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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.114 Lisboa ago. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis19912 

ARTIGO

Os sentidos da função social da propriedade na luta por habitação em Curitiba.

The senses of the social function of property in the struggle for housing in Curitiba.

Les sens de la fonction sociale de la propriété dans la lutte pour le logement à Curitiba.

Significados de la función social de la propiedad en la lucha por la vivienda en Curitiba.

Mayara Vieira De Souza1, José Ricardo Vargas De Faria2

1Arquiteta Urbanista, Mestra e Doutoranda em Políticas Públicas, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Universidade Federal do Paraná, Pesquisadora, Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas (CEPPUR), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Rua XV de Novembro, 1299 - Centro, Curitiba - PR, 80060-000, Curitiba, Brasil. E-mail: arq.mayaravieira@gmail.com

2Doutor em Planejamento Urbano e Regional, Professor, Departamento de Transportes e dos Programas de Pós-Graduação em Planejamento Urbano (PPU) e em Políticas Públicas (4P), coordenador do Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas (CEPPUR), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil. E-mail: jrvfaria@ufpr.br


 

RESUMO

O “direito à moradia” é previsto na Carta Constitucional como direito social do povo brasileiro. Contudo, como a lei não cria a realidade, compreender as relações de produção do espaço é fundamental para a análise das condições de realização dos direitos. Na ausência ou na limitação de políticas habitacionais e na impossibilidade de acesso à habitação pelo mercado, movimentos sociais de “luta por moradia” promovem ocupações de edificações e terrenos visando garantir o direito à habitação, ao mesmo tempo que problematizam a propriedade privada. A Função Social da Propriedade Urbana, neste contexto, emerge como categoria jurídico-política em disputa no campo das contradições entre a garantia da propriedade e o Direito à Cidade. O objetivo do trabalho foi compreender como a função social é significada nos discursos e práticas desses sujeitos coletivos. Foram analisados o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) e a União por Moradia Popular do Paraná (UMP-PR) em Curitiba, Brasil. Observou-se que os movimentos sociais desdobram a “luta por moradia” em diferentes ações coletivas e discursos heterogêneos na disputa por provimento habitacional e pelo direito à cidade, sendo a função social uma das categorias que emerge notadamente nas mediações entre o Estado e o campo jurídico.

Palavras-chave: Função Social da Propriedade Urbana; Movimentos Sociais; Habitação; Discursos e Ações Políticas.


 

ABSTRACT

The “right to housing” is provided for the Constitutional Charter as a social right of the Brazilian people. However, as the law does not create reality, understanding the relations of the space production is fundamental for the analysis of the conditions for realizing rights. In the absence or limitation of housing policies and the impossibility of access to housing by the market, social movements of “struggle for housing” promote occupations of buildings and land in order to guarantee the right to housing, while also problematizing private property. The Social Function of Urban Property, in this context, emerges as a legal-political category in dispute in the field of contradictions between the guarantee of property and the Right to the City. The objective of the work was to understand how the social function is signified in the discourses and practices of these collective subjects. The National Movement for Struggle for Housing (MNLM) and the Union for Popular Housing of Paraná (UMP-PR) in Curitiba, Brazil were analysed. It was observed that social movements unfold the “struggle for housing” in different collective actions and heterogeneous discourses in the dispute for housing provision and for the right to the city, with social function being one of the categories that emerges notably in the mediations between the State and the legal field.

Keywords: Social Function of Urban Property; Social Movements; Housing; Political Discourses and Actions.


 

RÉSUMÉ

Le “droit au lodgement” est prévu dans la charte constitutionnelle en tant que droit social du peuple brésilien. Cependant, comme la loi ne crée pas la réalité, la compréhension des relations de production spatiale est fondamentale pour l:analyse des conditions de réalisation des droits. En cas d:absence ou limitation des politiques de logement et d:impossibilité d:accès au logement par le marché, les mouvements sociaux de «lutte pour le logement» favorisent l:occupation d’immeubles et de terrains afin de garantir le droit au logement, tout en problématisant la propriété privée. La fonction sociale de la propriété urbaine, dans ce contexte, apparaît comme une catégorie juridico-politique en litige dans le domaine des contradictions entre la garantie de la propriété et le droit à la ville. L:objectif du travail était de comprendre comment la fonction sociale est signifiée dans les discours et les pratiques de ces sujets collectifs. Le mouvement national pour la lutte pour le logement (MNLM) et l:union pour le logement populaire du Paraná (UMP-PR) à Curitiba, au Brésil, ont été analysés. Il a été observé que les mouvements sociaux déploient la «lutte pour le logement» dans différentes actions collectives et discours hétérogènes dans le différend pour l:offre de logements et pour le droit à la ville, dont la fonction sociale est l:une des catégories qui émerge notamment dans les médiations entre l:État et le domaine juridique.

Mots clés: Fonction Sociale de la Propriété Urbaine; Mouvements Sociaux; Logement; Discours et Actions Politiques.


