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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754versão On-line ISSN 2183-9417

Nascer e Crescer vol.26 no.2 Porto jun. 2017

 

ARTIGOS ORIGINAIS | ORIGINAL ARTICLES

 

Encefalomielite aguda disseminada – série de casos

 

Acute Disseminated Encephalomyelitis – A Case Series

 

 

Maria Miguel GomesI; Ariana AfonsoI; João Soares-FernandesII; Henedina AntunesI,III,IV; Célia BarbosaV

I Department of Pediatrics, Hospital de Braga. 4710-243 Braga, Portugal. mariamgomes@hotmail.com; ariana.afonso@gmail.com; henedinaantunes@gmail.com
II Department of Neuroradiology, Hospital de Braga. 4710-243 Braga, Portugal. joaosfernandes@gmail.com
III ILife and Health Sciences Research Institute (ICVS), School of Health Sciences, University of Minho. 4710-057 Braga, Portugal. henedinaantunes@gmail.com
IV EPT Associate Laboratory ICVS/3B’. 4710-057 Braga, Portugal. henedinaantunes@gmail.com
V Neuropediatrics Unit, Department of Pediatrics, Hospital de Braga 4710-057 Braga, Portugal. barbosacelia12@gmail.com

Correspondence to

 

 


RESUMO

Introdução: A encefalomielite aguda disseminada (ADEM) é uma doença desmielinizante, tipicamente monofásica, do sistema nervoso central, caracterizada por alterações neurológicas inespecíficas e neuroimagem com lesões desmielinizantes multifocais.

Objetivos: Descrever dados epidemiológicos, clínicos, laboratoriais, imagiológicos, tratamento e evolução de uma coorte pediátrica com diagnóstico inicial de ADEM.

Materiais e Métodos: Análise retrospectiva entre 2010- 2015 de crianças/adolescentes admitidas em hospital nível II.

Resultados: Foram identificados onze casos, com predomínio do género masculino e idades entre 8 meses e 16 anos. Sete casos ocorreram no inverno/primavera. Em mais de metade dos casos havia história de patologia infeciosa recente. Sinais neurológicos mais frequentes: défices motores, neuropatia craniana e rigidez da nuca. Em todos os casos foram detetadas alterações do líquido cefalorraquidiano. Foi estabelecido diagnóstico microbiológico definitivo em duas crianças com vírus Epstein-Barr e diagnóstico provável/possível em duas crianças com infeção prévia por rotavírus e varicela. A ressonância magnética nuclear (RMN) identificou em todos os casos lesões multifocais. Todas as crianças foram submetidas a corticoterapia em altas doses. Em dois casos foi também administrada imunoglobulina humana. Verificou-se ADEM multifásica num caso, após um ano de seguimento. Em dois casos surgiram critérios de esclerose múltipla (EM). A taxa de mortalidade foi nula. Foram constatadas sequelas neurológicas em dois casos. A distinção entre ADEM e EM na altura da sua apresentação inicial permanece, em alguns casos, um desafio.

Conclusões: A análise desta série de casos sugere que a presença de infeção esteja associada à etiologia da ADEM. A RMN foi o estudo de escolha para diagnóstico e seguimento. O prognóstico foi excelente. A distinção entre ADEM e EM permanece um desafio.

Palavras-chave: Encefalomielite aguda disseminada; pediatria; ressonância magnética nuclear


ABSTRACT

Background: Acute disseminated encephalomyelitis (ADEM) is a demyelinating monophasic disorder of the central nervous system characterized by diffuse neurologic signs and symptoms coupled with multifocal demyelinating lesions on neuroimaging.

Aims: To describe the epidemiology, symptoms and signs, laboratory features, neuroimaging, treatment and outcome in a pediatric cohort with the initial diagnosis of ADEM.

Methods and Materials: A retrospective review, between 2010-2015, of children/adolescents admitted at a level II hospital.

