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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.26 no.2 Lisboa jun. 2018

 

CASO CLÍNICO

 

Dermatite herpetiforme. Caso clínico

Dermatitis herpetiformis. Clinical case

 

Sofia Farinha, Fátima Jordão, Elza Tomaz, Filipe Inácio

Serviço de Imunoalergologia, Hospital de S. Bernardo, Centro Hospitalar de Setúbal, EPE.

 

Correspondência para:

 

RESUMO

A dermatite herpetiforme é uma doença bolhosa cutânea recorrente e rara associada à hipersensibilidade ao glúten. Manifesta‑se por erupções cutâneas cíclicas, intensamente pruriginosas, pápulas eritematosas ou placas urticariformes e agrupamento de vesículas ou bolhas tensas, atingindo principalmente as superfícies extensoras simetricamente.

Constitui uma manifestação cutânea da doença celíaca, afectando entre 15 a 25 % destes doentes. O caso clínico descrito relata um diagnóstico de doença celíaca, que se manifestou em idade adulta, cuja única forma de manifestação foi a dermatite herpetiforme.

Palavras‑chave: Dermatite herpetiforme, doença celíaca, glúten, anticorpo antitransglutaminase.

 

ABSTRACT

Dermatitis herpetiformis is a rare recurrent cutaneous bullous disease associated with sensitivity to gluten. It manifests with cyclic rashes, intensely pruritic, erythematous papules or urticariform plaques and groups of vesicles or tight bubbles, reaching mainly the extensor surfaces symmetrically. It occurs as a cutaneous manifestation of celiac disease, affecting between 15 and 25 % of these patients. The clinical case describes a diagnosis of celiac disease, manifested in adulthood, whose only form of manifestation was dermatitis herpetiformis.

Key words: Anti‑transglutaminase antibody, celiac disease, dermatitis herpetiformis, gluten.

 

INTRODUÇÃO

A dermatite herpetiforme (DH), ou doença de Duhring Brocq, é uma doença inflamatória cutânea crónica, benigna, caracterizada por erupções papulovesiculares pruriginosas geralmente distribuídas simetricamente em superfícies extensoras, nomeadamente cotovelos e joelhos. Nádegas, região escapular, região sagrada, couro cabeludo e face também podem ser afetados1.

É mais comum no Norte da Europa e manifesta‑se mais em caucasianos, habitualmente entre os 15‑40 anos de idade, afetando mais homens, na razão de 2:12,3, tendo uma prevalência de cerca de 1,2 por 100 000 indivíduos4.

Os sintomas de prurido intenso, ardor ou sensação de queimadura frequentemente precedem o aparecimento das lesões cutâneas em 8 a 12 horas5. O envolvimento do intestino delgado é geralmente assintomático e apenas cerca de 20 % dos indivíduos com DH têm sintomas gastrointestinais de doença celíaca (DC)6.

O diagnóstico de DH é estabelecido através da clínica, da histologia cutânea e da serologia (anticorpos antitransglutaminase tecidular e antiendomísio da classe IgA)7.

As características histológicas típicas das lesões da pele são o aparecimento de bolhas ou vesículas na junção dermoepidérmica e a acumulação de neutrófilos e também eosinófilos nas zonas papilares na biopsia da lesão cutânea8.

A existência de depósitos de IgA na junção dermoepidérmica na imunofluorescência direta (IFD) é considerada o gold standard para o diagnóstico de DH.

Relativamente à serologia, são quantificados os anticorpos tTGA (antitransglutaminase) e EMA (antiendomísio) da classe IgA, estando estes presentes na DH e DC9. Estes anticorpos estão geralmente ausentes em doentes com dieta livre de glúten e, portanto, representam um marcador do cumprimento da dieta em doentes com DC e DH7,9. A biopsia intestinal na DH mostra alterações idênticas às da DC, mas predominam lesões mais ligeiras e com diferente distribuição, como a existência de um padrão infiltrativo subtil com atrofia parcial ou sem atrofia das vilosidades4,10. Sabe‑se que pelo menos 80 % dos indivíduos com DH apresentam algum grau de alterações histológicas no intestino delgado6.

Uma vez o diagnóstico confirmado, deve iniciar uma rigorosa dieta livre de glúten (DLG), sendo esta considerada a base do tratamento da DH e devendo ser mantida para toda a vida10. Ocorre reversão das lesões cutâneas, mas a recuperação pode ser lenta, podendo demorar até cerca de 2 anos após a DLG para o completo desaparecimento.

A DLG reverte mais rapidamente os sintomas gastrointestinais7,11. Com a reintrodução do glúten, os depósitos dos anticorpos IgA podem reaparecer na junção dermoepidérmica dentro de 12 semanas, assim como as lesões cutâneas7.

Não existem medicamentos curativos disponíveis para o tratamento da DH, mas vários podem ser prescritos para um alívio dos sintomas. Concomitantemente com a DLG podem também ser usados no início do tratamento fármacos imunossupressores, como a dapsona, que auxilia na rápida resolução do prurido e das erupções cutâneas7,10.

Outros fármacos imunossupressores, como a sulfasalazina e os corticosteroides podem ser utilizados7.