 

RESUMEN

El “derecho a la vivienda” está previsto en la Carta Constitucional como un derecho social del pueblo brasileño. Sin embargo, como la ley no crea realidad, comprender las relaciones de producción espacial es esencial para el análisis de las condiciones para la realización de los derechos. En ausencia o en la limitación de las políticas de vivienda y la imposibilidad de acceso a la vivienda por parte del mercado, los movimientos sociales de “lucha por la vivienda” promueven la ocupación de edificios y terrenos para garantizar el derecho a la vivienda, al tiempo que problematizan la propiedad privada. La función social de la propiedad urbana, en este contexto, emerge como una categoría político-legal en disputa en el campo de las contradicciones entre la garantía de la propiedad y el derecho a la ciudad. El objetivo del trabajo fui comprender cómo se representa la función social en los discursos y prácticas de estos sujetos colectivos. Se analizaron el Movimiento Nacional para la Lucha por la Vivienda (MNLM) y la Unión para la Vivienda Popular de Paraná (UMP-PR) en Curitiba, Brasil. Se observó que los movimientos sociales desarrollan la “lucha por la vivienda” en diferentes acciones colectivas y discursos heterogéneos en la disputa por la provisión de vivienda y por el derecho a la ciudad, siendo la función social una de las categorías que emerge notablemente en las mediaciones entre el Estado y el campo legal.

Palabras clave: Función Social de la Propiedad Urbana; Movimientos Sociales; Alojamiento; Discursos y Acciones Políticas.


 

I. Introdução

A motivação para este artigo surgiu da observação recorrente de ações como a foto da figura 1, que denunciam o não cumprimento da função social da propriedade de imóveis públicos ou privados encontrados no espaço urbano. Seja como forma de reivindicação, de legitimação ou de questionamento do direito à propriedade privada, a categoria emerge de formas heterogêneas nas ações políticas e nos discursos dos movimentos sociais. Entendemos que há, entre tantas, ao menos duas concepções em torno da função social da propriedade que são relevantes para esse trabalho: como categoria jurídica significada pelo discurso técnico-legal e como categoria significada pelos movimentos sociais.

 

 

Quando significada pelos movimentos sociais, a categoria é parte de um acúmulo de atos e discursos produzidos por movimentos sociais urbanos brasileiros ligados ao ideário da reforma urbana ao longo dos últimos trinta anos, desde a proposição da Emenda Popular da Reforma Urbana para a Assembleia da Constituinte em 1987.

A Emenda Popular foi fruto de uma articulação entre diferentes agentes, para a construção de um capítulo da política urbana para a Constituição Brasileira. Maricato (1996) e Grazia (1990) em Bassul (2004), ao sintetizarem os objetivos da Emenda Popular, citam a função social como um dos princípios fundamentais do documento. Neste sentido, a forma como a categoria foi inserida ao texto constitucional, suscita discussões sobre os ganhos efetivos conquistados pela articulação ao longo da Assembléia Constituinte. Isso porque o texto da Constituição Federal de 1988 submeteu a definição e os critérios de garantia do cumprimento da função social da propriedade ao plano diretor municipal, requerendo ainda a regulamentação do dispositivo constitucional por lei complementar federal.

Desta forma, ao longo da década de 1990, movimentos sociais e organizações ligadas ao Movimento da Reforma Urbana despenderam esforços e investimentos políticos para a regulamentação, concretizando parte destes esforços em 2001, com aprovação do Estatuto da Cidade, lei complementar que regulamentou o capítulo da política urbana da Constituição.

A forma como a função social da propriedade foi inserida no conteúdo do texto constitucional, no entanto, produziu uma categoria jurídica aberta cuja definição é passível de disputa. E desde então, os sentidos da categoria mobilizados pelos movimentos sociais, são produzidos através das ações políticas, que apesar de terem a moradia como objetivo reivindicativo, acionam outros elementos constitutivos conferindo pluralidade à definição da função social. Este trabalho busca compreender esses sentidos, através da seguinte questão: Como a função social da propriedade urbana emerge nos discursos e ações políticas dos movimentos sociais de luta por moradia?

Ao mobilizar a dimensão política da Produção do Espaço e do habitar, a análise proposta nesse texto pretende contribuir com a reflexão sobre as práticas dos movimentos, considerando, tal como Lefebvre (2006), que o Direito à Cidade se constrói na síntese, que não é intelectual e só pode ser Política. Para tanto, observamos dois movimentos sociais existentes em Curitiba: o Movimento Nacional de Luta por Moradia do Paraná (MNLM-PR) e a União por Moradia Popular do Paraná (UMP-PR). Em linhas gerais, ambos os agentes possuem similaridades quanto ao fato de serem partes de movimentos nacionais articulados em torno do Fórum Nacional da Reforma Urbana e por possuírem a habitação como objeto de reivindicação. Contudo, ambos se formam em Curitiba em contextos distintos e acionam diferentes demandas sobre a questão habitacional em seus discursos. Ao analisarmos o MNLM-PR e a UMP-PR, procuramos compreender como esses agentes coletivos mobilizam a função social em suas ações políticas e também para quem e quando a categoria emerge em seus discursos. A investigação se deu por meio de análise de conteúdo em entrevistas com duas lideranças estaduais, indicadas por outros integrantes como referências, de ambos os movimentos e em documentos e notícias relativas às ações dos movimentos.