Results: Eleven cases were identified with male predominance and ages between 8 months and 16 years. Seven patients presented in winter/spring. More than half of the cases had a recent infectious disease. Patients presented most often with motor deficits, cranial neuropathy and stiff neck. All patients had spinal fluid abnormalities. A definitive microbiologic diagnosis was established in two children with Epstein-Barr virus disease and probable/possible diagnosis in two children with previous rotavirus disease or varicella. Brain magnetic resonance imaging (MRI) identified multifocal lesions in every case. All patients were treated with corticosteroids, and two were also treated with human immunoglobulin. There was one case with multiphasic ADEM (after one year follow-up) and two cases developed criteria of multiple sclerosis (MS). All patients survived. Two patients had neurologic sequelae. The differential diagnosis between ADEM and MS at first presentaion may be challenging.

Conclusions: Our case series suggests that infections are associated with the etiology of ADEM. MRI was the neuroimaging study of choice for diagnosis and follow-up. Prognosis was excellent. It remains difficult to differentiate ADEM and multiple sclerosis.

Keywords: Acute Disseminated Encephalomyelitis; pediatrics; magnetic resonance imaging


 

 

INTRODUÇÃO

A encefalomielite aguda disseminada (ADEM) é uma doença aguda, tipicamente monofásica, inflamatória e desmielinizante do sistema nervoso central (SNC) com envolvimento multifocal, que atinge predominantemente a substância branca cerebral e a medula espinal.1-3

Trata-se de uma doença relativamente rara com uma incidência estimada de 0,5-3:100000 casos por ano.4,5 O número de casos diagnosticados tem vindo a aumentar ao longo dos anos3. A ADEM é mais frequente na idade pediátrica.1-3 Oitenta por cento dos casos ocorrem na primeira década de vida, estando descrito um pico de incidência na faixa etária entre os cinco e os oito anos.3,5-6 Os géneros são afetados de igual forma, embora estudos prévios mostrem um ligeiro predomínio no género masculino (1,3:1).3,5,7 A ADEM ocorre mais frequentemente na raça caucasiana.3,5,7 Está descrita maior ocorrência nos meses de inverno e primavera.3,5,7

A sua patogénese não está totalmente esclarecida mas há estudos que mostram resultar de uma resposta mediada imunologicamente e transitória contra a mielina, ou outros antigénios através de mecanismos de mimetização molecular, ou por ativação inespecífica de células T associados a suscetibilidade genética.1,6 Em 3/4 dos casos está associada a etiologia pós-infeciosa ou pós-imunização.1,6 Pode surgir dois dias a quatro semanas após o evento infecioso ou três meses após a imunização.3,4,6,8,9 Entre os vírus implicados destacam-se o grupo Herpesviridae e os Enterovírus.1,3,4,6,8,9 Em relação às bactérias existe maior associação ao Mycoplasma pneumoniae.6,7

As manifestações clínicas são muito variáveis e inespecíficas.1,3,10 Inicialmente podem existir sintomas gerais como febre, cefaleias, mialgias, náuseas, vómitos e recusa alimentar.1,3,10 Associadamente ou posteriormente podem surgir sinais neurológicos, entre os quais, ataxia, perturbações do movimento, nevrite ótica, crises convulsivas e/ou défices focais.1,3,10

O diagnóstico de ADEM baseia-se em critérios clínicos e radiológicos.1,3,6,10 Não estão descritas alterações patognomónicas nas análises laboratoriais.1,3,6,10 O exame citoquímico do líquido cefalorraquidiano (LCR) habitualmente revela ligeira pleocitose com predomínio linfocítico e proteinorráquia elevada.1,3,6,10 O exame imagiológico de eleição é a ressonância magnética nuclear (RMN) cerebral e medular que mostra lesões desmielinizantes com hipersinal nas sequências de TR longo, multifocais, com atingimento da substância branca subcortical, núcleos da base, tálamos, tronco cerebral e/ou medula espinal.3,6

O tratamento baseia-se na corticoterapia em altas doses e imunoglobulina humana endovenosa.3,10 O prognóstico é habitualmente favorável ocorrendo recuperação completa após seis meses em cerca de 60-70% dos casos.1,3,6,10 A taxa de mortalidade é de 5%.1,3,6,10

Habitualmente a ADEM apresenta um curso tipicamente monofásico embora estejam descritas formas multifásicas, colocando-se como diagnóstico diferencial principal a esclerose múltipla (EM).6,11 Desta forma, torna-se fulcral o seguimento dos casos a médio-longo prazo, com monitorização do ponto de vista clínico mas também imagiológico.8

