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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.124 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.18055/finis33472 

Artigo

Mapeamento participativo das relações interseccionais de gênero em contexto escolar: a experiência de três escolas na cidade de Lisboa

Participatory mapping of intersectional gender relations in the school context: the experience of three schools in the city of Lisbon

El mapeo participativo de las relaciones interseccionales de género en el contexto escolar: la experiencia de tres escuelas en la ciudad de Lisboa

Ana Carolina Ferraz dos Santos1 
http://orcid.org/0009-0005-1898-9819

Dália Maria de Sousa Gonçalves da Costa2 
http://orcid.org/0000-0001-5184-3487

Margarida Queirós3  4 
http://orcid.org/0000-0001-6843-6861

1 Centro Federal da Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rua Miguel Ângelo, 20785-220, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: ana.ferraz@cefet-rj.br

2 Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. E-mail: daliacosta@iscsp.ulisboa.pt

3 Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. E-mail: margaridav@campus.ul.pt

4 Laboratório Associado Terra, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.


Resumo

Analisar o espaço escolar sob uma perspetiva interseccional de gênero implica ir além da sua abordagem enquanto contexto de interação entre crianças e jovens, reconhecendo que o espaço e as identidades sociais se constituem mutuamente. Por outras palavras, o espaço é um reflexo das relações de poder hegemônicas e, simultaneamente, a sua conceção e vivência perpetuam diversas formas de desigualdade. Neste artigo aborda-se a escola a partir de uma perspetiva interseccional, colocando a dimensão espacial no centro das análises da pluralidade de modos com que alunos e alunas ocupam e experienciam diferentes lugares. As experiências de estudantes e as suas vivências no espaço escolar são captadas e compreendidas com recurso ao mapeamento participativo como metodologia de análise, aplicando-a em três agrupamentos escolares localizados na cidade de Lisboa, em Portugal. Os resultados demonstraram as vantagens da metodologia na análise da pluralidade de masculinidades e feminilidades na escola, revelando como o gênero e a origem nacional são relevantes para a compreensão da maneira como os grupos de estudantes criam uma identidade distinta e são identificados. O mapeamento participativo também se revela uma metodologia adequada para analisar os processos de interação entre estudantes de diferentes nacionalidades e o papel desses processos na formação de dinâmicas socioespaciais na escola, através de três mecanismos: laterização cultural, guetização do espaço escolar e ocupação periférica do campo de jogos pelas alunas.

Palavras-chave: Relações de gênero; espaço escolar; mapeamento participativo; interseccionalidade; dinâmicas socioespaciais

Abstract

Analyzing the school space from an intersectional gender perspective implies going beyond its approach as a context of interaction between children and young people, recognizing that space and social identities are mutually constituted. In other words, space reflects hegemonic power relations and, simultaneously, its conception and experience perpetuate various forms of inequality. This article approaches school, from an intersectional perspective, placing the spatial dimension at the center of analyzes of the plurality of ways in which students occupy and experience different places. The experiences of students and their experiences in the school space are captured and understood using participatory mapping as an analysis methodology, applied, to three school groups located in the city of Lisbon, in Portugal. The results reveal the advantages of the methodology in analyzing the plurality of masculinities and femininities at school, revealing how gender and national origin are relevant to understanding the way in which groups of students create a distinct identity and are identified. Participatory mapping also proves to be an appropriate methodology for analyzing interaction processes between students of different nationalities and the role of these processes in the formation of socio-spatial dynamics at school, through three mechanisms: cultural laterization, the ghettoization of the school space and the peripheral occupation of the sports court by the feminine students.

Keywords: Gender relations; school space; participatory mapping; intersectionality; socio-spatial dynamics

Resumen

Analizar el espacio escolar desde una perspectiva interseccional de género implica ir más allá de su enfoque como contexto de interacción entre niños y jóvenes, reconociendo que el espacio y las identidades sociales se constituyen mutuamente, es decir, el espacio es un reflejo de las relaciones de poder hegemónicas y, simultáneamente, de su concepción y la experiencia perpetúan diversas formas de desigualdades. De esta manera, este artículo pretende abordar la escuela desde una perspectiva interseccional de género, colocando la dimensión espacial en el centro de los análisis de la pluralidad de formas en que alumnos y alumnas ocupan y experimentan sus diferentes lugares. Con el fin de valorar las perspectivas de los estudiantes sobre sus propias experiencias en el espacio escolar, se presenta el mapeo participativo como una herramienta de investigación, habiendo sido aplicado en tres grupos escolares ubicados en la ciudad de Lisboa, en Portugal. Los resultados obtenidos a través de este instrumento permiten realizar un análisis respecto de la pluralidad de masculinidades y feminidades existentes en la escuela, cuyos marcadores de género y origen nacional son relevantes para comprender la forma en que se identifican los diferentes grupos de estudiantes. También se discute cómo se produce la interacción entre diferentes nacionalidades y su papel en la dinámica socio espacial en la escuela a partir de tres procesos: la laterización cultural, la guetización del espacio escolar y la ocupación periférica del patio de recreo por parte de las estudiantes.

Palavras clave: Relaciones de género; espacio escolar; mapeo participativo; interseccionalidad; dinámica socio espacial

I. Introdução

A cartografia participativa permite desenvolver uma linguagem territorial, construída de forma participada e assente em visões partilhadas, por pessoas que usam espaços sem que lhes seja dada oportunidade de os questionarem nas hierarquias de poder que integram, e, desse modo, os ressignificarem (e.g., Halder et al., 2018). Considerar o uso e ocupação do espaço escolar por alunos e alunas e atribuir importância às experiências nele descritas pelos/as próprios/as é a proposta metodológica para compreender relações e papéis de gênero, as suas hierarquias e possibilidades de subversão.

