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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.114 Lisboa ago. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis19380 

ARTIGO

Acesso ao mercado de arrendamento em Portugal. um retrato a partir do programa de arrendamento acessível.

Access to the rental market in Portugal. a portrait from the programa de arrendamento acessível.

Accès au marché locatif au Portugal. un portrait du programa de arrendamento acessível.

Acceso al mercado de alquiler en Portugal. un retrato a partir del “programa de arrendameinto asequible”.

Nuno Travasso1, Aitor Varea Oro2, Mariana Ribeiro de Almeida3, Luísa Sousa Ribeiro4

1Investigador, Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo, Faculdade de Arquitectura, Universidade do Porto, Via Panorâmica Edgar Cardoso, nº 215, 4150-564, Porto, Portugal. E-mail: ntravasso@arq.up.pt

2Investigador, Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo, Faculdade de Arquitectura, Universidade do Porto, Porto, Portugal. E-mail: aitorvarea@arq.up.pt

3Colaboradora externa, Faculdade de Arquitectura, Universidade do Porto, Porto, Portugal. E-mail: malmeida@arq.up.pt

4Colaboradora Habitar Porto, Porto, Portugal. E-mail: lribeiro@arq.up.pt


 

RESUMO

Com o objectivo de reagir à actual crise no acesso à habitação em Portugal, o governo lançou o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), que visa dar resposta às populações de rendimentos intermédios com dificuldades para aceder a habitação em condições de mercado. O programa é acompanhado por um conjunto de dados estatísticos e critérios que permitem monitorizar o mercado de arrendamento e calcular taxas de esforço máximas. O presente artigo parte desses dados e critérios para: 1) quantificar e territorializar o desfasamento entre mercado de arrendamento e rendimento das famílias; e 2) avaliar o impacto que uma adopção generalizada do PAA teria na mitigação desse desfasamento. Para além de apontar limitações na adequação do programa à heterogeneidade dos territórios, as análises permitem perceber que, em grande parte do território, o PAA poderá dar resposta a uma camada relativamente delimitada, mas significativa, da população (cerca de 10%) com rendimentos medianos. Contudo, nas áreas sob maior pressão urbanística, esta camada reduz-se para metade, passando a corresponder às camadas de rendimentos mais elevados. De um modo geral, identifica-se um largo segmento da população que permanece sem resposta. Conclui-se que o PAA pode ser um instrumento útil, mas por si só não permite dar resposta a todo o segmento da população ao qual se destina. O artigo termina com uma reflexão sobre a necessidade e caminhos possíveis para uma política de habitação mais abrangente e capaz de responder aos actuais desafios.

Palavras-chave: Mercado de arrendamento; Programa de Arrendamento Acessível; Políticas públicas; Análise territorial, Cartografia sócio-espacial.


 

ABSTRACT

In response to the current housing crisis, the Portuguese government launched the Affordable Rental Program (ARP), which aims to respond to middle-income populations struggling to access housing under market conditions. The program is accompanied by a set of statistical data and criteria that enables the monitoring of the rental market and the calculation of maximum effort rates. This article uses these data and criteria to 1) quantify and territorialize the gap between the rental market and household income; and 2) assess the impact that a widespread adoption of the ARP would have in mitigating this gap. In addition to pointing out limitations of the adequacy of the program to the heterogeneity of the territories, the analysis shows that, in a large part of the territory, the ARP will be able to respond to a relatively delimited but significant section of the population (about 10%) with average incomes. In areas under greater urban pressure, this number is reduced by half, which corresponds to the percentage of higher income households. In general, a large portion of the population is identified which remains unanswered. It is concluded that the ARP can be a useful tool, but by itself it is not able to respond to the entire segment of the population for which it is intended. The article ends with a reflection on the need and possible paths for a more comprehensive housing policy capable of responding to current challenges.

Keywords: Rental market; Affordable Rental Program; Public policies; Territorial analysis; Socio-spatial cartography.


 

RÉSUMÉ

Afin de réagir à la crise actuelle d’accès au logement, le gouvernement a lancé le Programme de Location Abordable (PLA), que vise à répondre aux besoins des populations à revenu moyen et qui ont du mal à accéder au logement dans des conditions du marché. Le programme est accompagné d’un ensemble de données statistiques et de critères permettant de suivre le marché locatif et de calculer des taux d’effort maximum. Cet article utilise ces données et critères pour : 1) quantifier et territorialiser l’écart entre le marché locatif et les revenus des ménages; et 2) évaluer l’impact d’une adoption généralisée du PLA sur l’atténuation de cet écart. Les analyses mettent en évidence, non seulement, les limites d’adéquation du programme face à l’hétérogénéité des territoires, comme elles montrent que, sur une grande partie du territoire, le PLA serait en mesure de répondre à une couche de la population à des revenus moyens, relativement délimitée mais importante (environ 10%) Dans les zones soumises à une plus grande pression urbaine, cette couche est réduite à moitié, passant à correspondre aux couches aux revenus les plus élevés. De façon générale, ces analyses prouvent qu’une grande partie de la population reste sans réponse. On conclue que le PLA peut être un outil utile, mais par lui-même, il ne permet pas de répondre à l’ensemble du segment de la population auquel il est destiné. L’article termine par une réflexion sur la nécessité et des pistes possibles pour une politique du logement plus globale et capable de répondre aux défis actuels.

Mots clés: Marché locatif; Programme de Location Abordable; Politiques Publiques; Analyse Territoriale; Cartographie socio-spatiale.