O objetivo deste estudo consiste em descrever os dados epidemiológicos, clínicos, laboratoriais, imagiológicos, tratamento e evolução de uma coorte pediátrica com diagnóstico inicial de ADEM em hospital de nível II, num período de seis anos.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Estudo retrospetivo, transversal e descritivo, dos casos de crianças/adolescentes com o diagnóstico inicial de ADEM em hospital de nível II, com admissão no Serviço de Urgência entre janeiro de 2010 e dezembro de 2015. O diagnóstico de ADEM foi feito tendo em consideração a apresentação clínica e os achados da neuroimagem, de acordo com os critérios do International Pediatric Multiple Sclerosis Study Group criteria for pediatric multiple sclerosis and immune-mediated central nervous system demyelinating disorders: revisions to the 2007 definitions de 2013.11 Foram analisadas as seguintes variáveis: género, idade, mês de diagnóstico, antecedentes pessoais, antecedentes familiares, sintomatologia à admissão, exame objetivo à admissão, exames auxiliares de diagnóstico (laboratoriais e imagiológicos), evolução durante o internamento, número de dias de internamento, etiologia provável, tratamento, recidiva e sequelas.

 

RESULTADOS

Informação clínica

Durante o período de tempo analisado foram diagnosticados onze casos de ADEM, cuja descrição é feita de forma sumária no Quadro 1.

Oito casos pertenciam ao género masculino e três casos ao género feminino, ou seja, foi constatado um ligeiro predomínio no género masculino, com uma relação de 2,7:1.

Todas as crianças ou adolescentes eram de raça caucasiana. A idade no momento do diagnóstico variou entre 8 meses e 16 anos com uma média de seis anos (Figura 1).

 

Em relação à distribuição por estação do ano verificou-se predomínio de diagnóstico nos meses de inverno e primavera (desde dezembro até abril foram diagnosticados sete casos ou seja 63,6%). Apenas três casos foram diagnosticados no verão (27,3%) e um caso no outono (9,1%). A distribuição sazonal é descrita na Figura 2.

 

 

Quatro casos (36,0%) apresentaram história prévia de infeção das vias respiratórias superiores (entre dois dias e quatro semanas antes do aparecimento dos sinais/ sintomas neurológicos). Houve um caso em que existiu história prévia de gastroenterite aguda a rotavírus, 21 dias antes dos sintomas neurológicos, e outro caso com diagnóstico de varicela seis dias antes.

Em nenhum caso existiu história prévia de imunização nos três meses anteriores.

Não foi reportada história familiar de doenças desmielinizantes, neurológicas, imunológicas ou genéticas.

As caraterísticas da apresentação clínica são apresentadas no Quadro 2. Sinais inespecíficos e sintomas sistémicos como febre, náuseas, vómitos ou cefaleias ocorreram numa grande parte dos doentes. Todos os doentes apresentavam encefalopatia que se traduziu em alguns doentes por alteração da consciência (como prostração ou letargia) ou alteração do comportamento (como agitação ou confusão). Os défices motores constituíram o sinal mais comum à apresentação, o que incluiu paraparésia ou hemiparesia. A paraparésia, os défices sensoriais e a retenção urinária ocorreram predominantemente em doentes com lesões em neuroimagem localizadas na medula espinal. À admissão um dos doentes tinha clínica compatível com crise epiléptica tónico-clónica generalizada, mas não houve repetição deste episódio.

 

 

Exames Laboratoriais

O valor de leucócitos variou entre 8400/mm3 e 31900/mm3. Três casos apresentaram-se com valores compatíveis com leucocitose e oito casos com valores normais, de acordo com as referências. O caso com valor máximo de leucocitose foi associado a infeção por vírus Epstein-Barr (EBV) por técnica de reação em cadeia da polimerase (RCP) no sangue. Em nenhum caso houve anemia, leucopenia ou trombocitopenia. O valor de Proteína C-Reativa (PCR) foi negativo (<2,90mg/L) em cinco casos. No entanto, em seis casos foi positivo e variou entre 5,71mg/L e 52,00mg/L.