A escola é um espaço de encontro quotidiano entre sujeitos que carregam consigo identidades múltiplas, cujos corpos já se inscrevem como plurais e interseccionais (Silva, 2014). Assim, ao considerar que categorias como gênero, nacionalidade, origem étnico-racial, classe, entre outras, são inter-relacionadas e se moldam mutuamente, a interseccionalidade* - termo cunhado por Crenshaw (1989) - apresenta-se como ferramenta analítica útil para a abordagem de como as representações de gênero, em suas diversas articulações com outros elementos identitários, podem influenciar a vivência quotidiana de alunos e alunas no espaço escolar e produzir experiências muito diversas.

O espaço escolar revela-se particularmente interessante para a aplicação do mapeamento participativo enquanto estratégia de investigação das relações interseccionais de gênero por três razões. A primeira é a singularidade do território, na articulação entre o macrossocial e o microssocial, respetivamente, as dimensões socioestrutural onde opera a ordem de gênero e a das interações no quotidiano (Connell & Pearse, 2015). Assim, o mapeamento participativo enquanto metodologia favorece uma compreensão do espaço escolar para além de mero contexto para a observação das interações entre crianças e jovens. A segunda razão é de ordem organizacional e relaciona-se com a possibilidade de identificar, reconhecer e tomar consciência acerca do processo de constituição mútua entre o espaço e as identidades sociais (Massey, 1999; Mitchell, 2000; Valentine, 2001), incorporando o espaço enquanto reflexo das relações de poder e hierarquia de desigualdades, por um lado, e, por outro lado, tomando consciência de que a maneira como o espaço é vivenciado contribui para a perpetuação das diversas formas de desigualdade subjacentes ao modo como foi construído. A terceira razão é de ordem individual e está relacionada com a constituição identitária e a importância assumida por esse processo na fase da vida identificada como juventude (Dayrell, 2003; Ferreira, 2011).

Estas três razões também suportam o pressuposto de que o contexto e o espaço escolar não correspondem a um cenário passivo nem inócuo onde se processam as relações sociais na juventude, o que justifica a importância de colocar a dimensão espacial como o centro da investigação das relações interseccionais de gênero em contexto escolar, traçando linhas de análise a partir do espaço e não apenas utilizando o espaço, conforme colocado por Marques (2013, p. 7). Face a isto, é significativo direcionar um olhar cuidadoso para os diversos lugares que compõem a escola, como as salas de aula, casas de banho, biblioteca e campo de jogos, dado a diversidade de vivências e formas de uso e ocupação desses espaços por estudantes. Dar atenção específica à forma como os/as estudantes ocupam o espaço escolar pode ser um contributo importante para desvelar e aprofundar a polissemia da escola (Dayrell, 1996).

Para tal, é necessário o emprego de instrumentos metodológicos capazes de valorizar as perspectivas de estudantes acerca de suas vivências no espaço escolar, tornando os alunos e alunas protagonistas na representação de suas próprias espacialidades. Através da participação dos/das protagonistas da ação, é possível afastarmo-nos de uma lógica adultocêntrica e relevar o poder e a agência dos/das jovens, enquanto sujeitos produtores de conhecimentos, com capacidade reflexiva e crítica em relação ao que aparentemente lhes é “dado”. Este artigo apresenta o mapeamento participativo enquanto ferramenta metodológica capaz de alcançar esse objetivo.

As imagens cartográficas são parte cada vez mais intensa da multiplicidade que compõe o espaço atual e têm grande importância no modo como pensamos e agimos, no modo como imaginamos o espaço e configuramos a dimensão espacial de nossa existência (Massey, 2008). No final do século XX, o mapeamento participativo trouxe à tona a proposta de incluir populações locais nos processos de produção de mapas, assumindo os territórios como construção social continuamente definida e redefinida com base nos significados e usos que os seus habitantes e utilizadores elaboram diariamente (Carballeda, 2017).

Este artigo aborda o mapeamento participativo como um instrumento de investigação da pluralidade de modos como os alunos e alunas experienciam e percecionam o espaço escolar, possibilitando compreender como o gênero, na sua intersecção com outros elementos identitários, se destacam no entendimento dessas experiências. Começa por se explicar o estudo empírico para mais facilmente se evidenciar as potencialidades do mapeamento participativo.

II. Contextualização das oficinas de mapeamento participativo do espaço escolar

O estudo empírico foi desenvolvido em três agrupamentos de escolas na cidade de Lisboa, Portugal, no ano letivo de 2019/2020. Os agrupamentos de escolas são unidades organizacionais que integram a educação pré-escolar (jardim infantil, para crianças a partir dos três anos de idade) e escolas de diversos ciclos de ensino, visando aumentar a coerência de um projeto educativo. Estas unidades organizacionais são geograficamente próximas, podendo uma cidade ter mais do que um agrupamento de escolas, como se verifica em Lisboa.