 

RESUMEN

Con el objetivo de reaccionar a la actual crisis de acceso a la vivienda en Portugal, el gobierno lanzó el “Programa de Arrendamiento Asequible” (PAA), que busca dar respuesta a la población con ingresos intermedios en dificultad para acceder a vivienda en condiciones de mercado. El programa viene acompañado de un conjunto de datos estadísticos y criterios que permiten monitorizar el mercado de alquiler y calcular tasas de esfuerzo máximas. El presente artículo parte de esos datos y criterios para 1) cuantificar y territorializar el desfasamiento entre el mercado de alquiler y los ingresos de las familias; y, 2) evaluar el impacto que una adopción generalizada del PAA tendría en la mitigación de este desfasamiento. Además de apuntar las limitaciones en la adecuación del programa considerando la heterogeneidad de los territorios, los análisis permiten evidenciar que, en gran parte del territorio, el PAA podrá dar respuesta a un segmento relativamente limitado, pero significativo de la población (cerca de 10%) con ingresos medios. Sin embargo, en las áreas bajo mayor presión urbanística, este segmento se reduce a la mitad, pasando a corresponder a los estratos con ingresos más elevados. De manera general, se identifica que un segmento amplio de la población permanece sin respuesta. Se concluye que el PAA puede ser un instrumento útil, pero que por sí solo no permite dar respuesta al segmento de la población a la que se destina. El articulo termina con una reflexión sobre la necesidad y caminos posibles de una política de vivienda más amplia y capaz de responder a los actuales desafíos.

Palabras clave: Mercado de alquiler; Programa de Alquiler Asequible; Políticas Públicas; Análisis territorial; Cartografia socioespacial.


 

I. Introdução

As rápidas transformações económicas, políticas e sociais que Portugal atravessou nos últimos anos, a par de uma alargada revisão legislativa que veio alterar as condições que regem o mercado imobiliário, conduziram a uma profunda degradação das condições de acesso à habitação. O preço da habitação, e em particular os valores das rendas, afastaram-se subitamente do rendimento disponível das famílias, dinâmica mais acentuada e acelerada nos casos do Porto, Lisboa e Algarve, marcados pela subida brusca da procura, na sequência da intensificação dos fenómenos de turistificação e financeirização da habitação (Santos, Teles, & Serra, 2014; Farha, 2017; Mendes, Carmo, & Malheiros, 2019; Lestegás, Seixas, & Lois-González, 2019; Allegra & Tulumello, 2019; Seixas & Antunes, 2019).

A crise de habitação ganhou lugar central no debate público, levando o Governo a apresentar a Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), que promete uma resposta abrangente. Dos vários programas previstos, o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), em vigor desde 1 de Julho de 2019, é o primeiro a ser implementado[i], sendo um dos vários instrumentos propostos pela Secretaria de Estado de Habitação, com o intuito de apoiar o acesso a uma habitação condigna. O seu objectivo é “promover uma oferta alargada de habitação para arrendamento a preços reduzidos, a disponibilizar de acordo com uma taxa de esforço compatível com os rendimentos dos agregados familiares”, destinando-se às “famílias cujo nível de rendimento não lhes permite aceder no mercado a uma habitação adequada às suas necessidades, mas é superior ao que usualmente confere o acesso à habitação em regime de arrendamento apoiado” (DL 68/2019, preâmbulo). Com este fim, cria um sistema de garantias e incentivos fiscais dirigidos aos proprietários que coloquem no mercado fogos com rendas 20% abaixo do mercado.

Independentemente da eficácia que venha a revelar, o PAA apresenta, desde logo, duas vantagens. Primeiro, ao estabelecer uma taxa de esforço máxima admissível de 35% do rendimento bruto, e ao impedir que agregados familiares em sobrecarga possam aceder ao programa, o PAA vem alterar os termos do debate, não só por esse limiar ficar oficialmente estabelecido, mas sobretudo porque o Governo passa a poder ser considerado responsável por encontrar soluções alternativas para todos aqueles que ficam impedidos de aderir ao PAA por falta de rendimentos.

Segundo, as regras de funcionamento do PAA introduzem elementos úteis para debater com rigor a magnitude do problema do acesso à habitação, analisar a viabilidade das ferramentas existentes e propor alternativas adequadas. A fixação dos limites de taxa de esforço e dos modos de cálculo de “rendas de mercado” e “rendas acessíveis”, assim como a publicação de um conjunto de dados de auscultação do mercado nos quais se baseiam os ditos cálculos, oferecem novos instrumentos de diagnóstico.

O presente trabalho parte deste potencial de diagnóstico para perceber as dificuldades que se colocam às famílias que pretendam agora aderir ao mercado de arrendamento, e qual o impacto que teria uma adesão generalizada por parte dos proprietários ao PAA. Procura-se, assim, avaliar quais as limitações (e margem de evolução) do PAA e quais as lacunas que persistem e que deveriam ser preenchidas pelas restantes políticas públicas de habitação.

O artigo organiza-se em três pontos: descrição dos princípios metodológicos e suas limitações, desenvolvimento das análises e apresentação dos resultados e, por fim, conclusões e tópicos para discussão futura.

II. Metodologia

1. Método de análise

O exercício assenta na comparação entre as rendas e rendimentos em cada unidade territorial para a qual existem dados, com o objectivo de perceber a capacidade que os agregados habitacionais têm para aceder a um apartamento-tipo, cumprindo os critérios do PAA. Procura-se representar uma situação considerada mediana, tanto no que toca às características da habitação como aos rendimentos do agregado.