O trabalho está dividido em três partes, que buscam responder às seguintes questões: [i] qual foi o contexto de formação destes movimentos? [ii] como a categoria foi mobilizada nas ocupações? para quem e quando a categoria foi acionada nos discursos dos movimentos?

Na primeira parte, os movimentos são analisados separadamente, pois as construções heterogêneas dos seus objetos de luta não se conformam somente a partir das problemáticas encontradas no município, mas também de discussões externas com os movimentos em nível nacional. O intuito deste item é indicar as motivações que estiveram na origem da formação dos movimentos, permitindo, nas seções subsequentes, analisar a relação das práticas com a significação da categoria função social da propriedade. Na segunda parte, buscamos compreender o acionamento da função social nas ações de ocupação, mostrando como se articula com o problema habitacional, a justiça redistributiva e o Estado. Finalmente, abordamos os momentos e os destinatários do discurso dos movimentos sociais quando a função social é acionada. Para isso, utilizamos como subsídios, a metodologia de análise de discurso desenvolvida por Orlandi (2003). Entre os elementos que produzem os discursos, utilizamos o interdiscurso (constituição da memória) e o intradiscurso (presente) para compreender em que momentos os movimentos mobilizam a categoria função social da propriedade. Para o desenvolvimento do trabalho, foram realizadas entrevistas semiestruturadas e abertas com lideranças citadas e indicadas por militantes de cada um dos movimentos. Concluímos que a função social é um recurso discursivo que contribui na formação de sentido e na legitimação da ação dos movimentos analisados.

II. A luta por moradia e a formação de movimentos em diferentes contextos

O drama da moradia no Brasil tem origem no desenvolvimento de um capitalismo tardio e dependente (Marini, 1990; Cardoso & Falleto, 2000) com implicações no rebaixamento do custo da força de trabalho relacionado, entre outros fatores, com a absorção do custo da moradia por trabalho não pago nos mutirões e processos de autoconstrução da habitação (Maricato, 1979; Oliveira, 1981) e com processos de espoliação urbana pela precariedade ou inexistência de serviços coletivos socialmente necessários (Kowarick, 1979). Associados às limitadas políticas de provisão habitacional, estes fatores consolidaram a condição habitacional precária e periférica de parte significativa da população mais pobre no país (Maricato, 2011). Esse cenário, combinado com os movimentos pela redemocratização, desde o final da década de 1970 até início dos anos 1990, constituiu o ambiente de formação de movimentos sociais urbanos mobilizados pelas lutas por habitação.

O resgate histórico do contexto de formação dos movimentos aqui analisados é elemento relevante para a compreensão de como os processos de construção da realidade e das subjetividades coletivas conformam a função social da propriedade. A historicidade é um dos elementos que compõe o discurso e, de acordo com Orlandi (2003, p. 19), mais que a transmissão de uma mensagem entre um emissor e um receptor, o “funcionamento da linguagem, põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história”. Para além, a análise da formação destes atores também demonstra como a moradia presente tanto em seus nomes como em suas bandeiras de lutas, assumem diferentes significados e produzem objetos reivindicatórios diferentes, ora ligados a democratização da terra, ora pautados no provimento habitacional.

1. O Movimento Nacional de Luta por Moradia no Paraná e a reivindicação pela função social da propriedade

Embora o MNLM-PR tenha se consolidado em Curitiba no ano de 1992, as suas bases de formação têm origem no “êxodo rural ocorrido a partir da década de 1970, da falta de moradia e de políticas públicas.” (Entrevistado 1, 2016) Nesse período, Curitiba e o Estado do Paraná, passavam por intensas transformações sociais, econômicas e políticas. A mecanização da produção agrícola, junto à devastação de cafezais decorrentes de uma forte geada ocorrida em 1975, fortaleceu um fluxo migratório rural para Curitiba e cidades ao redor, que também sofriam efeito da dispersão industrial ocorrida na região sudeste do país, promovendo a concentração de novos estabelecimentos e conferindo à região um novo perfil industrial (Silva, 2012). Diante desses processos, o crescimento do número de domicílios em favelas passou a ser um problema para o município que, entre 1971 e 1979, registrou uma taxa de crescimento de 13,4% de domicílios irregulares ao ano, o dobro do índice de crescimento registrado até então (Albuquerque, 2008).

Cabe salientar que o problema habitacional não era consequencia única e exclusiva da migração ou do crescimento populacional. Segundo Bertol (2013), a rápida evolução de domicílios irregulares também derivava da crescente pauperização da população. Como destaca Oliveira (1981, p. 68), “a industrialização [brasileira] estava se fazendo com base na autoconstrução como um modo de rebaixar o custo de reprodução da forc'a de trabalho”. O Brasil necessitava criar a sua periferia para atender a industrialização.

