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Nascer e Crescer

Print version ISSN 0872-0754On-line version ISSN 2183-9417

Nascer e Crescer vol.26 no.2 Porto June 2017

 

CASE REPORTS | CASOS CLÍNICOS

 

Kérion celsi: uma complicação rara da Tinea capitis

 

Kérion celsi: a rare complication of Tinea capitis

 

 

Sílvia Ferreira SilvaI; Carla TeixeiraII; Susana MachadoIII; Laura MarquesIV

I Department of Pediatrics, Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo. 7801-849 Beja, Portugal. silviaraquelsilva@gmail.com
II Department of Pediatrics, Centro Materno Infantil do Norte, Centro Hospitalar do Porto. 4050-371 Massarelos, Portugal. carlameitei@gmail.com
III Department of Dermatology, Centro Hospitalar do Porto. 4099-001, Porto, Portugal. susanamlmachado@gmail.com
IV Infection and Immunodeficiency Unit, Department of Pediatrics, Centro Materno Infantil do Norte, Centro Hospitalar do Porto. 4050-371 Massarelos, Portugal. laurahoramarques@gmail.com

Correspondence to

 

 


RESUMO

A Tinea capitis atinge maioritariamente crianças em idade escolar, sendo a transmissão possível através do contacto com animais infetados, solo, de pessoa para pessoa ou através de objectos contaminhados. A apresentação clínica varia desde uma dermatose descamativa não inflamatória até uma doença inflamatória com lesões eritematosas e descamativas com alopécia, podendo progredir para lesões do tipo Kérion celsi. O Kérion caracteriza-se por uma placa inflamatória, bem delimitada e dolorosa, com pústulas e abcessos com tendência supurativa, e como consequência formam-se cicatrizes que podem condicionar alopécia definitiva.

Apresenta-se o caso clínico da uma criança de dez anos, residente em meio rural, que após traumatismo crânioencefálico, desenvolveu uma lesão do couro cabeludo diagnosticada como Kerion celsi.

Os autores visam chamar a atenção para uma complicação rara de uma patologia frequente, que pode condicionar alopécia permanente.

Palavras-chave: Alopécia, Kérion celsi, Tinea capitis


ABSTRACT

Tinea capitis affects mostly children at school age. The transmission is possible through contact with infected animals, soil, from person to person and from contaminated objects. The clinical presentation ranges from a non-inflammatory lesion to an inflammatory disease with erythematous scaly lesions with alopecia, that may progress to Kerion celsi. Kerion is characterized by an inflammatory well-delimited and painful plaque, with pustules and suppurative abscesses. The resulting scars can cause alopecia. We report the clinical case of a tem-year-old child, residing in a rural area, who developed a scalp lesion after skull trauma, diagnosed as Kerion celsi. The authors want to draw attention to a rare complication of a common condition that may lead to permanent alopecia.

Keywords: Alopecia, Kerion celsi, Tinea capitis


 

 

INTRODUÇÃO

A Tinea capitis é uma entidade frequente em idade pediátrica.1-4 Trata-se de uma infeção fúngica superficial (também denominada dermatofitose) do couro cabeludo, supercílios e cílios, que atinge principalmente a haste capilar e os folículos, causada por fungos do género Trichophyton e Microsporum.1-5 Os dermatofitos agrupam-se em três categorias: antropofílicos (afetam habitualmente os seres humanos e raras vezes os animais), zoo-fílicos (atingem geralmente animais, podendo haver transmissão animal/humano e humano/humano) e geofílicos (podem afetar humanos e animais, sendo rara a transmissão entre espécie).3 Habitualmente as espécies zoofílicas e geofílicas originam formas clínicas mais inflamatórias do que as antropofílicas.3

Na pediatria esta infeção fúngica atinge maioritariamente crianças em idade escolar (entre os três e os sete anos), sendo a transmissão possível através do contacto com animais infetados, solo, de pessoa para pessoa e através de objetos contaminados.1-3 Tanto as crianças como os adultos podem ser portadores assintomáticos e os fungos podem sobreviver em meios externos (chapéus, pentes, etc) por longos períodos de tempo, sendo o seu período de incubação desconhecido.1,3

A apresentação clínica da Tinea capitis varia desde uma dermatose descamativa não inflamatória até uma doença inflamatória com lesões eritematosas e descamativas com alopécia, podendo progredir para lesões do tipo Kérion celsi.1,5 O Kérion celsi caracteriza-se por uma placa inflamatória, bem delimitada e dolorosa, com pústulas e abcessos com tendência supurativa de forma a promover a expulsão dos pêlos parasitados. Como consequência na sua resolução, formam-se áreas cicatriciais fibróticas que podem condicionar zonas de alopécia definitiva.1-6 No quadro clínico agudo é frequente o comprometimento sistémico com desenvolvimento de febre e tumefação ganglionar regional.1,4,6 Em termos histopatológicos o Kérion celsi caracteriza-se por uma resposta inflamatória com neutrofilia e/ou infiltrados granulomatosos, que evoluem em fases mais avançadas para a formação de zonas de cicatriz fibrótica.6

 

