SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45Resolver o problema da “raça”Para que possamos comer a fruta e os legumes que nos tornam saudáveis, os corpos dos trabalhadores agrícolas migrantes são danificados e a sua saúde é-lhes retirada índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.45  Porto ago. 2023  Epub 15-Ago-2023

https://doi.org/10.21747/08723419/soc45f2 

Entrevista

Acidentes e lesões de trabalhadores agrícolas migrantes:temporalidade, representação estatística, acontecimentos

Accidents and injuries of migrant agricultural workers:temporality, statistical representation, events

Seth M. Holmes1 

1University of California, Berkeley


Resumo

Este artigo considera a pesquisa etnográfica de terreno para analisar a violência e a exploração inerentes ao nosso sistema agroalimentar transnacional e as formas através das quais temporalidade e estatística ajudam a tornar visíveis e invisíveis certas experiências de acidente e lesão de trabalhadores agrícolas migrantes, bem como as ações individuais e coletivas de promoção do bem-estar. Baseando-se em investigação etnográfica de longa duração e em profundidade, este artigo mobiliza teorias sobre temporalidade e acontecimentos para evidenciar desigualdades sociais e de saúde no trabalho agrícola e para encorajar investigadores nos domínios da agricultura, da alimentação e da saúde a considerarem criticamente os efeitos dos nossos métodos. Ao justapor as experiências de acidente e de acesso a cuidados de saúde de um trabalhador agrícola migrante mexicano com dados estatísticos gerais sobre saúde e cuidados de saúde de trabalhadores agrícolas migrantes e sazonais, o artigo confronta quer a normalização dos danos infligidos aos trabalhadores agrícolas migrantes, quer a utilidade, habitualmente tomada como adquirida, da investigação quantitativa e qualitativa. Adicionalmente, o argumento reconhece as práticas individuais quotidianas e as ações coletivas em que os trabalhadores agrícolas migrantes se implicam para exigir e assegurar bem-estar para si próprios, as suas famílias e não só.

Palavras-chave: Migração; Trabalho agrícola; Estatística; Etnografia; Saúde

Abstract

This article considers ethnographic field research in order to analyze the violence and exploitation inherent to our transnational agro-food system and the ways in which temporality and statistics may aid in making visible and invisible certain experiences of migrant farmworker injury as well as individual and collective actions for wellbeing. Based in long-term, in-depth ethnographic research, this article utilizes theories of temporality and events in order to highlight social and health inequalities in agricultural labor and encourage agricultural, food and health scholars to consider critically the effects of our methods. Juxtaposing the injury and health care experiences of one Mexican migrant farmworker with statistics on the health and health care of migrant and seasonal farmworkers more generally, the article confronts both the normalization of migrant farmworker injury and the taken-for-granted helpfulness of quantitative and qualitative research alike. In addition, the argument acknowledges the everyday, individual practices and collective actions migrant farmworkers engage into demand and build wellbeing for themselves, their families and beyond.

Keywords: Migration; Farm work; Statistics; Ethnography; Health

Résumé

Cet article prend en compte la recherche ethnographique sur le terrain afin d'analyser la violence et l'exploitation inhérentes à notre système agroalimentaire transnational et la manière dont la temporalité et les statistiques peuvent contribuer à rendre visibles et invisibles certaines expériences de blessures des travailleurs agricoles migrants ainsi que les actions individuelles et collectives en faveur du bien-être. Basé sur une recherche ethnographique approfondie et à long terme, cet article utilise les théories de la temporalité et des événements afin de mettre en évidence les inégalités sociales et sanitaires dans le travail agricole et d'encourager les spécialistes de l'agriculture, de l'alimentation et de la santé à considérer d'un œil critique les effets de nos méthodes. En juxtaposant les expériences de blessures et de soins de santé d'un travailleur agricole migrant mexicain aux statistiques sur la santé et les soins de santé des travailleurs agricoles migrants et saisonniers en général, l'article s'attaque à la fois à la normalisation des blessures des travailleurs agricoles migrants et à l'utilité, considérée comme acquise, des recherches quantitatives et qualitatives. En outre, l'argument reconnaît les pratiques quotidiennes, individuelles et les actions collectives que les travailleurs agricoles migrants mettent en œuvre pour exiger et construire leur bien-être, celui de leur famille et au-delà.

Mots-clés: Migration; Travail agricole; Statistiques; Ethnographie; Santé

Resumen

Este artículo considera la investigación etnográfica de campo para analizar la violencia y la explotación inherentes a nuestro sistema agroalimentario transnacional y las formas en que la temporalidad y las estadísticas pueden ayudar a hacer visibles e invisibles ciertas experiencias de lesiones de los trabajadores agrícolas migrantes, así como las acciones individuales y colectivas para el bienestar. Basado en una investigación etnográfica en profundidad y a largo plazo, este artículo utiliza teorías de la temporalidad y los acontecimientos para poner de relieve las desigualdades sociales y sanitarias en el trabajo agrícola y animar a los estudiosos de la agricultura, la alimentación y la salud a considerar críticamente los efectos de nuestros métodos. Al yuxtaponer las lesiones y las experiencias de atención sanitaria de un trabajador agrícola migrante mexicano con las estadísticas sobre la salud y la atención sanitaria de los trabajadores agrícolas migrantes y estacionales en general, el artículo se enfrenta tanto a la normalización de las lesiones de los trabajadores agrícolas migrantes como a la utilidad que se da por sentada a la investigación cuantitativa y cualitativa por igual. Además, el argumento reconoce las prácticas cotidianas individuales y las acciones colectivas que los trabajadores agrícolas migrantes llevan a cabo para exigir y crear bienestar para sí mismos, para sus familias y para otros.

Palabras clave: Migración; Trabajo agrícola; Estadísticas; Etnografía; Salud

Introdução

O primeiro apanhador de fruta indígena mexicano que conheci quando visitei originalmente o Skagit Valley, no estado de Washington, no extremo noroeste dos Estados Unidos da América, foi Abelino, um pai de quatro filhos de 35 anos. Em Holmes 2013, relato as suas experiências como trabalhador agrícola imigrante, procurando a partir delas teorizar as experiências e representações do bem-estar de trabalhadores agrícolas. Ao conhecerem as experiências de lesões e de cuidados de saúde de Abelino, os leitores serão confrontados com a desigualdade e a violência contínuas que caracterizam o nosso sistema agroalimentar transnacional, desigualdade e violências que parecem estar a intensificar-se no atual contexto de políticas e discursos anti-imigração. No término deste artigo, espero desafiar-nos, enquanto investigadores nos domínios dos sistemas agroalimentares e da saúde, a refletir e, potencialmente, a reimaginar os nossos próprios métodos de recolha e representação de dados. Como investigadores, devemos, com efeito, considerar as implicações do que fazemos - não só para os trabalhadores agrícolas, mas para todos os trabalhadores implicados na cadeia de produção e distribuição alimentar, os seus corpos, a sua saúde e a prestação de cuidados de saúde e de serviços sociais que lhes é devida.

Este artigo apresenta as experiências de trabalho, de acidente e lesão e de acesso a cuidados de saúde de Abelino, tomando-as como ponto de partida para uma reflexão sobre os modos como o trabalho agrícola é definido, em boa medida em resultado de experiências contínuas de lesão - de tal forma que estes danos se tornam esperados e dados como adquiridos. A análise utiliza o conceito de “morte lenta”, tal como foi desenvolvido por Lauren Berlant ver mais à frente para compreender as formas como os danos crónicos e as lesões são esperados por certas categorias de pessoas na sociedade. Defendo que a temporalidade alargada das lesões dos trabalhadores agrícolas, entendida como uma forma de morte lenta, é parte daquilo que torna as experiências dos trabalhadores agrícolas difíceis de retratar na sua plenitude com recurso a estatísticas na investigação agrícola e de saúde pública. Além disso, esta temporalidade pode contribuir para que as lesões entre trabalhadores agrícolas sejam mal entendidas como naturais e normais. Neste artigo, quero incitar-nos a considerar as e a agir em resposta às seguintes questões: como podem os acidentes e lesões dos trabalhadores agrícolas tornar-se mais visíveis na sociedade? Quando e como poderá essa visibilidade conduzir a mudanças significativas aos níveis social, político e de saúde? Mais especificamente, como podem as estatísticas na investigação agrícola e na saúde pública tornar visível a morte lenta dos trabalhadores agrícolas, bem como tudo aquilo que pode estar escondido nesse processo? Este artigo não é uma competição analítica nem um juízo de valor entre a etnografia qualitativa e representações quantitativas dos acidentes e lesões dos trabalhadores agrícolas. Pelo contrário, é uma provocação, a partir da teoria social, acerca de algumas implicações da temporalidade, da lesão, dos acontecimentos, bem como da nossa responsabilidade para com os trabalhadores agrícolas, que são um elemento intrínseco e fundamental do nosso sistema agroalimentar transnacional.