Em contraposição, apesar da rápida evolução dos domicílios irregulares, no mesmo período se iniciou um grande processo de transformações na paisagem urbana de Curitiba, com o intuito de imprimir a ideologia imagética de “cidade modelo”. O crescimento das ocupações irregulares foram resultado do modelo de planejamento urbano pautado pelo mercado imobiliário e que “induziu o crescimento da ocupação para áreas periféricas internas e principalmente externas aos seus limites administrativos.”(Moura & Kornin, 2009, p. 19).

Nesse período, em decorrência das violentas ações de remoção promovidas pela prefeitura municipal, diferentes organizações e grupos se mobilizaram com o intuito de contrapor as ações (Polly & Gusso, 2013). Entre 1977 e 1979, formaram-se importantes associação de bairros que para além da moradia, também se articulavam em torno de outras lutas, como transporte coletivo, saneamento e carestia (Neves, 2006). Em 1982, duas novas entidades na luta por moradia, se formaram em Curitiba, a União Geral dos Moradores de Bairros, Vilas e Jardins de Curitiba e o Movimento de Associações de Bairro de Curitiba e Região Metropolitana - MAB. Em 1983, foi promovido o Encontro de Bairros de Curitiba, com a participação de 79 associações de moradia.

Essas diversas mudanças tiveram impacto sobre a ação dos movimentos e provocaram a fragmentação interna nas lutas. Segundo Garcia (1990, p. 122), as “associações do MAB acreditavam que não deviam misturar assuntos referentes a associação de moradores e questões relativas a partidos polítticos ou religião”.

Porém, no decorrer desses processos, duas gestões municipais [Maurício Fruet (1983-1986) e Roberto Requião (1986-1989)] facilitaram o diálogo com os movimentos sociais, promovendo relações relativamente mais democráticas e que lançaram base para uma das maiores ocupações de Curitiba no período, o Xapinhal, em 1988. A ocupação foi fruto da articulação e mobilização de 16 associações de bairros e possuía como objetivo principal a resolução da falta de moradia nos bairros do Xaxim, Pinheirinho, Sítio Cercado e Alto Boqueirão.

E foi a partir da luta do Xapinhal e da necessidade de unificar a luta local a um movimento nacional, com maior organização e debate político, que, em 1992, o Movimento Nacional de Luta por Moradia se formou em Curitiba (Entrevistado 01, 2016). Para Polli e Gusso (2013), a incorporação de movimentos nacionais, derivou da fragmentação e desmobilização da atuação local motivados por discordâncias na forma de pensar e executar as ações nas diferentes organizações e, também, na incorporação das reivindicações de programas governamentais concomitantes as bandeiras de luta dos movimentos nacionais. Apesar destes elementos não transparecerem no discurso do Entrevistado 01 (2016), a necessidade de articular a luta local a um movimento nacional, é verbalizado logo no início da entrevista.

Sobre o contexto de formação do movimento, o Entrevistado 01 (2016), descreve que o intuito era de questionar a propriedade privada e os vazios urbanos que não cumpriam a sua função social. É interessante ressaltar que, alicerçados nos direitos sociais contidos na Constituição Federal de 1988, ambos os elementos verbalizados pelo militante, são conteúdos de discussões nacionais de grupos ligados aao Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU). O Entrevistado 01 (2016) cita que o MNLM foi um dos movimentos que participaram destes processos junto ao FNRU, reiterando a afirmação de Polli e Gusso (2010) sobre a incorporação de bandeiras de luta dos movimentos nacionais dentro do espaço local.

Considerando que não há discurso que não se relacione com outros, observa-se que o Entrevistado 01 (2016), incorpora através da memória discursiva, a função social como um dos elementos fundantes do movimento em Curitiba. Através da memória discursiva temos a ilusão de sermos a origem do que dizemos, quando na verdade, retomamos a sentidos preexistentes (Orlandi, 2003). Trata-se da instância do inconsciente resultado da historicidade e da subjetividade. Percebe-se que a discussão da função social que ocorria através do MNLM nacional e do FNRU, também é incorporada no discurso do militante como um dos elementos fundantes do movimento em Curitiba.

2. A União por Moradia Popular do Paraná (UMP-PR) e o Sistema Financeiro de Habitação

A formação da União por Moradia Popular do Paraná (UMP-PR) em Curitiba possui como elemento-chave o Sistema Financeiro de Habitação. Essa afirmação é observada no discurso do Entrevistado 02 (2016), que quando questionado sobre o contexto de formação do movimento, descreve que ele é “fruto de uma discussão estadual e ela não surgiu como um demanda de Curitiba” e posteriormente assinala que o “movimento nasceu na luta pela defesa dos mutuários do sistema financeiro de habitação”.

Diferente do MNLM-PR, a formação da UMP-PR não derivou das incongruências políticas, sociais e econômicas encontradas no município, mas sim, da falha sistêmica do sistema financeiro de habitação tanto no atendimento das demandas habitacionais da população de baixa renda, como da qualidade das construções ofertadas.

