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Nascer e Crescer

Print version ISSN 0872-0754On-line version ISSN 2183-9417

Nascer e Crescer vol.27 no.1 Porto Mar. 2018

 

CASE REPORTS | CASOS CLÍNICOS

 

Úlcera de Lipschütz como possível manifestação de primo-infeção por vírus Epstein-Barr

 

Lipschütz ulcer as a possible initial manifestation of Epstein-Barr virus infection

 

 

Juliana MacielI; Katarina KieselováII; Victoria GuioteII; Martinha HenriqueII; Teresa RezendeI

I Department of Pediatrics, Hospital de Santo André, Centro Hospitalar de Leiria. 2410-197 Leiria, Portugal. julianamaciel@live.com; rezende.teresa@gmail.com
II Department of Dermatology, Hospital de Santo André, Centro Hospitalar de Leiria. 2410-197 Leiria, Portugal. katarinakieselova@gmail.com; viviguiote@gmail.com; martinhahenrique@sapo.pt

Correspondence to

 

 


RESUMO

Introdução: A úlcera de Lipschütz é caracterizada pelo aparecimento súbito de úlceras vulvares dolorosas em mulheres jovens sexualmente não ativas, sendo rara em crianças. A etiologia é desconhecida, mas existem estudos que a relacionam com a primo-infeção pelo vírus Epstein-Barr. O diagnóstico é equacionado após exclusão de outras causas de ulceração genital, nomeadamente autoimune, traumática e de infeções sexualmente transmissíveis.

Caso Clínico: Criança de doze meses, que surge com ulceração vulvar, associada a febre e otite média aguda. Dos exames complementares realizados, de salientar a serologia para vírus Epstein-Barr positiva e restante estudo analítico negativo.  A evolução foi favorável, com resolução das lesões após seis semanas e sem recorrência durante os 10 meses de seguimento.

Discussão: Quando as causas mais comuns de úlcera genital são excluídas e não há história de contato sexual, a úlcera de Lipschütz deve ser incluída no diagnóstico diferencial.

Palavras-chave: Criança; Epstein-Barr; Infeção por vírus; Patologia da vulva


ABSTRACT

Introduction: Lipschütz ulcer is characterized by the rapid onset of painful vulvar ulcerations that typically occurs in sexually inactive adolescent girls, being rare in young children. Although the etiology is unknown, several reports suggest that this entity may be a clinical manifestation of primary infection with Epstein-Barr virus. The diagnosis is made after excluded autoimmune causes, sexually transmitted infections and genital trauma.

Case Report: A twelve-month-old girl, admitted with a history of high fever, vulvar ulceration and acute otitis media. Laboratory investigation, demonstrated an acute Epstein-Barr virus infection and ruled out other causes of acute genital ulceration, including autoimmune diseases.  Clinical improvement was observed, with resolution of the genital lesions after six weeks, and no recurrence during the ten-month follow-up.

Comments: In conclusion if the most common causes of genital ulcer are excluded and there is no sexual contact, Lipschütz ulcer should be included in the differential diagnosis.

Keywords: Child, Epstein-Barr Virus Infections, Vulvar Diseases


 

 

INTRODUÇÃO

A úlcera de Lipschütz, também conhecida como “ulcus vulvae acutum” ou úlcera vulvar aguda, é uma entidade rara, de origem não venérea, caracterizada pelo aparecimento súbito de úlceras vulvares necróticas dolorosas. Ocorre tipicamente em adolescentes sexualmente não ativas, e embora a etiologia permaneça desconhecida, várias linhas de evidência sugerem que poder-se-á tratar de uma manifestação da primo-infeção pelo vírus Epstein-Barr (EBV).

Apesar da clínica característica, continua a ser uma entidade pouco conhecida, e como tal, sub-diagnosticada na população pediátrica.

 

CASO CLÍNICO

Criança do sexo feminino, doze meses, com aparecimento súbito de quatro lesões nodulares, dolorosas e com sinais inflamatórios a nível da região genital e inguinal. No segundo dia de doença recorreu ao seu médico assistente por aparecimento de febre, otorreia bilateral e ulceração de três das lesões anteriormente descritas, tendo sido medicada com amoxicilina durante sete dias. Referência a melhoria da otorreia, que passa a ser unilateral, e resolução da febre às 24 horas de terapêutica, mas por agravamento das lesões genitais recorreu ao serviço de urgência no oitavo dia de doença, altura em que foi internada. Os pais negavam alterações do trânsito gastrointestinal, antecedentes de úlceras orais ou de traumatismo da região genital. Como antecedentes pessoais, episódio de bronquiolite aguda aos onze meses, sem outras intercorrências infeciosas.