Dos três agrupamentos de escolas que serviram de teste para a metodologia do mapeamento participativo foram envolvidas três escolas, uma de cada agrupamento. Depois, em cada uma das escolas, foram efetuadas oficinas de mapeamento participativo do espaço escolar com perspetiva de gênero. Este processo foi desenvolvido no âmbito do projeto Ser Humano - Itinerário para a Igualdade de Gênero, aprovado pelo Programa BIP/ZIP** edição 2019 e financiado pela Câmara Municipal de Lisboa. O projeto, mais abrangente e autônomo, buscou valorizar o espaço escolar enquanto dimensão da promoção da igualdade de gênero. Os três agrupamentos escolares constituíram-se enquanto entidades parceiras no projeto, facilitando o acesso e a participação dos/das alunos/as. As três instituições de ensino em que as oficinas decorreram caraterizam-se por terem estudantes de territórios BIP/ZIP, assim designados por serem marcados por fortes desarticulações urbanísticas associadas a problemáticas sociais. Duas das escolas fazem parte do Programa TEIP - Territórios Educativos de Intervenção Prioritária***. Estas caraterísticas das comunidades em que as escolas se situam espelham-se nas suas dinâmicas internas, e, ao mesmo tempo, espelham a caraterísticas globais dos agregados familiares das crianças que ali estudam, nomeadamente o cruzamento entre a vulnerabilidade econômica, a falta de condições habitacionais e/ou o isolamento ou afastamento face ao espaço urbano central, e a origem cultural da família, pais, avós ou gerações anteriores não ser portuguesa - com representatividade de nacionais de países africanos de expressão portuguesa. O contexto de inserção territorial torna as escolas em questão um importante lócus de investigação empírica, uma vez que se cruzam elementos identitários presentes e pretéritos, afetando a noção de pertença espacial de um indivíduo, seja no bairro, seja na escola, e a identidade, de gênero, mas não só, implicando que se adote uma perspectiva interseccional, em que gênero, raça e etnia, pertença familiar e comunitária se cruzam.

As oficinas de mapeamento participativo abrangeram diretamente 263 estudantes pertencentes ao 8º ano do Ensino Básico e aos 10º e 11º anos do Ensino Secundário. Como forma de preservar a confidencialidade e o anonimato dos sujeitos implicados neste trabalho, são utilizadas ao longo do texto as seguintes indicações como referência aos agrupamentos escolares: PP, OL e GV.

A proposta metodológica foi apresentada às turmas na oitava sessão do projeto Ser Humano, que ocorreu entre fevereiro e março de 2020. Portanto, nessa fase já se tinha estabelecido um relacionamento de confiança com os/as estudantes e desenvolvido um conjunto de reflexões relacionadas com a igualdade de gênero, nomeadamente envolvendo as suas vivências no espaço escolar, com o propósito de preparação das oficinas de mapeamento.

Descrevendo o processo com mais detalhe, as oficinas de mapeamento participativo tiveram início com questionamentos de ordem genérica acerca da cartografia, como: “O que é um mapa?” “Para que serve?”, “Como é elaborado?” e “Quem o(s) produz?”. Para além destas, foram suscitadas também questões referentes às possíveis conexões entre um mapa e a temática da igualdade de gênero, a partir da apresentação de exemplos da aplicação da cartografia nos estudos de gênero. Esta abordagem englobou a análise de elementos cartográficos fundamentais, como o título, escala, legenda, bem como a exploração de diversos símbolos e tipologias de mapas.

Seguidamente, ressaltou-se a importância daquele momento, em que os alunos e alunas seriam os protagonistas da construção dos seus próprios mapas retratando as suas espacialidades na escola. O processo de mapeamento participativo da escola numa perspetiva de gênero partiu da seguinte pergunta: o que gostavas de deixar registado num mapa sobre as vivências e experiências de rapazes e raparigas na vossa escola? Esta pergunta foi propositadamente ampla e genérica, de maneira que os e as estudantes pudessem representar nos mapas os temas que emergissem como mais relevantes acerca de sua relação com a escola.

A operacionalização da oficina que aqui se descreveu sumariamente teve como referência manuais e guias metodológicos de aplicação deste instrumento (Flavelle, 2002; Risler & Ares, 2013) e está sintetizada no quadro I.

Quadro I Operacionalização da oficina de mapeamento participativo do espaço escolar. 

PERGUNTA DE PARTIDA O que gostavas de deixar registado em um mapa sobre as vivências e experiências de rapazes e raparigas na vossa escola?
ETAPA O QUE FAZER? EXPLICAÇÃO
1 Definir a informação e o grupo que será mapeado. Decide o que e quem desejas representar no mapa.
2 Desenhar um mapa da vossa escola. Ilustra os espaços importantes da escola para a vossa representação.
3 Definir como a informação será representada no mapa. Escolhe o uso de símbolos, cores ou outros elementos para representar a informação desejada.
4 Elaborar uma legenda para o mapa. Especifica o significado atribuído aos símbolos existentes nos mapas.
5 Escolher um título para o mapa. Atribui um nome ao mapa, que indique o tema retratado.
6 Apresentar coletivamente o mapa elaborado. Partilha com a turma o resultado final.
DURAÇÃO: 2 HORAS

As oficinas de mapeamento participativo deram origem à produção de um total de 57 mapas. Face à diversidade de informações proporcionadas pela metodologia, neste artigo apresenta-se uma análise da pluralidade de masculinidades e feminilidades existentes na escola, além da interação entre diferentes nacionalidades e o seu papel nas dinâmicas socioespaciais de rapazes e raparigas na escola.

III. A pluralidade e hierarquias de masculinidades e feminilidades no espaço escolar

Um dos temas retratados no processo de mapeamento participativo pelos/as alunos/as foi a identificação das espacialidades estabelecidas pelos diferentes grupos de alunos e alunas existentes na escola. Daqui, inferimos que a maneira como os diversos grupos de estudantes são nomeados está intrinsecamente vinculada aos significados construídos em torno da diversidade, resultando num sistema de ordenamento das relações sustentado principalmente por hierarquias e desigualdades de gênero e origem nacional.