A UMP-PR se formou em Curitiba, no dia 23 de fevereiro de 1997, com a união de lideranças comunitárias de todas as regiões do estado do Paraná, tendo como objetivo a unificação da luta dos sem teto e dos mutuários do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), especialmente dos Programas de Habitação Popular do governo Collor de Melo (1990-1992) (também conhecido como “As Margaridas”) (Entrevistado 02, 2016). Essa dissonância entre a formação do movimento e o governo vigente (em 1997, o governo vigente era do presidente Fernando Henrique Cardoso), decorre da luta iniciada pelos militantes da UMP-PR, na Federação das Associações de Bairro do Estado do Paraná (FAMOPAR). O Entrevistado 02 (2016), assinala que após a eleição interna da FAMOPAR em 1996, a chapa vencedora “abandonou a luta por moradia” e isso causou a dissidência de parte dos militantes que, por sua vez, decidiram fundar a UMP-PR.

A escolha pela incorporação junto a União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e não a outro movimento, derivou da relação existente entre os militantes da FAMOPAR e da UNMP. Portanto, o entendimento sobre a formação do movimento perpassa pela compreensão da luta iniciada pela FAMOPAR, em torno do Plano de Ação Imediata para Habitação (PAIH) lançado pelo governo Collor de Mello em 1990.

O problema no sistema financeiro de habitação teve início com a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH) em 1984, com um vácuo nas políticas habitacionais em nível nacional. Na década seguinte, as políticas habitacionais do Governo Federal se caracterizavam pelos mecanismos de alocação de recursos que obedeciam preferencialmente a critérios clientelistas ou de favorecimento de aliados governistas (Cardoso, 2012). Havia ainda uma redução da participação do Estado no mercado de terra, dificultando ainda mais o acesso da população da população de baixa renda à habitação. De acordo com Ribeiro (2007, p. 3) com a ausência do Estado no mercado de terras, o acesso à mesma passou a “ter referência tão somente as leis do mercado”, desmantelando a política nacional de habitação. Ainda colaborou com o desmantelamento da política habitacional, a suspensão dos financiamentos e o redirecionamento de recursos do Sistema Financeiro de Habitação, em especial do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) (Cardoso, 2012).

Por isso, uma das campanhas promovidas pela UMP-PR, tratava da defesa ao FGTS (Entrevistado 02, 2016). Porém, o foco principal do movimento era o Plano de Ação Imediato para Habitação (PAIH). O PAIH era o principal programa habitacional do governo Collor, lançado em 1990, com o objetivo de construir, em caráter de urgência, cerca de 245 mil unidades habitacionais em 180 dias, através de contratação de empreiteiras privadas (Silva, 2009).

No Paraná, foram construídos condomínios em larga escala durante o período, porém, após a entrega, quase que a totalidade dos imóveis possuíam falhas que iam desde irregularidades na origem do terreno, problemas construtivos e superfaturamento das obras (Entrevistado 02, 2016). Os problemas citados “só foram detectados porque as famílias não conseguiram pagar as mensalidades” (Entrevistado 02, 2016). E a UMP-PR em conjunto com o Ministério Público e a Companhia de Habitação do Paraná (COHAPAR), realizaram um levantamento sobre as obras e detectaram os problemas descritos.

Diante da inadimplência e dos inúmeros problemas construtivos encontrados nas habitações, grande parte dos mutuários passaram a abandonar suas habitações e o movimento passou a orientar os moradores a não pagarem suas prestações e a não abandonarem suas moradias. Desta forma, além de incentivar que os moradores retornassem e permanecessem em suas residências, o movimento também passou a articular os trabalhadores sem teto e a incentivar a ocupação de habitações vazias por esses agentes (Entrevistado 02, 2016). A função social da propriedade não foi acionada discursivamente como um dos elementos fundantes do movimento.

III. Ocupar e existir: a presença da função social na ação política do MNLM e da UMP em Curitiba

A ocupação de imóveis é um dos repertórios de ação que compõe as estratégias de luta dos movimentos por moradia. Tais ações, ainda que tenham significados distintos entre os movimentos analisados, mobilizam, em comum, duas ideias centrais que se associam a um paradoxo: a existência de imóveis não utilizados ou subutilizados e a demanda social não atendida por habitação.

Em Curitiba, uma das ocupações mais emblemáticas promovidas pelo MNLM, foi a do antigo prédio do Banestado, localizado na Avenida Marechal Deodoro. Com cerca de 40 famílias, o objetivo principal da ocupação era a reivindicação de uma política habitacional direcionada à população de baixa renda do município. Em entrevista publicada pelo jornal Tribuna (2003), um dos militantes do movimento delimita:

“Queremos uma reforma urbana, negociar um assentamento urbano, já que a Prefeitura de Curitiba não tem política habitacional para os pobres (…). Cerca de 10% dos imóveis de Curitiba são ociosos, não cumprem papel social, enquanto 10% da população mora na periferia.”