Para o cálculo da renda, usa-se um apartamento-tipo apresentado pelo próprio Ministério das Infra-estruturas e Habitação como exemplo[ii] - um T2 de 95m2 - que se considera adequado ao exercício desenvolvido por poder ser considerado um apartamento próximo da mediana. De acordo com os dados dos Censos de 2011, a maioria dos alojamentos de residência habitual em Portugal correspondem a T2 (29%) e T3 (32%) e têm uma área útil entre os 80m2 e os 99m2 (20%). No caso particular de alojamentos arrendados, os T2 são claramente maioritários (39%). Seguiu-se a fórmula definida pelo PAA, que conjuga as características da habitação - piso elevado com acesso por elevador, cozinha equipada, não mobilado, sem estacionamento, com estado de conservação satisfatório e certificado energético de classe C - com as do território em que se encontra - o valor mediano dos novos contratos de arrendamento, à escala mais aproximada possível, referente ao segundo semestre de 2019 (Instituto Nacional de Estatística - INE) (Cf. nº 8 do Anexo II da Portaria nº 176/2019, de 2019-06-06). Com base nestes dados calcularam-se dois valores: a “renda de mercado” (valor de referência do preço da renda de habitação calculada de acordo com o Anexo II da Portaria nº 176/2019, de 2019-06-06) que, segundo o PAA, teria o T2-tipo em cada território, e a “renda acessível” (80% da renda de mercado) correspondente à renda máxima permitida para adesão ao PAA (Cf. nº 2, art. 10º do Decreto-Lei nº 68/2019, de 2019-05-22).

Para o cálculo dos rendimentos seguem-se os dados referentes ao rendimento bruto declarado em sede de IRS dos agregados fiscais, para o último ano disponível no sítio do INE (2017). Esta selecção deve-se ao facto do cálculo da taxa de esforço dos candidatos (central no PAA) ser feito com base no rendimento bruto dos agregados declarado em IRS (Cf. art. 14º e 15º do Decreto-Lei nº 68/2019, de 2019-05-22). Opta-se pelo uso da mediana em detrimento da média, dada a disparidade de rendimentos do grupo com rendimentos mais elevados face à larga maioria da população que leva a que os valores de média e mediana apresentem um desfasamento significativo: para o total do país, a média do rendimento bruto situa-se 54% acima da mediana; nos casos particulares de Lisboa e do Porto, esta diferença sobe para 81% (INE).

Procurou-se espacializar estes dados à escala mais aproximada possível. Os dados referentes ao rendimento das famílias estão desagregados à escala do município. Os dados referentes às rendas estão desagregados ao nível das unidades territoriais de menor escala para as quais são disponibilizados os valores medianos das rendas pelo INE, por ser este o critério que rege o cálculo das rendas do PAA. Deste modo, os resultados da análise são apresentados a diferentes escalas - município ou freguesia - nas diferentes áreas do território nacional, porque o programa público assume essa variação de escala. O resultado é uma representação do tecido habitacional do país a partir de duas rampas de cores: tons frios onde os valores não atingem o valor limite de 35% de taxa de esforço, tons quentes onde o fazem.

Todos os dados são representados sobre a mancha urbanizada de Portugal Continental, por se considerar que esta expressa melhor a realidade do território urbanizado do que a representação abstracta das unidades administrativas, em particular quando o tema em análise se refere directamente ao edificado. Para isso usa-se como base a Carta de Uso e Ocupação do Solo de Portugal Continental (COS) disponibilizada pela Direção Geral do Território (DGT), tendo-se seleccionado as categorias “tecido urbano descontínuo esparso”, “tecido urbano descontínuo”, “tecido urbano contínuo predominantemente vertical” e “tecido urbano contínuo predominantemente horizontal”. À mancha obtida acrescenta-se um buffer de 50m para facilitar a leitura dos mapas.

2. Limitações do exercício

Este estudo não pretende nem permite retirar conclusões quanto a números absolutos de agregados familiares em carência habitacional ou necessitados de resposta pública.

Primeiro, porque se analisa apenas a capacidade para aceder agora ao mercado de arrendamento por via de novo contrato. Importa lembrar que, apesar da premente crise de acesso à habitação, a maioria da população nacional terá, neste momento, a sua situação habitacional resolvida. Segundo os dados disponíveis, em 2011[iii] eram 73% os agregados familiares proprietários da habitação onde residiam; aos que se somava uma parcela não desprezável de agregados que, não sendo proprietários também não eram inquilinos (7%), na sua maioria casos de cedência gratuita de familiares. Só uma pequena parte se encontrava no mercado de arrendamento (20% a nível nacional, subindo para mais do dobro nos casos de Porto e Lisboa), sendo que este grupo integra situações díspares, como habitação social (3%), contratos anteriores a 1990 cujas rendas ainda não transitaram para mercado livre (em 2016 seriam ainda 115 828, correspondendo a 15% dos contratos de arrendamento para habitação permanente (Roseta, 2017), partilha de casa (Silva, 2019), etc. A questão que aqui se estuda coloca-se, de modo directo, a uma minoria - sobretudo àqueles à procura de primeira habitação e aos que se encontram já no mercado de arrendamento em regime de renda livre e cujos contratos vão terminando.

Segundo, porque o estudo se foca numa situação-tipo considerada próxima da mediana. Contudo, os agregados familiares são muito variados na sua composição, o que implica que sejam igualmente distintas as suas necessidades habitacionais. Por exemplo, em 2011 seriam mais de 20% as famílias que, por contar apenas com um elemento, provavelmente não necessitariam de mais do que um T1. Ou seja, da constatação de que há uma larga percentagem dos agregados habitacionais - em muitos dos casos superior a 50%, como se verá - que não teriam capacidade de aceder ao T2-tipo, não se pode concluir que mais de metade da população nacional não teria capacidade de aceder a uma habitação condigna. Para mais, a própria definição de agregado fiscal (com base na qual temos acesso aos dados dos rendimentos) não é completamente sobreponível à noção de agregado familiar. Há agregados familiares que, por optarem fazer a entrega das declarações de IRS em separado, correspondem a dois (ou mais) agregados fiscais; tal como há agregados familiares que, por não declararem rendimentos (desempregados, bolseiros, estudantes), não existem para efeitos fiscais.