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, 31 anos, caucasiana, educadora de infância, referenciada à consulta de Imunoalergologia por apresentar erupções cíclicas papulovesiculares pruriginosas e dolorosas, inicialmente nos dedos das mãos, progredindo posteriormente para os cotovelos, joelhos, nádegas e zona genital. O quadro tinha 12 meses de evolução. Como antecedentes pessoais apresentava talassemia minor, rinite e asma intermitentes, controladas. Negava alterações do trato gastrointestinal, assim como história de trauma, cirurgia ou doença recente.

Ao exame objetivo inicial apresentava eczema da pálpebra direita, lesões microvesiculares agrupadas, eritematosas e intensamente pruriginosas, distribuídas simetricamente nos cotovelos, joelhos e nádegas. Nos locais referidos eram visíveis também escoriação e lesões hipopigmentadas (Figura 1).

Com a hipótese diagnóstica de eczema de contacto, foram realizados testes epicutâneos com a bateria standard europeia, que se revelaram negativos.

Em consulta de reavaliação, após 3 meses de anti‑histaminicos orais, emolientes e dermocorticoides, apresentava a mesma sintomatologia, afetando também a região genital, assim como lesões bolhosas sobre placas cicatriciais (joelhos e cotovelos) (Figura 2).

 

 

O prosseguimento do estudo revelou anticorpos antinucleares negativos e um valor aumentado de anticorpo antitransglutaminase IgA (Quadro 1). Apesar de não apresentar quadro típico de DC, a doente foi referenciada à consulta de Gastrenterologia para investigação de DC subclínica. Foi também referenciada à consulta de Dermatologia para biopsia da pele lesional/perilesional. Realizou endoscopia digestiva alta e biopsias duodenais que se revelaram compatíveis com o diagnóstico de DC. A biopsia cutânea relevou dermatose bolhosa, aparentemente subepidérmica, compatível com lesões de DH (Quadro 1). É de referir que nas presentes consultas a doente ainda não tinha iniciado DLG. Perante o quadro cutâneo e serológico, foi diagnosticada dermatite herpetiforme.

Após 3 meses de DLG, iniciou melhoria progressiva do quadro cutâneo. Verificou‑se ao fim de 7 meses de DLG franca melhoria da DH, tendo porém ainda algumas lesões residuais (Figura 3).

 

 

DISCUSSÃO

O achado histológico típico da DH é o depósito de IgA na membrana basal por IFD, inclusive em áreas de pele sã, situação que não foi possível confirmar nesta doente, dado o facto de a mesma ter iniciado dieta isenta de glúten imediatamente após confirmação de DC pela biopsia intestinal. É importante salientar que o depósito de IgA na membrana basal não muda com a instituição de dapsona, mas com a instituição de uma DLG.

Nesta doente optou‑se por dar continuidade à DLG e avaliar a evolução clínica. A terapêutica farmacológica não se revelou necessária para o controlo da doença.

Para assegurar uma boa evolução clínica da DH e da DC, a instituição precoce de DLG é mandatória, uma vez que previne complicações futuras, nomeadamente o linfoma do intestino delgado. Após DLG, espera‑se que o doseamento dos autoanticorpos normalizem em 3 a 12 meses12, o que se verificou neste caso clínico.

É de salientar que esta apresentação de DH é muitas vezes confundida com dermatite atópica, dermatite alérgica de contacto, escabiose, escoriações neuróticas, urticária papulosa e doença bolhosa autoimune.

É importante fazer um diagnóstico diferencial, pois o diagnóstico correto é imprescindível para um tratamento adequado, sendo de extrema importância o seu reconhecimento precoce, a fim de evitar agravamento dos sintomas e a utilização de fármacos não eficazes, ou mesmo contraindicados nessa situação clínica.

Este caso clínico ilustra uma apresentação atípica de doença celíaca, numa doente em idade adulta, em que a dermatite herpetiforme foi a única manifestação, tendo sido o seu reconhecimento crucial para o diagnóstico.

 

REFERÊNCIAS

1. Katz SI. Dermatitis herpetiformis. In: Fitzpatrick TB, Eisen AZ, Woff K, Freedberg IM, Austen KF. Dermatology in General Medicine. 7th ed. New York: McGraw‑Hill:2010.         [ Links ]

2. Patricio P, Ferreira C, Gomes MM, Filipe P. Autoimmune bullous dermatoses: a review. Ann N Y Acad Sci 2009;1173:203‑10.         [ Links ]

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7. Caproni M, Antiga E, Melani L, Fabbri P. Guidelines for the diagnosis and treatment of dermatitis herpetiformis. J Eur Acad Dermatol Venereol 2009;23:633‑8.         [ Links ]

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Contacto:

Sofia Farinha

Serviço de Imunoalergologia, Hospital de São Bernardo

Rua Camilo Castelo Branco 175

2910-548 Setúbal

E-mail: sofiamf_@hotmail.com

 

Financiamento: Nenhum.

Declaração de conflito de interesses: Nenhum.

 

Data de receção / Received in: 18/12/2017

Data de aceitação / Accepted for publication in: 19/01/2018

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