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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.32 no.2 Lisboa jun. 2014

https://doi.org/10.14417/ap.868 

Transformações da relação afetiva entre o bebê e a educadora na creche

 

Leila Sanches de Almeida*; Maria Clotilde Rossetti-Ferreira**

* UFRJ – Instituto de Psicologia

** USP – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Correspondência

 

RESUMO

O presente estudo, conduzido na perspectiva da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira et al., 2004), teve como objetivo identificar os momentos referidos por educadoras e mães como apresentando novos significados na forma do bebê e da educadora relacionarem-se nos três primeiros meses de inserção à creche. Os sujeitos focais foram quatro bebês (04-09 meses de idade), suas educadoras e mães. Realizou-se 60 entrevistas, utilizou-se um diário de campo e fotografias. Nas duas primeiras semanas, os adultos relataram que os bebês observavam indiscriminadamente o meio social. Na terceira e quarta semanas, o comportamento de observação do bebê passou a ser interpretado como focalizado para sua educadora. No segundo mês, foram mencionados comportamentos significados como preferenciais ou exclusivos à díade. Os relatos foram construídos sob o critério de o bebê manifestar, ou não, preferência pelos cuidados de uma educadora específica (CAPES).

Palavras-chave: Relação afetiva, Significações, Inserção em creche, Apego.

 

ABSTRACT

The present study was conducted from the perspective of Network of Meanings (Rossetti-Ferreira et al., 2004). It aimed identifying the moments in which adults report and distinguish as expressing new meanings in infant-caregiver attachment relationship along the first three months of the babies’ attendance at day care centre. The participants were two caregivers and four mothers with their babies 4 to 9 months old. A total of 60 interviews were carried out with the adults. The data also included field notes and photographs. In the first two weeks, adults reported that babies have observed the social environment in general. At the end of the first month of attendance, it was reported that babies gazed and focused their caregivers. In the second month, there were reports of focused behaviour between each baby and his caregiver. Adults’ reports were constructed under the criterion of presence or absence of certain behaviour that denotes a baby’s preference for a specific caregiver (CAPES).

Key-words: Affective relationship, Meanings, Attendance at day care centre, Attachment.

 

 

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, continua crescendo a participação das mulheres brasileiras no mercado de trabalho. É provável que muitas tenham tido dificuldade de encontrar uma solução apropriada para assegurar os cuidados diários de seus filhos, durante o seu horário de trabalho. Neste panorama, a creche tem assumido um papel de apoio, enquanto uma das opções das mulheres trabalhadoras ou estudantes. Essas mudanças na organização familiar e social vêm demandando estudos na esfera da Psicologia do Desenvolvimento e Educação Infantil sobre os cuidados diários de crianças pequenas fora do lar, tendo em vista garantir condições adequadas ao seu desenvolvimento, em especial das mais novinhas em seu primeiro ano de vida (CRESAS, 1991; Melhuish, 2001; NICHD, 1997; Shanahan, Sulloway, & Hofer, 2000). Para que se possa estabelecer ou sugerir critérios qualitativos para esse tipo de atendimento, é necessário que se investigue como ocorre o desenvolvimento da criança nesse contexto extra familiar. Seguindo esta tendência, Eltink (1999) e Averbuch (1999) investigaram o processo de adaptação mútua entre os bebês (e suas famílias) e a creche e constataram que, para as educadoras, a construção da relação educador-bebê é um dos principais indicadores para a avaliação da adaptação à creche.

As mudanças sociais recentes instauraram a necessidade de novos paradigmas para se refletir sobre as questões contemporâneas. A consulta à literatura sobre estudos que enfoquem a constituição de relações mostra que, concomitante às investigações que tradicionalmente se fundamentam na teoria do apego, formulada por Bowlby (1969/1984) em colaboração com Ainsworth (Ainsworth, Blehar, Waters, & Wall, 1978), encontramos estudos que se baseiam em outros paradigmas, tal como o da complexidade. Consideramos, aqui, que as relações afetivas constituem um sistema complexo, dialógico e caracterizado pela recursividade. Como tal, devem ser pensadas em contexto. Sendo assim, o presente trabalho investiga a construção da relação criança-educadora através de uma visão que abre espaço para a construção de relações afetivas pela criança em contextos diversos com pessoas dentro e fora da família: a perspectiva da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva, & Carvalho, 2004).

 

O processo de significação das relações afetivas

A perspectiva da Rede de Significações (REDSIG) considera que o estabelecimento de uma relação entre o adulto e a criança é fundamental à sobrevivência do bebê. O bebê humano é biologicamente social (Werebe & Nadel-Brulfert, 1986). Sua imaturidade motora ao nascer não lhe permite que sobreviva de forma autônoma, o que cria um espaço para a mediação de um parceiro adulto no cotidiano. É ele quem vai inseri-lo em determinados contextos, vai interpretar o mundo para a criança e interpretá-la para o mundo.