CASO CLÍNICO

Apresenta-se o caso clínico da uma criança de dez anos, sexo masculino, com antecedentes pessoais e familiares irrelevantes, residente em meio rural, com contacto frequente com cães, gatos, coelhos e galinhas (sem contacto com animais doentes) que desenvolveu, após traumatismo crânio-encefálico parietal esquerdo, uma lesão do couro cabeludo com hematoma, sem aparente solução de continuidade. Esta lesão evoluiu para um hematoma de grande volume com drenagem espontânea de conteúdo seroso e formação de placa crostosa no período de três semanas. Nesta fase foi interpretado como sobreinfeção bateriana de lesão traumática e medicado com flucloxacilina, sem melhoria. A antibioterapia foi revista após uma semana, altura em que iniciou amoxicilina/ácido clavulânico e associou um antifúngico oral (itraconazol). Apesar da revisão terapêutica manteve agravamento progressivo da lesão (ver Imagens 1 e 2) e iniciou sintomatologia sistémica com aparecimento de febre associada a adenomegalias cervicais, pelo que foi internado no Centro Hospitalar do Porto por falência terapêutica e atingimento do estado geral. No estudo analítico apresentava leucocitose com neutrofilia (leucócitos 12750/mm3 com 77% de neutrófilos) e Proteína C Reactiva de 65,9 mg/L. Foi observado por Dermatologia e diagnosticada uma Tinea capitis, complicada de Kérion celsi dado o aspeto característico da lesão, tendo efetuado biópsia e colheitas microbiológicas antes da instituição terapêutica. O exame anátomo-patológico mostrou processo inflamatório agudo com micro-abcessos, sem descrição de outras alterações. No exame microbiológico verificou-se crescimento de um fungo (provável dermatofito) que não foi possível identificar devido ao escasso número de colónias. Foi medicado com clindamicina endovenosa, griseofulvina e prednisolona orais com evolução favorável e resolução da lesão.1-3,6

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

Neste caso clínico admite-se que a infeção fúngica teve início após o traumatismo craniano e suspeita-se ter-se tratado de um dermatofito zoofilico ou geofilico dado o contexto e evolução clínica. O diagnóstico micológico é portanto fundamental na Tinea capitis, uma vez que a identificação do dermatofito orienta no sentido da identificação da fonte de contágio, permitindo intervir na sua difusão.3 No caso clínico apresentado, apesar de ter havido crescimento de um fungo na cultura, não foi possível identificar o mesmo, devido ao pequeno número de colónias, provavelmente em relação com a terapêutica instituída no período anterior à colheita da mesma.

A terapêutica oral é essencial, dado que os medicamentos tópicos não são capazes de penetrar adequadamente no folículo e haste capilar.1,3 Classicamente o tratamento de eleição é a griseofulvina oral.1-3,5-7 A dose é de 10 a 20 mg/Kg/dia, durante seis a oito semanas, devendo ser tomado com uma refeição gorda para facilitar a absorção.1-3,5 No caso clínico descrito, associou-se um antibiótico à griseofulvina devido à suspeita de co-infeção bateriana, uma vez que a lesão já apresentava um longo período de evolução e de tratamento.

A terbinafina, o itraconazol e o flucanazol também são eficazes no tratamento da tinha do couro cabeludo.2,3,6,8 Pode associar-se à griseofulvina o uso de champô de sulfureto de selénio a 2,5% ou cetoconazol a 2%, duas vezes por semana.1 No caso do Kérion Celsi para prevenir a alopécia, pode ser associado um corticoide oral (durante oito a quinze dias), com objectivo de reduzir a inflamação e a incidência de cicatriz.1,6 A partilha de objetos pessoais como pentes, escovas, chapéus, toalhas, roupas ou almofadas deve ser evitada e esse ensino deve ser reforçado1. Deve sempre ser realizada a inspeção de todo o tegumento cutâneo, pois frequentemente as lesões da cabeça acompanham-se de outras lesões.3

Tratando-se de dermatofitos antropofílicos, os contatantes da pessoa infetada devem ser tratados de forma preventiva com champôs antifúngicos para reduzir o estado de portador assintomático e evitar a propagação da doença.1 Não devemos esquecer que as infecções provocadas por dermatofitos zoofílicos implicam a observação veterinária dos animais.1,3

A Tinea capitis tem um impacto social marcado, levantando dúvidas relativas à restrição de atividades sociais e da frequência escolar pela criança infectada.1,9 De acordo com a literatura, é aconselhável o absentismo escolar apenas até cinco dias após o início da terapêutica oral.1

Assim, os autores visam chamar a atenção para uma complicação rara de uma patologia frequente, que pode condicionar alopécia permanente. Uma vez que o Kérion Celsi pode mimetizar um abcesso piogénico, a avaliação micótica de lesões do couro cabeludo é fundamental na investigação diagnóstica.7

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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3.             Calzada T, Esguevillas M, Santaliestra C, López A. Tinea capitis en lactantes. Piel 2003;18:21-9.         [ Links ]

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9.             Anahory B, Santos P, Borges M. Querion do couro cabeludo – A propósito de um caso clínico. Rev Port Geral Fam. 2013;29:394-7.         [ Links ]

 

CORRESPONDENCE TO
Sílvia Ferreira Silva
Department of Pediatrics
Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo
Rua Dr. António Fernando Covas Lima, 7801-849 Beja
Email: silviaraquelsilva@gmail.com

Received for publication: 08.05.2016 Accepted in revised form: 28.09.2016

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