A punção lombar foi efetuada em todos os casos. Foi sempre requisitado no LCR: análise citológica (com contagem de eritrócitos, contagem de células e diferencial de linfócitos e polimorfo- nucleares), análise bioquímica (com valor de glicose e proteínas), exame cultural microbiológico e exames virológicos, nomeadamente pesquisa de ácido desoxirribonucleico (DNA) de citomegalovírus (CMV), EBV, vírus varicella zoster, Herpes simplex I e II e Vírus Herpes Humano 6 (VHH-6) assim como pesquisa de ácido ribonucleico (RNA) de Enterovírus. Foi encontrada evidência de inflamação no LCR (por proteinorráquia elevada ou pleocitose, definida como valor ≥5 células/mm3) em todos os casos. Todos os casos apresentaram pleocitose, com valores que variaram entre 5 células/mm3 e 260/mm3, sendo a média de 57 células/mm3. O valor de proteinorráquia variou entre 0,09g/L e 0,53g/L, sendo a média de 0,36g/L. Dois casos apresentaram valores aumentados de proteinorráquia. Em nenhum caso foi constatada alteração da glicorráquia. O exame cultural microbiológico de LCR foi negativo em todos os casos. Os exames virológicos de LCR foram negati- vos, exceto um caso em que foi detetado EBV por técnica de RCP (neste caso a pesquisa no sangue foi negativa). Em oito casos foi pedida pesquisa de bandas oligoclonais no LCR, que foi negativa. Num caso foi realizada pesquisa de serologias para EBV e técnica de RCP no sangue, dado a criança apresentar clínica prévia compatível com esta infeção (febre prolongada e exante- ma), apesar da pesquisa no LCR ser negativa. O resultado por RCP no sangue foi positivo e as serologias à admissão foram a favor de infeção aguda por EBV (early antigen IgG negativo <5,0 U/mL, viral capside IgM positivo 96U/mL, viral capside IgG positivo 120U/mL, nuclear antigen IgG positivo 30U/mL), tendo sido confirmadas após três meses (early antigen IgG negativo <5,0 U/mL, viral capside IgM negativo <10,0 U/mL, viral capside IgG positivo 534U/mL, nuclear antigen IgG positivo 130U/mL).

Eletroencefalograma

O eletroencefalograma foi realizado em dois casos com suspeita de meningoencefalite. Um dos exames mostrou atividade lenta delta, ampla e generalizada, com atividade paroxística localizada na região hemisférica direita; outro exame mostrou atividade lenta, delta ampla e generalizada.

Exames Imagiológicos

Dos onze casos descritos, oito realizaram como exame imagiológico inicial, uma tomografia computorizada crânio-encefálica (TC-CE). Em seis casos, a TC-CE não mostrou alterações de relevo. No entanto, em dois casos revelou a existência de lesões hipodensas multifocais, bilaterais e assimétricas. Não foi descrito efeito de massa nem desvio da linha média em nenhum dos exames. Todos os doentes realizaram posteriormente RMN-cerebral com ponderação em T1, T2, Fluid Attenuated Inversion Recovery (FLAIR) e com administração de gadolíneo. As caraterísticas da RMN-cerebral estão sumarizadas no Quadro 3. Todos os casos apresentaram múltiplas lesões multifocais supratentorais hiperintensas em T2 e FLAIR. As lesões encontradas eram assi-métricas na localização e no tamanho.

 

 

Nenhum doente apresentou nevrite ótica. Em nenhum caso foram realizados potenciais evocados visuais.

Todos os casos apresentaram lesões com localização na substância branca subcortical e apenas quatro casos (36,4%) na substância branca periventricular. O cerebelo, os núcleos da base e o corpo caloso mostraram lesões menos frequentemente. Não foi descrito efeito de massa, desvio da linha média ou lesões sugestivas de hemorragia aguda/ subaguda em nenhum dos exames. A RMN-medular foi realizada em seis casos (com clínica sugestiva de envolvimento medular) e mostrou envolvimento multisegmentar (mas sempre inferior a três segmentos). Nestes seis casos a RMN-cerebral tinha também evidenciado envolvimento supratentorial.

A RMN de controlo foi realizada em nove casos, com um intervalo que variou entre três meses e um ano após admissão hospitalar. Em apenas um caso foi constatada regressão completa das lesões após seis meses. Em seis casos houve melhoria, quer no número, quer no tamanho das lesões.