A relação afetiva é construída através de interações sociais desenvolvidas em ambientes variados e, segundo Valsiner (1987), culturalmente organizados e socialmente regulados. A interação é um espaço para trocas comunicativas, onde certos comportamentos, de ambos os parceiros, são destacados e assumem significados construídos em conjunto. O bebê humano participa de relações dialógicas, de trocas, de negociações, que possibilitam a construção gradativa de significados e conhecimentos sobre o mundo exterior e o próprio “eu”, desde o nascimento (Lyra & Rossetti-Ferreira, 1995; Rossetti-Ferreira et al., 2004; Schaffer, 1977; Trevarthen, 1977). Ele é capaz de estabelecer uma relação dialógica anterior a qualquer linguagem (Fogel, 1993; Lyra & Rossetti-Ferreira, 1995; Trevarthen, 1977). Isto implica em conferir às crianças um papel ativo na construção de relações. Independentemente de seu grau de autonomia ou idade, elas podem alterar ou promover o desenvolvimento do processo de interação (Schaffer, 1977). Entretanto, o conjunto de ações possíveis de serem realizadas e o fluxo dos comportamentos são delimitados, estruturados, recortados pelo outro. Segundo Valsiner (1987), esses limites pertencem a um repertório coletivo compartilhado por determinada sociedade ou grupo social. Os limites canalizam e dirigem os comportamentos, sentimentos, conhecimentos e motivações, em certas direções e não em outras. Entretanto, os limites podem sofrer modificações, seja ao longo do tempo, seja em diferentes contextos sociais, levando à construção de novos limites.

Vê-se que uma relação é co-construída durante as interações entre os parceiros, podendo seguir diversos caminhos, mas não qualquer um. Ela se desenvolve considerando as expectativas da dupla, ligada ao tempo futuro e dentro de limites e possibilidades culturalmente construídos e que foram impostos de forma concreta pelo meio no aqui-e-agora. Através da interação social, constrói-se a noção de si mesmo e participa-se da construção da individualidade do outro.

A referência a um outro requer que se elucide quem é este outro e aonde ele se encontra. Na Rede de Significações, a reflexão sobre o outro passa a ser uma reflexão sobre outros, já que se considera que há várias pessoas envolvidas no processo de construção da relação afetiva entre a criança e sua figura de cuidados (por exemplo: pais, avós, irmãos, babás, vizinhos, educadoras, ...). A mãe é colocada como uma figura privilegiada, mas não a única, a se posicionar como mediadora na construção das relações da criança. Tem-se, ainda, que a escolha ou preferência por estar com uma determinada pessoa, em um momento ou local específico, é mediada por fatores e significados que coexistem, a despeito de suas naturezas diversas (sejam construídos ao longo do relaciona- mento entre ambos em contextos variados, sejam trazidos de outras relações). Assim, colocam-se as possibilidades de convivência continuada com múltiplas figuras e de freqüência a contextos variados, sem necessariamente haver risco de prejuízo para o desenvolvimento afetivo-social da criança. Através das interações, de ações partilhadas e interdependentes, a relação afetiva com o(s) outro(s) vai sendo co-construída. Ela parece não se restringir inicialmente à díade mãe-bebê, nem ao ambiente do lar. A creche é outro contexto possível para o desenvolvimento infantil.

O presente estudo, portanto, parte da idéia de que a relação afetiva na creche entre a educadora e o bebê caracteriza-se como um processo contínuo, construído mutuamente. Temos como objetivo descrever este processo a partir de relatos de educadoras e mães.

 

MÉTODO

Contexto

O estudo foi realizado no berçário de uma creche universitária, ao longo de três meses (Almeida, 2001). O berçário, para crianças entre quatro meses e um ano, tinha capacidade para 17 bebês. O espaço físico do berçário era composto de: um amplo solário, sala de berços anexa à sala de atividades, um banheiro e uma sala de refeições ligada ao lactário. Durante a realização do estudo, foram recebidos 15 bebês, divididos em dois subgrupos: um formado por sete crianças que ingressaram entre o quarto e o quinto mês de vida e o outro por oito crianças que ingressaram entre o sexto e o nono mês. Cada subgrupo ficava sob a responsabilidade de duas educadoras, as quais trabalhavam em turnos alternados (manhã e tarde). Uma educadora volante auxiliava-lhes nos horários de pico. O trabalho das educadoras era apoiado pela equipe técnica (uma diretora, com formação em psicologia, uma pedagoga e uma psicóloga). A creche enfatiza a formação em serviço das educadoras, de modo que o planejamento anual incluía atividades que visavam o seu aprimoramento profissional. Tais atividades davam uma ênfase especial ao processo de adaptação dos bebês e suas famílias, e as características infantis que devem ser respeitadas neste período. O ingresso das crianças no berçário era feito de forma gradual, criança por criança, ao longo de um mês. Cada bebê participou, junto à mãe ou a um familiar, de um programa de inserção que durava em média uma semana. Nos dois primeiros dias, a criança era apresentada a apenas uma das educadoras, só vindo a entrar em contato com a educadora do outro turno com o aumento do seu tempo de permanência. À medida que este tempo era aumentado, o familiar que a acompanhava ia diminuindo sua permanência no berçário. Contudo, durante todo o ano era permitido, e mesmo incentivado, que os pais visitassem seus filhos no horário de almoço.

 

Participantes

A partir de uma consulta à pasta dos bebês que começariam a freqüentar a creche em sua primeira semana de funcionamento, selecionaram-se quatro crianças que permaneceriam na creche em horário integral, duas de cada subgrupo do berçário. Todos os bebês selecionados tinham entre quatro e nove meses de idade (quatro meses e 22 dias; quatro meses e 25 dias; seis meses e 29 dias; e nove meses e cinco dias), ocupavam a posição de primeiro ou segundo filho e tinham sido matriculados na creche para que suas mães (docentes, funcionárias ou estudantes) pudessem continuar a trabalhar ou concluir seus estudos. Antes de seu ingresso à creche, eram cuidados em seus lares por suas mães ou membros da própria família. As mães, as outras crianças e adultos presentes nos momentos de coleta de dados (inclusive a pesquisadora) também foram considerados sujeitos (não focais) do estudo, já que participavam da rede de relações do berçário. Foram atribuídos nomes fictícios aos participantes do estudo.