Como referido, na cartografia, a legenda é essencial para a leitura dos mapas pois identifica os elementos representados. Nos mapas analisados verifica-se que as legendas não se limitam à especificação de símbolos. Às legendas são atribuidos significados que revelam nomenclaturas a partir das quais se observa um sistema estruturado de classificação entre estudantes, refletindo identidades marcadas por desigualdades de gênero e origem nacional. Inseridas numa arena de poder, a definição de tais expressões encontra-se vinculada ao processo de constituição desses sujeitos e à criação de significados acerca dos diferentes grupos sociais existentes no espaço escolar. Neste sentido, enquanto instrumento de representação da escola, os mapas permitem veicular os significados produzidos, usados e postos em circulação ou comunicados, refletindo a diversidade sociocultural.

Ilustramos esta análise com três mapas (figs. 1, 2 e 3), que representam a ocupação da escola GV por rapazes e raparigas, demonstrando como os diversos grupos de estudantes estabelecem espacialidades diferenciadas na escola.

Fig. 1 Mapa “Diversidade social na escola”. Elaborado por uma turma do 10º ano da escola GV. 

Ao analisar os mapas, é fundamental observar os termos utilizados para identificar os diferentes grupos de estudantes, incluindo nomenclaturas como "chungas," "índios" e "monhés". A interpretação efetuada pelos/as alunos/as permite aceder aos significados atribuidos a esses termos e à distinção entre os grupos. Dito isto, “chungas” são apresentados como um grupo formado predominantemente por rapazes de origem africana - angolanos, moçambicanos e caboverdianos - e descritos como “delinquentes, basicamente”, “chumbam imensas vezes”, “vestem-se mal, muito mal...”, nas expressões empregadas pelos/as alunos/as. Mais, no mapa da “Escola GV”, chungas são identificados como gangsters, conforme foi explicado pelos/as alunos/as: “os gangsters são chungas, é uma forma mais bonita de dizer chungas. Pessoas conflituosas, que metem medo...”.

“Índios” são definidos como um grupo maioritariamente composto por rapazes, com diferentes nacionalidades - portugueses, nepaleses, indianos, chineses -, com a particularidade de serem os mais novos da escola. A identificação “índios” é atribuida ao seu comportamento, considerado desordeiro e inadequado. Segundo as palavras dos/as alunos/as, os índios “são miúdos, tipo, do quinto ou sexto ano que estão sempre a saltar, sempre a gritar... [...]. São tipo os selvagens”.

Fig. 2 Mapa “Escolas por grupo/gênero”. Elaborado por uma turma do 10º ano da escola GV. 

Fig. 3 Mapa “Escola GV”. Elaborado por uma turma do 10º ano da escola GV. 

“Monhé” foi outro termo que surgiu no processo de mapeamento participativo para distinguir outro grupo de estudantes. No contexto português esse é um termo popularmente empregado, de forma pejorativa, para referir pessoas de origem indiana ou de outros países da Ásia Meridional. Segundo a explicação de um aluno: “cá em Portugal, as lojas dos indianos são tipos os monhés. Monhé é uma cena negativa, eu também digo monhé, mas é uma cena negativa”.

A partir da identificação dos grupos, distintos, e da explicação das definições atribuídas pelos/as alunos/as, é possível perceber que “chungas”, “índios” e “monhés” têm, em comum, o fato de serem termos com conotação negativa, assentes em estereótipos e utilizados para, no quotidiano, através da linguagem se tornar fácil referir grupos compostos maioritariamente por pessoas de origem não portuguesa. Mesmo no caso do termo “índios” fica claro que se remete para um significado relacionado com uma ascendência exógena, sendo, por isso, atribuído a um grupo que é identificado tendo como referência comportamentos inadequados, exagerados ou não-civilizados.

Os grupos retratados no mapeamento participativo evidenciam o modo como a produção da diferença e da identidade opera por meio do processo de classificação. Segundo Silva (2000, p. 82) classificar pode ser entendido “como um ato de significação pelo qual dividimos e ordenamos o mundo social em grupos”. Assim, a classificação de determinados estudantes como “chungas”, “índios” e “monhés” demonstra como o território de origem emerge como matriz de identificação importante e suporta a produção de significados sobre os diferentes grupos existentes no espaço escolar.

O processo de classificação revela, ainda, que os alunos e alunas não são divididos em agrupamentos simétricos; pelo contrário, dá lugar a discriminação gerando desigualdade. Os termos usados nas legendas dos mapas indicam que são atribuídos significados valorativos diferenciados a estudantes, o que resulta na constituição de alguns grupos como detentores de características e comportamentos de referência e outros posicionados de forma depreciativa e discriminatória. Assim se hierarquizam relações e definem sistemas de poder, com identificação explícita dos subalternos.

Esta análise é corroborada pelo fato de, ao contrário de “chungas”, “índios” e “monhés”, outros grupos terem sido identificados e definidos tendo como referência as ofertas formativas, como é o caso dos termos “Pessoal de CT” e “Pessoal de LH” - que se referem a estudantes dos cursos científicos-humanísticos, com formação orientada para as áreas de Ciências e Tecnologias ou Línguas e Humanidades, respectivamente. A identificação é feita com recurso a características neutras, descritivas e até positivas, como por exemplo, “pessoal de LH”, definido como “o pessoal inteligente que é o pessoal da biblioteca” ou o “pessoal de CT”, descrito como “a malta que quer ser alguma coisa da vida”. Em termos de nacionalidade é importante analisar que estes grupos são compostos sobretudo por estudantes portugueses ou por uma mistura de nacionalidades, dos quais os portugueses fazem parte. Para além destes, outros grupos foram identificados por referência às suas habilidades desportivas e práticas de lazer, como demonstram as nomenclaturas “Pessoal do volei”, “TikTokers”, “Ping-Pong” ou “Jogadores de cartas”.