Ao exame objetivo observavam-se três ulceras, com cerca de um a dois centimétros de diâmetro, irregulares, fundo com necrose e fibrina, bem delimitadas, com halo inflamatório, dolorosas e localizadas no grande lábio direito, clitóris e região perianal esquerda (figura 1). Presença ainda de lesão idêntica, nodular, endurecida, ruborizada e dolorosa, sob tensão, mas não ulcerada, na região inguinal esquerda. À exploração geral, de referir apenas, otorreia esquerda e ausência de linfadenopatias ou organomegalias.

 

 

Foram colocadas as hipóteses diagnósticas de úlcera de Lipschütz, doença de Sevestre-Jacquet e doença autoimune, tendo sido decidido internamento para estudo etiológico e tratamento médico.

O estudo analítico realizado demonstrou leucocitose ligeira, sem neutrofilia, velocidade de sedimentação (VS) cinco milimetros e proteína C reativa (pCr) 10 mg/L, transaminases normais, serologias para citomegalovírus (CMV) e vírus Herpes Simplex (VHS) negativos, vírus da imunodeficiência humana 1 e 2 (HIV) e Venereal Disease Research Laboratory (VDRL) não reativos, anticorpos anti-capsídeo viral (VCA) IgM e IgG para EBV positivo, antígeno nuclear para EBV (EBNA) negativo, exame bacteriológico da lesão, colhido por zaragatoa, com flora polimicrobiana, sugestivo de contaminação, hemocultura negativa e doseamento de imunoglobulinas (IgA, IgG e IgM) normais.

Iniciou terapêutica com ácido fusídico tópico e amoxicilina/ácido clavulânico oral durante sete dias, tendo apresentado ao longo do internamento melhoria progressiva das lesões genitais e resolução da otite média aguda esquerda.

À data da alta, foi orientada para consulta de Pediatria Geral, Dermatologia e de Imunodeficiência Primária, para exclusão de défice imunológico.

No seguimento em consulta, repetiu serologias para EBV após seis semanas, apresentando VCA IgG positivo e VCA IgM duvidoso, tendo-se verificado também a essa data, cicatrização das lesões ulceradas (figura 2) e candidíase, pelo que foi medicada com clotrimazol tópico. Aos quatro meses de seguimento repetiu serologias, apresentando VCA IgM negativa.

 

 

Realizou estudo de imunodeficiências primárias, nomeadamente, doseamento de imunoglobulinas A, E e G, quantificação das populações linfocitárias T/B/NK, estudo da capacidade oxidativa dos neutrófilos e monócitos por citometria de fluxo e atividade do complemento (CH50), que foram normais. Durante os dez meses de seguimento não houve recorrência das lesões genitais.

 

DISCUSSÃO

Lipschütz descreveu pela primeira vez, em 1913, a “ulcus vulvae acutum”, como sendo uma doença aguda, caracterizada por úlceras genitais, de aparecimento súbito em crianças e adolescentes do sexo feminino, que se manifestam sobretudo em contexto de uma síndrome febril, com febre elevada, odinofagia, astenia, mialgias, linfadenopatias ou cefaleia.1

A incidência da úlcera vulvar aguda é desconhecida, tendo sido demonstrado em alguns estudos, uma idade média de 12 a 15 anos, com casos raros descritos em crianças pequenas, como no presente caso numa criança de 12 meses.2-7

Apesar da etiologia e patogenia permanecer desconhecida, alguns casos publicados, sugerem que poderá tratar-se de uma manifestação da primo-infeção por EBV.8-10 No presente caso os autores consideram tratar-se de uma úlcera de Lipschütz por primo-infeção a EBV, numa criança de doze meses, previamente saudável, com serologias para EBV positivas.

Quanto ao mecanismo, pensa-se que linfócitos e percursores de células de Langerhans infectados pelo vírus poderão atingir a mucosa genital por via hematogénea ou por auto-inoculação com saliva, urina ou fluido cervicovaginal.2

Além do vírus Epstein-Barr, outros agentes infeciosos foram implicados, nomeadamente o CMV, vírus influenza A, HIV, Mycoplasma pneumoniae, febre tifoide, paratifoide e salmonella.2,3,7,10

As úlceras genitais, surgem de modo súbito, e caracterizam-se por serem múltiplas, profundas, necróticas com bordo violáceo, diâmetro >1 cm e muito dolorosas. Envolvem mais frequentemente os pequenos lábios, mas podem-se estender aos grandes lábios e períneo.

Foram descritas três formas de apresentação diferentes:3

Gangrenosa: úlceras hiperagudas, profundas, de fundo sujo, muito dolorosas, que regridem deixando cicatriz. É a apresentação mais frequente e verificada no presente caso clínico.