Contexto: métodos e posicionalidade

Os dados etnográficos apresentados neste artigo provêm de um projeto de investigação de longa duração centrado nas hierarquias sociais do nosso sistema alimentar transnacional e nos seus efeitos na saúde e na prestação de cuidados de saúde. O trabalho, os acidentes e lesões e o tipo de cuidados de saúde prestados a Abelino são aspetos típicos da vida dos trabalhadores agrícolas indígenas mexicanos e permitem uma análise aprofundada de várias características representativas das experiências desta população. Neste projeto, passei 15 meses, a tempo inteiro, no início dos anos 2000 - a que se seguiram várias viagens de curta duração, todos os anos e até aos dias de hoje -, a viver em explorações agrícolas, a colher fruta e a podar plantas, e também a migrar, conjuntamente com trabalhadores agrícolas indígenas mexicanos imigrantes, desde o sul do México até explorações agrícolas localizadas nos estados da Califórnia, do Oregon e de Washington. Acompanhei estes trabalhadores agrícolas e as suas famílias na busca por tratamentos de medicina tradicional nos campos de trabalho e nas respetivas habitações e nas suas demandas por cuidados de saúde de cariz biomédico em clínicas e hospitais no México e nos EUA. Durante todo este tempo, coligi milhares de páginas de notas de campo de observação participante, transcrevi centenas de horas de conversas e entrevistas etnográficas e analisei fichas médicas que me foram entregues diretamente pelos trabalhadores agrícolas. Este estudo foi aprovado pelo Institutional Review Board da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Os dados etnográficos foram analisados utilizando múltiplos métodos de análise qualitativa descritos em pormenor noutro local cf. Holmes, 2006. Enquanto investigador Branco, Cidadão dos EUA, recolhi e analisei dados etnográficos não apenas sobre a forma como os trabalhadores agrícolas indígenas mexicanos eram tratados, mas também sobre a forma como tal tratamento diferia da forma como eu próprio era tratado. Deste modo, as diferenças de posicionalidade entre mim e os interlocutores da minha investigação serviram diretamente como dados a serem analisados para compreender as desigualdades sociais e de saúde inerentes ao nosso sistema alimentar transnacional.

Estudo de caso etnográfico: Abelino e a dor da apanha

Abelino, a mulher e os filhos viviam juntos numa pequena barraca perto da minha, no campo de trabalho mais afastado da estrada principal. Durante uma conversa sobre tacos caseiros na sua cabina, ele explicou em espanhol por que razão os indígenas mexicanos têm de deixar as suas terras no estado de Oaxaca, no sul do México:

“Em Oaxaca, não há trabalho para nós. Não há trabalho. Não há nada. Quando não há dinheiro, não se sabe o que fazer. E sapatos, não se arranjam nenhuns. Umas sapatilhas como estas (aponta para os pés) custam cerca de 300 pesos mexicanos. É difícil. Vimos para aqui e é um pouco melhor, mas continuamos a sofrer no trabalho. Mudar para outro sítio também é difícil. Vir para aqui com a família e andar de um lado para o outro, sofremos. As crianças faltam às aulas e não aprendem bem. Por causa disso, queremos ficar aqui apenas por uma temporada com permissão (de imigração autorizada) e deixar as crianças a estudar no México. Temos de migrar para sobreviver? Sim, temos”.

O Inquérito Nacional ao Trabalhador Agrícola indica que 73% dos trabalhadores de explorações agrícolas dos EUA são imigrantes e 68% nasceram no México USDOLETA, 2016. Os investigadores estimam que exista um milhão de indígenas de Oaxaca no país, na sua maioria Mixtec, Zapotec e Triqui McGuire e Georges, 2003. As estimativas da população total de trabalhadores agrícolas migrantes nos EUA variam entre 2,5 e 3 milhões Kandel, 2008, com uma idade média de 38 anos USDOLETA, 2016. As estatísticas relativas aos trabalhadores agrícolas migrantes são difíceis de produzir, devido à impossibilidade de concretização de um recenseamento exato, em grande medida porque estas pessoas se deslocam não raras vezes através de circuitos transnacionais, muitas vezes por caminhos percorridos de forma intencionalmente oculta. No entanto, como Ferguson 1994 indica no caso dos relatórios internacionais de saúde, a falta de bons dados não impede a produção de números.

Estes factos estatísticos, interpretados de acordo com o modelo do ator racional individualizado omnipresente nas formações políticas e culturais contemporâneas, são frequentemente entendidos como caracterizando os migrantes económicos por oposição aos refugiados políticos, os migrantes voluntários por oposição aos migrantes forçados. A oposição binária presente nos estudos de imigração entre o migrante económico voluntário e o refugiado político forçado serve para distinguir aqueles que merecem o encarceramento e a deportação daqueles que merecem proteção e cuidados cf. Holmes e Castañeda, 2016; Yarris e Castañeda, 2013. Entende-se que os migrantes económicos - voluntários -, como Abelino é categorizado, escolhem migrar em função dos chamados fatores de “repulsão” e “atração” modelo push-pull. O foco, aqui, está no momento da escolha. Eles são categorizados como “ilegais” e enquadrados como causadores de sofrimento, como acontece, por exemplo, na Proposta 187 da Califórnia, que foi aprovada para negar a prestação de serviços sociais e de saúde a estes migrantes Quesada, 2001. Uma vez que eles escolheram fazer algo ilegal, assim reza o argumento, entende-se que a resposta apropriada é a negação da prestação de serviços, a criminalização e a deportação.

No entanto, como Abelino deixou claro, a migração de indígenas de Oaxaca é vivida como tudo menos como algo voluntário. A declaração de Abelino mostra que a situação económica na região montanhosa e indígena de Oaxaca é deprimida e deprimente. Ironicamente, quanto mais longa é a migração do povo indígena de Oaxaca, maior é a probabilidade de os seus representantes sobreviverem, manterem as suas casas e sustentarem as suas famílias. De acordo com vários trabalhadores agrícolas indígenas que entrevistei, cada agregado familiar indígena em Oaxaca tem pelo menos um membro da família nos EUA. A deslocação de um lugar para o outro permite que a maior parte dos ganhos seja poupada, com vista à consecução daqueles que são os objetivos de cada trabalhador e ao envio de recursos para os membros da família que permaneceram em Oaxaca. Por outro lado, este movimento contínuo afeta o bem-estar dos migrantes, conduzindo a períodos em que estes ficam em situação de sem-abrigo, gerando medo da detenção e deportação, produzindo desenraizamento de ligações e relações e gerando disrupção na educação das crianças. As deslocações de um estado para outro também tornam os trabalhadores, incluindo as mulheres grávidas e as mães recentes, inelegíveis para os serviços sociais e de saúde. Como os cientistas sociais têm demonstrado em diversos contextos, a economia e a política são frequentemente indissociáveis, e o enquadramento de algo como individual e voluntariamente escolhido é, na verdade, um movimento típico daquilo a que Calhoun 2006 chama a “privatização do risco” inerente ao neoliberalismo.

Mais tarde, nessa mesma noite, Abelino explicou a dificuldade de apanhar bagas: “Apanhas com a mão, dobrado, ajoelhado assim (demonstra, com os dois joelhos completamente dobrados e a cabeça inclinada para a frente). Dói-nos as costas, temos dores nos joelhos e aqui (toca na anca). Quando chove, ficamos muito zangados e temos de continuar a apanhar. Eles não dão intervalos para almoço. É preciso trabalhar assim todos os dias para ganhar alguma coisa. Sofre-se muito no trabalho”.

Depois de chegarem ao Skagit Valley, no estado de Washington, muitos indígenas de Oaxaca tentam encontrar emprego em diferentes ramos de atividade, incluindo na construção civil ou na fábrica de processamento de produtos agrícolas da quinta, mas o único emprego que lhes é oferecido é na apanha de bagas.

Um dia, a meio do meu primeiro verão na quinta, segui o Abelino, a sua mulher e a filha mais velha enquanto eles lideravam o grupo de trabalhadores no caminho para o campo em que nessa manhã trabalharíamos. Estava escuro como breu, antes de o sol nascer, e vestimos roupas quentes e pesadas, em camadas, para tirarmos depois de o sol nascer. Passámos por uma fila e os nossos cartões de colheita desse dia foram marcados com a hora de início do trabalho, embora, como já esperávamos, com uma hora de início marcada como se tivéssemos chegado trinta minutos atrasados. Fomos colocados em filas ao lado uns dos outros e começámos a apanhar bagas para os nosso baldes individuais sem dizer uma palavra. Apanhámos o mais depressa que pudemos, agachados, alternando da direita para a esquerda para apanhar as duas filas de bagas que nos balizavam.

