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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.28 n.3 Lisboa set. 2010

 

A experiência de sem-abrigo como promotora de empoderamento psicológico

 

Maria Fernanda de Jesus (*), Isabel Menezes (**)

 

(*)  Estudante de doutoramento na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto; E-mail: maria.fernandesjesus@gmail.com

(**) Professora Associada com Agregação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto; E-mail: imenezes@fpce.up.pt

 

RESUMO

O objectivo deste estudo visa compreender o modo como a experiência de viver sem-abrigo pode ser promotora do empoderamento psicológico. Com base numa metodologia qualitativa entrevistaram-se três homens sem-abrigo com idades compreendidas entre os 25 e os 56 anos. Os resultados sugerem que viver como sem-abrigo pode promover uma maior consciência crítica do ambiente sociopolítico no qual o indivíduo está inserido, uma maior capacidade de resolução de problemas, um sentido de competência pessoal, bem como uma maior capacidade de acesso aos recursos existentes. Mediante estes resultados é discutido o modo como os significados da experiência de viver sem-abrigo podem assumir dimensões psicológicas que parecem ter sido pouco consideradas anteriormente nos estudos realizados com pessoas sem-abrigo.

Palavras chave: Empoderamento psicológico, Pessoas sem-abrigo.

 

ABSTRACT

The main goal of this study is to understand how the experience of homeless people can develop the psychological empowerment. Using a qualitative research methodology, three homeless men with ages between 25 and 56 years old were interviewed. The results suggest that living as a homeless can promote a critical conscience of the sociopolitical environment in which the person lives, develop problems resolution capacities and a sense of self competence, as well as a capacity of access to existing resources. From these results, we discuss how the meanings of the experience of being homeless can involve dimensions that seem not to have been taken in consideration in the past.

Key words: Homeless peoples, Psychological empowerment.

 

INTRODUÇÃO

O número de pessoas a viver em situação de sem-abrigo é cada vez maior, o que parece fundamentar a preocupação, por parte das instituições e do próprio estado, em compreender as causas e os factores que potenciam esta situação, bem como promover estratégias adequadas para lidar com os sem-abrigo. Apesar da preocupação crescente das instituições em solucionar o problema, este número tende a aumentar mesmo nas sociedades com níveis de desenvolvimento socioeconómico mais elevados. Ao longo das últimas décadas, o número de estudos científicos sobre as pessoas sem-abrigo aumentou, e várias têm sido as definições propostas para a caracterização das pessoas sem-abrigo (Roll, Toro, & Ortola, 1999; Toro 2007). Neste sentido, de modo a caracterizar o conceito de sem-abrigo um estudo realizado por Roll, Toro, e Ortola (1999) nos EUA, classificou as pessoas sem-abrigo em três grupos diferentes: homens solteiros, mulheres solteiras e mulheres solteiras com filhos. Os resultados sugerem que os homens solteiros são os que menos mantêm contactos com os seus familiares, bem como os que apresentam taxas de abuso de álcool e droga mais elevadas. Por outro lado, as mulheres solteiras com crianças referem receber mais assistência social do que os restantes, indicado que as políticas de assistência norte-americana dão menos apoios as pessoas sem-abrigo solteiras, sem filhos, e sem historial de consumo de álcool e drogas (Roll, Toro, & Ortola, 1999). Além disso, a pesquisa parece revelar que os dois grupos de mulheres sem-abrigo apresentam níveis mais elevados de depressão, ansiedade e sintomas psicológicos de angústia e tristeza do que os homens solteiros sem-abrigo (Roll, Toro, & Ortola, 1999). Similarmente, Toro, em 2007, caracteriza as pessoas sem-abrigo em três subgrupos: pessoas sem-abrigo adultas e solteiras, famílias sem-abrigo e jovens sem-abrigo. As famílias sem-abrigo tendem a incluir uma mãe solteira com crianças menores que vivem na rua normalmente pelos seguintes motivos: extrema pobreza, perda de determinados benefícios sociais ou materiais, expulsão/despejo e violência doméstica. Os jovens sem-abrigo distinguem-se dos adultos na mesma situação pela sua idade (normalmente inferior a 21 anos) e das crianças sem-abrigo (que se encontram com a família nesta situação) porque estão sem os familiares. Normalmente caracterizam-se por serem fugitivos, porque abandonaram a casa sem autorização dos pais, foram postos fora de casa pelos pais, ou então sempre viveram na rua desde a infância (Toro, 2007).

