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Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med vol.27 no.3 Porto jun. 2013

 

COMENTÁRIOS

Gestão de conflitos na área da saúde: uma proposta de reflexão

Pedro Cunha1, Rute Meneses1, Manuel Cardoso de Oliveira1

 

1Universidade Fernando Pessoa

 

A Saúde, como área de enorme complexidade e grande importância humana, social e política, está sujeita a constantes desafios. Nela as mudanças são vertiginosas, os conceitos alteram-se a um ritmo impressionante, as transformações demográficas e epidemiológicas são rápidas, o conhecimento cresce de um modo exponencial, as doenças crónicas e as populações idosas aumentam, os desperdícios são relevantes, os custos dos cuidados não páram de subir, a sua integração deve atualizar-se, a necessidade de equipas multidisciplinares é manifesta e o envolvimento dos doentes e das famílias nos cuidados de saúde é cada vez maior. Como se tudo isto não bastasse, os contínuos progressos científicos e tecnológicos criam fragmentações e estas favorecem o caos1. As manifestações de tribalismo nos diversos grupos profissionais, por seu turno, dificultam muitas vezes a implementação de novas configurações organizacionais que tenham em vista superar o caos. Acresce que os determinantes da Saúde (alterações ambientais, problemas nutricionais, estilos de vida e populações em maiores riscos, entre outros) vêm ganhando importância crescente, o que a torna uma área particularmente susceptível e atreita aos mais diversos tipos de conflito. Assiste-se, efetivamente, a uma escalada de problemas e mudanças que têm efeito direto, muitas vezes negativo, nas experiências dos doentes e nas interações destes com a área dos cuidados de Saúde2. Esta conflitualidade reduz a qualidade e aumenta os custos dos referidos cuidados, secundarizando os objetivos de serem efetivos e eficientes. Abre-se, assim, um espaço particularmente propício para novas formas de gestão construtiva de conflitos (nomeadamente, a negociação, a mediação e a conciliação entre profissionais de saúde, utentes e suas famílias e outros envolvidos) de modo a atenuar os efeitos perversos destas conjunturas.

A relação do Direito com a Medicina está longe de ser harmoniosa, sabendo-se que precisam de ser particularmente estimulados um lugar de pacificação e uma cultura de responsabilidade. Neste clima de decisões complexas, autoridade desacreditada e implicações sociais muito importantes, há que fomentar métodos para a prevenção e gestão construtiva de conflitos, à semelhança do que vai acontecendo noutros sectores da sociedade3, mas com as adaptações que a área da Saúde aconselha.

Dado que os cuidados de Saúde têm sido descritos como sistemas adaptativos complexos, não surpreende que nesta área os conflitos ganhem particular gravidade e levantem muitas dificuldades para a sua resolução. A Saúde é, assim, um sector susceptível, sabendo-se que apesar dos indiscutíveis progressos da Ética, estamos ainda longe de um equilíbrio que possa dar mais garantias sobre a eficácia da mudança de comportamentos individuais e organizacionais.

Para que possamos vencer os desafios que se nos colocam há que corrigir os desequilíbrios de poder e de conhecimentos entre doentes e profissionais da Saúde e entre estes e os gestores, de modo a que o sector possa beneficiar dessas correções4. Trata-se de um processo cultural em que a educação tem um papel muito importante, de modo a que os saberes científicos, organizacionais e experienciais se articulem devidamente. A existência de práticas funcionais para a prevenção egestão de conflitos poderá potenciar uma melhoria dos resultados nas disputas que ocorrem e desenvolver um ambiente organizacional mais saudável. Procura-se ir para além de práticas como a obtenção do consentimento informado, elemento essencial no âmbito da intervenção e investigação em Saúde5,6,7,mas cujas dificuldades e problemas suscitados8,9,10,11,12,13 não são ainda suficientemente investigados. A mudança cultural reclamada passa pela integração de aptidões de desenvolvimento, equipas colaborativas, estratégias de comunicação, lideranças esclarecidas, processos de gestão construtiva de conflitos e um maior diálogo entre as partes3.

Num cenário de globalização, é de esperar que a interdependência entre envolvidos tenha importantes consequências nas dinâmicas de profissionais, quer individualmente quer em grupo. A interdependência é um dos focos possibilitadores de conflitos. Com as nossas sociedades cada vez mais “abertas”, e com uma maior interdependência entre organizações e grupos, o fenómeno conflitual transformou-se em algo inteiramente estrutural das nossas vidas3. As diferentes organizações na área da Saúde sentem, com cada vez mais premência, a necessidade dos seus colaboradores possuírem instrumentos eficazes para lidar com contendas, de forma a responderem à cada vez maior pluralidade de personalidades e de situações de divergência interpessoal e à necessidade imperiosa de construção da paz nos diferentes contextos que constituem a Saúde3,4.

Quando se fala em conflito interpessoal, é essencial possuir uma abordagem ampla e plural para procurar uma tentativa de delimitação do conceito. Embora o conflito tenha vindo a ser estudado por diversas ciências do conhecimento humano, destaca-se a abordagem psicossocial da complexidade inerente ao próprio fenómeno e o facto de que, desde sempre, os seres humanos, pertencentes a comunidades de maior ou menor dimensão, se viram compelidos a lidar com conflitos consigo mesmos e com o outro14,15,16,17. Semelhanças e diferenças entre indivíduos e entre grupos aparecem como processos psicossociais com crescente importância na gestão das relações humanas18.