A meio de uma das filas, enquanto apanhava, Abelino sentiu dores intensas no joelho direito, numa das inúmeras vezes em que se virou da direita para a esquerda. No final do dia, contou-me o incidente. Disse-me que lhe parecia que o seu pé não se mexia e foi nessa altura que a sua dor habitual no joelho aumentou significativamente. A dor era mais intensa na parte interna do joelho, logo atrás da rótula. Sentiu também que havia algo solto a mover-se dentro do joelho. Tentou continuar a trabalhar durante o resto do dia, na esperança vã de que a dor desaparecesse. Tentou apanhar com os joelhos esticados, dobrando as ancas, mas isso provocou-lhe uma dor idêntica e atrasou-o significativamente, levando a que quase não atingisse o peso mínimo do dia. No final dessa jornada, quando nos aproximámos dos nossos carros para regressar ao acampamento, Abelino falou ao nosso supervisor deste incidente. O supervisor disse simplesmente “OK” e foi-se embora na sua pick-up agrícola, sem dar qualquer seguimento ao assunto. Sem saber o que fazer, Abelino tentou trabalhar no dia seguinte, com muitas dores, e, mais uma vez, mal conseguiu colher o peso mínimo diário. Abelino acabou por consultar quatro médicos, um fisioterapeuta e um curandeiro indígena de Oaxaca, para além de ter tentado percorrer a burocracia necessária à obtenção de

cobertura das despesas com os cuidados de saúde. No final, a sua dor foi diagnosticada por um médico de reabilitação como resultante de uma tendinite patelar ou inflamação dos tendões que rodeiam a rótula. A tendinite é entendida biomedicamente como uma inflamação causada por movimentos repetitivos de tensão e esforço de um determinado tendão. A inflamação pode ser provocada por anos de trabalho excessivo e desencadeada por um dado esforço individual.

A génese social e política da dor no joelho de Abelino não poderia ser mais clara. A sua dor fora causada pelo facto de ele, enquanto indígena indocumentado de Oaxaca, ter sido excluído, tanto pelas desigualdades do mercado internacional, como pelas práticas discriminatórias locais, de todos os postos de trabalho, exceto de um - e um especialmente limitativo e traumático. Esta ocupação exigia que ele se dobrasse sete dias por semana, mexendo-se para trás e para a frente, em todo o tipo de condições climatéricas, para apanhar morangos o mais depressa possível. A posição de Abelino no fundo da hierarquia étnica, de cidadania e de trabalho da exploração agrícola significava que ele, tal como centenas de outros apanhadores de fruta indígenas de Oaxaca com dores nos joelhos, nas costas e nas ancas, estava numa posição que reunia as condições ideais para apanhar inflamação e deterioração crónicas das articulações.

A investigação no domínio da saúde pública entre migrantes mexicanos mostra que a maioria tem algum tipo de dor músculo-esquelética: 44% destes migrantes têm dores nas costas, 26% têm dores nos pés, 25% têm dores nos joelhos e 23% têm dores no pescoço Weigel et al., 2014. Além disso, os trabalhadores agrícolas têm uma taxa de mortalidade cinco vezes superior à dos trabalhadores no seu conjunto Frank et al., 2004 e apresentam também taxas mais elevadas de doenças crónicas, incluindo obesidade, hipertensão, doenças cardiovasculares e diabetes Lighthall, 2001. Toda esta investigação é, em parte, uma resposta ao apelo de Villarejo 2003, académico da área da saúde pública, para uma análise integral da realidade dos trabalhadores agrícolas migrantes em matéria de saúde. Especificamente, este académico escreveu que “a investigação epidemiológica é gravemente prejudicada pela ausência de... avaliações transversais do estado de saúde” Ibid.. A palavra - “transversal” (cross-sectional) - na investigação em saúde pública significa não apenas amplitude, mas também foco num dado momento no tempo, um corte temporal. Estas estatísticas indicam quantos trabalhadores agrícolas, num dado momento, têm um determinado tipo de dor, mas apenas são contados os trabalhadores agrícolas que, no momento do inquérito, se encontram no local onde o inquérito está a ser administrado. Este tipo de contabilização é incapaz de captar todas as formas de dor e de sofrimento sentidas pelos trabalhadores agrícolas ao longo das suas experiências espacial e temporalmente alargadas. Os problemas do tempo e do espaço são, de certa forma, suspensos na produção de factos estatísticos, mas, para os trabalhadores agrícolas migrantes, estas preocupações e constrangimentos espaciais e temporais são fundamentais para compreender as condições da sua exploração e as causas dos seus problemas de saúde.

Os investigadores estimam que menos de 20% dos trabalhadores migrantes tenham seguro de saúde, em contraste com uma estimativa de 84% dos residentes dos EUA em geral Health Outreach Partners, 2010; Villarejo, 2003. Além disso, estima-se que, na Califórnia, menos de 10% dos trabalhadores agrícolas indígenas mexicanos tenham seguro de saúde Mines et al., 2010. Em grande medida devido a estes obstáculos, os trabalhadores migrantes têm menos probabilidades do que os outros de obter cuidados de saúde, sendo que 27% nunca realizaram um exame físico de rotina e 25% nunca fizeram um check-up dentário Slesinger, 1992. Este tipo de estatísticas gerais sobre problemas de saúde dos trabalhadores agrícolas e falta de cuidados de saúde foi protagonista no aclamado documentário da CBS Harvest of Shame, de 1960. Como todas estas estatísticas revelavam a falta de saúde, a resposta adequada seria a prestação de cuidados de saúde. Em 1962, o Comité Presidencial para os Migrantes criou o Programa Federal de Saúde dos Migrantes, para prestar os tão necessários serviços de saúde a esta população. Trinta anos depois, calculava-se que este programa tivesse abrangido apenas 13% da população que pretendia servir Rust, 1990; estimava-se também que apenas 5% dos trabalhadores agrícolas tivessem um seguro de saúde, providenciado de resto pelos próprios empregados Lighthall, 2000. Embora este programa federal ofereça serviços importantes, e que muitas vezes salvam vidas, não consegue resolver as causas fundamentais do sofrimento dos trabalhadores agrícolas migrantes. Em parte porque as estatísticas citadas anteriormente não conseguem mostrar a experiência vivida dos problemas de saúde através do tempo e do espaço, elas são incapazes de confrontar as realidades temporais e espaciais alargadas que produziram, em primeira instância, as lesões dos trabalhadores agrícolas.

Estas estatísticas sobre saúde e seguros de saúde expõem muitos dos efeitos das condições sociais, políticas e laborais no bem-estar dos trabalhadores agrícolas i/migrantes. As desigualdades e a exploração inerentes à estrutura do nosso sistema alimentar transnacional prejudicam a saúde física dos trabalhadores agrícolas de formas específicas. Para além das omnipresentes e quase esperadas lesões músculo-esqueléticas, e da falta de cobertura do seguro de saúde, estas condições sociais, políticas e de trabalho desiguais afetam a saúde mental, o funcionamento social e a esperança no futuro dos trabalhadores agrícolas i/migrantes. Em suma, as estruturas do trabalho agrícola transnacional estratificadas de acordo com a etnicidade e a cidadania afetam o bem-estar geral dos trabalhadores agrícolas e das suas famílias, incluindo e indo muito além das lesões corporais físicas.

Dois dias depois do acidente com o joelho de Abelino, o encarregado da exploração agrícola cancelou subitamente o trabalho da parte da manhã, durante uma chuva forte e fria. Abelino e eu fomos a uma clínica próxima financiada pelo Programa Federal de Saúde dos Migrantes. Nos meses que se seguiram, Abelino consultou vários médicos e um fisioterapeuta, geralmente sem um tradutor que falasse espanhol, nunca comunicando na sua língua materna. Durante esses meses, coxeava pelo campo de trabalho, cuidando dos filhos, enquanto a mulher e a filha mais velha continuavam a trabalhar.