Embora não explicitamente, os termos das legendas reproduzem binarismos que remetem para as identidades hegemônicas e para as identidades marginalizadas no espaço escolar identificadas de forma dicotômica: civilizado/selvagem, ser alguma coisa na vida/ser delinquente, ser inteligente/chumbar imensas vezes, para ilustrar com alguns significados envolvidos nesse processo de classificação que demonstram como os sujeitos são posicionados socialmente.

Estas classificações inscrevem a identidade dos grupos a partir de uma matriz territorial bem definida, demonstrando que o “outro” é identificado como desviante face às condutas de referência, o que está também definido através do uso de termos que destacam a sua origem exógena de forma pejorativa. Assim, a nacionalidade e a origem étnico-racial emergem como importantes elementos estruturadores do processo de identificação e hierarquização de estudantes no espaço escolar e demonstram como a seleção de características atribuídas a esses grupos é uma forma de exercício de poder, moldada pelo eurocentrismo.

Outro resultado a destacar é que, embora termos depreciativos tenham sido amplamente utilizados como referência a determinados grupos, esses termos não foram empregados na legenda final dos mapas. Foi isto que ocorreu com a palavra “monhé” que, apesar de ter sido muito citada durante a elaboração do mapa da figura 2, foi substituída na legenda pelo termo “multicultural”. Isso mostra a participação na elaboração dos mapas, assente numa arena de negociação sobre os significados dos termos e a possibilidade de usá-los numa legenda, com recurso à linguagem (em texto escrito) e não à oralidade. Embora o tratamento discriminatório de alguns grupos tenha estado presente ao longo do exercício de mapeamento, observamos uma busca por mascarar tal conduta - reconhecida, inclusive, como inapropriada pelos/as estudantes - através da elaboração de uma legenda com nomenclaturas capazes de demonstrar tolerância e respeito com a diversidade cultural da escola, como se referiu.

IV. Dinâmicas interseccionais na vivência do espaço escolar

Após a análise de como os significados atribuídos ao gênero e origem nacional de estudantes sustentam hierarquias e desigualdades entre os diversos grupos socioculturais existentes no espaço escolar, nesta secção o artigo explora como as relações interseccionais de gênero se desdobram em diferentes dinâmicas espaciais na escola. Para tal, são abordados três processos: a laterização cultural, a guetização do espaço escolar e a ocupação periférica do campo de jogos pelas alunas.

1. O processo de “laterização” cultural

Em várias escolas portuguesas encontra-se um mosaico de nacionalidades refletindo a diversidade sociocultural de comunidades e famílias que residem no espaço onde as escolas se localizam. A metodologia usada torna mais fácil observar que nas escolas envolvidas nesta investigação, o constante contato entre aquele emaranhado de grupos socioculturais não se traduz nem resulta necessariamente em interação, troca, partilha de vivências e aceitação mútua. Dito isto, é possível identificar o que Costa (2017, p. 43) denomina de “laterização” cultural, isto é, uma proximidade física entre esses grupos, mas sem levar a uma efetiva troca de experiências.

Este fenômeno pode ser analisado a partir do processo de mapeamento participativo. Os três mapas a seguir (figs. 4, 5 e 6), que retrataram o gênero e a origem nacional como elementos que orientam o uso e a ocupação dos espaços da escola, contribuem para compreender o que se afirmou, ilustrando-o. No mapa da figura 4, o refeitório da escola OL é representado como um espaço onde a ocupação das mesas é influenciada por esses dois elementos: estudantes provenientes de países da Ásia Meridional interagem entre si, mas estão separados por gênero; estudantes chineses partilham uma mesa separada e há interação apenas entre alunas e alunos brasileiros/as e portugueses/as.

Fig. 4 Mapa “Refeitório”. Elaborado por uma turma de 8º ano da escola OL. 

Já no mapa da figura 5 foram representadas as diferentes nacionalidades que compunham uma turma de 8º ano da escola OL e como essas nacionalidades estavam dispostas no campo de jogos e no espaço que integra o pátio da escola. Embora alguns elementos do mapa não sejam claramente compreensíveis através da legenda elaborada, os círculos representam as alunas e os triângulos os alunos. As cores são utilizadas para destacar as diferentes nacionalidades: verde representa estudantes nascidos em Portugal; vermelho oriundos do Bangladesh; laranja da Índia; marrom do Nepal; rosa escuro do Paquistão; rosa claro do Uzbequistão; e o preto do Senegal.

Fig. 5 Mapa “Distância dos rapazes e raparigas”. Elaborado por uma turma de 8º ano da escola PP. 

Neste mapa, a ideia da escola como um espaço formado por um mosaico de diferentes nacionalidades fica bem simbolizado, dadas as figuras geométricas coloridas utilizadas como forma de representação dos alunos e alunas. No entanto, este é um mosaico cujos fragmentos indicam uma nítida separação de cores e formatos, atestando que, apesar da diversidade de estudantes existentes nesses espaços, a interação se dá a partir de grupos quase uniformes em sua composição de gênero e nacionalidade. Além disso, o mapa registra claramente que a religião, a língua e a roupa são elementos de distanciamento entre rapazes e raparigas na escola, embora não forneça nenhuma representação que permita analisar tal distanciamento.