 

Procedimentos

A pesquisadora entrou em contato por telefone com as mães dos bebês selecionados, algumas semanas antes do início de sua freqüência à creche. Foi-lhes dito, assim como às educadoras, que o estudo de um modo geral objetivava acompanhar durante três meses o processo de adaptação das crianças à creche, através de entrevistas e filmagens. Todas as famílias e educadoras consultadas aceitaram participar do estudo. Após serem amplamente esclarecidas, as famílias assinaram um formulário de consentimento informado. Todos os bebês começaram a freqüentar a creche no mesmo dia, sendo que dois foram inicialmente apenas no horário da manhã e outros dois à tarde. Ao longo da coleta de dados, foram conduzidas sete entrevistas com cada uma das quatro mães e 14 entrevistas com cada educadora responsável por essas crianças no berçário, perfazendo um total de 56 entrevistas. A maior parte das entrevistas foi realizada na creche. Pouco menos da metade foi feita em locais de trabalho das mães. As entrevistas eram semi-estruturadas e versavam sobre a percepção que o entrevistado tinha do bebê e de seu processo de adaptação, incluindo necessariamente a percepção da relação educadora-bebê. Cerca de seis meses após a entrada dos bebês, foi feita uma entrevista complementar com cada mãe, focalizando a história do bebê anterior à sua ida para a creche. Obteve, assim, um total de 60 entrevistas.

As entrevistas foram conduzidas e transcritas pela primeira autora do estudo em questão. Na transcrição foram consideradas, além dos relatos verbais e suas características (tais como as entonações), manifestações não verbais (riso, choro, etc.). Após várias leituras das entrevistas transcritas, foi feito o recorte de todos os trechos que continham relatos de episódios, comportamentos, reflexões e análises sobre o processo de interação entre educadora-bebê e família-educadora, totalizando 176 recortes. Os indicadores afetivos levantados por Eltink (1999) e Averbuch (1999) em seus trabalhos sobre o processo de adaptação do bebê à creche auxiliaram a orientar esses recortes.

Conduziu-se uma análise sobre os recortes com o objetivo de apreender o significado dado pelo adulto ao processo de interação. As anotações do diário de campo da pesquisadora, elaborado ao longo dos dias de entrevista, foram utilizadas como apoio para as análises.

 

RESULTADOS

As educadoras e as mães relataram transformações, mudanças estruturais, no processo de constituição da relação afetiva entre a educadora e o bebê, as quais foram interpretadas como diferentes momentos do processo. O critério por elas utilizado para demarcar essas mudanças foi a criança manifestar comportamentos significados, no contexto da creche, como preferência por ser cuidada por uma figura específica.

 

Caso 1: Débora

Débora é um bebê de quatro meses e 18 dias. É filha de um casal formado por uma estudante de graduação do campus onde se encontra a creche do estudo e por um professor do ensino secundário. Seu irmão, cerca de dois anos mais velho, também freqüenta a mesma creche. Seus pais não têm parentes que residam na cidade. Na semana anterior à sua entrada na creche, a criança passara dois dias internada com pneumonia. Quando chegou à creche no dia à princípio agendado, no início da tarde, as educadoras se surpreenderam, pois achavam que sua entrada havia sido adiada por duas semanas. A criança e sua mãe foram recepcionadas pelas educadoras que, não sabendo dizer-lhes de imediato se poderiam continuar lá, deixaram-nas sozinhas. Esta situação se manteve por cerca de 20 minutos, quando as educadoras foram convocadas para uma reunião de emergência com parte da equipe da creche para resolver a questão. Simultaneamente, a diretora da creche entrou e deu as boas vindas à mãe e à criança. Após retornarem da reunião, as educadoras acolheram a mãe e a criança, dando-lhes mais atenção.

No quinto dia de freqüência do bebê à creche, foi realizada a primeira entrevista com a educadora (Vera) e com a mãe de Débora, separadamente. Vera falou que estava surpresa com a tranqüilidade da criança e sua receptividade em relação aos cuidados oferecidos, como revelam os trechos abaixo:

 

(Como é que você acha que tá sendo a adaptação dela e como você esperava que fosse?)

EDUCADORA: Olha a da Débora ééé, eu to achando que, muito tranqüila. Não imaginei que fosse ser assim. Não imaginei por contaaaa, não da criança. Daaa... é, também, né. Da família, da, da mãe. Ela teve uma intercorrência (...) Então a criança vem bem mais fragilizada, né? A mãe também. (...) porque ela também tem outro filho, né, na creche. (...) Tava tendo até alguns problemas assim com o menino maior.

 

(E como é que ela tá com você e com as outras?)

EDUCADORA: Ah, ela é muito simpática (...) E ela, ela parece que num tem preferência não. Com todas as pessoas que pega ela, conversa com ela, ela sorri.

 

Já a mãe de Débora não se surpreendeu com o comportamento do bebê:

 

(E como que você acha que tá sendo a integração dela aqui na creche com as educadoras?)

MÃE: Bom, eu acho quee tá sendo uma boa integração. Ela é uma criança assim... dada, né? Nuuum costuma estranhar. (...) Eu to percebendo que ela tá bem, com as duas, com a Vera e com a... e com a educadora da tarde. Ela fica bem.

 

Tem-se, assim, que o processo de construção da relação entre Débora e sua educadora, em sua primeira semana na creche, foi atravessado por fatos e crenças que englobavam outros contextos (o hospital) e outras pessoas (o irmão de Débora e as demais educadoras).