O médico que Abelino consultou pela primeira vez explicou que ele não deveria trabalhar, mas que deveria antes descansar e deixar o joelho recuperar. Este médico também preencheu a papelada para abrir um pedido de indemnização do trabalhador junto do Departamento do Trabalho e Indústrias do estado de Washington LNI, para que os cuidados médicos de Abelino pudessem ser cobertos. De notar que apenas 36 estados exigem que os empregadores agrícolas assegurem a indemnização dos trabalhadores, e 5 desses estados exigem-no apenas para as grandes explorações agrícolas Rural Migration News, 1996; cf. Sakala, 1987. Na semana seguinte, quando Abelino e eu fomos à clínica para a sua consulta, o médico original não estava de serviço, pelo que fomos consultar um dos seus colegas. Este médico examinou a ficha de Abelino, ouviu-o contar o que tinha acontecido e disse-lhe que podia trabalhar em “serviços ligeiros”, desde que não se curvasse, andasse ou ficasse de pé durante muito tempo. O médico preencheu um formulário para o efeito e entregou-o a Abelino, para que este o levasse para a quinta. Abelino dirigiu-se ao escritório da quinta para pedir um serviço deste género. A rececionista bilingue disse-lhe, em espanhol, num tom frustrado, “Não, porque não”, e não lhe deu a possibilidade de falar com mais ninguém. Após algumas semanas, o médico da medicina no trabalho transferiu o processo de Abelino para uma especialista em medicina de reabilitação que lhe disse que ele tinha de trabalhar arduamente na apanha de morangos para melhorar o joelho. A médica pediu-me para traduzir para Abelino que ele tinha estado a apanhar morangos de forma incorreta e que tinha magoado o joelho porque “não sabia dobrar-se corretamente”, embora, notoriamente, com a sua agenda preenchida, ela não lhe tivesse chegado a perguntar os pormenores do seu trabalho ou da sua posição corporal.

Passados alguns meses, o LNI agendou uma reunião entre Abelino, os administradores da quinta e um consultor, com vista a esclarecer que tipo de acordo de trabalho poderia ser alcançado. Abelino e eu fomos ao escritório da quinta para a reunião. Quando a Samantha entrou na sala, com 20 minutos de atraso, cumprimentou-nos calorosamente. O outro funcionário da quinta estava reunido com o consultor do LNI noutra sala e telefonou a dizer que estavam atrasados. A Samantha respondeu: “Não há problema, estejam à vontade”. Assim que o consultor do LNI e o administrador da Quinta Tanaka chegaram, o primeiro explicou a Abelino, enquanto Samantha traduzia, que o iria ajudar a conseguir um trabalho ligeiro na quinta. Abelino explicou que precisava de se mudar para a Califórnia com a família daí a um mês, quando terminasse a época das colheitas no estado de Washington. Disse-lhe que o que realmente queria era que a empresa lhe garantisse um trabalho leve para o verão seguinte. O consultor explicou que, se Abelino saísse do estado de Washington, o LNI deixaria de cobrir as despesas médicas relacionadas com o seu acidente de trabalho e deixaria de o ajudar a conseguir um trabalho ligeiro. Abelino reiterou o seu pedido de trabalho ligeiro para a época seguinte e o consultor voltou a afirmar que o seu processo seria encerrado se ele deixasse o estado. O funcionário da quinta ficou em silêncio, a reunião terminou e todos apertaram as mãos.

Pouco tempo depois, o consultor do LNI preencheu um formulário recomendando que Abelino assumisse as funções de “Trabalhador Geral” com “trabalho ligeiro”. As atividades especificadas pelo consultor incluíam “sachar à mão”, “aparar plantas de framboesa”, “colheita manual de bagas”, “colheita mecânica de bagas” e “outras tarefas de trabalhador geral, conforme necessário”. De acordo com este formulário, a “colheita manual de bagas” passara a ser considerada “trabalho ligeiro”. O relatório não mencionava que a apanha de bagas implica dobrar repetidamente os joelhos, precisamente aquilo que iniciou e agravou a lesão no joelho de Abelino. Apesar de a prestação de cuidados a Abelino ter sido transferida para a médica de reabilitação, o LNI enviou o relatório ao médico de urgência inicial, que Abelino não via há meses. Este médico de urgência concordou com os termos do relatório. A carta enviada posteriormente a Abelino indicava, em inglês, que o seu pedido de indemnização tinha sido encerrado e concluía:

“Votos de melhoras para a sua saúde, emprego e segurança”.

A dor de Abelino foi diagnosticada como tendinite, uma lesão inevitavelmente contínua e crónica. Devido à sua classe, pertença racial e cidadania, Abelino foi categorizado primordialmente como trabalhador agrícola. Uma vez que o trabalho agrícola é, por definição, um trabalho contínuo e repetitivo de tensão e esforço articular - que é, por definição, a causa de uma lesão como a tendinite -, esta lesão torna-se aceitável e invisível. Estas lesões, que são expectáveis no contexto do trabalho agrícola, são entendidas como normais e naturais para aqueles que são classificados como trabalhadores agrícolas. Neste contexto, a dor no joelho de Abelino revelou uma responsabilidade burocrática impotente da parte dos setores dos cuidados de saúde e de indemnização dos trabalhadores. No final, o tratamento de “trabalho ligeiro” que foi prescrito ao paciente foi definido de acordo precisamente com as condições que em primeira instância causaram a sua lesão. E, independentemente disso, o seu caso teria sido encerrado algumas semanas mais tarde, quando ele migrou com a sua família alargada para a Califórnia.

Tudo isto acontece enquanto Abelino solicita, de forma repetida, reconhecimento, cuidados e bem-estar para si e para a sua família. Apesar das múltiplas experiências de rejeição e desconsideração por parte de médicos, secretárias bilingues de explorações agrícolas e sistemas de proteção social, ele continua a pedir, solicitar e exigir uma vida que seja vivível cf. Willen, 2014, 2019. A sua resiliência e resistência confrontam a sobreposição de sistemas políticos, económicos, laborais e agrícolas estratificados e procuram construir uma vida vivível de bem-estar para si e para a sua família, no meio de circunstâncias duras e desiguais cf. Jackson, 2011; Willen, 2014. Além disso, Abelino também se envolveu em formas de resistência coletiva direcionadas para a obtenção de condições de trabalho mais seguras e para a promoção do bem-estar geral dos trabalhadores agrícolas Holmes, 2013.

No entanto, em certa medida, as estatísticas citadas anteriormente podem servir para naturalizar ainda mais o dano dos trabalhadores agrícolas. Como explica Hacking 1990, “Nos primeiros anos do século, assumiu-se que as leis estatísticas eram redutíveis a eventos determinísticos subjacentes, mas a aparente prevalência de tais leis minou lenta e erraticamente o determinismo. As leis estatísticas passaram a ser consideradas leis de pleno direito…”. Seguindo este argumento, o conhecimento de que os trabalhadores agrícolas tendem a ter dores nos joelhos tornou-se a sua própria lei causal, de tal forma que uma pessoa tem dores nos joelhos simplesmente porque está posicionada numa determinada categoria e não devido às condições de trabalho, à exploração ou às hierarquias raciais e transnacionais historicamente enraizadas.

As lesões do trabalhador agrícola migrante como morte lenta

Num ensaio sobre a fenomenologia e as respostas à obesidade no mundo contemporâneo, Berlant 2007 desenvolve uma teoria da “morte lenta”. Explorando os temas da temporalidade, do sofrimento e da agência nas formas contemporâneas do capitalismo, a autora define a morte lenta como “o desgaste físico de uma população ou a deterioração das pessoas dessa população que é quase uma condição definidora da sua experiência e existência histórica”. Posteriormente, ela descreve a morte lenta como “a incorporação da morte como um modo de vida”. Berlant descreve o desgaste quotidiano e dado como adquirido da vida, da agência e do próprio sujeito no contexto da exploração capitalista neoliberal. Relacionado com o de violência estrutural, este conceito realça as formas como os sistemas político-económicos produzem danos nos corpos, nas mentes e nas pessoas. Com a morte lenta, contudo, Berlant centra-se sobretudo nos resultados afetivos e fenomenológicos das estruturas político-económicas. Ela defende que a morte lenta “não é memorável” e não é capaz de provocar uma mudança significativa porque é vivida como “crise costumeira” (crisis ordinariness), como uma característica definidora da vida normal de determinadas classes de pessoas. Berlant escreve que “neste domínio, a morte e a reprodução normal da vida são coextensivas”. Tal como acontece no caso do conceito de violência simbólica, o conceito de “morte lenta” sublinha as formas pelas quais a sociedade aceita ou até espera certos danos em categorias específicas de pessoas. Mais uma vez, a teorização de Berlant põe em relevo quer a normalização, quer, sobretudo, a experiência da morte lenta.