No mapa da figura 6 é feita uma interessante representação do campo de jogos. Ao tratar das diferentes modalidades de desporto praticada por rapazes, os diferentes grupos - romenos, portugueses e nepaleses - são representados partilhando do mesmo espaço, mas não interagindo entre si. É possível verificar que cada grupo ocupa um canto diferente do campo, onde estão localizados os cestos de basquete. Apenas na prática do futebol é que ocorre um mix de nacionalidades.

Os mapas demonstram que, embora estudantes de diferentes origens nacionais partilhem os mesmos espaços da escola, há pouca ou nenhuma interação entre eles, principalmente se considerarmos os espaços em que as relações se dão de forma mais espontânea e menos regulada por pessoas adultas. Quando a interação ocorre geralmente é a partir de círculos culturais mais amplos, como aquele formado por estudantes oriundos da Ásia Meridional, que partilham fronteiras geográficas e possuem fortes vínculos históricos e culturais, além da comunidade dos países de língua portuguesa, como é o caso de Portugal e Brasil.

A “laterização” cultural resulta, assim, num espaço escolar fragmentado, como se fosse ocupado por uma dinâmica tribal - utilizando o termo empregado por Gomes (2002, p. 182) - isto é, que marca sobre o espaço público uma ideia de território identitário fechado e exclusivo. Assim, grupos com afinidades específicas ocupam o espaço escolar e acabam por estabelecer microterritórios de identidade que permeiam a sua estrutura, traduzindo um contexto de separação e fechamento entre os diferentes grupos socioculturais nele existentes.

Fig. 6 Mapa “Nacionalidade e Modalidade praticada pelos rapazes”. Elaborado por uma turma de 8º ano da escola OL.. 

Como dito por Costa (2017, p. 43), esse fechamento é indicativo de um processo de negação do outro que, neste caso, se configura como uma forma de tolerância negativa, ou seja, “aceitar a existência da diferença, mas não manter contato - deixá-la que passe, que se mantenha próxima, mas que isso não gere a relação mútua ou a troca de experiências”. Com isso, prevalece uma postura em que, apesar de próxima, a diferença é deixada de lado, e o contexto de diversidade sociocultural dessas escolas acaba por não se desdobrar numa efetiva interação e partilha de vivências que possibilite um significativo processo de aprendizagem e empatia.

2. A “zona dos monhés” e a guetização do espaço escolar

A fragmentação da escola também pode ser observada através da formação de espaços que remetem ao isolamento e segregação de determinados grupos socioculturais. Essa dinâmica leva à criação de áreas que podem ser consideradas como "guetos" dentro do contexto escolar. Um exemplo bastante característico é a área da escola GV conhecida por estudantes como a "zona dos monhés" ou "indianolândia", região do pátio escolar onde estão localizadas as mesas de pingue-pongue e recebe este nome por serem frequentadas principalmente por estudantes de origem asiática.

A existência desta espacialidade foi revelada através do processo de mapeamento participativo do espaço escolar. As mesas de pingue-pongue foram amplamente representadas nos mapas da escola GV, demonstrando ser um elemento significativo do seu quotidiano. O mapa da figura 7 representa a forma de ocupação dos espaços externos da escola segundo sexo e a língua de estudantes - sendo identificados estudantes que têm o português como língua materna (PLM) e aqueles que têm o português como língua não materna (PLNM). Nesta representação, as mesas de pingue-pongue são caracterizadas como um espaço sob domínio dos rapazes, mas marcadas por uma divisão no que tange à origem nacional dos alunos: as mesas de pingue-pongue localizadas próximas à entrada da escola são utilizadas predominantemente por rapazes PLM, enquanto os rapazes PLNM ocupam as mesas localizadas no lado oposto, numa posição de menor visibilidade no espaço escolar.

Fig. 7 Mapa “Distribuição dos alunos por sexo e língua (PLM e PLNM no exterior)”. Elaborado por uma turma de 11º ano da escola GV. 

As mesas de pingue-pongue também ganharam destaque no mapa da figura 8, sendo retratadas como um dos espaços de maior desigualdade de gênero da escola. Entretanto, o processo de apresentação e discussão dos mapas revelou que, além de predominantemente masculino, essas mesas funcionavam como um espaço de reunião para os alunos pejorativamente referidos como “monhés”.

No diálogo transcrito abaixo o grupo explica a existência da “zona dos monhés”:

Há uns anos, cá embaixo, na zona do pingue-pongue era conhecido como a zona dos monhés, diz mesmo, a zona dos monhés (…)

(…) e falavas lá, indianolândia.

Aqui era conhecido como o ponto de encontro dos estrangeiros, dos nepaleses, dos Bangladeshs... dos monhés. Eles nem jogavam, mas ficavam lá, era o ponto de encontro deles, era só deles, portugueses nenhum ia lá [...] mas sempre foi... sempre teve mais rapazes que raparigas.

É possível compreender a “zona dos monhés” como uma expressão da dinâmica de guetização que se dá na esfera escolar, uma vez que indica “processos espaciais de isolamento cultural que protegem a intimidade cultural e o anonimato dos sujeitos culturais frente a uma universalidade externa de padrões éticos e estéticos regidos pelas instituições sociais” (Costa, 2017, p. 44).

