regions and in the Caribbean sea. The first case in Europe was reported in Canary Islands in 2004. In Madeira Island the first case was reported in 2008. The global warming may increase the frequency of ciguatera fish poisoning. The patient affected with ciguatera fish poisoning may develop gastrointestinal, neurologic and cardiovascular findings. Treatment is primarily supportive. Authors present a case of 12 fishermen presenting nausea, vomiting, diarrhea and abdominal pain that onset 3 hours after consuming pigfish of the Desert Islands. Nine patients presented hypotension, all patients had bradycardia and four of them needed atropine. Ciguatera fish poisoning is a clinical presumptive diagnosis.

Keywords: Ciguatera Poisoning; Ciguatoxins; Fishes.

 


 

Introdução

A intoxicação alimentar por ciguatera está ligada ao consumo de pescado contaminado com ciguatoxinas produzidas por microalgas que se desenvolvem habitualmente em corais ou macroalgas existentes em águas tropicais ou subtropicais nos oceanos Índico, Pacífico e Mar do Caribe. A espécie produtora mais comum é o dinoflagelado Gambierdiscus toxicus. Estes microrganismos concentram-se sobretudo ao nível das vísceras e gónadas, e as suas toxinas são inativadas pela cozedura, congelação ou pelo suco gástrico. Cerca de 10 000 a 50 000 pessoas são afetadas anualmente pela intoxicação, sendo só registados cerca de 2-10% dos casos. Na Europa o relato do primeiro caso foi registado em 2004 nas Ilhas Canárias – numa família que consumiu peixe charuteiro.1

No arquipélago da Madeira o primeiro caso sucedeu em 2008, afetando tripulantes de uma embarcação de pesca após consumo de charuteiro.

Atualmente defende-se que o aquecimento global com o aumento da temperatura da água do mar pode aumentar a frequência da intoxicação por ciguatera, uma vez que os organismos produtores da toxina reproduzem-se melhor em águas quentes e podem potencialmente migrar para áreas não habituais.

Os sinais e sintomas são variáveis, sendo que as manifestações gastrointestinais (náuseas, vómitos, diarreia e dor abdominal) e as neurológicas (parestesias, sabor metálico na boca, visão turva e disestesias) são as mais frequentes, seguidas das cardiovasculares (menos comum a bradicardia, o bloqueio aurículo ventricular e a hipotensão). 2

Não existe teste de diagnóstico especifico e o tratamento é habitualmente de suporte.

A mortalidade por esta intoxicação é cerca de 0,1%, com mortes por colapso cardiovascular e insuficiência respiratória aguda.1

Caso Clínico

Em Agosto de 2012 um grupo de 12 pescadores que se encontravam numa embarcação ao largo do arquipélago da Madeira foi levado ao Serviço de Urgência por um quadro caracterizado por diarreia, náuseas, vómitos e dor abdominal, de inicio súbito, cerca de 3 horas após o almoço. Todos os doentes eram do sexo masculino, com uma idade média de 35 anos (máximo de 48 e mínimo de 18 anos). No exame objetivo constatou-se bradicardia em todos os doentes e hipotensão na maioria (nove indivíduos). Os doentes encontravam-se apiréticos e não revelaram alterações na avaliação analítica. Sete doentes foram admitidos no Serviço de Observação por bradicardia marcada (fc < 40 bpm) sendo que quatro destes necessitaram de terapêutica com atropina.

Após estabilização dos doentes e cruzamento das diferentes histórias clinicas verificou-se que o grupo de pescadores consumiu peixe-porco contaminado, pescado ao largo das ilhas Desertas.

A totalidade dos doentes recebeu alta clínica nos dias seguintes, sendo que o doente que esteve mais tempo internado cumpriu um total de quatro dias de internamento sendo apenas possível suspender a atropina ao terceiro dia.

Discussão

Os indivíduos afetados por intoxicação por ciguatera desenvolvem uma constelação de sintomas que podem ser gastrointestinais (diarreia, náuseas, vómitos e dor abdominal), neurológicos (parestesias das extremidades, prurido, tontura, ataxia ou descoordenação motora) ou cardíacos (bradicardia, hipotensão ou bloqueio aurículo ventricular). A apresentação pode ocorrer 3 a 6 horas após o consumo do peixe contaminado, mas pode também tardar até às 30 horas. As manifestações clinicas mais habituais são as gastrointestinais sendo que as cardíacas foram raramente reportadas no mar do Atlântico.

A evolução da intoxicação por ciguatera é muito variável. As manifestações gastrintestinais e cardiovasculares resolvem habitualmente ao fim de 24 a 48 horas e raramente persistem após os 4 dias. As neurológicas podem persistir alguns dias a semanas.4

O envenenamento por ciguatera é causado por distintas toxinas, da qual a ciguatoxina é a mais conhecida. Estas toxinas são formadas pelos dinoflagelados do género Gambierdiscus, que são organismos da família das algas que proliferam em torno dos corais de recifes. Estes dinoflagelados são consumidos por peixes de largo porte (ex.: charuteiro, barracuda, moreia, pargo) que concentram a toxina nos seus órgãos e músculos mas não são afetados por esta.3

A ciguatoxina é uma toxina lipo solúvel, estável no calor e ácido resistente. Promove a abertura dos canais de sódio dependentes da voltagem ao nível das membranas celulares, causando despolarização.