Estes estudos (Roll, Toro, & Ortola, 1999; Toro, 2007) parecem sugerir a existência de diferenças em termos de etiologia dos sem-abrigo, o que leva os autores a considerar uma teoria baseada na vivência subjectiva da condição de sem-abrigo. Esta teoria postula que as causas que levam à condição de sem-abrigo são variáveis e multifactoriais e que a própria forma de vivenciar esta experiência pode variar de sem-abrigo para sem-abrigo, o que vai de encontro com algumas pesquisas recentes que consideram, na definição das causas para a condição de sem-abrigo, a subjectividade inerente a esta experiência. Um conjunto de estudos desenvolvidos essencialmente nos Estados Unidos e no Cánada (Goering, Tolomiczenko, Sheldon, Boydell, & Wasylenki, 2002; Roll, Toro, & Ortola, 1999; Toro, 2005, 2007) reforça esta teoria, ao sugerir que as causas, para as pessoas viverem como sem-abrigo, tendem a ser variáveis e potenciadas por diferentes e diversos factores, sugerindo uma complexidade das interacções entre o sistema pessoal do sujeito e o contexto social, económico e político no qual está inserido (Toro, Trickett, Wall, & Salem, 1991).

Contudo, apesar de algumas pesquisas recentes, a maioria dos autores continuam a sugerir que as desordens psiquiátricas e o abuso de álcool e drogas são os principais responsáveis pela situação de sem-abrigo (Gelberg & Linn, 1989; Phelan & Bruce, 1999).

Em contexto europeu a a FEANTSA – Federação Europeia de Associações que Trabalham com os Sem-Abrigo tem vindo a desenvolver vários estudos nos últimos anos, propondo que este termo se reporta não só às pessoas que se encontram a viver em espaços púbicos e que como tal são obrigados a passar muitas horas do seu dia num espaço público (sem-tecto), mas também a todos aqueles que vivem em condições habitacionais precárias, que estão em risco de serem despejados, que se encontram a viver em pensões, abrigos e albergues (FEANTSA, 2005). Esta definição parece ir de encontro à terminologia utilizada pelos Estados Unidos para caracterizar as pessoas sem-abrigo, pois inclui no grupo das pessoas sem-abrigo não só àquelas que vivem na rua, mas também as que correm o risco de o vir a fazer.

A FEANTSA ao definir sem-abrigo, refere também que este termo reporta-se àquela pessoa que é incapaz de aceder e manter uma forma de viver adequada através dos seus próprios meios, ou é incapaz de manter um modo de lidar com as dificuldades mesmo com a ajuda dos serviços sociais (Philippot, Lecocq, Sempoux, Nachtergael, & Galand, 2007). Ora, esta definição enfatiza a vertente mais improdutiva das pessoas sem-abrigo, acentua os seus défices e incapacidades e desvaloriza a influência e interacção de outros factores. A par desta visão reducionista, por parte dos estudos realizados até então, as próprias políticas interventivas das instituições que lidam com as pessoas sem-abrigo são orientadas, na maior parte das vezes, por uma lógica de política de urgência (Branco, 2004), que tende a definir como prioritário na sua intervenção a satisfação das necessidades básicas (e.g., fome, sede) desvalorizando que existem outras necessidades (e.g., qualificação e formação profissional, promoção de sentido de autonomia e auto-eficácia) que quando satisfeitas poderão por si mesmas facilitar a satisfação de necessidades primárias. Esta visão limita a compreensão deste problema social e consequentemente as próprias estratégias de intervenção que são definidas pelas instituições/ associações que lidam com as pessoas sem-abrigo. Sugere-se então, que as políticas de intervenção nas situações de sem-abrigo deveriam assentar numa lógica de promoção do empoderamento e não numa lógica de assistencialismo.