Apesar da ausência de consenso nas ciências sociais na forma como a noção de gueto é caracterizada, como apontado por Wacquant (2004), é possível identificar elementos comuns que perpassam esse conceito e justificam o seu emprego como possibilidade analítica. Assim, a noção de gueto é comumente utilizada para designar a segregação de grupos estigmatizados; configuram-se como espaços de visibilidade identitária, sendo apropriados por grupos sociais específicos e apresentando certa uniformidade sob a perspectiva étnico-racial e/ou cultural; expressam o isolamento social e a escassez de contatos com os demais, ao mesmo tempo que proporcionam a criação e manutenção de contatos sociais entre iguais, onde estabelecem redes de apoio e solidariedade.

Fig. 8 Mapa “Desigualdade de Gênero em diversos espaços da escola GV”. Elaborado por turma de 10º ano da escola GV. 

É também a partir de tais elementos que é proposto a compreensão da “zona dos monhés” como uma expressão da dinâmica de guetização estabelecida na escola. Nesse sentido, o uso do termo “monhé” indica a existência de uma zona específica de conformação etnocultural no pátio escolar ocupada fundamentalmente por rapazes de ascendência asiática. O caráter pejorativo do termo revela o estigma como elemento constitutivo deste espaço e demonstra a forma segregada de vivência desse grupo, ocupando um espaço circunscrito e marginalizado no domínio escolar. Costa (2017, p. 45) salienta que o sujeito portador de atributos estigmatizados é pouco propenso à participação e, consequentemente, tende a apresentar vivências espaciais mais restritas.

Embora a existência da “zona dos monhés” seja atribuída como uma responsabilidade dos estudantes estrangeiros, conforme ilustra o comentário de uma aluna ao mencionar que “aquelas mesas de pingue-pongue que estão mais no canto são mais frequentados por rapazes PLNM porque eles isolam-se mais”, é necessário compreender a guetização a partir de uma dupla dinâmica: a apropriação e a segregação espacial.

Assim, se a “zona dos monhés” pode ser entendida como um isolamento voluntário, proporcionando aos seus membros um espaço de socialização, criação de reconhecimento e identidade social, acaba também sendo imposta por um ambiente externo hostil. Como abordado por Wacquant (2004, p. 159), para a categoria dominante sua função é circunscrever e controlar, mas trata-se também de um recurso integrador e protetor na medida que livra os seus membros de um contato constante com os sujeitos dominantes. Assim, podemos considerar que a “zona dos monhés” é resultado de uma produção tanto externa quanto interna, estabelecendo um enclave que singulariza de forma depreciativa um determinado grupo de estudantes perante a escola como um todo, mas constitui um território identitário de pertença.

3. A ocupação periférica do campo de jogos pelas alunas

Outra dinâmica espacial representada no âmbito do processo de mapeamento participativo é o uso predominantemente masculino do campo de jogos e a ocupação de suas margens pelas alunas, nomeadamente ocupando mesas, bancos e arquibancadas. Os mapas também sugerem que esta ocupação periférica é marcada por ações como conversar, mexer no telemóvel ou assistirem aos jogos dos rapazes, contrastando com o grande protagonismo assumido pelos alunos ao ocupar os espaços desportivos e de lazer - centrais e de grande visibilidade na escola.

No mapa da figura 9 as raparigas são retratadas a ocupar as grades circundantes ao campo de basquete, marcando assim a presença feminina na lateral deste sítio. Já no mapa da figura 10 é retratado um maior número de raparigas a ocupar a bancada do campo de basquete. Na representação da Escola OL da figura 11, as mesas e bancos aparecem na generalidade ocupados por raparigas que são retratadas nestes espaços a usar o telefone celular, conversar e dançar. É importante ressaltar a posição de menor visibilidade destes equipamentos, localizados atrás dos pavilhões e no entorno dos campos de jogos.

Fig. 9 Mapa “Onde pessoas ficam nos intervalos”. Elaborado por turma de 8º ano da escola PP. 

Fig. 10 Mapa das “raparigas e rapazes”. Elaborado por turma do 8º ano da Escola PP. 

Fig. 11 Mapa “Porcentagem de Rapazes e Raparigas”. Elaborado por turma do 8º ano da Escola OL. 

Alguns estudos dedicados à análise dos comportamentos generificados no ambiente escolar já haviam identificado a tendência das alunas em ocupar uma posição periférica nesse espaço (Pereira, 2012; Thorne, 1993; Wenetz et al., 2013). No entanto, estes trabalhos basearam-se em metodologias que dependem do olhar do investigador/a para desvelar este padrão de ocupação espacial, como a etnografia e a observação participante. Já o mapeamento participativo demostra a capacidade de estudantes em reconhecer o caráter periférico que marca a vivência espacial das alunas na escola, muito embora não tenham conseguido problematizar este padrão de ocupação à luz das questões de gênero. Quando questionados do porquê de as raparigas ocuparem os espaços marginais, respostas como “eu sempre as vejo lá, não há explicação”, “as próprias raparigas não têm assim muito interesse em vir jogar” revelam como esta forma de apropriação do espaço escolar é naturalizada.

Entretanto, questionar esta aparente naturalidade demanda identificar alguns caminhos de reflexão para desvelar as lógicas subjacentes a essa configuração espacial. Uma possibilidade é compreender a ocupação da periferia do campo de jogos pelas raparigas como expressão de uma invisibilidade espacial, dado o papel central que o campo de jogos costuma exercer no pátio escolar. Também é possível considerar tal fenômeno como uma forma de exclusão de gênero, entendendo que o grupo maioritariamente feminino que ocupa a margem encontra-se privado de usufruir deste espaço ou consegue nele inserir-se de forma tímida e coadjuvante.