Em dois casos, foi feito posteriormente o diagnóstico de EM. Num dos casos, um adolescente do género masculino com 12 anos, inicialmente com RMN cerebral e medular que revelaram a presença de múltiplas lesões desmielinizantes, captantes, de dimensões milimétricas-subcentimétricas, infratentoriais, no lobo temporal, corpo caloso, periventriculares e no segmento dorsal D7-10. Após três meses, apesar de clinicamente assintomático, realizou RMN de controlo que mostrou lesões de novo, captantes e não captantes, na substância branca supra e infratentoriais, subcorticais, nas fibras em U justacorticais e periventriculares, tendo sido feito o diagnóstico de EM. Após seis meses do diagnóstico, teve episódio de paralisia facial central unilateral com visualização na RMN-cerebral de novas lesões multifocais dispersas pela substância branca dos compartimentos supra e infratentorial, lesões não-captantes justacorticais rolândicas e na coroa radiada à direita e lesão na circunvolução frontal superior direita com ténue captação de contraste periférico. Neste caso a pesquisa de bandas oligoclonais no LCR foi negativa.

Noutro caso, um adolescente do género masculino com 16 anos, inicialmente com RMN cerebral e medular que revelaram a presença de raras lesões captantes, milimétricas na substância branca periventricular, corpo caloso, tálamo, braço posterior da cápsula interna esquerda, substância branca cerebelosa, tronco cerebral e pedúnculo cerebeloso médio esquerdo, assim como lesões intra-medulares C2-4 e D9-10. Após seis meses, iniciou quadro de hemiparesia e alterações da sensibilidade e realizou RMN que mostrou lesões de novo captantes e não captantes, na substância branca supra e infratentoriais, subcorticais, fibras em U justacorticais, periventriculares e corpo caloso, tendo sido igualmente estabelecido o diagnóstico de EM. Neste caso a pesquisa de bandas oligoclonais no LCR não foi pedida.

Em relação à RMN-medular foi constatado desaparecimento das lesões em três casos, involução em um caso e dois casos mantiveram as alterações.

Em um caso, foi diagnosticada ADEM multifásica após 13 meses do episódio inicial. Não houve relação com a localização das lesões, tendo as novas lesões uma localização diferente, e as lesões anteriores um aspeto involutivo.

 

Internamento

A duração do internamento variou entre 7 e 47 dias, com uma média de 19 dias. Cinco casos apresentaram défices neurológicos máximos à admissão. Em cinco casos ocorreu agravamento do estado neurológico durante os primeiros quatro dias de internamento e num caso ocorreu agravamento após a primeira semana de internamento, com défice máximo aos 15 dias após admissão. Houve necessidade de transferência de um caso de ADEM para uma Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos (UCIP) - criança do género feminino com cinco anos e com quadro infecioso de varicela com nove dias de evolução.

 

Tratamento

Todos os casos foram tratados com corticoterapia. Inicialmente foi utilizada corticoterapia endovenosa em altas doses, metilprednisolona 20-30mg/kg/dia (máximo 1g/dia) durante cinco dias e posteriormente corticoterapia oral com prednisolona 2mg/kg/dia com redução progressiva entre seis a oito semanas. Em dois casos houve necessidade de fazer concomitantemente Imunoglobulina humana endovenosa na dose de 400mg/kg/dia durante três a cinco dias. Num caso, por se tratar de ADEM multifásica (diagnóstico após 13 meses de um episódio inicial), optou-se por fazer corticoterapia em altas doses durante cinco dias, mas, por ausência de resposta com evolução da hemiparesia direita para tetraparésia, foi realizada Imunoglobulina humana endovenosa durante três dias e posteriormente prednisolona com redução mais lenta (16 semanas). Noutro caso em que houve necessidade de transferência para UCIP por agravamento do estado neurológico, foi realizada corticoterapia em altas doses durante cinco dias, Imunoglobulina humana endovenosa durante cinco dias e posteriormente prednisolona com redução progressiva em oito semanas. Esta criança foi também submetida a ventilação mecânica durante dez dias, terapêutica antiepilética e terapêutica com clonidina durante 18 dias por hipertensão arterial devido a corticoterapia prolongada.