Apesar das limitações apontadas, considera-se que os dados agora disponíveis permitem um retrato mais aproximado do actual problema de acesso à habitação e sua territorialização, assim como uma melhor percepção do real desfasamento entre o rendimento das famílias e os valores praticados no mercado de arrendamento.

III. Análises desenvolvidas

1. Desfasamento do mercado de arrendamento face ao rendimento das famílias

Procurando tornar mais facilmente perceptível o desfasamento existente entre rendas e rendimentos, este é representado a partir do número de meses de ordenado que faltariam (ou sobrariam) a um agregado fiscal mediano para aceder ao T2-tipo dentro do município de residência, sem ultrapassar uma taxa de esforço de 35%. As peças desenhadas adequam-se a duas escalas: à escala de Portugal Continental foram representados os valores correspondentes às rendas de mercado e às rendas acessíveis; à escala das áreas metropolitanas do Porto e Lisboa foram representadas unicamente as rendas acessíveis. A representação a esta escala mais aproximada deve-se a dois factores: por serem áreas onde a situação é mais gravosa, e por merecerem um olhar mais detalhado, dada a existência de dados à escala da freguesia.

A fórmula utilizada para expressar em número de meses de salário a diferença entre o rendimento mediano e o rendimento necessário para atingir a taxa de esforço máxima é, para as “rendas de mercado”:

 

 

MesesM = número de meses de salário que faltam (valor negativo) ou que sobram (valor positivo) em relação ao rendimento bruto do agregado fiscal mediano para que o pagamento da renda do T2-tipo corresponda a uma taxa de esforço de 35%, considerando a “renda de mercado”.

IRS = valor mediano do rendimento bruto anual declarado em sede de IRS por agregado fiscal, por município.

IRSM = rendimento bruto anual necessário para que o valor da “renda de mercado” do T2-tipo corresponda a 35% dos rendimentos. RMa = valor anual de “renda de mercado” correspondente ao T2-tipo, calculada a partir dos valores medianos dos novos contratos de arrendamento e de acordo com os critérios do PAA.

 

 

MesesA = número de meses de salário que faltam (valor negativo) ou que sobram (valor positivo) em relação ao rendimento bruto do agregado fiscal mediano para que o pagamento da renda do T2-tipo corresponda a uma taxa de esforço de 35%, considerando a “renda acessível”.

IRS = valor mediano do rendimento bruto anual declarado em sede de IRS por agregado fiscal, por município.

IRSA = rendimento bruto anual necessário para que o valor da “renda acessível” do T2-tipo corresponda a 35% dos rendimentos. RAa = 80% da “renda de mercado” correspondente ao T2-tipo, calculada a partir dos valores medianos dos novos contratos de arrendamento e de acordo com os critérios do PAA.

Comparando as cartas (figs 1 e 2) é fácil perceber que uma adesão generalizada ao PAA permitiria que grande parte dos territórios representados com tons quentes passasse para tons frios. De modo mais específico, para além de algumas cidades médias onde o desfasamento persiste, a disparidade entre rendimento e valor de rendas concentra-se nas áreas urbanas do Porto, Lisboa e Algarve. No restante território, em particular na faixa litoral externa às coroas das áreas assinaladas, o PAA permitiria aos agregados com rendimentos medianos passar a ter capacidade de aceder ao mercado de arrendamento, ou perto disso.

 


(clique para ampliar ! click to enlarge)

 

A esta análise, interessa acrescentar dois dados. Primeiro, o grupo limitado dos territórios associados às áreas metropolitanas do Porto e Lisboa - onde há maior dinâmica de mercado e, por isso, dados à escala da freguesia, e onde os resultados são, na sua larga maioria, negativos - e o grupo mais alargado dos territórios que lhes são exteriores - onde os resultados são, na sua maioria, mais favoráveis -, correspondem a um número equivalente de agregados fiscais: 47% cada (para os restantes 6% não há dados publicados). Daí a importância de territorializar o problema. Segundo, o facto de neste segundo grupo de territórios os dados relativos aos valores das rendas estarem disponíveis apenas à escala do município pode introduzir alguma distorção na interpretação dos resultados, iludindo casos mais críticos. Olhando para as áreas metropolitanas do Porto e Lisboa, podemos constatar que o problema apresenta uma magnitude preocupante, que o detalhe da informação aqui disponível permite aferir com maior rigor (quadro I e fig. 3). As situações mais gravosas surgem nas freguesias centrais, mais valorizadas. Contudo, os problemas não se cingem aos municípios do Porto e Lisboa, alargando-se aos municípios periféricos. Nestes territórios, uma diminuição de 20% no valor das rendas, como proposta pelo PAA, mostra-se claramente insuficiente na resposta às dificuldades de acesso a uma habitação condigna sentidas pelas famílias com rendimentos medianos.

 

 

 

2. Capacidade de acesso dos diferentes escalões de rendimento ao mercado de arrendamento

Para que a análise não se restrinja aos agregados habitacionais com rendimento mediano, ocultando a diversidade de cada território, procurou-se perceber a capacidade de acesso do conjunto da população residente de alguns municípios, de acordo com o seu rendimento.