Os trabalhadores agrícolas vivem uma vida quotidiana e uma experiência contínua semelhantes à morte lenta descrita por Berlant. Eles sofrem de uma miríade de problemas de saúde devido às condições em que vivem e trabalham, que incluem a exposição crónica a pesticidas e ao calor, o transporte repetido de cargas pesadas, o trabalho regular com maquinaria perigosa e as colheitas prolongadas em posição curvada ou com os joelhos dobrados. Igualmente justo é mencionar que as condições crónicas que causam aos migrantes os seus ferimentos e lesões incluem o Estado neoliberal fraco e o mercado forte, por exemplo, com o NAFTA (North American Free Trade Agreement), acordo que não permite que os países pobres protejam os seus cidadãos com taxas e impostos, ao mesmo tempo que possibilita que os países ricos protejam os seus produtos com tarifas inversas, os subsídios. Outras condições crónicas que contribuem para os ferimentos e lesões dos trabalhadores agrícolas incluem o racismo e o preconceito anti-imigrante, que impedem efetivamente certas classes de pessoas de exercerem determinados empregos e colocam os imigrantes indocumentados em algumas das posições mais perigosas e insalubres da sociedade.

O trabalho agrícola é definido pela temporalidade e espacialidade da morte lenta. Os apanhadores de morangos numa quinta do estado de Washington recebem 14 cêntimos por quilo de bagas colhidas e desfolhadas e são obrigados a trazer um mínimo de 23 quilos de morangos por hora para receberem o salário mínimo de 7,01 dólares, caso contrário são despedidos e expulsos do campo de trabalho. Para cumprir este requisito, fazem poucas ou nenhumas pausas desde antes do nascer do sol até à parte da tarde, quando a colheita no campo fica concluída. Muitos não comem nem bebem nada antes do trabalho, para não terem de ir à casa de banho. Trabalham o mais dura e rapidamente que conseguem, colhendo dobrados pela cintura, trabalhando sete dias por semana, faça chuva ou faça sol, sem um dia de folga, até que o último morango seja processado. Para sobreviverem, deixam as suas famílias e terras de origem para caminharem num deserto mortalmente perigoso. No entanto, estes tempos e espaços de morte lenta são amplamente invisíveis, já que os políticos ignoram os trabalhadores imigrantes nos debates sobre a reforma da saúde. Devido às definições contemporâneas racializadas, classificadas e ilegalizadas das categorias de “migrante” e “trabalhador agrícola”, o desgaste crónico decorrente destas condições de trabalho é considerado normal, e até mesmo essencial, para as pessoas que se encontram posicionadas nestas categorias sociais. Para os trabalhadores agrícolas migrantes, a morte está a acontecer - ela é-lhes consignada ao longo do tempo e do espaço. Os ferimentos dos trabalhadores agrícolas migrantes são invisíveis e não constituem um acontecimento não só por causa da diferença social de base racial, classista e de cidadania, mas também devido à sua temporalidade e espacialidade alargadas. Tal como outros analisaram em detalhe Gilmore, 2007, o racismo estrutural e os danos crónicos estão ligados de forma direta, produzindo sistematicamente a morte prematura de certas populações.

impacto, provocando mudanças significativas? Uma questão secundária poderia ser: como podem as estatísticas tornar visíveis estas mortes lentas e o que é que pode estar escondido no processo? Ao trabalhar na área da saúde pública há vários anos, tenho-me interessado cada vez mais pelo papel que a bioestatística, a epidemiologia e a quantificação desempenham na nossa compreensão e nas nossas respostas perante a saúde e as lesões. Comecei a pensar nas formas como a estatística medeia as nossas perceções e reações em face da saúde e da doença, e que tipos de ganhos e perdas sociais, culturais e políticas existem neste processo. Em que medida pode Helen Verran 2000 estar correta quando diz, no seu trabalho na África Ocidental, que “a política… e a matemática são inseparáveis”?

Ligando números e visibilidade, Keith Devlin 1997 explicou, no seu discurso dirigido aos diplomados do Departamento de Matemática de Berkeley, intitulado “Mathematics Makes the Invisible Visible”, que, “sem a matemática, não há forma de compreender o que mantém um avião Jumbo no ar. Como todos sabemos, os grandes objetos metálicos não se mantêm acima do solo sem algo que os sustente. É preciso matemática para ‘ver’ o que mantém um avião no ar. Neste caso, o que nos permite 'ver' o invisível é uma equação descoberta… no século XVIII”. Uma questão relacionada com esta que gostaria de colocar, no caso dos danos lentos, crónicos, quotidianos e de baixo nível comuns no trabalho agrícola migrante, é a seguinte: que possibilidades de visibilidade e resistência, bem como de apagamento e cumplicidade, são fomentadas pelos nossos métodos de investigação, incluindo a mediação estatística?

Acontecimento e possibilidade

Vários académicos desenvolveram teorias sobre acontecimentos e o seu significado (eventfulness). O matemático e filósofo francês Alain Badiou desenvolveu uma teoria do acontecimento assente numa interação única entre teoremas matemáticos e filosofia continental. Em O Ser e o Acontecimento (L’Être et l’Événement; Being and Event), Badiou 2001 explica que um acontecimento não é simplesmente uma situação-tal- como-ela-é. Para Badiou, um acontecimento é antes uma sobreposição suplementar à situação e deve ser visto como importante e reconhecido enquanto tal (eventful). O sujeito que o reconhece deve, então, relacionar-se com o mundo de uma forma nova, nas palavras de Badiou, “a partir da perspetiva do seu suplemento acontecimental (evental suplement)” 2001. O acontecimento, quando reconhecido enquanto tal, altera a perspetiva do sujeito, abrindo novas possibilidades de este se relacionar com o mundo nos termos do acontecimento. Desta forma, o acontecimento exige fidelidade às potencialidades que se desdobram no seu rasto. Badiou explica: “Uma fidelidade acontecimental é uma rutura real tanto pensada como praticada na ordem específica em que o acontecimento teve lugar”. Esta fidelidade e este desenvolvimento não estão pré-determinados numa dada direção. Pelo contrário, escreve Badiou, “um acontecimento está ligado à noção do indecidível”.

Seguindo Badiou, Massumi 1998 descreve a diferença entre a situação e o acontecimento de forma mais poética: “…a fuga radical de um desvio do experimentado- e-verdadeiro é impensável nos termos estabelecidos pela situação. Ela atinge-nos num momento de distração, entrando diretamente na carne com um impacto inesperado, exigindo atenção…Uma nova possibilidade” 1998.

Tanto Badiou como Massumi teorizam o acontecimento com uma certa temporalidade implícita. Assume-se que o acontecimento é localizável no tempo, e que é algo acabado, completo. Os acontecimentos não são algo que está em curso. Não estão sempre apenas parcialmente concluídos. Num certo sentido, então, o acontecimento serve como uma ferramenta analítica útil para a eliminação da cronicidade.

Deste ponto de vista, uma lesão crónica nas costas ou uma intoxicação por pesticidas é um acontecimento para a pessoa que a sofre e para as pessoas que lhe estão imediatamente ligadas. Após a lesão, estas pessoas percebem contínua e inescusavelmente as suas vidas e os seus corpos de forma diferente. Passam a relacionar- se consigo próprias, com os outros, com o trabalho e com o Estado de forma diferente. No entanto, este acontecimento não é geralmente portador de indecidibilidade ou da esperança potencial de uma nova possibilidade, tal como teorizadas por Badiou e Massumi. Enquanto os acontecimentos trazem consigo o drama e produzem uma resposta e a uma nova subjetividade, as lesões dos trabalhadores agrícolas migrantes parecem frequentemente reforçar as relações sociais e materiais hierárquicas existentes.

Além disso, a experiência vivida do sofrimento dos trabalhadores agrícolas tem uma temporalidade diferente da de um acontecimento. Os acontecimentos são circunscritos do ponto de vista temporal e são algo acabado, são muitas vezes repentinos e momentâneos. A experiência de lesão entre os trabalhadores agrícolas, por outro lado, é o mais das vezes contínua, acumulada, crónica. Retomando as palavras de Massumi, num momento... com um impacto inesperado exigindo... uma nova possibilidade”, antes permeia o tempo com resultados que são já esperados. Se seguirmos a teorização de Badiou e Massumi de que os acontecimentos conduzem a futuros desconhecidos, no caso dos trabalhadores agrícolas migrantes, o que se verifica é o contrário.

Depois da primeira semana a apanhar morangos, perguntei a duas jovens que tinham estado na apanha no mesmo campo que eu de que forma perspetivavam as suas experiências. Uma delas disse que já não sentia nada “Mi cuerpo ya no puede sentir nada”, embora dissesse também que os joelhos lhe doíam por vezes. A outra disse que os joelhos, as costas e as ancas lhe estavam “sempre a doer”. Mais à frente nessa mesma tarde, um dos jovens que vi jogar basquetebol antes da colheita disse-me que ele e os amigos já não conseguiam correr porque lhes doía muito o corpo “Ya no corremos; no aguantamos”.