Nas demais entrevistas realizadas, o processo de construção da relação afetiva entre Débora e sua educadora foi visto como tendo evoluído gradativamente, sem passar por mudanças interpretadas como comportamentos exclusivos à dupla. Vera e a mãe de Débora continuaram a significar a criança como tranqüila, risonha, receptiva aos cuidados oferecidos por qualquer educadora do berçário e aparentando bem-estar. Na última entrevista realizada com a educadora e com a mãe, na semana em que Débora faria sete meses e meio de idade e completaria três meses de freqüência à creche, houve relatos de pequenas mudanças no comportamento do bebê. Apenas a mãe as explicitou:

 

(E a relação dela com você e as educadoras, como é que está neste último mês?)

EDUCADORA: Ela ainda, Ahnnn... Não, num vou falar que num teve mudança nenhuma. Teve uma mu, um pou, uma pequena mudança, entendeu? Ela nummm, ela num é uma criança ainda de escolher (...) Ela não tem preferência ainda não. Não. O vínculo dela num tá muito assim... pra uma pessoa só, não. Então, eu acho que não teve tanta mudança quanto ao, éééé, do, né, do mês passado.

 

(... teve alguma mudança na relação dela com a Vera, com as educadoras?)

MÃE: Eu percebo assim, cada vez mais ela vai reconhecendo assim as educadoras. Quando elas chegam, chamam, até que, até que ela vai, joga os bracinhos, vai pro colo, essas coisas, né? (...) não percebo muita mudança.

 

A pesquisadora, por sua vez, fez uma outra construção sobre a relação entre Débora e Vera. Na primeira quinzena de freqüência à creche, ela também significou o comportamento de Débora como consistindo principalmente em observar com atenção as educadoras. Entretanto, uma semana depois, a pesquisadora percebe que Débora passa a observar e acompanhar visualmente os deslocamentos de Vera. Em um determinado dia da semana seguinte, novos comportamentos são dirigidos à educadora. Débora chegou à creche quando os bebês já estavam em um colchonete no solário para o banho de sol. Sua mãe a colocou sentada ao lado de Vera, que tinha outra criança no colo. Débora estendeu seu bracinho e muito sutilmente segurou com sua mão a roupa da educadora. Parecia querer ir para o seu colo também. Vera respondeu-lhe dando um de seus dedos para ela segurar. Quando Vera mudou-se de lugar, ela rolou e rodou para poder observá-la. A pesquisadora significou esses comportamentos como indícios de que Vera estava se tornando uma figura de referência para Débora no berçário.

 

Caso 2: Juliana

Juliana é um bebê de quatro meses e 23 dias de idade. É a primeira filha de um casal formado por uma professora da universidade e por um engenheiro. Seu pai trabalha em uma cidade próxima. Em geral, só costuma estar em casa com a família aos finais de semana. O casal não tem parentes que residam na mesma cidade.

Juliana e sua mãe, no primeiro dia de freqüência à creche, foram recebidas por Vera, educadora do bebê. De um modo geral, na primeira semana de freqüência à creche, Juliana observava as pessoas à sua frente e ocasionalmente sorria. Gradativamente, ao longo da semana, foi aceitando os cuidados oferecidos por Vera.

Duas semanas depois, Vera relata que percebe que Juliana acompanha os seus deslocamentos:

 

(Como é que ela tá com você?)

EDUCADORA: Ela é muito... tá bem. Ela já conhe, parece, ela já é diferente, ela já conhece, parece que me conhece mais, né? (...) Ela observa muito.

 

Vera diz que, nestas ocasiões, lhe respondia de forma prazerosa através de brincadeiras ou falando com ela.

Essa percepção sobre o comportamento de Juliana em relação à Vera, também foi contada pela mãe de Juliana em uma entrevista realizada nessa mesma época. Em uma de suas visitas à filha no horário de almoço, ela percebeu que a criança acompanhava os deslocamentos da educadora no berçário:

 

(E você sente que ela tem alguma preferência ao nível das educadoras?)

MÃE: ... Eu peguei (Juliana no colo), continuei dando (a comida), mas ela virava, olhava pra Vera. Ela pegava a colher, olhava pra ela. (...) Isso quer dizer que ela já sabe, né, acho que já conhece quem tá... Quem tá cuidando dela também, né?

 

A educadora e a mãe mostravam-se satisfeitas com a evolução da relação educadora-bebê e interpretavam esses comportamentos da criança como discriminação da figura de cuidados. Relatos semelhantes persistiram até a sexta semana de freqüência.

Na última quinzena do segundo mês de freqüência, a educadora e a mãe de Juliana narraram em entrevista que o bebê passara a sorrir e a manifestar um comportamento de excitação corporal quando era recebido no berçário da creche. Este comportamento foi significado pela mãe como sinal de contentamento por chegar à creche. Vera o interpretava como satisfação por reencontrá-la. Ela lhe correspondia acolhendo-a com um abraço e com um grande sorriso. Para a pesquisadora parecia mais um comportamento focalizado em Vera.

Na semana em que Juliana, com sete meses e 17 dias de idade, completaria três meses de entrada na creche, foi realizada a última entrevista com Vera e com sua mãe. A educadora significou os comportamentos do bebê dirigidos a ela como claramente preferenciais:

 

(E como é que você tem visto a relação dela com você e com as outras educadoras?)

EDUCADORA: Agora já tá bem nítido que ela tem essa, tem preferência, né? (...) Às vezes, com a outra educadora ela, ela mama ou come menos, aí eu tenho que pegar. Ela tem preferência já. (...) Na hora da chegada, ela se abre. Ela sorri. É muito, é, faz bastante gestos. Ela já tem preferência.