No gráfico (fig. 4), cada barra corresponde à totalidade dos agregados fiscais de um município, distribuídos de acordo com o seu rendimento anual (agregados com maior rendimento em cima; agregados com menor rendimento, em baixo) e divididos em diferentes escalões, determinados a partir das curvas de distribuição de rendimentos relativas a cada um dos municípios (fig. 5):

 

 

 

a) Em cima, a cinzento claro, aqueles cujo rendimento anual permite pagar a “renda de mercado” sem ultrapassar uma taxa de esforço de 35%;

b) A preto, aqueles cujo rendimento anual permite pagar a “renda acessível” para o T2-tipo com uma taxa de esforço compreendida entre 15% e 35% (Cf. alínea a), nº 1, art. 15º do Decreto-Lei nº 68/2019, de 2019-05-22). Este escalão fica subdivido em dois: com ponteado preto, aqueles que, tendo capacidade para aceder ao mercado, também podem aderir ao PAA (nos casos em que a taxa de esforço de 15% ultrapassa os 45 000€ anuais, valores máximos de rendimentos previstos pelo PAA (Cf. art. 2º e Anexo da Portaria nº 175/2019, de 2019-06-06.) para o agregado tipo de duas pessoas; e, com mancha preta, aqueles que só passariam a conseguir aceder à habitação devido ao PAA (mancha);

c) Na base das barras, a cinzento, aqueles que encontram resposta na promoção pública, calculado com base na soma da habitação social existente (fogos de habitação social arrendados (nº) (2013) e tipo de contrato de arrendamento (2015), anual, desagregado à escala do município, ambos dados do INE) e número de agregados sinalizados por cada município no âmbito do Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional (IHRU, 2018)[iv] que deverão ter resposta no quadro do 1º Direito, programa da NGPH que visa dar resposta aos mais carenciados e em situação de carência habitacional grave;

d) Entre os dois escalões anteriores, marca-se a branco, delimitado por linha tracejada, o segmento da população que permanece sem resposta. Ou seja, aqueles que não têm acesso a habitação pública, mas cujo rendimento não é suficiente para aceder ao T2-tipo do seu município de residência, não só em condições de mercado, mas também no quadro do PAA, do qual ficam excluídos por ultrapassarem a taxa de esforço de 35%.

O gráfico obtido (fig. 4) permite identificar o segmento da população em que actua o PAA e dimensionar o seu impacto potencial; isto é, perceber qual a camada da população que passaria a ter meios para aceder à habitação devido ao programa. Os resultados variam substancialmente consoante o território, mas na maioria dos casos essa camada situa-se na franja dos rendimentos medianos e ronda os 10% dos agregados fiscais do município; o que explica que, nos mapas focados nos rendimentos medianos (figs 1 e 2), grande parte do território tenha passado de tons quentes a frios.

No entanto, nas áreas mais pressionadas, esta camada reduz-se e sobe na escala de rendimentos (em Lisboa é de apenas 6% dos agregados, situada acima do percentil 75); o que quer dizer que, aqui, o impacto do PAA é reduzido e dirigido apenas aos agregados com rendimentos mais elevados. O gráfico permite também dimensionar a camada da população que permanece sem resposta; algo que na maioria dos casos ronda 50% dos agregados (65% em Lisboa) atingindo, nos territórios mais pressionados, segmentos da população com rendimentos bem acima da mediana.

3. Evolução do mercado ao longo do tempo e pressão de saída das áreas centrais (Porto e Lisboa)

A constatação de que nos territórios mais pressionados (nomeadamente Porto e Lisboa) a habitação se torna inacessível para a larga maioria dos agregados, mesmo dentro do quadro do PAA, explica um aparente movimento de deslocalização, quer de famílias quer de investimento, dessas áreas centrais para coroas periféricas cada vez mais alargadas, ou mesmo para outros territórios alternativos. Procura-se cartografar esta evolução no tempo e seus impactos, assim como a capacidade que o PAA possa ter para a travar ou compensar.

Os mapas sinalizam o momento em que, nas diferentes áreas do território, a relação entre rendimentos medianos e “rendas acessíveis” passou a corresponder a uma taxa de esforço superior a 35%. O crescimento da mancha, medida em semestres, é representado a duas escalas: Portugal Continental e áreas metropolitanas do Porto e Lisboa.

Para o Continente, o desfasamento é medido a partir da capacidade do agregado fiscal mediano aceder ao T2-tipo ao abrigo do PAA dentro do município de residência. A mancha refere-se ao momento em que cada município (ou freguesia) ficou inacessível para os actuais residentes (fig.6).

 

 

À escala das áreas metropolitanas procura-se responder a uma pergunta simples: quanto se teria de afastar um inquilino com rendimentos medianos, caso perdesse a sua casa no município de Lisboa ou Porto, para encontrar uma nova habitação, ao abrigo do PAA? Pretende-se não só representar a distância (em tempo) entre o centro da área metropolitana e as áreas acessíveis mais próximas, como evidenciar que, a cada semestre, essa distância se vai ampliando (figs 7 e 8).

 


(clique para ampliar ! click to enlarge)

 

Os mapas permitem reforçar a percepção do movimento de deslocalização[v] e do impacto que ele tem no território: à medida que a procura se afasta da área central em busca de valores comportáveis, pressiona também os mercados das coroas envolventes e o fenómeno vai-se alastrando, arrastando consigo os preços das rendas - naturalmente, não de modo homogéneo - e as consequências negativas que daí advêm.