A associação entre a ociosidade e o não cumprimento da função social evidencia um dos importantes sentidos atribuídos à ação política do movimento. A ocupação de imóveis vazios é uma das principais práticas políticas implementadas pelo MNLM e é utilizada tanto como forma de denunciar a ociosidade do imóvel, quanto como instrumento de pressão para que seja conferida a sua função social. Nesses termos, para o movimento, é a destinação do imóvel ocioso para habitação, e não para outros usos, que determina o cumprimento da função social.

Na UMP-PR, as ocupações são incorporadas dentro das chamadas “ações de rua”, ou seja, são formas de protesto com o intuito de dar visibilidade pública às demandas do movimento. Para o Entrevistado 02 (2016), contudo, o termo ocupação também se refere aos assentamentos que se realizam à margem da provisão habitacional pública:

“(...) o histórico de maior conquista pela moradia em Curitiba, é através da ocupação. O maior processo de produção de moradia, é o processo de ocupação da cidade, não são as ferramentas públicas, a Cohapar ou a Cohab, foi o povo mesmo quem construiu essa cidade.” (Entrevistado 02, 2016).

Observa-se que na UMP-PR desde a sua formação com a disputa em torno do Sistema Financeiro de Habitação, as lutas e reivindicações do movimento são sempre direcionadas diretamente aos governos. De acordo com o Entrevistado 02, a principal reivindicação do movimento é a moradia e a principal barreira para o atendimento desta reivindicação é o Governo. Neste sentido, ocupações realizadas pela UMP-PR têm o intuito de sensibilizar as diferentes instâncias governamentais para as demandas promovidas pelo movimento e a outra parte tem o intuito de denunciar o não cumprimento da função social da propriedade.

As ações são organizadas nacionalmente:

“Vamos fazer uma grande manifestação, vamos ocupar, por exemplo, a Caixa Econômica. Nós não temos aqui no Paraná a representação do Ministério das Cidades, então a representação do Ministério das Cidades no Paraná, é a Caixa Econômica. Então com orientação nacional, nós vamos ocupar a Caixa. Então, fazemos uma ação na Caixa. Ou vamos ocupar imóveis que não cumprem a função social, seja privado ou público. Então nos organizamos e ocupamos.” (Entrevistado 02, 2016).

Tanto para o MNLM como para a UMP, o ócio e o vazio são elementos que determinam o não cumprimento da função social, sejam as propriedades públicas ou privadas. Salienta-se que apesar da separação em ócio e vazio e de ambas as palavras constarem no discurso do movimento, o conteúdo é o mesmo, imóveis ou áreas não utilizadas ou subutilizadas. A ocupação faz parte do repertório de luta desses movimentos, que se justifica pelo sentido de que a propriedade pode cumprir, efetivamente, sua função social. Assim, para os movimentos, são passíveis de ocupação os imóveis ou áreas não utilizados ou subutilizados, encontrados no espaço urbano à espera de valorização imobiliária. O cumprimento da função social, porém, não se determina somente pela destinação do imóvel ou área a um uso, mas sim pela destinação para a produção de habitação popular. Nessa perspectiva, a destinação também coloca em questão a origem da demanda e aciona outras duas dimensões correlacionadas: a justiça redistributiva (Fraser, 2003) e o papel do Estado (Poulantzas, 2000).

O sentido da função social nos processos de ocupação adquire uma dimensão redistributiva pois questiona os regimes de concentração e de “poder geral da apropriação privada” (Alves, 2015, p. 265). O Entrevistado 01 (2016) destaca que

“Talvez se você perguntar para o militante da ponta, ele não tenha essa visão, mas todos os movimentos que fazem ocupação (…) a principal ideia é questionar a propriedade privada”. (...)na luta nós percebemos, como é que quem tem muitas terras conseguiram elas. Se uma família tem muita terra e outros cem não têm, nós temos que questionar, (...) a propriedade tem que ser para todos. Todos têm que ter acesso. E a gente acha que a terra tem que ser para quem realmente precisa dela para viver.” (Entrevistado 01, 2016).

O discurso ilustra um sentido de não negação da propriedade privada, mas de reivindicação da possibilidade de obter o seu direito à posse ou a fruição da propriedade. A função social é utilizada como forma de questionar a concentração do direito em detrimento à sua universalização.

O Estado aparece de modo contraditório em relação ao papel de redistribuição. Se por um lado, o “Poder Público”, por meio das suas Companhias de Habitação (COHAB e COHAPAR), aparece com o papel de “criar habitação para o povo” (Entrevistado 01, 2016), por outro o “governo” aparece como obstáculo (Entrevistado 02, 2016) e o Estado que “não cumpre e não está ali para cumprir”, pois existe para “conter que o movimento faça as reivindicações através da luta” (Entrevistado 01, 2016) e aparece como desorganizador das classes subalternas (Poulantzas, 2000). Não cabe aqui aprofundar o debate sobre a categoria Estado, em face dos limites deste artigo, mas os discursos evidenciam uma aparente distinção entre Estado e Aparatos de Estado (Poulantzas, 2000; Jessop, 2016), que confere sentidos de contestação (do Estado) ou de questionamento da omissão (do Poder Público e do Governo) por meio das ocupações. Em ambos os sentidos, a categoria Função Social emerge como recurso de legitimação, interna e externamente, da ação dos movimentos.