 

O empoderamento

O empoderamento é o processo pelo qual os indivíduos ganham mestria ou controlo sobre as suas vidas, autonomamente acedem aos recursos da comunidade e participam democrática e activamente na vida da sua comunidade (Zimmerman, 1990a,b).

O empoderamento pode ser analisado consoante 3 níveis distintos de análise (comunitário, organizacional e psicológico), que são influenciados e se influenciam mutuamente. O empoderamento comunitário envolve todo o comportamento colectivo desenvolvido no sentido de favorecer uma maior qualidade de vida dos membros da comunidade. O empoderamento organizacional refere-se à forma como as instituições e organizações das comunidades tendem a proporcionar aos seus membros recursos e bens de qualidade e a promover uma participação activa de todos os elementos nas tomadas de decisão e na definição das políticas da organização. Por último importa descrever o empoderamento psicológico que é o nível de análise individual considerado neste estudo, apesar de se assumir que ambos os níveis são influenciados e influenciam-se mutuamente. Este nível de análise remete para a percepção de controlo da vida, para uma atitude pró-activa na vida e uma compreensão crítica do ambiente sociopolítico (Zimmerman, 1995).

O nível de análise psicológico implica 3 componentes: uma componente intrapessoal que inclui variáveis de personalidade (locus de controlo), cognitivas (autoeficácia) e motivacionais; uma componente interaccional, que integra a forma como as pessoas utilizam as suas competências para influenciar os seus ambientes e aceder aos recursos; e uma componente comportamental, ou seja, à acção de exercer controlo na participação activa das actividades das suas comunidades (Zimmerman, 1995).

Ao considerar, o carácter dinâmico e variável do empoderamento (Zimmerman, 1995), e ao assumir que o indivíduo é capaz de desenvolver um sentido de controlo e mestria na sua vida, aprender a utilizar competências para influenciar os acontecimentos da vida, isto é, que o indivíduo é capaz de se tornar empoderado mesmo nos ambientes que parecem menos favoráveis (Rappaport, 1981), sugere-se que viver numa condição de sem-abrigo pode contribuir para o desenvolvimento do empoderamento psicológico. O presente estudo teve como objectivo compreender o modo como a experiência de viver sem-abrigo pode potenciar o empoderamento psicológico.

 

MÉTODO

De modo a aceder às percepções e vivências subjectivas das pessoas sem-abrigo, desenvolveu-se um estudo de metodologia qualitativa.

Dentro da metodologia qualitativa, optou-se, por uma entrevista de episódio, que assenta no pressuposto que as experiências dos sujeitos em determinado momento são armazenadas e recordadas na forma de conhecimento semântico e de narração de episódios (Flick, 2005). O objectivo foi aceder às experiências das pessoas que passaram pela situação de sem-abrigo através da realização de entrevistas. Depois de realizadas as entrevistas e da sua respectiva transcrição estas foram alvo de um processo de análise de conteúdo. Optou-se por uma análise de conteúdo segundo um processo de categorização, de modo a aceder ao conteúdo semântico dos documentos analisados e representar de forma simplificada os dados obtidos com as entrevistas (Bardin, 2004). Depois de estarem definidas as unidades de registo, procedeu-se, a uma definição de categorias e subcategorias, baseadas nos temas (palavras, frases, várias frases, etc.). Esta definição de categorias baseou-se nos objectivos da investigação e nas narrativas dos sujeitos.

 

Caracterização das pessoas sem-abrigo entrevistadas

Para a realização do estudo, foram entrevistadas 2 pessoas que se encontram a viver nas ruas da cidade do Porto, outra pessoa que viveu como sem-abrigo durante 4 meses e meio, mas que entretanto passou a viver numa pensão. Teve-se o cuidado de seleccionar três pessoas que não apresentassem historial de abuso de álcool e outras drogas uma vez que esta é uma variável relevante na experiência de viver sem-abrigo, que não se pretendia contemplar no estudo. Assim, o grupo foi constituído por três indivíduos do sexo masculino aos quais se deu os seguintes nomes fictícios: João, António e Alberto.