IV. Conclusões e tópicos para discussão

A análise realizada permite-nos chegar a duas conclusões. Primeiro, o PAA, a partir da sua capacidade de diagnóstico, mostra-se um instrumento útil para medir e territorializar os problemas de habitação, permitindo informar o debate e o desenvolvimento de políticas futuras capazes de corrigir alguns desequilíbrios que o actual funcionamento do mercado de arrendamento veio criar. Segundo, o diagnóstico realizado serve para identificar de maneira mais nítida as oportunidades e as importantes limitações do PAA para corrigir os desequilíbrios identificados e os sugeridos a partir daquilo que entendemos ser o seu objectivo: contribuir para aumentar o parque de habitação de qualidade acessível no território português.

1. Habitação: um problema transversal à sociedade e multi-sectorial

A análise apresentada evidencia não apenas a enorme disparidade entre os rendimentos das famílias e os valores das rendas praticadas nos centros mais pressionados, como também o facto de que, em grande parte do território nacional e em condições de mercado, a maioria dos agregados familiares não conseguiria hoje aceder ao mercado de arrendamento. A dificuldade no acesso à habitação nem é um problema que se restrinja a determinado estrato social (é transversal à sociedade) nem se manifesta de maneira homogénea em todo o país (a sua expressão é diferente de território para território). As políticas públicas devem espelhar essa abrangência. Devem também ter em conta que as opções no domínio da habitação têm impactos noutros sectores das políticas públicas que é necessário avaliar.

Têm impacto directo na economia. Desde logo porque o aumento das rendas está a empurrar de novo as famílias para o crédito hipotecário (Seixas & Antunes, 2019), com as consequências negativas que se conhecem (Guerra, 2009). Mas também porque pode estar a pôr em causa a competitividade dos territórios, dado que a disponibilidade de habitação acessível é uma das condições para atracção de empresas, que procuram garantir disponibilidade de mão-de-obra que não fique em sobrecarga excessiva (por via do custo da habitação e transporte) tendo em conta os salários que estão dispostos a pagar (Wardrip, Williams, & Hague, 2011; Schwartz, 2016).

Identificam-se igualmente impactos decorrentes do aumento dos movimentos pendulares (em número e tempo) associados à deslocalização que se infere das figs 7 e 8. Mesmo não havendo consenso sobre a relação entre movimentos pendulares e modelo de ocupação urbana (Williams, Burton, & Jenks, 2000; Neuman, 2005; Carvalho, 2013), ou mesmo rácio habitação / postos de trabalho (California Planning Roundtable, 2008), parece ser seguro afirmar que, em áreas centrais onde se concentra grande número de postos de trabalho associados a salários médios ou baixos, a ausência de habitação acessível que possa alojar esses trabalhadores aumenta substancialmente os movimentos pendulares (Sultana, 2002; Cervero et al., 2006). E este aumento tem custos conhecidos (Martins, Lopes, Silva, & Gomes, 2009), em particular para o ambiente, para a qualidade de vida das pessoas que investem tempo e dinheiro nas deslocações diárias, e para a sobrecarga dos frágeis sistemas de transportes públicos das áreas metropolitanas, obrigando a maior alocação de recursos para dar resposta ao aumento da procura.

A carência habitacional tem também impacto no Sistema Nacional de Saúde. Se parte da população se afasta dos grandes centros, há uma camada com menos rendimentos que se vê obrigada a permanecer, por não poder comportar o preço dos transportes. Isto conduz a situações de grande precariedade, como o corte na aquisição de bens essenciais (Sedes, 2012) ou a residência em situação de sobrelotação e sem condições mínimas de salubridade (Vázquez & Conceição, 2015; Oro, Almeida, & Pinheiro, 2019; Silva, 2019) com comprovados efeitos negativos para a saúde dessas camadas da população (Magalhães, Oro, Almeida, Oliveira, & Duque, 2019). E convém ainda reflectir nos impactos que esta polarização do território (porque aí tendem a permanecer apenas os mais ricos e os mais pobres) tem nas políticas públicas que visam suportar o peso destas desigualdades sociais.

Não se pretende desenvolver aqui nenhum destes temas. Pretende-se apenas sublinhar que as políticas de habitação não podem assentar em instrumentos autónomos de carácter sectorial. Devem participar de uma visão integrada e a avaliação do seu custo-benefício deve sempre contabilizar os problemas e gastos que evitam noutras áreas da governação.

2. Aproximar as políticas e instrumentos à realidade concreta e complexa de cada território

Uma das formas de mitigar a desadequação entre rendas e rendimentos aqui evidenciada poderia passar pela afinação e ampliação de alguns dos critérios e objectivos do PAA a partir de dois princípios fundacionais da NGPH: a territorialização das soluções e a abordagem integrada e multinível (Secretaria de Estado da Habitação, 2017). Podemos localizar estas alterações em três dimensões diferentes: 1) a técnica, que tem a haver com a maneira como são produzidas as informações, com o objectivo de melhor caracterizar e responder às características dos territórios; 2) a de construção dos pressupostos do programa, que tem a haver com a maneira como se constrói o próprio conceito de “acessível”; e 3) a da arquitectura institucional, que visa perceber como utilizar os actores e dinâmicas territoriais para aumentar o leque de soluções e estratégias habitacionais.

2.1. Dificuldade de adequação do PAA à heterogeneidade do território

O funcionamento do PAA tem por base o valor mediano dos novos contratos de renda, à escala mais desagregada disponível. Neste aspecto, os dados publicados pelo INE dividem o país em três grandes grupos. O primeiro corresponde às duas áreas metropolitanas, que contam com dados à escala de freguesia. O segundo compreende uma vasta área, onde o valor disponível é à escala do município. O terceiro, que ocupa uma área significativa do território nacional, mas correspondente apenas a 6% dos agregados fiscais, para o qual não existe qualquer tipo de dados.