IV. Nós, vós, eles. A quem se destina o discurso dos movimentos sociais?

Para Saule Júnior e Uzzo (2009), a bandeira da reforma urbana, não se consolida somente na articulação e unificação dos movimentos sociais através da plataforma da urbana, mas também na crítica cotidiana à desigualdade espacial encontradas nas cidades brasileiras. A função social, nesse sentido, é tanto encontrada no memória (interdiscurso) como na contemporaneidade (intradiscurso) dos movimentos sociais.

No interdiscurso, ele é constituído a partir das relações dos movimentos com a construção coletiva da categoria através da bandeira da reforma urbana. A categoria, portanto, faz parte da memória discursiva dos movimentos. Como descreve Orlandi (2003, p. 52), apesar de “termos a ilusão de que somos a origem do que dizemos”, discursamos aquilo que trazemos em nossa memória, a partir da nossa historicidade, ideologia e subjetividade. A ligação com a bandeira da reforma urbana está presente no discurso de ambos os entrevistados e também é acionado pelo militante do MNLM-PR para descrever as formas de mobilização do movimento: “(...) a gente procura fazer seminários, encontros e participar dos debates da reforma urbana” (Entrevistado 01, 2016).

A bandeira da reforma urbana se consolida através da tríade: direito à cidade, função social da propriedade e gestão democrática. Como descreve Faria (2012), a consolidação destas bandeiras ocorre através de um complexo processo político, permeado por diferentes estratégias, escolhas e investimentos políticos incorporados pelo FNRU ao longo de sua história.

A partir da ligação dos movimentos com a bandeira da reforma urbana, a denúncia de imóveis e terrenos vazios à espera de especulação imobiliária confere sentido à categoria função social, emergindo como elemento de interdiscurso. No caso de imóveis públicos, a especulação imobiliária não incide sobre o vazio, porém, ainda sim, são alvos dos movimentos, pois o vazio demarca o descumprimento da função social. O cumprimento da função social, no entanto, não se estabelece pela destinação a qualquer uso, mas sim, na transferência para habitação popular. Esta é a construção da categoria no discurso que está profundamente ligado à memória, ao que já foi dito antes e em um lugar independente. De acordo com Orlandi (2003), é a chamada memória discursiva, que torna possível todo dizer. É no interdiscurso que acontece a estratificação de formulações que já foram feitas e que vão sendo esquecidas ao longo da construção dos sentidos é a sua constituição. O próximo passo é observar em quais momentos ela é acionada no discurso e a quem se destina.

A importância de fixar a função social da propriedade como um elemento do interdiscurso promovido pelos movimentos, é a possibilidade de se analisar em que momento ela é acionada no intradiscurso, ou em outras, em quais situação a categoria é acionada no momento presente. O intradiscurso é a fala no momento presente, de acordo com as condições dadas (Orlandi, 2003).

Durante a entrevista com os militantes, um dos questionamentos era sobre as formas de mobilização da coletividade utilizada pelos movimento. A intenção do questionamento era observar que a função social era acionada no discurso dos agentes. No MNLM-PR, os principais elementos acionados na mobilização da coletividade, estavam ligados às condições de acesso à moradia e a melhores condições de qualidade de vida (Entrevistado 01, 2016). Na UMP-PR, o Entrevistado 02, ressalta que não há uma fórmula preestabelecida para a mobilização da coletividade, no entanto, descreve que a relação do movimento no ato de mobilização é direta com a comunidade e que após a entrada dos sujeitos no movimento, há um processo de formação destes novos militantes, com o intuito de introduzi-los na luta do movimento. Em nenhuma das entrevistas a função social da propriedade é acionada como elemento mobilizador da coletividade.

Nas práticas políticas, a função social é utilizada pelos movimentos, como forma de legitimação ou como forma de reivindicação. Em uma das ocupações promovidas pela UMP-PR no bairro da Fazendinha, a categoria foi acionada no discurso como uma forma de legitimação da ação. Ao descrever a ocupação em sua página digital, o movimento diz que a ocupação ocorreu pois a área estava “sem uso e sem destinação social” (União Nacional por Moradia Popular, 2015). O discurso de legitimação da ocupação ocorreu como tentativa de reverter a reintegração de posse.

Observa-se que a partir das relações de forças existentes no direito à propriedade e no provimento da habitação popular, através da antecipação, os movimentos acionam a função social. Quando os movimentos mobilizam a função social no discurso de legitimação, há uma antecipação ao pedido de reintegração de posse.