De destacar uma síndroma de Cushing como única reação adversa à terapêutica instituída.

Foi administrada antibioterapia empírica em quatro casos e aciclovir endovenoso em seis casos. A terapêutica antiepilética com valproato de sódio foi utilizada num doente com crise epiléptica à admissão e posterior necessidade de transferência para UCIP por agravamento do estado neurológico.

Seguimento À data da alta

À data da alta cinco doentes estavam assintomáticos e seis doentes apresentavam algum défice neurológico residual. Um doente mantinha parésia oculomotora, embora em resolução. De referir que um doente mantinha paresia facial central unilateral, igualmente em resolução; outro doente tinha tremor fino; dois doentes tinham alterações da marcha (claudicação unilateral ou hemiparesia); um doente desenvolveu dissinergia vesicoesfincteriana e outro doente apresentava ecolalia e labilidade emocional.

A longo prazo

Todos os doentes tiveram alta hospitalar com orientação para consulta de seguimento.

Três casos já tiveram alta após um período de seguimento que variou entre vinte e quatro e trinta e seis meses. O tempo de segui- mento teve em conta a idade de apresentação, sendo que apenas foi dada alta da consulta após entrada no 2º ano de escolaridade para verificar o aproveitamento escolar e dificuldades associadas. O caso mais recente, apresenta um tempo de seguimento de 12 meses e trata-se de um adolescente com dez anos onde foi constatado Cushing iatrogénico, por incumprimento do esquema terapêutico prescrito para o domicílio. Este caso teve como apresentação inicial retenção urinária. Apresenta-se atualmente com alterações da marcha (dificuldades na corrida, dificuldade na marcha em calcanhares, diminuição da força muscular dos membros inferiores) e mantém programa de reabilitação fisiátrica, mas já sem alterações urinárias.

Houve um caso de ADEM multifásica após um período de 13 meses. Nessa criança do sexo masculino com cinco anos, o primeiro episódio ocorreu 30 dias após infeção das vias aéreas superiores e teve como apresentação clínica: cefaleias, vómitos e dor abdominal associadas a prostração, disartria, parésia facial central unilateral e hemiparesia. No segundo episódio, três dias após infeção das vias aéreas superiores, teve como apresentação clínica febre, sinais meníngeos, disartria e hemiparesia contralateral. Esse caso mantém-se em seguimento há cinco anos, apresentando-se atualmente assintomático e com desenvolvimento psicomotor adequado.

Houve dois casos de diagnóstico posterior de EM. Um deles, um adolescente com 12 anos, após três meses da alta hospitalar teve diagnóstico de EM por critérios imagiológicos e iniciou terapêutica com interferão-beta. Seis meses após o diagnóstico, teve episódio de paralisia facial central unilateral e dois anos depois, por manter parésia de membro inferior unilateral, mudou terapêutica para natalizumab. O outro caso, um adolescente com 16 anos, seis meses após o diagnóstico de ADEM desenvolveu quadro de hemiparesia e alterações da sensibilidade e realizou RMN-cerebral, tendo sido feito o diagnóstico de EM, pelo que foi instituída terapêutica com interferão-beta. Atualmente está assintomático e com desenvolvimento psicomotor adequado.

No caso da criança com cinco anos com varicela e necessidade de transferência para UCIP, a terapêutica com valproato de sódio foi mantida durante dois anos e tem sido feita redução progressiva, sem ocorrência de novas crises epilépticas. Apresenta-se atualmente com dificuldades na atenção e concentração e labilidade emocional.

A taxa de mortalidade foi nula.

 

DISCUSSÃO

Trata-se de uma pequena série de casos, uma vez que foram identificados apenas onze casos de ADEM num período de cinco anos num hospital de nível II. De salientar que um dos casos tratava-se de uma ADEM multifásica.

Em relação à idade de diagnóstico a maioria dos casos foi diagnosticado abaixo dos cinco anos.