João com 45 anos, encontra-se a viver na rua desde 2004. É natural do Alentejo e veio para o Porto há poucos anos, por motivos de trabalho. Em termos profissionais, desde os 20 anos que entrou no mundo da comunicação social e sempre trabalhou nessa área, até o ano de 2004, data em que fica desempregado e passa a viver na rua. Já a viver numa condição de sem-abrigo, começou a organizar o Movimento de Apoio ao Sem-Abrigo (MASA), que consiste num movimento constituído por pessoas que estiveram ou estão a viver na rua. Um dos primeiros projectos deste movimento, organizado por um grupo de 6 pessoas sem-abrigo, é apoiar um jovem casal sem-abrigo prestes a ter um filho. Neste sentido,

o MASA tem desenvolvido campanhas de recolha de bens e de dinheiro para garantir a sobrevivência do casal e do filho até o casal encontrar emprego. Até a data da realização deste estudo, o MASA tinha feito manifestações silenciosas com vista a mostrar a indignação das pessoas sem-abrigo pela sua realidade e conseguir apoios para implementar os projectos idealizados.

António tem 25 anos e encontra-se na rua há 6 meses, contudo já anteriormente viveu na rua, durante dois anos: entre 12 aos 14 anos, altura em que a sua mãe faleceu. Aos 14 anos foi viver para um internato, onde completou a escolaridade obrigatória e posteriormente fez um curso profissional. António conta que durante alguns anos trabalhou na área de hotelaria e restauração, contudo foi despedido e como não podia pagar a renda da casa foi viver para a rua. Tal como o João, também António faz parte do grupo de trabalho do MASA e acredita que este movimento vai tirar muitas pessoas da rua.

Por último, foi entrevistado o Alberto que tem 52 anos e viveu nas ruas da cidade do Porto durante 4 meses e meio, até Maio de 2007, altura em que passa a frequentar um curso de Educação e Formação de Adultos (EFA) de Jardinagem e a viver numa pensão paga pela Segurança Social. Refere que nunca teve dificuldade em arranjar emprego até ao momento em que ficou desempregado em 2006. Nesta altura, não teve outra alternativa senão viver na rua, pois apesar de ter familiares a quem pedir ajuda, considera que estes não tinham qualquer responsabilidade de o ajudar.

 

RESULTADOS

Os resultados derivam de uma análise de conteúdo aos documentos consequentes da transcrição integral das entrevistas realizadas. Seguidamente, descreve-se algumas das categorias e subcategorias e incluem-se fragmentos de transcrições que possam exemplificar e clarificar os resultados obtidos em termos das variáveis de empoderamento.

 

Categoria: Experiência de viver sem-abrigo

Esta categoria divide-se em dois subcategorias, sendo que a primeira é relativa aos aspectos positivos e negativos resultantes da vivência da experiência de sem-abrigo e segunda que diz respeito à percepção das pessoas sem-abrigo sobre as instituições.

 

Subcategoria: Aspectos positivos e negativos da experiência de viver sem-abrigo

Todas as pessoas sem-abrigo entrevistadas apontam espontaneamente alguns aspectos positivos e negativos desta experiência, o que parece sugerir que a própria experiência de viver sem-abrigo pode ser encarada como positiva ou negativa dependendo dos significados atribuídos pela pessoa sem-abrigo.

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Aspectos positivos:

João          “A nossa liberdade é tal que não temos regras, ninguém nos chateia, os patrões não nos enchem a cabeça. Nós voamos para onde queremos.”

António     “Aprendi que temos que nos ajudar uns aos outros, encarar as pessoas que estão na rua de outra forma, e sempre que vir alguém a tratar mal os sem-abrigo intervirei...”

Alberto      “Aprendi a lutar pelos meus objectivos, independentemente de arranjar emprego agora, vou acabar o curso. A minha meta é acabar o curso, depois logo vejo o que consigo”.

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Aspectos negativos:

João          “O mais negativo é as pessoas, nós somos roubados: não temos nada mas roubam-nos o nada que nós temos”.

António     “O que gosto menos é que é muito difícil encarar o resto da população...”

Alberto      “Esta experiência tem um aspecto negativo: pela situação em que cheguei.”