Para além do problema subjacente ao último grupo, que se traduz na impossibilidade de implementação do programa, é importante referir as limitações que existem na segunda categoria descrita, onde o município pode revelar-se demasiado abrangente, por se considerar um mesmo valor de renda para um território que pode conter situações muito díspares.

Tomemos o município de Vila Nova de Gaia como exemplo. Aí, o valor mediano das rendas é de 6,25€/m2, que oculta uma variação entre freguesias que vai dos 7€/m2 aos 4€/m2. Se neste território o PAA funcionasse à escala do município, a renda máxima permitida pelo programa para o T2-tipo seria de 504€ mensais, sendo este valor bastante superior aos 404€ correspondentes a uma “renda de mercado” na freguesia menos valorizada, para o mesmo apartamento. Isto pode ter efeitos perniciosos, como a atribuição de benefícios fiscais a quem inflaciona os preços das áreas menos valorizadas, ou o incentivo ao investimento nessas áreas, criando dinâmicas de transformação urbana potencialmente contrárias às intenções da autarquia.

Esta situação pode também levar a potenciais problemas de diagnóstico, dado que os territórios onde apenas existem dados à escala de município tendem a ser mais optimistas, por diluírem as áreas mais gravosas - na figura 2 algumas das localizações (Barcelos, por exemplo) apareceriam como não-acessíveis se existissem dados à escala de freguesia.

A fórmula de cálculo das rendas na qual se baseia o PAA levanta questões similares. A renda máxima permitida não depende apenas do território em causa, mas também das características tipológicas da habitação. Contudo, estas características assumem diferentes valores nos diferentes territórios. Compreende-se que em Lisboa o espaço exterior privado de uma habitação possa ser considerado um luxo que aumente significativamente o seu valor e, no limite, a exclua do acesso a apoio público. Mas noutros territórios, como o Vale do Ave, as moradias correspondem à tipologia dominante. Aqui, o espaço exterior não é um privilégio, é a regra.

Usemos Vila Nova de Famalicão como exemplo. Seguindo os critérios do PAA, o apartamento T2 de 95m2 sem espaço exterior que usámos na análise (provavelmente situado na área central do município, mais valorizada, onde se localiza a maioria dos blocos de apartamentos) teria uma “renda acessível” de 303€. Este será também o valor para um dos exíguos e pouco salubres alojamentos dos antigos bairros operários que persistem ao longo do Ave, considerando uma tipologia corrente nestes casos: T2 com 40m2 e outro tanto de espaço exterior. E se o T2 de 95 m2 não fosse um apartamento, mas uma casa geminada com logradouro de 50m2, já não seria sequer elegível para o PAA. De novo, isto pode incentivar à promoção de tipologias que estejam em desacordo com os diferentes territórios ou com as intenções das autarquias.

O PAA visa incentivar uma alteração do comportamento dos actores que participam no mercado imobiliário. E isso tem impactos no território. Não é fácil que um mesmo instrumento se adeque à diversidade de contextos do país e às diferentes estratégias que as autarquias têm para guiar a sua evolução.

2.2. O problema da acessibilidade baseada nas rendas, e não nos rendimentos

As análises desenvolvidas permitem perceber que, na maior parte do território, o impacto directo do PAA (no caso de uma adesão alargada dos proprietários) se centraria num segmento de cerca de 10% dos agregados com rendimentos medianos, sendo que nas áreas sob maior pressão responde a uma fatia ainda menor e referente aos agregados com rendimentos mais elevados. Esta disparidade de rendas - que leva, no caso limite de Lisboa, a que o Estado se proponha apoiar as rendas destinadas a agregados situados entre os 25% com maiores rendimentos - obriga-nos a pensar como actuar no mercado, no sentido de procurar adequar estes valores às reais possibilidades da população.

Neste ponto, surge uma pergunta recorrente: é mais eficaz definir “acessível” com base no valor do mercado ou com base nos rendimentos familiares? O tema ganhou presença no espaço público pela comparação - e até confusão - entre o PAA e o PRA (Programa de Rendas Acessíveis), apresentado pela Câmara Municipal de Lisboa sensivelmente ao mesmo tempo, e que fixa as rendas com base numa análise prévia dos rendimentos das famílias (Expresso, 2019)[vi]. De facto, há exemplos de diferentes modos de regular os valores das rendas, que variam consoante os diferentes contextos socioeconómicos, actores envolvidos e modelos de negócio (Kemeny, 1995). Mas a questão é mais ampla.

A noção de “habitação acessível” assenta na relação entre o custo da habitação e o rendimento disponível do agregado familiar (Hulchansky, 1995; Leishman & Rowley, 2012); pelo que a criação de um mercado de arrendamento acessível deve articular políticas do lado da oferta com políticas do lado da procura, mais capazes de se adequar aos diferentes níveis de rendimentos das famílias (Pereira & Pato, 2013). Exclusivamente montado a partir do mercado e das suas dinâmicas, não é possível esperar do PAA uma resposta a toda a camada da população com rendimentos intermédios a que o programa se destina. Pelo menos não nas áreas mais valorizadas e enquanto a actual pressão se mantiver. Ele poderá, sim, assumir-se como uma peça de uma política mais ampla, à qual faltam ainda outros instrumentos.