Tal como descrito em alguns estudos, constatamos predomínio no género masculino, com uma relação de 2,7:1, assim como na raça caucasiana.3,5,7 Nesta série de casos, verificamos que a maior parte (63,6%) foi diagnosticada nos meses de inverno e primavera, mostrando assim uma distribuição sazonal, tal como descrito por outros autores.3,5,7 Mais de metade dos casos estiveram associados a infeção prévia. Quatro crianças/adolescentes apresentaram história prévia de infeção das vias respiratórias superiores, um caso tinha associada gastroenterite aguda e outro varicela. Em nenhum caso existia histórico de imunização nos três meses anteriores. Como referido na literatura, a causa infeciosa pode surgir em 3/4 dos casos podendo ocorrer dois dias a quatro semanas após o evento, tal como na nossa série de casos.1,3,4,6,8,9 Apesar das tentativas de identificação etiológica, apenas em quatro casos foi identificado um agente causal. Foi estabelecido diagnóstico microbiológico definitivo em duas crianças com vírus Epstein-Barr e diagnóstico provável/possível em duas crianças com infeção prévia por rotavírus e varicela. A falha na identificação dos agentes microbiológicos implicados sugere que estes poderão ser pouco usuais ou que não são identificados pelas técnicas utilizadas.

Tal como descrito na literatura, as manifestações clínicas foram muito variáveis e inespecíficas.1,3,10 De acordo com outros estudos já realizados, também na nossa série de casos, não constatamos alterações patognomónicas nas análises laboratoriais.1,3,6,10 O estudo analítico foi importante para exclusão de outros diagnósticos. O exame citoquímico do LCR revelou sempre pleocitose, mas em apenas dois casos existiu proteinorráquia elevada. Nos casos em que foi requisitada, a pesquisa de bandas oligoclonais foi negativa (sendo um deles um caso de EM).

Apesar da maioria dos casos descritos ter realizado TC-CE como exame imagiológico inicial, este tem baixa sensibilidade para o diagnóstico de ADEM. O exame imagiológico de eleição, quer para o diagnóstico quer para o seguimento, é a RMN. No estudo apresentado todos os casos realizaram RMN cerebral, sendo que a RMN medular foi realizada apenas em seis casos com suspeita de envolvimento medular. Salienta-se a importância de realizar não só RMN cerebral mas também RMN medular quando se tem como diagnóstico diferencial a ADEM. Esta poderá justificar uma limitação na avaliação dos resultados imagiológicos obtidos na nossa instituição.

A RMN cerebral de seguimento foi realizada em nove dos onze casos (em dois casos, tendo em consideração a ausência de sintomas e a vontade parental, não foi realizada). O intervalo de tempo de realização dependeu não só da sintomatologia mas também da disponibilidade hospitalar.

Habitualmente a ADEM apresenta um curso monofásico embora estejam descritas formas multifásicas colocando-se como diagnóstico diferencial principal EM.6,11 Houve dois casos de ADEM que posteriormente foram reclassificadas como EM, correspondente a uma percentagem de 20%, que é superior ao descrito nas séries internacionais, que variam entre 2-10%, mas que poderá ser de 18%.11

Existe ainda um caso de ADEM multifásica que se mantém em seguimento clínico e imagiológico pelo risco de EM. A distinção entre ADEM e EM, num primeiro episódio é difícil. Desta forma, torna-se fulcral o seguimento dos casos a médio-longo prazo, com monitorização do ponto de vista clínico, mas também imagiológico.8 Nestes casos o diagnóstico deve ser precoce, porque a rápida introdução de terapêutica tem implicações na progressão da doença.1,2,4,6,7 Na ausência de um marcador biológico específico, o diagnóstico de ADEM é clínico e imagiológico. Ao contrário da ADEM, a EM é mais frequente no género feminino, ocorre em adolescentes mais velhos ou adultos, tem clínica monossintomática (sem síndrome febril associado) e ausência de encefalopatia. Na nossa série os diagnósticos de EM ocorreram, de facto, em adolescentes tal como descrito na literatura, mas no género masculino, não havendo nenhum evento infecioso próximo em nenhum dos casos. O seu curso é multifásico com disseminação no tempo e no espaço, traduzindo-se na RMN por alterações assimétricas da substância branca, tipicamente com lesões com localização periventricular e no corpo caloso (lesões perpendiculares ao eixo longo – Dawson fingers). Na RMN também podem ser visíveis lesões hipodensas na ponderação T1 (black holes), e lesões com e sem captação após administração de gadolíneo, que traduzem atividade ativa ou recente. Na EM as bandas oligoclonais no LCR são persistentes.