 

Já a mãe de Juliana, em sua entrevista, refere-se ao seu crescente sentimento de tranqüilidade e segurança, ao perceber o bem-estar da criança na creche durante o convívio com as educadoras – por ela referidas como ‘profissionais’, eficientes:

 

(... você notou alguma mudança no relacionamento dela com as educadoras?)

MÃE: Não, mudança acho que não. Eu acho que tááá, tá tudo bem. Acho que quanto, quanto mais o tempo vai passando, a gente vai ficando cada vez mais tranqüila. Pelo menos, isso tá acontecendo comigo, né? E segura de que ela tá bem. E isso me deixa muito aliviada de que eu to fazendo a coisa certa com ela, né? (...) Elas são profissionais.

 

A referência às educadoras como profissionais indica que a mãe de Juliana está conseguindo sentir-se confortável ao deixar a criança na creche, lugar de pessoas especializadas em cuidados infantis. Sua filha está sendo bem tratada.

O processo de construção da relação afetiva entre Juliana e Vera foi mediado pela relação mãe- educadora, cuja evolução parece ter tido como característica básica um crescente sentimento de segurança. A pesquisadora destacou dois momentos desse processo nos quais ela identificou mudanças. Quando Juliana começou a freqüentar a creche, observava com atenção todas as pessoas do berçário. Na segunda e na terceira semana, Vera, a própria pesquisadora e a mãe de Juliana perceberam que ela passou a dirigir o seu olhar com mais freqüência para a educadora, acompanhando os seus deslocamentos. Elas interpretaram esse comportamento de Juliana como discriminação da figura de cuidados. Por fim, no segundo mês de freqüência, a educadora e a mãe de Juliana relataram que a criança sorria e manifestava um comportamento de excitação corporal ao chegar no berçário da creche – o que também constava como observação de campo da pesquisadora. Vera lhe respondia, acolhendo-a com um abraço e com um grande sorriso. Ela e a pesquisadora significaram esse comportamento como preferencial e focalizado nela mesma. Já a mãe de Juliana o interpretava como sinal de contentamento por chegar à creche. De um modo geral, pode-se considerar que a relação afetiva entre Débora e Vera foi se consolidando e se tornando focalizada entre a dupla, ao longo dos três meses de realização do estudo.

 

Caso 3: Ivana

Ivana é um bebê de seis meses e 27 dias de idade. É a segunda filha de uma estudante solteira de pós-graduação da universidade. Ivana mora com a mãe, um tio e uma irmã de 15 anos. Eles não têm parentes na cidade.

Na primeira semana de freqüência à creche, Ivana observava muito o berçário e procurava interagir com as pessoas, dirigindo-lhes balbucios e rindo para elas. Nesta semana, foi realizada ainda uma entrevista com sua educadora, Eliana, e com sua mãe:

 

(Como é que você está achando que a Ivana está?)

EDUCADORA: (...) Apesar dela já ter sete meses, ela não estranha. Então ela aceitou ficar bem comigo (...) Parece ela ser uma criança muito carinhosa. (...) Só da presença, né, ela já... acompanha, me acompanha. (...) Quando eu saio da sala, ela já fica meio desconfiada.

 

A educadora expressa a expectativa de que bebês com sete meses tendem a demonstrar medo de estranhos, comportamento bastante difundido na literatura psicológica sobre desenvolvimento (Rossetti-Ferreira, 1984). Provavelmente, isto se deve às reuniões na creche que objetivam a formação em serviço. Como Ivana não a estranhou, ela sentiu-se aceita pela criança. Considerou ainda que Ivana seja capaz de discriminar visualmente a sua figura.

Quanto à mãe de Ivana, sua expectativa era de que ela aceitasse bem a creche:

 

(Como é que você acha que ela está? [Em que sentido?] Aqui, na creche)

MÃE: Ah, na creche! Olha, eu... eu... eu já tinha essa expectativa, né? De... de que ela se adaptasse bem. Porque ela sempre foi uma criança assim, nunca foi de estranhar ninguém (...) eu tinha em mente que ela iria se adaptar fácil, né? Que ela iria aceitar bem as... as moças, e até o ambiente.

 

Esse significado atribuído ao comportamento da criança por sua mãe e pela educadora, de aceitação da rotina da creche e dos cuidados das educadoras, permaneceu nas duas primeiras semanas.

No início da terceira semana de freqüência à creche por Ivana, surgem relatos na entrevista com a educadora de mudanças que ela percebera na sua relação com Ivana. Ela conta que Ivana passou a chorar quando ela sai do seu campo visual. Eliana parece significar-se como figura de referência de Ivana, transmitindo-lhe segurança no berçário.

Na semana seguinte, a mãe de Ivana, em sua entrevista, conta que a criança se joga inteira para Eliana ao reencontrá-la na creche. Ela acredita que Eliana seja a educadora preferida da filha.

Em sua entrevista, também nesta semana, Eliana menciona várias novidades que surgiram no seu relacionamento com o bebê: Ivana lhe ‘joga beijo, gruda apertadinho a boquinha’ em seu rosto quando ela a pega no colo, cantam juntas na hora de Ivana dormir e trocam olhares quando uma outra educadora pega o bebê.

Seu relato sugere que ela mostra-se disponível e receptiva às solicitações de Ivana, estabele- cendo prazerosamente trocas comunicativas com a criança. Ela interpreta os comportamentos do bebê como focalizados em sua figura.