2.3. Colmatar o espaço entre a promoção pública e o sector privado

A resposta do Governo aos problemas de acesso à habitação assenta na NGPH, da qual avançaram, até ao momento, dois programas demasiado recentes para que se possa fazer um balanço da sua aplicação: o 1º Direito, que deverá restringir-se a menos de 1% da população, e o PAA, que, como demonstrado, fica restrito aos rendimentos medianos e, no caso das grandes cidades, aos rendimentos mais elevados. Entre estes dois segmentos - isto é, entre aqueles que encontram resposta por via da promoção pública e aqueles que encontram resposta por via do mercado - persiste uma camada da população sem resposta, que ronda os 50%, chegando aos 65% no caso de Lisboa (fig. 4). Estará aqui, provavelmente, o maior desafio da NGPH.

Para colmatar este espaço poderão contribuir programas da NGPH ainda por implementar (como o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado) mas também a articulação com as autarquias (Porto e Lisboa já anunciaram programas próprios) e outros múltiplos actores locais, em particular os do terceiro sector, que a própria NGPH procura mobilizar. Tanto o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado como o 1º Direito estabelecem como entidades beneficiárias as entidades do terceiro sector, nomeadamente cooperativas, IPSS, associações de moradores. Estes últimos, que nos últimos anos ficaram remetidos para um papel residual (Guerra, Matos, Marques, & Santos 2013; Antunes, 2018), parecem particularmente adequados ao desenvolvimento de novas formas de produção e acesso à habitação que possam ampliar o leque de soluções disponíveis (Kemeny, 1995), visto situarem-se, eles próprios, entre o mercado e o sector público.

A recente Lei de Bases de Habitação (Lei nº 83/2019) pode revelar-se o suporte adequado para a resposta a estes desafios, criando condições para inscrever, em políticas integradas nacionais e municipais, o que agora existe apenas em forma de programas sectoriais de incentivos e financiamentos, com duas vantagens. A primeira é que a articulação de ferramentas e actores, bem como a sua adequação às várias escalas, será tanto mais fácil quanto mais robusto - e flexível - for o seu enquadramento institucional. A obrigação legislativa de políticas locais e nacionais é, neste sentido, uma primeira medida necessária para a mobilização do Orçamento do Estado, devolvendo ao público o papel que ele próprio se recusou a ocupar aquando da liberalização do mercado. A segunda é que as leis previstas, quando articuladas com os Instrumentos de Gestão Territorial às várias escalas, podem permitir que os territórios sejam ferramentas para a melhoria de vida das pessoas e não tanto o resultado das desigualdades sociais que se criam quando é o mercado quem define o lugar e modo de residência de cidadãos categorizados em função dos seus rendimentos.

 

 

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Diplomas legais

Decreto-Lei nº 37/2018, de 2018-06-04 - Cria o 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação.

Decreto-Lei nº 68/2019, de 2019-05-22 - Cria o Programa de Arrendamento Acessível.

Portaria nº 175/2019, de 2019-06-06 - Regulamenta as disposições relativas ao registo de candidatura ao Programa de Arrendamento Acessível.

Portaria nº 176/2019, de 2019-06-06 - Regulamenta as disposições relativas aos limites de renda aplicáveis no âmbito do Programa de Arrendamento. Acessível.

Lei nº 83/2019, de 2019-09-03 - Lei de bases da habitação.

 

Agradecimentos

Ana Pinheiro, Ana Luísa Fernandes, Luísa Pinto.

 

Recebido: janeiro 2020. Aceite: maio 2020.

 

Notas

[i]Do conjunto dos programas integrados na NGPH, o 1º Direito foi o primeiro a ser criado, por via do Decreto-Lei nº 37/2018, de 2018-06-04. Contudo, a sua implementação está dependente da aprovação prévia da Estratégia Local de Habitação de cada Município.

[ii]A habitação-tipo usada neste exercício foi utilizado pela Secretaria de Estado da Habitação como forma de exemplificar junto da imprensa os efeitos práticos que o PAA teria nas rendas, aquando da divulgação do programa, a 5 de Junho de 2019; tendo depois sido reproduzido por diferentes órgãos de comunicação nas primeiras notícias sobre o programa.

[iii]A descrição que aqui se apresenta é feita com base nos dados do Censos de 2011, dada a escassez de dados mais actualizados, limitação que, nesta área como noutras, dificulta a produção de informação pertinente que apoie o desenvolvimento de políticas públicas adequadas, em particular em tempos de tão aceleradas mudanças.

[iv]Uma vez que estes dados se referem ao número de agregados familiares residentes em habitação social, ou sinalizados, e não agregados fiscais (como é o caso dos restantes valores) optou-se por calcular a percentagem apresentada face ao número total de famílias residentes no município (Censos 2011), de modo a não reduzir artificialmente a camada da população coberta pela resposta pública. Os restantes valores referem-se à percentagem de agregados fiscais face ao número total de agregados fiscais do município em 2017 (INE).

[v]Note-se que, como lembram Mendes, Carmo, e Malheiros (2019) a propósito de Lisboa, a um processo de deslocação directa soma-se um fenómeno de “desalojamento indirecto” que nega o acesso a largas camadas da população à habitação no núcleo central da área metropolitana; e que ganha um carácter cada vez mais grave à medida que esse núcleo central atrai maior número de postos de trabalho e maior procura de habitação.

[vi]Saliente-se que, apesar da similitude no nome, os programas são de naturezas distintas, pelo que a comparação é injusta. Enquanto o PAA trabalha apenas a partir do mercado, propondo aos proprietários uma redução no valor das rendas em troca de benefícios fiscais, o PRA assume a forma de uma parceria publico-privada, em que o terreno é público, e a parte de arrendamento acessível se limita a 70% da operação, sendo os restantes 30% em regime livre e em terreno cedido ao promotor, de modo a rentabilizar o investimento.

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