De acordo com a revisão mais recente, para fazer o diagnóstico de EM após um episódio inicial de ADEM é necessário atender aos seguintes três requisitos: a) ausência de encefalopatia, b) ocorrência após três ou mais meses em relação ao primeiro evento, c) disseminação imagiológica no espaço (DIS – dissemination in space) e no tempo (DIT – dissemination in time), de acordo com os critérios de McDonald 2010.11 Os critérios de McDonald foram desenvolvidos para facilitar o diagnóstico precoce de EM e têm um valor preditivo positivo de 76% e um valor preditivo negativo de 100%, na população pediátrica com idade superior a 12 anos.

Os critérios para DIS requerem a presença de pelo menos dois dos quatro critérios seguintes: ≥ 1 lesão em cada um dos quatro locais: periventricular, justacortical, infratentorial e medula espinhal. Os critérios para DIT requerem o aparecimento de novas lesões T2 (captantes ou não-captantes) ou a presença simultânea de pelo menos uma lesão captante e outra lesão não-captante.

Nos dois casos apresentados de ADEM inicial com diagnóstico posterior de EM, salienta-se que a presença de encefalopatia foi fundamental para início da terapêutica, apesar dos achados imagiológicos serem sugestivos de EM, uma vez que preenchiam o critério de DIS (mas não preenchiam o critério de DIT).

Na nossa série o tratamento da ADEM baseou-se sempre na corticoterapia em altas doses, sendo necessário recorrer ao uso de Imunoglobulina humana endovenosa em dois casos. A utilização empírica de antibióticos e antivíricos pode dever-se ao difícil diagnóstico diferencial com meningite bacteriana, meningite vírica ou meningoencefalite, no início da doença.

Esta série de casos confirmou o prognóstico favorável descrito em outros estudos.1,3,6,10 A taxa de mortalidade foi nula. Cerca de metade apresentou-se à data da alta sem défices neurológicos e a maioria foi melhorando ao longo do seguimento.

Em relação ao seguimento, de referir o curto tempo de seguimento (uma vez que se trata de um estudo retrospectivo de cinco anos) este teve em conta a idade de apresentação, tendo sido mantido até à idade escolar, de forma a avaliar o rendimento e as dificuldades de aprendizagem associadas. Na literatura é aconselhada a avaliação de defeitos neuropsicológicos mais subtis, que atualmente se sabe serem relativamente frequentes pós-ADEM.

De referir que a reduzida dimensão da amostra constitui uma limitação do estudo assim como o facto de este ser retrospetivo.

 

CONCLUSÃO

A análise desta série de casos sugere que a presença de infeção esteja associada à etiologia da ADEM. Apesar das manifestações neurológicas graves o prognóstico da nossa série foi excelente com a terapêutica instituída. Tal como em outros estudos, a RMN foi o estudo de escolha para diagnóstico e seguimento.

O seguimento a longo prazo é necessário para reconhecer precocemente problemas que possam surgir.

Perante um primeiro episódio, continua a ser difícil diferenciar ADEM de EM. Prosseguem numerosos estudos nesta área.

 

LEGENDAS

ADEM Encefalomielite Aguda Disseminada

ADN Ácido Desoxirribonucleico

ARN Ácido Ribonucleico

CMV Citomegalovírus

DIS Disseminação imagiológica no espaço (dissemination in space)

DIT Disseminação imagiológica no tempo (dissemination in time)

EBV Epstein-Barr Vírus

EM  Esclerose Múltipla

FLAIR Fluid Attenuated Inversion Recovery

LCR Líquido Cefalorraquidiano

PCR  Proteína C-Reativa

RCP Reação em cadeia da polimerase

RMN Ressonância Magnética Nuclear

SNC  Sistema Nervoso Central

TC-CE Tomografia Computorizada Crânio-Encefálica

UCIP Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos

VHH-6 Vírus Herpes Humano-6

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CORRESPONDENCE TO
Maria Miguel Gomes
Department of Pediatrics Hospital de Braga
Rua Sete Fontes, São Victor, 4710-243 Braga
Email: mariamgomes@hotmail.com

Received for publication: 25.05.2016 Accepted in revised form: 02.11.2016

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