Duas semanas depois a mãe de Ivana, em sua entrevista, descreve as educadoras como atenciosas, carinhosas e indiscutivelmente profissionais. Ao atribuir-lhes esta última característica, parece querer garantir o seu papel de figura principal de afeto da criança. Nas duas semanas seguintes, Ivana não foi à creche porque ficou doente. Retornou um dia antes de completar nove meses de idade. Segue o relato de sua mãe sobre o seu comportamento ao chegar à creche, extraído de sua sexta entrevista:

 

(... então vamos conversar sobre a Ivana. Como é que a Ivana tá nesse um mês...?)

MÃE: ... A gente passou aqui mais de uma semana, quase duas semanas em casa. (...) vim preparada para chegar na creche, ficar um pouco na creche, né? Achando que ela fosse estranhar esse tempo todo. E para minha surpresa, né, já foi dando o braço para Eliana e já ficou.

 

A mãe mostrou-se surpresa com o fato de não ter precisado ficar na creche para readaptar Ivana e com a receptividade desta ao reencontrar Eliana. A emoção que passou ao relatar esse acontecimento é indicativa de que ela poderia estar se sentindo enciumada da relação entre a criança e sua educadora.

Cerca de um mês depois, quando Ivana estava para completar três meses de entrada na creche, sua mãe, em sua última entrevista, diz que considerava que Ivana gostava igualmente de estar na companhia de Eliana ou da educadora da tarde. Parecia precisar de novo garantir o seu papel de figura preferencial de afeto.

A pesquisadora destacou dois momentos do processo de construção da relação afetiva entre Ivana e Eliana, nos quais identificou mudanças. Ao começar a freqüentar a creche, Ivana observava todos indiscriminadamente. Uma primeira mudança pareceu ocorrer ao final da primeira semana, quando a educadora relatou que ela passou a acompanhá-la com o olhar, o que lhe causava satisfação por se sentir aceita pela criança. Relatos de Eliana com esse conteúdo persistiram nas duas semanas seguintes. Até que na quarta semana, a educadora em sua entrevista refere-se à troca de olhares, beijos e a uma música que ela e Ivana entoavam juntas quando a bebê ia dormir. Significava esses comportamentos como focalizados e restritos, no berçário, a ela e a Ivana. Este parecia ser o segundo momento de visíveis mudanças na relação afetiva entre elas, sendo interpretado pela pesquisadora como um estreitamento de vínculo afetivo entre as duas.

 

Caso 4: Patrícia

Patrícia é um bebê de nove meses e dois dias. É a primeira filha de um casal formado por uma funcionária da universidade e um vendedor, que ao longo da realização do estudo estava procurando emprego. A maioria de seus parentes reside na mesma cidade.

No primeiro dia de freqüência à creche, Patrícia chegou ao berçário no início da tarde acompanhada de sua mãe. A mãe explorou a sala de atividades com a criança em seu colo. Ali também estavam outra mãe com seu bebê e duas educadoras. Ao chegar na porta da sala de berços, entrou, dirigiu-se para o berço de Patrícia e lhe apoiou lá para tirar-lhe a blusa. Permaneceu nesse cômodo isolada com ela por alguns minutos, até que a educadora a chamou de volta para a sala de atividades. Eliana, a educadora, parecia querer integrar socialmente à mãe. A partir do segundo dia, a criança começou a interagir com a educadora (aceitava suas cuidados e suas brincadeiras) e acompanhava sua movimentação pelo berçário com o olhar. Também já interagia com os outros bebês, principalmente voltando-se para eles e sorrindo. De um modo geral, na primeira semana, aparentava bem-estar.

Na primeira entrevista realizada com Eliana, ela relata que a mãe de Patrícia não estava mais sendo liberada no trabalho para vir fazer a adaptação. Assim, segundo seu relato, ‘de repente precisou entrar o pai no circuito’. Quanto à sua interação com a criança:

 

(... como é que você acha que tá a Patrícia?)

EDUCADORA: ... Pelo primeiro contato assim, eu acho que té que foi, me, me aceitou, né? Ela aceitou ficar comigo, não me estranhou. (...) Ela, interessante que ela, ela joga os bracinhos pra vim, né? ... pra vir no colo (...) [as outras educadoras] ela aceita bem (...) Ela joga até os bracinhos também.

 

A educadora parecia aliviada por considerar-se aceita pela criança, uma vez que ela havia dito na entrevista que ‘é difícil’ quando a criança não aceita a educadora.

Já a mãe de Patrícia, em sua primeira entrevista, tentou diversas vezes usar o espaço da entrevista sobre a criança para falar de seus próprios sentimentos, angústias e conflitos relacionados à entrada da criança na creche:

 

(Então, como é que você acha que ela está... no nível da adaptação, né?)

MÃE: ... Eu acho assim, que, que a expectativa, pra, pre, pelaí, eh, digamos assim, pra ingenuidade dela, ela tá encarando melhor. A gente cria muito fantasma. Fantasma que a minha mãe vê de creche. Assim, de criança suja, criança que tá presa, criança que berra e chora de, tipo assim, das tias que ficam judiando das crianças (...) Ela, ela sempre foi uma criancinha assim, eh, ela não foi de estranhar muito as pessoas, né? Agora, hoje, por exemplo (...) Terceiro, quarto dia que ela tá lá? Que ela já, já se joga pra educadora da tarde.

 

A mãe de Patrícia parecia sentir-se culpada por tê-la colocado na creche, em função do significado que construiu sobre creche e do qual participam outras vozes presentes em sua história pessoal. Ao longo da entrevista, também falara de sua dificuldade em separar-se da criança, temendo perder o seu amor. Mostrou-se, ainda, enciumada com o comportamento de Patrícia dirigido a sua educadora, ao chegar na creche. Parecia estar em conflito, por desejar ‘uma relação exclusiva com a criança’, conforme suas próprias palavras.