No discurso, duas formações imaginárias atuam na sua construção. Uma delas é a antecipação, que como descreve Orlandi (2003), é a capacidade que temos de nos colocar no lugar de nossos interlocutores. Desta forma, determinados elementos do interdiscurso são acionados, quando os movimentos antecipam quem serão os agente aos quais serão direcionados os discurso. A outra são as relações de poder, que ocorre através das relações hierarquizadas ou de força, que se fazem valer na comunicação.

Nos discursos de legitimação das práticas políticas, principalmente das ocupações, a função social é mobilizada e dirigida ao núcleo jurídico pois ele é o responsável pela construção das estruturas normativas que resguardam o direito à propriedade. Portanto, apesar da função social significada pelos movimentos, ser divergente do que se encontra na Constituição Federal de 1988, a categoria, dentro de relação de forças é acionada por ser uma categoria jurídica.

O Estado, é o principal destinatário dos discursos de reivindicação, ao passo que ele ainda é o principal agente na provisão de habitação popular. Constata-se, portanto, que a função social é construída pelos movimentos pela ligação com as bandeiras da reforma urbana. O conteúdo da categoria foi construído ao longo do período com o intuito de reverter a falha sistêmica na produção habitacional. Assim, o vazio é um dos principais elementos denunciados pelos movimentos, como forma de descumprimento da função social e observa-se que a categoria é mobilizada nos discursos de legitimação das ocupações e também nos discursos de reivindicação das áreas e imóveis vazios para a habitação popular.

V. Conclusão

O uso do imóvel ou da terra, para os movimentos é um dos elementos principais que determinam o cumprimento ou não da função social da propriedade urbana. Para estes atores coletivos, a concepção de propriedade é tida como um bem maior da coletividade e deve estar voltada aos interesses sociais. O vazio emerge nos discursos como o principal elemento que determina o não cumprimento da função social da propriedade. Há que se salientar, que a partir da metodologia utilizada neste trabalho com a separação entre o interdiscurso e o intradiscurso e da cristalização de que grande parte dos discursos analisados são direcionados ao entrevistador, denota-se a possibilidade de que em outros espaços, outros elementos sejam inseridos no discurso dos movimentos como garantia do cumprimento ou não da função social.

Outro ponto observado, é que apesar de o vazio ser um elemento que determina a função social da propriedade, para os movimentos, seu cumprimento só é plenamente estabelecido a partir da destinação do imóvel ou da terra para habitação popular. Sobre a quem se dirige o discurso, a opção metodológica em separar o discurso em interdiscurso e intradiscurso, nos permite afirmar que a função social é elemento presente na memória discursiva dos movimentos sociais analisados neste trabalho. A constituição da função social deriva da ligação dos movimentos com a bandeira da reforma urbana.

No intradiscurso, a categoria, no entanto, não se faz presente nos discursos de mobilização dos movimentos, neste caso, elementos como direito à cidade e a luta por direitos ou por moradia são acionados. Observa-se que por tratar de direitos que historicamente foram negados à determinadas populações, estes elementos, são centrais nos discursos de mobilização. Neste sentido, a categoria é acionada, principalmente, como forma de legitimação das ocupações e de reivindicação de habitação popular. Nos discursos de legitimação da ocupação, observa-se que a categoria é acionada através das relações de forças existentes entre o direito à propriedade e o núcleo jurídico. Este é o sujeito jurídico que determina a ação possessória e, portanto, a função social é acionada na iminência da reintegração de posse, como forma de legitimar a ocupação. Nos discursos reivindicatórios, a categoria é acionada como forma de transferência do imóvel ou da área ocupada, para a habitação popular. Neste sentido, o discurso é direcionado principalmente ao Estado, pois este, ainda é o principal agente responsável pelo provimento de habitação popular. Em linhas gerais, a função social é acionada principalmente nos discursos direcionados ao núcleo jurídico e ao Estado.

A função social da propriedade é um recurso discursivo encontrados por estes movimentos, para que as suas demandas sejam atendidas e incorporadas pelo Estado, mas também para legitimar e mobilizar a ação política, especialmente a que contesta o espaço que lhes é atribuído. As ocupações ocorrem como estratégia de sensibilização e pressão sobre o Estado, diante da falha sistêmica no provimento de habitações para populações de baixa renda e que historicamente têm e tiveram os seus direitos à moradia digna negados, mas também reivindicam o Direito à Cidade, representam a tentativa de “reapossar-se do espaço” (Lefebvre, 2016, p. 155). É como expressão da condição contraditória da práxis que a função social da propriedade urbana emerge nos discursos e ações políticas dos movimentos sociais de luta por moradia.

 

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Recebido: abril 2020. Aceite: julho 2020.

 

Notas

[i] Entrevistado 01. (2016, outubro). Entrevista realizada com líder do Movimento Nacional de Luta Por Moradia no Paraná, concedida aos autores. Curitiba.

[ii] Entrevistado 02. (2016, outubro). Entrevista realizada com líder da União por Moradia Popular do Paraná, concedida aos autores. Curitiba.

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