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Subcategoria: Percepção das instituições

A seguinte subcategoria seguinte pretende aceder à visão acerca das instituições que lidam com os sem-abrigo, por parte das pessoas entrevistas. Apenas o discurso de João revela a presença de uma percepção crítica elevada acerca do modo de funcionamento das instituições que lidam com os sem-abrigo.

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Percepção das instituições:

João          “Eu não tenho medo de dizer que as instituições não funcionam: uma X...; uma Y..., etc., essas associações fantasmas, que exploram os sem-abrigo, roubam-nos. Sabe, que por exemplo a X recebe um subsídio para cada sem-abrigo. Mas diga-me qual será o futuro de uma pessoa que entra para a associação e que trabalha gratuitamente para a associação. Acha que algum dia sairá da associação? Nunca sai, só se fugir de lá. Conheço muitas pessoas que saem da instituição muito piores do que entraram. São muito exploradas, estas situações têm que ser desmacaradas, temos a nossa formação, nós somos pessoas, podemos estar frágeis, mas pensamos, estamos vivos, temos que exigir o nosso respeito!”

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Categoria: Resultados empoderados

A categoria resultados empoderados pretende retratar o modo como a experiência de viver sem-abrigo pode promover o empoderamento psicológico. Foi subdividida em 4 subcategorias que pretendem representar índices de empoderamento.

 

Subcategoria: Percepção de competência e de controlo da própria vida

A subcategoria percepção de competência e de controlo da própria vida refere-se ao modo como os indivíduos se sentem auto-eficazes e revelam uma percepção de controlo da sua própria vida. As três pessoas sem-abrigo entrevistadas demonstram uma percepção de controlo nas diversas situações, essencialmente no que diz respeito a deixar ou continuar a viver como sem abrigo.

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Percepção de competência e controlo da própria vida:

João          “Mas não eu agora não quero sair de cá. Enquanto eu não cumprir esta missão eu não saio. (...) mas por maior qualidade de vida que eu venha a ter, nunca vou deixar os sem-abrigo, com acções, com movimentos... eu sinto que faço cá falta!”

António     “Eu tenho força de vontade... sei que um dia vou deixar de ser sem-abrigo.”

Alberto      “Eu consegui sair da rua porque também quis sair.”

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Subcategoria: Competências de resolução de problemas

Esta subcategoria pretende descrever o modo como os sujeitos resolvem problemas com os quais se deparam (ou depararam) durante a fase em que viveram como sem-abrigo. João refere que teve que aprender a lidar com tudo de novo e nascer para outro mundo. António apresenta uma situação em que refere que foi capaz de resolver determinado conflito interpessoal. Por último, Alberto explica uma situação em que foi trabalhar para Espanha, numa situação muito precária, acrescentado ter conseguido arranjar um modo de se vir embora (o que se considera revelador da sua capacidade de resolução de problemas). O MASA (Movimento de Apoio ao Sem-Abrigo) surge como uma tentativa de delinear, estruturar e implementar estratégias no sentido de resolver os problemas dos sem-abrigo.

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Competências de Resolução de Problemas:

João          “(...) Não é fácil, leva um tempo para se integrar neste mundo. Aprendi a passar fome, a vestir roupa que não era minha, a viver sem dinheiro.”

“O MASA vai arranjar um programa que achamos viável, para retirar as pessoas da rua.”

António     “Há dias houve um conflito entre o João e outro rapaz e eu aconselhei esse rapaz a sair daquele local, para não haver chatices. Nós estamos num sítio em que todos nós temos que contribuir para manter a limpeza daquilo, e ele era daqueles que não queria nada, que só trazia lixo para o local.”

Alberto      Entretanto vim-me embora. Disse que precisava de vir cá, durante alguns dias (era Páscoa), para fazer contas... deram-me 120 euros, e disseram que depois davam-me o resto... até hoje! Porque eu depois também não voltei, claro, já era esse o objectivo. E consegui... quando cheguei ao Porto, fiquei na rua, quer dizer nos primeiros 5 dias, como tinha dinheiro fui para uma pensão. Depois fui para a rua... eu já sabia que ia fica na rua, só que pronto

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Subcategoria: Capacidade de aceder aos recursos existentes

A subcategoria aceder aos recursos pretende mostrar como é que as pessoas sem-abrigo entrevistadas acedem aos recursos da sociedade. António e Alberto fazem referência à segurança social e aos serviços prestados por esta entidade às pessoas em situação de sem-abrigo. Os três homens entrevistados, descrevem situações em que revelam capacidade de aceder aos recursos e oportunidades facultadas pela sociedade.