Nas duas semanas seguintes, Patrícia só ficava tranqüila, sem chorar, se fosse levada para fora do berçário, independente de quem a acompanhasse. Parecia querer ficar passeando no pátio da creche. Na quarta semana, Patrícia começa a aceitar o espaço do berçário, passando a observar e acompanhar visualmente os deslocamentos de Eliana no espaço. Observava de forma tranqüila Eliana quando ela a ninava para dormir. Eliana, por sua vez, começa a sentir-se aceita pela criança. Na sexta semana após a entrada de Patrícia à creche, Eliana relata que Patrícia lhe dá sinais de que sente ciúmes quando ela está com outra criança. Através do choro ou de balbucios tenta trazer-lhe de volta para o seu lado. Conta também, sorrindo satisfeita, que Patrícia lhe chama tentando pronunciar o seu nome. Ela considera que o bebê a diferencia das outras educadoras do berçário, tendo um vínculo maior com ela. Parece significar a relação entre elas como focalizada.

Em sua última entrevista, Eliana conta que Patrícia ficara longo tempo afastada da creche por motivo de doença. Ela relata o comportamento de Patrícia no dia de seu retorno:

 

(Então eu gostaria que você me falasse como é que foi essa semana dela...)

EDUCADORA: ... Após três semanas afastada (...) foi uma surpresa muito grande. Porque ela já chegou, já jogou os bracinhos, já, como que reconhecendo, né, onde ela tava, parece que com saudade mesmo. (...) agora eu num sei como é que vai ficar ainda, né, mais pra frente essa situação. Que que os pais vão decidir, né? (...)
Ela deu, demo, demonstrava assim que já tinha um laço, um vínculo, né, construído com a gente, mas que ela já diferenciava comigo, né.

 

Eliana sentia-se insegura quanto à continuidade e o desenvolvimento da relação, já que não sabia se os pais de Patrícia passariam a levar a criança regularmente para a creche.

A mãe de Patrícia, em sua última entrevista, ao ser perguntada sobre sua expectativa quanto ao retorno do bebê, se limita a narrar o comportamento manifesto pela criança:

 

(E qual foi então a sua expectativa com o retorno dela hoje?)

MÃE: Graças a Deus, disse que ela se jogou no colo (rindo) da Eliana e deu tchau pro pai.

 

A expressão de alívio presente no relato da mãe de Patrícia parecia ser uma forma de amenizar sua culpa pelas várias interrupções que provocara no processo de inserção da filha à creche, através das repetidas ausências da criança, motivadas pela prevenção de possíveis crises de rinite decorrentes de mudanças climáticas.

A partir destes dados, a pesquisadora destacou dois momentos do processo de construção da relação afetiva entre Patrícia e Eliana, nos quais identificou mudanças: quando a criança começa a aceitar o berçário e passa a observar e acompanhar visualmente os deslocamentos de Eliana no espaço; e quando Patrícia manifesta uma série de comportamentos dirigidos a Eliana, significados por ela como comportamentos focalizados.

 

DISCUSSÃO

O estudo do processo de construção da relação afetiva entre a educadora e o bebê, a partir de relatos de entrevistas e de anotações de campo da pesquisadora, tendeu a resultar mais na apresentação dos comportamentos sinalizadores dessa construção. Tornou-se necessário um grande esforço por parte da pesquisadora para que alcançasse e explicitasse a dinâmica do processo, a partir do corpus que construíra. Como, em uma situação de entrevista, o entrevistador também participa da construção do entrevistado (Davies & Harré, 1990), é provável que a pesquisadora tenha conduzido os entrevistados a identificarem as transformações dos significados que iam sendo atribuídos à relação afetiva entre as educadoras e os bebês. Daí, a maior parte das falas constituírem-se em torno de referências a novos comportamentos.

Nos quatro casos estudados, pôde-se observar um elemento comum nos relatos dos entrevistados e observações de campo da pesquisadora: a maioria das falas (das educadoras, da mãe de Débora e da mãe de Ivana, por exemplo) e algumas das observações de campo foram construídas sob o critério do bebê manifestar, ou não, comportamentos que pudessem ser significados como preferência pela figura de cuidados. Os comportamentos preferenciais (sorrisos, balbucios, pedidos de auxílio, etc., dirigidos para uma figura específica) são culturalmente valorizados, significando uma boa relação entre o bebê e a figura para o qual está direcionado. Sua presença nas narrativas retrata a expectativa dos adultos sobre o processo de inserção. De fato, uma das metas de trabalho do pessoal de berçário da creche onde este estudo foi desenvolvido é o estabelecimento de vínculos entre a família e as educadoras. Contudo, não se pode desconsiderar que o processo de formação de relações entre a família e a creche é intrínseco a uma situação de grande mudança na vida das famílias envolvidas: a freqüência da criança (e da família) a um contexto extra-familiar. Conseqüentemente, foi um processo em que surgiram diferentes angústias, crises, doenças e conflitos. Alguns destes, muitas vezes colocavam-se como sendo o fio condutor da interação criança-família-educadora. Isso ocorreu com as questões de ‘saúde’ (vômitos, resfriados) que Débora apresentou no decorrer do estudo; com a preocupação da mãe de Juliana acerca de sua ‘alimentação’; e com os conflitos (por diferentes motivos) das mães de Ivana e Patrícia, ao deixarem suas filhas na creche. Em contrapartida, as educadoras passavam por crises e conflitos ao interagirem com esses novos bebês e suas famílias. Eliana carregava para suas novas relações uma necessidade de sentir-se aceita pelo outro. Assim, diante de Patrícia – um bebê de nove meses de idade que, em certa medida, apresentava medo de estranhos e ansiedade de separação da figura materna – e da dificuldade da família da criança em permitir que elas estabelecessem um vínculo afetivo, viu-se um laborioso processo de construção da relação educadora-bebê.