Apesar dos numerosos desafios com que atualmente se defrontam os profissionais de Saúde19,20,21,22, muito poucos estão familiarizados com as competências e os processos necessários para negociar conflitos no seu ambiente de trabalho23. Há um esforço educativo que deve ser estimulado não só para a área da Saúde como para a do Direito. Este esforço multidisciplinar promete melhor futuro tornando-se indispensável a possibilidade de criar novos conhecimentos, o que concede à investigação uma importância fundamental. Na área da Saúde a investigação multidisciplinar de natureza socioprofissional e económica, sendo uma área vasta24, terá de contar com o maior envolvimento dos profissionais mais diretamente ligados à Saúde e os contributos das ciências humanas e sociais.

A Segurança dos Doentes (Patient Safety) tem uma estreita e compreensiva relação com a questão dos conflitos em Saúde. A Associação Para a Segurança dos Doentes (APASD)25 tem vindo a assumir numerosas iniciativas no setor, procurando aumentar a literacia de todos os envolvidos nestes processos, e estimulando o desenvolvimento de projetos de investigação. O treino dos profissionais em comunicação, trabalho de equipa e técnicas para apreender com os erros poderão contribuir para que os conflitos possam ser mais eficazmente resolvidos, facilitando um diálogo mais profícuo com os doentes e no qual todas as partes envolvidas se sintam ganhadoras, pois os acordos estabelecidos permitem integrar os interesses dos vários envolvidos. Situamonos, aqui, na gestão construtiva e eficaz de conflitos, a qual aposta numa mudança ao nível macro da organização, focalizando-se no conflito substantivo e minimizando o conflito afetivo nos níveis individual, grupal, intergrupal e organizacional, o que implica alterações na liderança, cultura e desenho da organização26.

Apenas como contraponto, lembremos que a abordagem tradicional de conflitos não questiona se a estrutura ou os processos organizacionais estão na origem de uma determinada situação litigiosa, procurando resolvê-la ou reduzi-la, através da uma atuação ao nível micro do sistema26. Não é possível equacionar um programa de gestão eficaz de conflitos se as questões das reações e das rotinas defensivas – caraterísticas da visão do antigo paradigma sobre intervenção em conflitos – não forem objeto de reconhecimento e de confrontação. As estratégias clássicas de gestão de conflito ainda muito existentes nos nossos dias na Saúde têm negligenciado estas duas importantes questões, o que tem conduzido a que as organizações não possuam, em muitos casos, uma cultura que desenvolva o processo de solução de problemas, típico de uma cultura de paz, solução e negociação.

Definir negociação significa ter-se presente que se capitalizam os meios de resolução de um problema através do diálogo e de forma civilizada. A negociação procura solucionar o conflito de forma que a solução encontrada se revele satisfatória para todos os implicados; consiste num processo de resolução de um conflito entre duas ou mais partes opostas, mediante o qual todas as partes alteram as suas exigências, com vista a alcançarem um compromisso sentido como aceitável por todas14. Apesar de tudo o que se disse, nem sempre se torna possível resolver um conflito mediante a negociação, uma vez que existem conflitos que não podem e nem devem resolver-se mediante a via negocial27.

De qualquer modo, uma negociação, mediação e/ou conciliação adequadas podem permitir rápida e eficazmente uma melhor resolução dos conflitos, revelando-se estratégias mais funcionais face às alternativas mais dolorosas, mais caras e mais difíceis28. O objetivo principal tanto da negociação direta como da negociação assistida por um terceiro (a mediação e a conciliação) é, pois, explorar opções que facilitem soluções bilateralmente construtivas. Nesse sentido, a mediação é um processo que valoriza a condição humana e favorece a produção de mudança através de uma terceira parte (o mediador); quando a negociação não é exequível, a mediação surge como uma alternativa credível que proporciona resultados satisfatórios, de forma que os intervenientes desenvolvam autonomamente vias para lidarem com as tensões inerentes à sua interligação (e não meramente procurarem acordos que finalizem uma controvérsia pontual)3.

Por sua vez, a conciliação constitui um meio informal de resolução extrajudicial de conflitos, centrado na tentativa das partes de encontrarem uma solução para o litígio existente, recorrendo ou não a um terceiro interveniente. Existindo um terceiro interveniente, este conduzirá o processo conjuntamente com as partes para que atinjam, de forma voluntária, um acordo, sem haver a necessidade de recurso a outras instâncias. A terceira parte promove uma solução célere para a gestão do mesmo, adotando uma posição ativa, podendo apresentar sugestões e recomendações. A conciliação é um meio de resolução que antecede geralmente a via arbitral3.

As vias da negociação, da mediação e da conciliação – que constituem processos de regulação social29,30 com crescente prestígio -estimulam o desenvolvimento da melhoria contínua da qualidade e evitam o dispêndio de energias em tarefas de menor interesse. A gestão de conflitos na Saúde é uma área fascinante que não pára de crescer. Os processos de negociação, mediação e conciliação podem dar a ambas as partes um sentido de ultrapassagem do conflito, ajudando a aliviar o sentido bilateral dos agravos4. Cria-se, assim, um clima de ausência de vencedores ou vencidos e fortalece-se a tão ameaçada relação clínico/doente. As partes atenuam comportamentos de confrontação e, no final, surge uma sensação de autorrealização, evitando disputas médico-legais ou outras, sempre indesejáveis, onerosas e penosas. De facto, mesmo quando a gestão construtiva de conflitos não é bem-sucedida, tem resultados positivos para todos os envolvidos no processo31, mais ainda num cenário de diversidade cultural, linguística e socioeconómica a que se assiste atualmente em Portugal32.

 

REFERÊNCIAS

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