Os médicos que observei na clínica de migrantes situada nas proximidades, no estado de Washington, sentiam-se muitas vezes desesperançados ao verem os corpos de pessoas jovens e saudáveis a degradarem-se de forma sistemática. Um médico de família que trabalhava na clínica de migrantes falou-me da sua frustração:

“Vejo imensas pessoas a desgastarem-se. Foram usadas e maltratadas e trabalharam fisicamente mais do que seria de esperar que alguém trabalhasse durante aquele número de anos. Depois, aparecem com uma dor de costas insistente. Trata-se e a dor não melhora, e não se pensa que a pessoa está a fingir. Chega-se a um ponto em que é preciso fazer-lhes uma ressonância magnética e as suas costas estão desfeitas. Com quarenta e poucos anos, têm a artrite de uma pessoa de 70 anos e não melhoram. Dizem-lhes: “Desculpem, mas voltem a fazer o que estavam a fazer”, e eles ficam presos. Estão lixados, numa palavra, e isso é trágico”.

Um outro médico da mesma clínica de migrantes explicou-me que as pessoas podem trabalhar na apanha do morango durante apenas dez anos e depois, devido à deterioração previsível das suas costas, têm de “reformar-se” e regressar aos seus países de origem para serem sustentadas pelos seus familiares mais jovens. Têm-me falado muitas vezes destes regressos médicos “voluntários”, embora seja difícil recolher e produzir dados estatísticos fiáveis sobre esta taxa de retorno migratório induzido por lesões.

Em Economies of Abandonment, Povinelli 2011 utiliza o termo “quase- acontecimento” para se referir a estes danos contínuos e difíceis de observar entre os aborígenes australianos. Estes danos contínuos têm um estatuto pouco claro enquanto acontecimentos, precisamente devido à sua temporalidade e incompletude. Para Povinelli, os quase-acontecimentos são ocorrências contínuas, por oposição a um acontecimento que é vivido como súbito, localizável no tempo e acabado. Os quase-acontecimentos são incertos. Algo muda claramente, mas nunca é claro se tal já aconteceu ou se ainda está para acontecer. As costas do apanhador de morangos estão a degradar-se a todo o momento, mas, se se retiver um dado momento, elas já estão degradadas ou ainda não estão completamente degradadas? Em vez de ocorrerem num momento, estes quase- acontecimentos constituem o tecido da vida quotidiana de certas categorias de pessoas no mundo contemporâneo. A lesão na quinta no estado de Washington é um gerúndio, está acontecendo. Não só ela não é identificável num único momento, como é vivida como vida normal e, como tal, não traz a resposta, a fidelidade ou a possibilidade de mudança significativa espoletada por um acontecimento. Muitas formas de sofrimento dos trabalhadores agrícolas, desde lesões nos joelhos a dores nas costas ou exposição a pesticidas, são vividas como quase-acontecimentos não só por quem as sofre, mas também pela sociedade.

Os gestores da exploração agrícola do estado de Washington reconheceram a natureza sistemática e crónica das lesões na agricultura. O responsável pela colheita de morangos explicou-me que muitos apanhadores saem da exploração com envenenamento por pesticidas e lesões nas costas, ancas e joelhos. Prosseguiu explicando que a exploração agrícola não deve ser responsabilizada pelas lesões que ocorrem durante a colheita, porque cada lesão se desenvolveu invariavelmente não apenas naquela exploração, mas também em todas as explorações agrícolas onde o colhedor tenha trabalhado anteriormente. Como se depreende desta explicação do encarregado da quinta, tais quase-acontecimentos, justamente por causa da sua temporalidade alargada e espacialidade migratória, impedem a possibilidade de resposta e responsabilidade. Como se viu anteriormente, o quase-acontecimento da lesão no joelho de Abelino teve um caráter limitado enquanto acontecimento e revelou-se incapaz de provocar uma mudança significativa.

Os profissionais de saúde pública compreendem muito bem a dificuldade de trazer à luz do dia os danos crónicos e de baixa intensidade da desigualdade social. Regularmente, estudantes e professores de saúde pública falam da dificuldade e da importância da utilização de estatísticas para tornar visíveis realidades que passam despercebidas do grande público. Afinal de contas, no mundo contemporâneo, as estatísticas são uma das principais formas pelas quais os não-eventos passam a ser vistos e considerados. Como Nelson 2015 argumenta a propósito da contabilização subsequente ao genocídio guatemalteco, “(os números) são uma parte essencial da luta intensa que é travada para fazer com que as experiências e as pessoas ‘contem’, no sentido de terem importância”. Mais concretamente, muitos profissionais de saúde pública veem o aparelho estatístico da epidemiologia como um meio de transformar quase- acontecimentos invisíveis, como lesões de trabalhadores agrícolas, em acontecimentos reconhecíveis, com a esperança de um futuro reorientado, mais igualitário e mais saudável.

Enquanto campo, a epidemiologia da saúde pública recolhe e classifica as pessoas e, em seguida, analisa as categorias agregadas, a fim de aproveitar esse capital para forçar intervenções. No seu trabalho sobre o autismo, Hacking 2006 explica como a epidemiologia desempenha um papel na “invenção de pessoas”, através da re- categorização que leva à re-subjetivação. Hacking descreve esse processo recorrendo ao que designa como “motores da descoberta”, que incluem a contagem, a quantificação, a criação de normas e a correlação. Neste processo, a epidemiologia pega na experiência da letalidade crónica, com o seu caráter normal, quotidiano, incompleto e inescapável, e produz, através da normalização, um valor p que se espera que seja suficientemente significativo para mudar a realidade material por via da conceção e aplicação de políticas.

O valor p é definido como a probabilidade de um dado resultado ser real e não meramente devido ao acaso. O resultado consiste geralmente na determinação do facto de um grupo ser diferente de outro relativamente a um resultado variável específico. O valor p determina se um resultado deve ser considerado estatisticamente significativo ou não e, consequentemente, se esse resultado deve ser publicado ou não. A significância estatística é definida, na maioria das vezes, como um valor p inferior a 0,05, o que indica que o resultado pode dever-se ao acaso apenas 5% das vezes. A capacidade de produzir um valor p significativo depende parcialmente do grau em que a variável difere entre os grupos e parcialmente do tamanho dos próprios grupos, do número de indivíduos classificados em cada grupo no estudo.

Este segundo aspeto, o número de pessoas nos grupos, é definido, para recorrer à terminologia técnica, como o poder do estudo. Os meus alunos utilizam regularmente o termo técnico, poder, para discutir e analisar se um estudo será capaz de tornar visível aquilo para que aponta. Os profissionais de saúde pública e de medicina criticam frequentemente os estudos por serem pouco poderosos, ou usam o termo para explicar porque é que não conseguiram produzir significância estatística. Um estudo pouco poderoso ou pouco robusto é considerado indigno de ser realizado precisamente porque o objetivo do estudo é produzir um valor p suficientemente significativo para ser publicado e, consequentemente, para produzir a mudança esperada cf. Adams, 2013. Com um valor p suficientemente significativo, o acontecimento estatístico, assim o esperamos, irá conjurar uma certa consciencialização e, através dessa consciencialização, haverá lugar a uma mudança de política, material, social e de saúde.

Tendo em conta a indecidibilidade da direção da mudança inerente a qualquer acontecimento de que falam Badiou e Massumi, devemos perguntar-nos se um acontecimento estatístico é suficiente para reenquadrar que corpos devem ser contabilizados como humanos e quais, portanto, são entendidos como passíveis de lesão cf. Jain, 2006 e de lamento cf. Butler, 2010. Ou, pelo contrário, como provocação a considerar, pode o acontecimento estatístico trazer uma empatia momentânea que é incapaz de desafiar o enfraquecimento neoliberal do Estado e o fortalecimento do mercado, bem como sentimentos, práticas, políticas e votos anti-imigrantes e racistas? Finalmente, será possível que, a um certo nível, um acontecimento estatístico tão agregado possa solidificar as fronteiras que separam categorias de pessoas, apagando simultaneamente ligações e cumplicidades?

Na obra de Badiou, o sujeito, recém-produzido pelo acontecimento, percebe e atua de forma diferente no mundo, fiel às potencialidades desconhecidas decorrentes do acontecimento. Os acontecimentos epidemiológicos, quando reconhecidos, exigem e conduzem a respostas técnicas especializadas, tais como cabos mais compridos para as enxadas cf. Jain, 2006 e mudanças na forma como os pesticidas são utilizados e em que circunstâncias, muitas vezes com resultados positivos e significativos para a saúde. Ao mesmo tempo, tais acontecimentos não desafiam, regra geral, as formas contemporâneas do capitalismo neoliberal, das divisões de classe, do racismo institucional e do preconceito anti-imigrante que estruturam o nosso sistema alimentar transnacional e as suas condições de trabalho sistemática e diferencialmente danosas. Neste sentido, os acontecimentos estatísticos comportam apenas uma potencialidade limitada de mudança em domínios específicos, proximais e pragmáticos.