As análises efetuadas nas relações em curso permitem que se façam algumas considerações gerais sobre o processo de construção de relações. As duas primeiras semanas de inserção à creche, se caracterizaram por uma intensa troca entre os componentes da rede educadora-família-criança. As educadoras apresentavam a creche às mães, mediando o processo de inserção da família à rotina da instituição (Almeida, 2006). Eliana, por exemplo, convidou a mãe de Patrícia a participar da sala de atividades, quando percebeu seu isolamento com a criança na sala de berços. Por sua vez, as mães apresentavam aos seus filhos as suas educadoras e, igualmente, apresentavam às educadoras os seus filhos, mediando o processo de construção da relação educadora-bebê. Nesse período, as educadoras significaram os bebês como estando voltados para a observação dos fatos, das pessoas e das atividades do berçário. Tem-se, então, que as crianças participavam da construção das relações que estavam sendo constituídas. Cerca de duas semanas depois, ainda no primeiro mês de freqüência à creche, o comportamento de observação dos bebês começou a ser significado por alguns adultos como focalizado para as suas educadoras – lhe sendo, portanto, atribuída uma direção. Provavelmente, o direcionamento do processo para a sua educadora (e não outra pessoa qualquer) deveu-se ao fato dela ser a figura que mais interagia com a família e a criança (não só lhe cuidando, mas respondendo às suas solicitações e brincando com ela). Por fim, estas interações, que levaram à construção do bebê-observador pela educadora-observadora ou pela família-observadora, criaram um espaço propício à ocorrência de novos comportamentos. Assim, em três dos quatro casos estudados, os relatos que descreviam a relação educadora-bebê entre o final do primeiro e início do segundo mês de freqüência, faziam menção a diversos comportamentos que eram significados como exclusivos à díade ou preferenciais, tais como: a criança compartilhar com a educadora uma canção na hora de dormir; comer mais quando a refeição é oferecida pela figura significada como preferencial; exibir claros sinais de excitação ao ser recebida pela educadora na creche; etc. Esta análise do processo, pautada em comportamentos do tipo descrito, permaneceu até o final do estudo.

Apenas Débora parecia ainda estar construindo a noção de sua educadora como figura de referência no berçário no término da pesquisa. Contudo, na medida em que só foi acompanhado o processo de construção de sua relação com Vera, isto não significava que ela não pudesse estar construindo outras relações na creche.

Cabe ainda uma referência sobre a amplitude do contexto e da rede de relações envolvidos na construção da relação afetiva entre bebê e educadora de creche. O caso de Patrícia ilustra bem esta questão. A angústia de sua mãe, que carregava dentro de si as palavras de sua própria mãe (avó de Patrícia), que considerava creche como um lugar onde ‘as tias ficam judiando das crianças’, não lhe permitia ficar com o bebê dentro do berçário. Nos primeiros dias de freqüência, quando ia visitar Patrícia no horário do almoço, a retirava do berçário e ficava passeando com ela pelo pátio da creche. Chegou até mesmo um dia a levá-la para ser amamentada fora da creche. Patrícia parece ter se contaminado com a angústia da família e passou a se recusar a permanecer no berçário. Chorava muito até conseguir ir passear no pátio com alguma educadora. Só começou a sentir o berçário como um contexto seguro e desejável, após sua mãe (aconselhada pela educadora) ter passado a freqüentá-lo com ela. Vê-se, portanto, que o contexto de desenvolvimento de relações inclui o local onde se passa a interação (ONDE), os múltiplos personagens presentes sob diversas formas (QUEM), o que se desenrola nesse contexto (COMO) e as situações atreladas àquele momento histórico (QUANDO), tudo isto imerso em uma matriz sócio-histórica, marcada principalmente pela cultura (Rossetti-Ferreira et al., 2004).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações interpessoais devem ser consideradas como sistemas de comunicação em desenvolvimento que geram para os participantes significados, alguns com uma base claramente sócio-histórica, que são negociados e produzidos no processo de interação social.

A partir desta perspectiva, a Rede de Significações (Rossetti-Ferreira et al., 2004) vem surgindo como um terreno fértil para a análise dos processos do desenvolvimento humano. Ao se deslocar o enfoque das funções e processos psicológicos do plano individual para o social, trazem-se à tona significados e valores construídos, ou transmitidos, no plano social e histórico, situando-os entre os elementos básicos que constroem as relações, o conhecimento de si mesmo, do outro e dos fenômenos do mundo. A análise do processo de construção da relação entre o bebê e a educadora na creche sob esta ótica, coloca uma tarefa para o psicólogo: cabe a ele acompanhar/(re)significar esse processo. A partir dos relatos que são construídos em suas reuniões com as educadoras e com as famílias, e, respeitando os limites que definem a sua atuação na creche, o psicólogo deve explicitar as angústias, valores e conflitos que os adultos apresentam nas relações em desenvolvimento, muitas vezes sem se darem conta, com o propósito de facilitar a construção de relações saudáveis.

 

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Correspondência

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Leila Sanches de Almeida, UFRJ – Instituto de Psicologia, Rua Sorocaba, 691/205, Botafogo. Rio de Janeiro (RJ), 22271-110, Brasil. E-mail: leilasanches@ufrj.br

 

Submissão: 01/03/2013 Aceitação: 21/03/2014

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