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Capacidade de aceder aos recursos:

João          “É uma dificuldade enorme pedir ajuda; chegar a uma carrinha e pedir uma sandes: cabeça baixa, vergonha. Tive que ultrapassar estas dificuldades. Não sabia por exemplo que havia instituições como a Cruz Vermelha Portuguesa que davam roupa, não sabia”

António     “Todas as segundas-feiras vou ao centro de emprego”.

Alberto      “(...) Portanto, fui à segurança social, e consegui um quarto.”

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Subcategoria: Crítica ao meio social

Esta subcategoria remete para o modo como as pessoas entrevistadas se posicionam criticamente face ao meio social e político em que estão inseridos. Pode-se verificar presente esta categoria essencialmente no discurso de João, que apresenta argumentos concretos, para justificar a sua posição face ao modo de actuação das instituições.

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Crítica à sociedade e ao meio envolvente:

João          “Conheço alguns canis no país, e os cães são melhor tratados do que nós. É preciso pagar: 30 cêntimos para tomar banho sem toalha; 1.16 euros para tomar banho; e 0.16 cêntimos para utilizar a sanita (...) A exclusão social começa nas autarquias, eles é que deviam olhar para este problema.”

António     “(...) É isso que eu acho, às vezes, essas pessoas para manter esses vícios roubam todos os outros, não olham a meios. Não acho isso bem!”

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DISCUSSÃO

Tendo em conta os resultados obtidos, considera-se que este estudo vem acrescentar algumas dimensões, pouco consideradas até então nos estudos realizados com pessoas sem-abrigo, nomeadamente uma maior compreensão do significado da experiência de viver enquanto sem-abrigo e o modo como esta experiência pode transformar o sujeito implicado nela. Parece que as experiências enquanto sem-abrigo são vivenciadas pelas pessoas entrevistadas como uma oportunidade para se desenvolverem e aumentarem a percepção de controlo sobre a própria vida. Como se pode verificar através dos resultados, todos os sujeitos entrevistados parecem considerar que o facto de viverem na rua, ou de terem estado, contribuiu para o desenvolvimento de determinadas competências, que não seriam desenvolvidas caso não estivessem numa condição de sem-abrigo. Assim, apesar da experiência de viver sem-abrigo ser vista como uma situação em que os indivíduos se sentem injustiçados e discriminados pela sociedade, é também encarada como positiva e potenciadora do desenvolvimento de determinados competências. No sentido destas conclusões refira-se um estudo realizado com mulheres sem-abrigo que concluiu que as pessoas que passaram pela experiência de viver como sem-abrigo percepcionam aqueles momentos como muito difíceis, mas como um factor que contribuiu para o desenvolvimento de uma percepção de si mais positiva (Boydell, Goering, & Morrell-Bellai, 2000). Assim, estes resultados parecem sugerir que o indivíduo pode fortalecer-se e tornar-se mais resiliente perante acontecimentos destabilizadores e aumentar os seus níveis de empoderamento psicológico. No que diz respeito ao modo como os sujeitos percepcionam o sentido de competência pessoal, parece encontrar-se outros sinais de empoderamento psicológico. Refira-se o caso de António e Alberto que consideram que o acto de sair da rua depende sobretudo da motivação para o fazer, o que parece sugerir um sentido de controlo dos acontecimentos exteriores.