Não existe de momento nenhum teste analítico de diagnóstico para a intoxicação alimentar por ciguatera. O diagnóstico é essencialmente clinico e habitualmente assenta nos seguintes critérios: 1) história de ingestão de peixe pescado junto a corais que habitualmente estão associados à ciguatera (charuteiro, barracuda, moreia, pargo, peixe-cão, peixe porco); 2) manifestações gastrointestinais e neurológicas consistentes com intoxicação por ciguatera; 3) exclusão de outra causa potencial; e 4) confirmação da toxina no peixe consumido, se possível.1

O peixe pode ser testado usando um teste denominado Cigua-Check® Fish Poison Test Kit que detecta ciguatoxinas no músculo dos peixes.

A base do tratamento é de suporte, sendo que alguns autores defendem inicialmente a descontaminação com carvão ativado; no entanto a grande maioria dos doentes procura cuidados de saúde 1 hora após a ingestão e o quadro de vómitos abundante torna esta terapêutica muitas vezes impossível. Assim sendo a descontaminação não é recomendada.

O tratamento de suporte consiste no assegurar de via aérea, com eventual entubação endotraqueal se coma, dificuldade respiratória ou fraqueza muscular.

O sistema circulatório encontra se muitas vezes comprometido sendo que a desidratação causada pelos vómitos e diarreia deve ser tratada com rápida repleção de fluidos com soluções salinas isotónicas (ex. 20 mL/kg de cloreto de sódio 0,9%). A bradicardia sintomática deve ser tratada com atropina endovenosa. As doses desta variam, mas evidência escassa sugere que podem ser necessárias altas doses (sugere se 0,5 mg de atropina endovenosa a cada 5 minutos com o objectivo de manter uma frequência cardíaca > 60 batimentos por minuto no individuo adulto). Nos casos de hipotensão refratária a fluidos devem ser consideradas aminas vasopressoras.

Os vómitos podem ser tratados com anti eméticos (ex. ondasetron). Uma vez que a diarreia pode ser benéfica na remoção da toxina ingerida, os agentes antidiarreicos devem ser evitados.

Os sintomas neurológicos causados pela infeção por ciguatera podem ser prolongados e debilitantes. Foram sugeridos vários tratamentos, mas a evidência científica em torno dos mesmos é limitada. Agentes como a gabapentina, a amitriptilina e a pregabalina podem ter a sua utilidade no controlo das parestesias e da dor neuropática; nos casos de fadiga crónica e depressão sugere se terapêutica com fluoxetina.

Conclusão

A melhor prevenção da infeção por ciguatera é a evição do consumo de peixes de alto risco tais como charuteiro, barracuda, moreia, pargo, peixe-cão, peixe porco. Infelizmente não existe nenhum teste rotineiro de diagnóstico de infeção no peixe pescado. Quando nos trópicos, parece ser menos arriscado consumir peixes de menores dimensões e evitar o consumo de órgãos dos peixes, tais como o fígado, local onde se concentram as toxinas.

O aquecimento global potencia a proliferação do dinoflagelado do género Gambierdiscus, fazendo com que zonas outrora não atingidas, possam agora vir a apresentar surtos mais frequentes, assim como o crescimento do turismo, a importação de peixe e os fluxos migratórios pouco usuais dos peixes. As manifestações cardíacas são pouco frequentes no entanto são aquelas que mais podem condicionar a população afetada. É por isso fundamental a identificação precoce do problema devendo haver sempre uma suspeição clínica elevada, na presença de história de consumo de peixe identificado como de risco, pescado nas águas temperadas do oceano Atlântico.

 

Referências

1. Erin NM. Ciguatera fish poisoning. UpToDate [Acessed January 10, 2016). Available from: http://uptodate.com        [ Links ]

2. Outbreak alert. Closing the gaps in our federal food-safety net. Centers for Science in the Public Interest (CSPI), Washington, 2008. http://cspinet.org/new/pdf/outbreak_alert_2008_report_final.pdf [Acessed January 11,2016]

3. Center for Disease Control and Prevention (CDC). Ciguatera fish poisoning-New York City, 2010-2011. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2013;62:61.         [ Links ]

4. Dickey RW, Plakas SM. Ciguatera: a public health perspective. Toxicon. 2010; 56:123-36.         [ Links ]

 

Correspondência: Ana Isabel Costa costa.ananunes@gmail.com
Serviço de Medicina Interna, Hospital Central do Funchal, Funchal, Portugal
Avenida Luís de Camões, nº 57, 9004-514 Funchal

 

Protecção de Seres Humanos e Animais: Os autores declaram que não foram realizadas experiências em seres humanos ou animais

Direito à Privacidade e Consentimento Informado: Os autores declaram que nenhum dado que permita a identificação do doente aparece neste artigo.

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo

 

Recebido: 14/06/2016

Aceite: 10/11/2016

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