Crónica: Úlceras mais superficiais, curam em quatro a seis semanas. Recorrências frequentes.

Miliar: Atinge predominantemente os grandes e pequenos lábios e períneo. Caracteriza-se por múltiplas úlceras fibrinosas e pequenas, com escassos sintomas associados. Sem recorrências e regridem sem deixar cicatriz. 

O diagnóstico é clínico e deve ser equacionado numa criança com febre elevada e aparecimento de uma ou mais úlceras agudas dolorosas ao nível da região vulvar. Nestes casos é mandatório estudo analítico, com hemograma, velocidade de sedimentação, bioquímica sanguínea, serologias do EBV, CMV, VIH, sífilis, hemocultura e cultura do exsudato da úlcera, de forma a excluir outras causas de ulceração genital, nomeadamente, infeções sexualmente transmissíveis (IST) e doenças autoimunes.2,3 A biópsia não está indicada, devido aos achados histopatológicos inespecíficos, que incluem necrose do epitélio e infiltrado neutrófilico, motivo pelo qual não foi realizada.2,7

O diagnóstico diferencial é extenso, incluindo IST (infeção por VHS, HIV, sífilis), causas infeciosas como ectima grangrenoso, não infeciosas (aftose complexa, doença de Behçet, doença de Crohn, pioderma gangrenoso, pênfigo vulvar), traumáticas e neoplásicas. De salientar no presente caso um estudo de imunodeficiências, IST e serologias para CMV e VHS negativos.

O tratamento é essencialmente sintomático, com resolução espontânea na maioria dos casos, consistindo essencialmente no controlo da dor e higiene íntima. Alguns autores aconselham o uso de corticosteroides tópicos de alta potência associado a analgésico oral e tópico (solução de lidocaína 2%), e de corticoide oral, no caso de múltiplas úlceras genitais.2 O uso de antibióticos orais está indicado perante suspeita de sobre-infeção bacteriana ou de celulite vulvar.

Esta condição é autolimitada, com resolução espontânea em duas a seis semanas, sem deixar cicatriz na maioria dos casos, sendo a recorrência rara.2,3 No nosso caso, não houve recorrência das lesões genitais durante os dez meses de seguimento.

Considerando o caso em epígrafe os autores concluem que o presente diagnóstico apesar de raro e sub-diagnosticado nesta população, deverá ser equacionado, de forma a se evitarem tratamentos desnecessários e sem qualquer benefício, de outras causas mais frequentes de ulceração genital.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Lipschutz B. Ulcus vulvae acutum. Handbuch der Haut und Geschl. 1927; 21:392-414.

  2. Sidbury R, Levy M. Acute genital ulceration (Lipschutz ulcer). UpToDate. 2016 Sep.

  3. Reymundo M, Salas A. Úlcera de Lipschutz: causa poco conocida de úlcera genital aguda. An Pediatr. 2010; 72: 443-4.

  4. Farhi D, Wendling J, Molinari E, et al. Non-sexually related acute genital ulcers in 13 pubertal girls: a clinical and microbiological study. Arch Dermatol 2009; 145:38.

  5. Jerdan K, Aronson I, Hernandez C, et al. Genital ulcers associated with Epstein-Barr vírus. Cutis 2013; 91:273.

  6. Marcus S, Neill S. Unusual presentation of acute vulvar ulceration. Trends in Urology Gynaecology & Sexual Health. 2008.

  7. Brinca A, Canelas M, Carvalho M. Lipschutz ulcer (ulcus vulvae acutum) – uma causa rara de lesão genital. An Bras Dermatol. 2012; 87:622-4.

  8. Taylor S, Droke SM, Dedicoat M. Genital ulcers associated with acute Epstein-Barr virus infection. Sex Transm Infect. 1998; 74:296-7.

  9. Halvorsen JA, Brevig T. Genital ulcers as initial manifestation of Epstein-Barr vírus infection: two new cases and a review of the literature. Acta Derm Venereol. 2006; 86:439-42

  10. Sárdy M, Wollenberg A, Niedermeler A. Genital ulcers associated with Epstein-Barr vírus infection (Ulcus Vulvae Acutum). Acta Derm Venereol 2011; 91:55-9.

 

 

CORRESPONDENCE TO

Juliana Maciel
Department of Pediatrics
Hospital de Santo André
Centro Hospitalar de Leiria
Rua das Olhalvas, Pousos
2410-197 Leiria
Email: julianamaciel@live.com

Received for publication: 22.08.2016 Accepted in revised form: 15.02.2017

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