A meio do documentário de 1960 anteriormente mencionado, “Harvest of Shame”, o apresentador, Edward Murrow, enumera estatísticas relacionadas com as mortes de migrantes ocorridas durante as respetivas trajetórias de mobilidade. Com um pano de fundo pontuado por autocarros escolares e camionetas cheias de trabalhadores agrícolas migrantes, Murrow descreve à audiência um acidente na Carolina do Norte em que morreram 17 homens, 3 mulheres e 1 bebé. O filme passa imediatamente para o Secretário do Trabalho, Mitchell, que declara: “Não passa um ano sem que se leia nos jornais um caso de um acidente muito grave em que, por vezes, uma dúzia ou mais de pessoas morrem, simplesmente porque não existe uma norma interestadual em matéria de segurança” Friendly et al., 1960.

O documentário não só retrata as condições perigosas em que os trabalhadores agrícolas migrantes se deslocam, como também conclui que a solução necessária é uma política pragmática, uma norma de segurança nos transportes. Aqui, as estatísticas são utilizadas para mudar a política sem analisar as condições subjacentes de exploração e hierarquia sistemáticas. Não chamam a atenção para as desigualdades historicamente enraizadas, nem trazem um desdobramento das potencialidades ou um redirecionamento das formas políticas e económicas vigentes. Na antropologia médica, muitos escreveram sobre o reducionismo clínico. Esta expressão indica a redução do sofrimento socialmente estruturado ao biológico e àquilo que é passível de intervenção médica. Aqui, vemos aquilo a que poderíamos chamar um reducionismo estatístico, em que as realidades são reduzidas em termos de tempo, espaço e possibilidade política.

Dame Marilyn Strathern 1996, no seu trabalho sobre a cultura da auditoria, indica que o aparelho da contabilidade pode alimentar formas contemporâneas de economia empresarial. Considerando as relações potenciais entre as funções dos números e as economias, Keith Devlin, citado anteriormente a propósito do seu discurso de 1997 aos licenciados em Matemática de Berkeley - ele que é também cofundador da parceria de investigação indústria-universidade Media X de Stanford -, afirmou, ao concluir esse seu discurso, que, “utilizando a matemática, somos capazes de olhar para o futuro”. Como exemplo positivo disto mesmo, continuou: “as companhias de seguros utilizam a estatística e a teoria das probabilidades para prever a probabilidade de um acidente… e fixar os seus prémios em conformidade”. O documentário de grande impacto antes mencionado, “Harvest of Shame”, foi patrocinado pela Philip Morris, uma das maiores empresas de tabaco, que beneficia da exploração de trabalhadores agrícolas migrantes. O filme apresenta o slogan da empresa Marlboro Cigarettes, “Cigarros com filtro, sabor sem filtro” (Filtered cigarettes, unfiltered taste), no início e no fim, e mostra tanto Edward Murrow, o apresentador, como o Secretário do Trabalho, Mitchell, a fumar cigarros em quase todas as cenas em que intervêm. Estas ligações entre os interesses empresariais e a utilização de números podem levar-nos a questionar a forma como a produção, o enfoque e a utilização das estatísticas de saúde podem representar não só as pessoas e o seu sofrimento, mas também os ditames de interesses políticos e económicos mais vastos.

Num certo sentido, os acontecimentos estatísticos não são fiéis à realidade que pretendem descrever. O acontecimento estatístico é temporalmente identificável através de valores p, gráficos e datas de publicação. Este acontecimento estatístico momentâneo apaga a realidade da letalidade crónica, da morte lenta vivida e esperada como vida normal e da lesão como deterioração corporal intrínseca à passagem do tempo. Este processo elide as hierarquias racializadas dos corpos, as estruturas políticas e económicas e as histórias de cumplicidade entre os indivíduos classificados para análise estatística e aqueles que produzem e têm o poder de responder política ou apoliticamente ao acontecimento estatístico. Como Adams 2013 argumenta no seu trabalho sobre a ciência da saúde global baseada em dados, a atração por dados estatisticamente robustos mina a nossa capacidade para ver outros tipos de verdades factuais sobre as causas de lesão, doença e morte. Aqui, não estou a criticar a capacidade dos métodos quantitativos para aferir, de forma rigorosa ou reprodutível, a incidência e a prevalência de condições crónicas de saúde, mas sim a provocar-nos a considerar as camadas experienciais humanas da morte lenta que não são totalmente representadas através da mediação estatística.

A prática descrita no início deste artigo de registar a hora de entrada ao serviço dos apanhadores de fruta da quinta em que trabalhei no estado de Washington mais tarde do que a hora da sua chegada efetiva pode servir aqui como metáfora útil. Impelido pelas exigências dos mercados agroalimentares capitalistas, bem como pelas hierarquias laborais fundadas na etnia e na cidadania, o relógio de ponto da quinta é incapaz de registar as horas certas. Tal como este relógio, os acontecimentos estatísticos neste âmbito distorcem o tempo e o espaço. No importante esforço de tornar visível o invisível, as estatísticas de saúde produzidas e utilizadas nestes contextos de exploração e hierarquia não conseguem desafiar a deterioração contínua e quotidiana imposta pelas regras do mercado. Os investigadores têm usado múltiplas técnicas para abordar a cronicidade dos problemas de saúde - incluindo histórias de experiências de doença, inquéritos sobre condições crónicas, acompanhamento longitudinal de coortes -, cada uma com os seus prós e contras em termos de representação da plenitude daquilo a que Berlant chamaria morte lenta. Incapazes de apresentar na plenitude da sua complexidade experiencial e cronicidade a experiência temporal e espacial das lesões dos trabalhadores agrícolas migrantes, as estatísticas podem estar condenadas a deturpar a experiência e a produzir eventos reducionistas incapazes de trazer a responsabilidade, a crítica e a mudança necessárias em face da desigualdade e da violência inerentes ao nosso sistema alimentar.

Esta reflexão sobre a lesão de Abelino e a natureza demasiadas vezes dada como adquirida das lesões dos trabalhadores agrícolas migrantes em geral recorda-nos a desigualdade e a violência endémicas do nosso sistema alimentar transnacional. Os ferimentos e as elisões do quase-acontecimento que é esta morte lenta decorrem sistematicamente ao longo das linhas de cidadania, raça, etnia e classe que estruturam este sistema alimentar multiescalar. No entanto, até mesmo os métodos e representações utilizados pelos investigadores para promover a mudança parecem frequentemente limitados face às desigualdades calcificadas e aos interesses enraizados que impulsionam a produção de alimentos.

Isto não significa que outro meio, incluindo a etnografia ou o documentário, capte totalmente as causas e as experiências das lesões ou da doença. Juntamente com os meus colegas da medicina, da saúde pública, dos estudos da alimentação e da antropologia, pretendo desafiar-nos a sermos criticamente reflexivos, prestando atenção às nossas representações e aos nossos métodos - “mistos” ou “puros” - e às formas específicas de visibilidade, invisibilidade, resistência e cumplicidade que eles fomentam. Como podem os nossos métodos qualitativos ou quantitativos realçar certos aspetos do sistema alimentar e desviar a atenção de outros? Como podemos começar a ver para além dos nossos pontos cegos disciplinares e envolver-nos mais eficazmente com os movimentos de mudança social, política, económica e ambiental do sistema alimentar, incluindo, especialmente, com as ações individuais e coletivas dos próprios trabalhadores do sistema alimentar? No contexto específico dos trabalhadores agrícolas migrantes, as nossas representações e métodos devem atender à temporalidade em curso e à espacialidade transnacional das experiências de lesão, doença e sofrimento, bem como à procura contínua por, e à possibilidade de mudança.