Por outro lado, verifica-se que as pessoas a viver como sem-abrigo que foram entrevistadas aludem a uma necessidade de aprender a lidar com situações novas para as quais não estavam anteriormente preparadas, o que parece ir de encontro ao pressuposto de que as pessoas sem-abrigo para sobreviverem nesta situação e contexto têm de desenvolver uma série de competências de resolução de problemas. Segundo Silva (2007), nas sociedades desenvolvidas as pessoas não aprendem a viver na rua quando nascem e da mesma forma os espaços públicos e exteriores não foram concebidos para alojar pessoas, o que sugere que quem passa por uma situação do género tem, inevitavelmente, de passar por um processo de aprendizagem e de desenvolvimento de novas competências o que pode implicar incremento do sentido de empoderamento. Directamente relacionado com a capacidade de resolução de problemas encontra-se a capacidade de aceder aos recursos existentes na sociedade na qual estão inseridos. Neste estudo, as pessoas entrevistadas aludem aos serviços e referem-se à capacidade de adaptação que sentiram perante a necessidade de pedir roupa e comida nas carrinhas de apoio às pessoas sem-abrigo. Esta capacidade de adaptação sugere empoderamento psicológico, no sentido em que revela capacidade de mobilização e acesso aos recursos existentes no meio e contexto no qual o sujeito está inserido (Zimmerman, 1995). Além disso, em João parece ser evidente (mais do que em António e Alberto) uma grande capacidade de crítica, quer positiva quer negativa, relativamente às instituições e ao meio sociopolítico, o que remete para a dimensão interaccional do empoderamento psicológico.

Considerando a construção e implementação de um Movimento de Apoio ao Sem-Abrigo (MASA), por parte das próprias pessoas sem-abrigo, uma capacidade no desenvolvimento de soluções e estratégias para a resolução de problemas o MASA sugere um nível elevado de empoderamento psicológico (Zimmerman, 1995) por parte de João e António. Pois, pode-se considerar que as pessoas sem-abrigo entrevistadas estão a lutar para compreender e para agir nos contextos, participando activamente nas decisões da comunidade na qual estão inseridos. Por outro lado, parece então que o conhecimento sobre determinada realidade pode resultar de pessoas que não os profissionais, e uma compreensão mais profunda de uma realidade deve advir da percepção daqueles que nela vivem. Este facto, parece ser uma limitação das instituições que trabalham com as pessoas sem-abrigo e do próprio governo que parece, em alguns países, não ter nenhum plano para lidar com os sem-abrigo (Toro & Warren, 1991). As instituições que lidam com as pessoas sem-abrigo, deveriam envolvê-las na elaboração de projectos no sentido de resolução dos seus próprios problemas (Toro & Warren, 1991). O MASA parece ter este ideal subjacente, pois quem elaborou este projecto de intervenção foram as próprias pessoas sem-abrigo, sem o apoio de profissionais ou das instituições. Vários projectos nos Estados Unidos, revelam que a colaboração das pessoas sem-abrigo na elaboração de alternativas para os seus problemas tende a favorecer o seu empoderamento psicológico e uma resolução mais eficaz da condição de sem-abrigo (Toro & Warren, 1991).

Tendo em conta os resultados, pode-se então concluir que viver como sem-abrigo não implica que estas pessoas revelem apenas défices e incapacidades, podendo as pessoas sem-abrigo revelarem sinais de empoderamento psicológico (Hopson & Scally, 1981).

Apesar das conclusões evidentes, este estudo apresenta algumas limitações do ponto de vista do tamanho e representatividade do grupo de pessoas entrevistadas, pois sendo um grupo muito específico, não consumidor de álcool e outras drogas, e pequeno que manifesta características e percursos de vida não representativos de todos os grupos de pessoas sem-abrigo. Não obstante, pretende-se com este estudo que se passe a considerar as próprias pessoas sem-abrigo na definição de estratégias de resolução dos seus problemas, assim como em qualquer intervenção comunitária, pois se o alvo de intervenção se considerar parte envolvente do projecto, a eficácia deste certamente será maior, tornando as pessoas mais empoderadas. O MASA tem este ideal subjacente e poderia ser o princípio de uma solução para os problemas das pessoas sem-abrigo. Para tal é necessário que profissionais, instituições e Estado procurem compreender a leitura desta experiência, do ponto de vista de quem a viveu e alicerçar as suas políticas intervencionistas nos pressupostos da intervenção comunitária, fazendo dos próprios alvos de intervenção, agentes activos na elaboração do projecto de intervenção (Montero, 2004).

 

REFERÊNCIAS

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