No entanto, o estudo etnográfico desenvolvido por Oliveira (2010) sobre estudantes que se situam na periferia do campo de jogos mostra que compreender esse fenômeno apenas na lógica binária de exclusão e inclusão incorre em reducionismo. Assim, é possível identificar elementos que possibilitam uma reflexão para além da lógica da exclusão.

Uma primeira ponderação é a existência de alunas que ocupam ativamente as margens do campo de jogos para a prática de desporto e, embora não desempenhem uma posição de visibilidade no centro do campo, também não é possível afirmar que estão a exercer um papel coadjuvante em relação aos rapazes. Há ainda alunas que atuam como espectadoras, não necessariamente observando os rapazes. De acordo com relatos, algumas delas posicionam-se nas margens do campo para assistir e apoiar outras alunas que estejam a jogar, demonstrando sororidade com aquelas que conseguem transgredir uma barreira de gênero ao ocupar o campo de jogos. Por fim, conversar, dançar e usar o telemóvel mostram que as margens do campo de jogos possibilitam às raparigas o desenvolvimento de formas de sociabilidade que, mesmo alheias ao desporto, são capazes de criar um espaço de bem-estar, vivenciando “outras possibilidades de sociabilidade constantemente limitadas ou negadas pela escola” (Oliveira, 2010, p. 143).

Esta análise não se deve confundir com a afirmação de que o campo de jogos não se apresenta como um espaço que demarca fronteiras de gênero e possibilita o exercício de poder através da masculinidade. O intuito é deixar claros alguns elementos que demonstrem como as alunas que se situam à margem desse espaço podem dele participar de distintas maneiras, expressando assim uma trama mais complexa do que a lógica dicotômica de incluídos versus excluídos, muito embora a periferia do campo de jogos seja conformada por estereótipos e desigualdades de oportunidades que extrapolam os muros da escola (Oliveira, 2010, p. 139).

V. Considerações finais

Este artigo demonstra a aplicação do mapeamento participativo enquanto instrumento metodológico capaz de revelar às alunas e aos alunos, através da representação das suas próprias vivências no espaço escolar, os processos de identificação e discriminação entre si. A cartografia possibilita o reconhecimento e a apreensão dos modos como as diferentes marcas identitárias influenciam as relações quotidianas entre sujeitos e afetam a forma como os alunos e alunas se relacionam com os diferentes espaços da escola.

As oficinas revelaram a grande diversidade de informações proporcionadas pelo mapeamento participativo. Face a isto foi apresentada uma análise da pluralidade de masculinidades e feminilidades existentes no contexto escolar e da interação entre diferentes nacionalidades, aprofundando-se o seu papel nas dinâmicas socioespaciais de rapazes e raparigas na escola. Sobre o primeiro elemento buscou-se demonstrar que a maneira pela qual os diversos grupos de estudantes existentes no espaço escolar são classificados e nomeados está intrinsecamente vinculada aos significados construídos em torno da diferença e da diversidade, resultando em um sistema de ordenamento das relações sustentado, sobretudo, por hierarquias e desigualdades de gênero e origem nacional. No segundo elemento, foram abordadas dinâmicas espaciais específicas que revelam a complexidade de como a intersecção de elementos identitários são vivenciados no quotidiano escolar, perpassando por dinâmicas de controle, subordinação e exclusão. Estes processos dão lugar e ao mesmo tempo refletem um espaço escolar fragmentado que dificulta coesão social.

Neste sentido, é imperativo reconhecer que a promoção de um espaço escolar comprometido com a lógica de igualdade e não discriminação requer uma compreensão das dinâmicas identitárias estabelecidas na escola, mas também um compromisso ativo com o tensionamento e subversão de formas de apropriação do espaço que ajudam a perpetuar hierarquias e formas de exclusão.

Agradecimentos

Este artigo foi elaborado no contexto do projeto Ser Humano - Itinerário para a IG, coordenado por Joana Pestana Lages, tendo como entidade promotora a Associação Mulheres na Arquitectura e financiado pelo programa BIP/ZIP Lisboa - Parcerias Locais Edição 2019. A investigação apresentada é parte de uma tese desenvolvida no programa de Doutoramento em Estudos de Género, uma associação entre a Universidade de Lisboa, através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e a Universidade NOVA de Lisboa, através da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH) e da Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa.

Contributos das autoras

Ana Carolina Ferraz dos Santos: Conceptualização; Metodologia; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização. Dália Maria de Sousa Gonçalves da Costa: Conceptualização; Metodologia; Análise formal; Curadoria dos dados; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão. Margarida Queirós: Conceptualização; Metodologia; Análise formal; Curadoria dos dados; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão.

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Notas

* Para uma melhor compreensão da interseccionalidade enquanto ferramenta analítica e práxis crítica, consultar a obra Interseccionalidade, de Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021).

**O Programa BIP/ZIP Lisboa - Parcerias Locais pertence ao quadro do Programa Local de Habitação (PLH) desde 2011 como um instrumento de política pública municipal que visa dinamizar parcerias e pequenas intervenções locais de melhoria dos territórios BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária), através do apoio a projetos locais que contribuam para o reforço da coesão socio-territorial no município.

***Os objetivos do Programa TEIP podem ser consultados em https://www.dge.mec.pt/

Recebido: 01 de Novembro de 2023; Aceito: 01 de Dezembro de 2023; Publicado: 22 de Dezembro de 2023

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