No clima político antagonístico e anti-imigrante atualmente vigente, os nossos métodos de investigação e representação devem prestar atenção às práticas quotidianas e às ações coletivas dos trabalhadores agrícolas i/migrantes e de todos os trabalhadores do sistema alimentar que exigem bem-estar e a possibilidade de uma vida vivível no seio de sistemas limitadores e prejudiciais. Enquanto profissionais de medicina e saúde pública e investigadores e académicos das áreas dos estudos agrícolas e alimentares, devemos tentar reconhecer no nosso trabalho clínico e expressar no nosso trabalho académico toda a realidade experiencial do trabalho e das condições de vida que lenta e regularmente prejudicam aqueles que nos providenciam os nossos alimentos. Para além dos nossos papéis especificamente profissionais, devemos procurar apoiar a resistência individual e as ações coletivas dos trabalhadores em todo o sistema alimentar. Estas ações individuais e coletivas não só evidenciam as desigualdades lesivas inerentes aos nossos sistemas alimentares e político-económicos transnacionais - desigualdades que devem ser confrontadas e alteradas -, como também abrem caminho para futuros mais equitativos, justos e democráticos que promovam bem-estar de todos.

Referências

ADAMS, V. 2013, “Evidence-Based Global Public Health: Subjects, Profits, Erasures”, In When People Come First: Critical Studies in Global Health, ed. J. Biehl and A. Petryna, pp. 54-90, Princeton, Princeton University Press. [ Links ]

BADIOU, A. 2001, Ethics: An Essay on the Understanding of Evil, New York, NY, Verso. [ Links ]

BERLANT, L. 2007, “Slow Death Sovereignty, Obesity, Lateral Agency”, Critical Inquiry, 33 4, pp. 754-780. [ Links ]

BUTLER, J. 2010, Frames of War: When is Life Grievable?, Brooklyn, Verso [ Links ]

CALHOUN, Craig. 2006, “The Privatization of Risk”, Public Culture, 18 2, pp. 257-263 [ Links ]

DEVLIN, K. 1997, May 23. Making the Invisible Visible. Speech retrieved from https://www.maa.org/makin g-the-invisible-visible. [ Links ]

FERGUSON, J. 1994. The Anti-Politics Machine: “Development”, Depoliticization and Bureacratic Power in Lesotho, Minneapolis, University of Minnesota Press. [ Links ]

FRANK, A.L., MCKNIGHT R., KIRKHORN S.R. & GUNDERSON P. 2004, “Issues of Agricultural Safety and Health. Annual Review of Public Health, 25, pp. 225-245. [ Links ]

FRIENDLY, F., MURROW E., LOWE D. Producers & F. FRIENDLY Director. 1960, Harvest of Shame (Motion Picture), United States, CBS. [ Links ]

GILMORE, Ruth Wilson. 2007, Golden Gulag: Prisons, Surplus, Crisis, and Opposition in Globalizing California, Berkeley, University of California Press. [ Links ]

HACKING, I. 1990, The Taming Of Chance, Cambridge, Cambridge University Press. [ Links ]

HACKING, I. 2006, April 11, Kinds of People: Moving Targets, Lecture retrieved from https://www.brita c.ac.uk/sites/defau lt/files /hacking-draft.pdf. [ Links ]

HEALTH OUTREACH PARTNERS 2010, Breaking Down the Barriers: A National Needs Assessment on Farmworker Health Outreach, 4th ed, Oakland, CA, Health Outreach Partners. [ Links ]

HOLMES, S.M. 2006, An Ethnographic Study of the Social Context of Migrant Health in the United States, Public Library of Science Medicine, 3 10, e488. [ Links ]

HOLMES, S.M. 2013, Fresh Fruit, Broken Bodies: Migrant Farmworkers in the United States, Berkeley, University of California Press. [ Links ]

HOLMES, S.M., and CASTAÑEDA, H. 2016, “Representing the European Refugee Crisis in Germany and Beyond: Difference, Deservingness, Life and Death”, American Ethnologist, 43 1, pp. 1-13. [ Links ]

JACKSON, M.D. 2011, Life Within Limits: Well-Being in a World of Want, Durham, Duke University Press. [ Links ]

JAIN, L.S. 2006, Injury: The Politics of Product Design and Safety Law in the United States, Princeton, Princeton University Press. [ Links ]

KANDEL, W. 2008, “Profile of Hired Farmworkers, A 2008 Update”. Economic Research Report, 6, Department of Agriculture. [ Links ]

LIGHTHALL, D. 2000. “Community Health Care”. Rural Migration News. https://migration.ucdavis.edu/cf/more.php?id=95 . Accessed 20 Dec 2018. [ Links ]

LIGHTHALL, D. 2001, “The Poor Health of Farm Workers”, Western Journal of Medicine 175 4, pp. 223-224. [ Links ]

MASSUMI, B. 1998. “Event Horizon”, In The Art of the Accident, ed. J. Brouwer & A. Mulder, pp. 154-168, Rotterdam, Dutch Architecture Institute. [ Links ]

MCGUIRE, S.S. & GEORGES, J. 2003, “Undocumentedness and Liminality as Health Variables”, Advances in Nursing Science, 26 3, pp. 185-195. [ Links ]

MINES, R., NICHOLS S. & RUNSTEN D. 2010, Final Report of the Indigenous Farmworker Study to the California Endowment. Retrieved fromRetrieved from http://www.indigenousfarmworkers.org/final_report.shtml. Accessed 20 Dec 2018. [ Links ]

NELSON, D. 2015, Who Counts?: The Mathematics of Death and Life After Genocide, Durham, Duke University Press. [ Links ]

POVINELLI, E. 2011, Economies of Abandonment, Durham, NC, Duke UniversityPress. [ Links ]

QUESADA, J. 2011, “No Soy Welferero: Undocumented Latino Laborers in the Cross- Hairs of Legitimation Maneuvers”, Medical Anthropology, 30 4, pp. 386-408. [ Links ]

RURAL MIGRATION NEWS 1996, Minimum Wages/Workers Comp, RURAL MIGRATION NEWS 1996, Minimum Wages/Workers Comp, https://migration.ucdavis.edu/rmn/more.php?id=113 . Accessed 20 Dec 2018. [ Links ]

RUST, G. 1990, “Health Status of Migrant Farmworkers: A Literature Review and Commentary”, American Journal of Public Health, 80 10, pp. 1213-1217. [ Links ]

SAKALA, C. 1987, “Migrant and Seasonal Farmworkers in the United States: A Review of Health Hazards, Status, and Policy”, International Migration Review, 21 3, pp. 659-687. [ Links ]

SLESINGER, D. 1992, “Health Status and Needs of Migrant Farm Workers in the United States: A Literature Review”, Journal of Rural Health, 8 3, pp. 227-234. [ Links ]

STRATHERN, M. 1996, “From Improvement to Enhancement: An Anthropological Comment on the Audit Culture”, Cambridge Anthropology, 19 3, pp. 1-21. [ Links ]

U.S. Department of Labor, Employment and Training Administration 2016, Findings from the National Agricultural Workers Survey NAWS 2013-2014. [ Links ]

VERRAN, H. 2000, “Aboriginal Australian Mathematics: Disparate Mathematics of Land Ownership”. In Mathematics Across Cultures: The History of Non-Western Mathematics, ed. H. Selin, pp. 289-311, Berlin, Springer. [ Links ]

VILLAREJO, Don. 2003, “The Health of U.S. Hired Farm Workers”, Annual Review of Public Health, 24, pp. 175-193. [ Links ]

WEIGEL, M.M., ARMIJOS R.X. & BELTRAN O. 2014, “Muskuloskeletal Injury, Functional Disability, and Health-Related Quality of Life in Aging Mexican Immigrant Farmworkers”, Journal of Immigrant and Minority Health, 16 5, pp. 904-913. [ Links ]

WILLEN, Sarah. 2014, “Plotting a Moral Trajectory, Sans Papiers: Outlaw Motherhood as Inhabitable Space of Welcome”, Ethos, 42 1, pp. 84-100. [ Links ]

WILLEN, Sarah. 2019, Fighting for Dignity: Migrant Lives at Israel’s Margins, Philadelphia, University of Pennsylvania Press. [ Links ]

YARRIS, Kristin & CASTAÑEDA H. 2013, “Ethnographic Insights on Displacement, Migration and Deservingness in Contemporary Global Contexts”, International Migration, 53 3, pp. 644-669 [ Links ]

Notas

1Este artigo foi publicado originalmente em 2020, na Revista Agriculture and Human Values (número 37, pp. 237-247), com o título “Migrant farmworker injury: temporality, statistical representation, eventfulness”. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto agradece ao autor e à Springer Nature a permissão para traduzir e publicar este artigo. Tradução de João Queirós

Recebido: 10 de Maio de 2023; Aceito: 10 de Maio de 2023

Seth M. Holmes. Professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, na Divisão de Sociedade e Ambiente e Programa Doutoral em Antropologia Médica. Coordenador do Projeto FOODCIRCUITS, financiado pelo European Research Council e sediado na Universidade de Barcelona e na ICREA - Instituição Catalã de Investigação e Estudos Avançados. E-mail: sethmholmes@berkeley.edu.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons