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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.248 Lisboa set. 2023  Epub 30-Set-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023248.01 

Editorial

A economia política do mundo contemporâneo: revisitando um campo multidisciplinar

1. HTC - NOVA FCSH Avenida de Berna 26 C - 1069-061 Lisboa, Portugal. tiagobrandao@fcsh.unl.pt

2. DINÂMIA’CET - Iscte - Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território Iscte-IUL, Avenida das Forças Armadas - 1649-026 Lisboa, Portugal. maria.eduarda.goncalves@iscte-iul.pt

3. CES, Faculdade de Economia,Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Apartado 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal. reis@fe.uc.pt


Introdução1

Nas últimas décadas, a economia política tem sido objeto de relativa desconfiança por parte do mainstream da ciência económica. No entanto, esta sempre fez parte dos ambientes em que se têm desenvolvido os saberes da economia, cujo pluralismo não se pode ignorar. Acresce que a vitalidade intelectual e académica das perspetivas que ensaiam visões críticas e complexas sobre os capitalismos e as suas formas de organização foi assinalável. Afigura-se, por isso, oportuno revisitar os seus temas e recuperar contributos para o conhecimento da economia contemporânea, recolocando-a enquanto área privilegiada de diálogo interdisciplinar (entre a história económica, a sociologia, a ciência económica, a ciência política, o direito, a história contemporânea, etc.). Esta necessidade tem vindo a ser assinalada por alguns setores académicos que têm sentido a aspiração da sociedade de compreender melhor as dinâmicas da economia contemporânea, os poderes que a rodeiam e a insustentabilidade que podem gerar, questões que estão para além das explicações macroeconómicas ou dos modelos econométricos, mais característicos das escolas neoclássicas e neoliberais.

Em Portugal, algumas iniciativas recentes, como a atuação da EcPol - Associação Portuguesa de Economia Política (2017-) e a criação do Doutoramento Interdisciplinar em Economia Política (ISCTE, ISEG, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra), dentre outros acontecimentos, como o ciclo de Diálogos Luso-Brasileiros de Economia Política2 organizado na Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa, 2019), comprovam bem a relevância e a atualidade das temáticas evocadas.3 Todavia, a delimitação do campo da economia política não é isenta de tensão e mesmo de controvérsia. Já Rosa Luxemburgo [1925] advertira que “[a] economia política é uma ciência singular”, razão pela qual “dificuldades e desacordos” advêm precisamente da sua delimitação: “qual é, precisamente, o objeto desta ciência?”.4 Acrescentaríamos: Será ela uma ciência? E será esse propósito o seu contributo fundamental?

Foram efetivamente diversos os sentidos que se atribuíram à expressão “economia política”, desde a sua manifestação inicial, a dos clássicos do pensamento económico ocidental, de Adam Smith a Stuart Mill (escola liberal), compreendendo Karl Marx e a sua Crítica da Economia Política (subtítulo de O Capital, 1867). Os fisiocratas franceses, por exemplo, entendiam-na amplamente como o conjunto das questões que importavam ao governo da sociedade. Já para Adam Smith, na sua obra clássica a Riqueza das Nações (1776), o objeto de tal “ciência” seria “a vida económica de todo um povo, por oposição à economia privada ou particular: a economia política seria, assim, a essência da economia de um povo, isto é, as leis segundo as quais um povo cria riqueza com o trabalho, a aumenta, a reparte entre os indivíduos, a consome e a cria de novo”. Contudo, um século depois, para Leon Walras (1834-1910; cf. s. d., p. 10), um dos nomes pioneiros da corrente marginalista apostada na afirmação da economia como uma ciência, subsistiam a necessidade e o problema da sua definição.

Para o economista e matemático francês, a economia política ainda não fora satisfatoriamente definida e, nessa medida, a busca seria pela matematização da linguagem da economia política, dando corpo a um dos primeiros projetos, porventura, de purificação da economia política. Também dentro da tradição do pensamento crítico marxista, vezes sem conta se buscou firmar uma definição alegadamente mais precisa, ao estilo de “uma ciência das leis particulares do modo de produção capitalista”, tendo em vista, inclusive, desvendar “as leis do declínio do capitalismo” (Luxemburgo [1925], p. 113). Assim, mesmo na versão marxista, predomina uma visão internalista da economia política, cujo âmbito se destina a compreender “a produção, a circulação, a repartição e o consumo de mercadorias” (Oliveira, 1962, p. 18). Por seu lado, em Salama e Valier (1978), no seu curso de Introdução à Economia Política, lecionado em Paris e traduzido em Portugal, encontramos também a pureza de um “conteúdo cientificamente incontestável”, definindo-se a economia política como o desvelar das “leis da produção mercantil e do modo de produção capitalista” (com temas tradicionais da economia política marxista como o conceito de valor, a definição de mercadoria, valor-de-uso e valor-de-troca, mais-valia absoluta e mais-valia relativa, etcetera). Contudo, na tradição marxista encontramos também a assunção, e de forma explícita, do caráter especificamente histórico das circunstâncias económicas, bem como a dimensão inerente à economia política de um conhecimento instrumental à nossa capacidade de intervenção no real (“por meio de uma prática científica correta à medida das nossas possibilidades”, cf. Zaluar Nunes apudSalama e Valier, 1978, p. 10).

Atualmente, acreditamos, permanece o desiderato de saber como se conforma o sistema capitalista, quais as suas contradições, qual é a sua essência e quais são as suas contingências: faz-se mesmo a pergunta “Por que é que o capitalismo tem sido tão longo e persistente?” (Reis, 2022). De facto, a economia política hoje (enquanto campo, e não domínio) deve abraçar um entendimento amplo, cedendo à obsessão com as epistemologias positivistas ciclicamente em voga, e, em igual medida, empenhando-se na busca por uma convergência do pensamento crítico. Trata-se de “compreender o que está em causa” (Reis, 2020, pp. 30 e segs.) por meio de um olhar que desvela a combinação das determinantes sociais, económicas e políticas, num esforço de síntese que abrange, inequivocamente, diversos âmbitos disciplinares no estudo dos temas (recorrentes) definidores e contextualizadores da economia contemporânea: são várias as dimensões de reflexão e análise que a economia política suscita, desde a industrialização (e desindustrialização), as políticas económicas (e sociais), as arquiteturas institucionais do capitalismo e a emergência da financeirização, as relações e implicações da CTI - Ciência, Tecnologia e Inovação (nos termos do modelo de desenvolvimento), às realidades do trabalho e do próprio papel do Estado. Sendo a economia política o estudo interdisciplinar que associa o económico, o social e o político - tendo em vista pensar os problemas e desafios do desenvolvimento para além da lógica linear do crescimento económico (cf. Sandroni, 1999; ex. Gadelha, 2007) -, importa promover uma “cultura de entendimento” (Mill, [1859], apudAbranches, 2010, p. 303) quanto à importância das amplas relações existentes entre as variáveis macroeconómicas e o devir social (nas suas mais variadas dimensões, i. e. histórica, político-ideológica, político-institucional e sociopolítica).

Morin ([1999] 2002) deixou-nos já o desafio de religarmos conhecimentos disciplinares distintos, para considerar o nosso Universo e a história. Para tal, será sempre um desafio das abordagens disciplinares manter ligações e solidariedades com outros objetos e outras metodologias, evitando cair numa mentalidade hiperdisciplinar, numa mentalidade de “proprietário” que nega qualquer incursão estranha na sua parcela de saber.

A organização disciplinar foi instituída no século XIX, nomeadamente com a formação das universidades modernas e a profissionalização do cientista (Ben-David, 1971; 7). Esta desenvolveu-se, ainda durante o século XX, acompanhando os progressos da ciência. O avanço do conhecimento, todavia, tem mostrado como a transdisciplinaridade é profícua e mesmo fundamental, sendo inúmeros os casos de migrações de ideias e conceitos, simbioses e transformações teóricas decorrentes do diálogo entre investigadores de áreas diferentes, potenciado, designadamente, pelas próprias migrações físicas e pela mobilidade entre universidades. Entenda-se, porém, que as disciplinas podem ser plenamente justificáveis, desde que preservem um campo de visão que reconheça e conceba a existência de ligações e solidariedades. Nessa medida, o importante não é apenas a interdisciplinaridade, é necessário também o “metadisciplinar”, nesse duplo sentido de conservar e ultrapassar. Não se pode demolir o que as disciplinas criaram, mas pode superar-se; não se pode romper completamente o enviesamento - é inclusive em condições de “incubação” que se faz uma escola científica, dando corpo e densidade à massa crítica. Podem, conquanto, privilegiar-se abordagens temáticas enriquecedoras, que propiciam avanços que as limitações disciplinares não alcançam.

Por tudo isto, uma disciplina deve ser aberta para não se tornar automatizada, atomizada ou mesmo esterilizar-se. Os termos interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade devem, pois, ser claramente entendidos. São termos polissémicos e facilmente manipuláveis para embalar o discurso. Por exemplo, interdisciplinaridade, em rigor, significa a convocação, pura e simplesmente, de diferentes disciplinas à volta de um mesmo tema, área ou campo, cada qual fazendo pouco mais do que expor o seu contributo, afirmar os seus direitos e inclusivamente defender a sua “soberania”. No entanto, aquilo que deve realçar-se é a ideia de cooperação e troca, a única atitude que, partindo das matrizes disciplinares, pode transformar a interdisciplinaridade em algo orgânico.

Por seu lado, a multidisciplinaridade aponta para a associação em concreto das disciplinas, por via de um projeto ou objeto de pesquisa comum. Já a transdisciplinaridade trata de abordagens que podem atravessar as próprias disciplinas - aponta, de facto, para investigação na “fronteira do conhecimento”. Não se trata de priorizar. Trata-se tão-só de valorizar os complexos inter-multi-trans-disciplinaridade, que realizam, de uma forma ou de outra, um papel importante no diálogo científico, abrindo possibilidades de cooperação e, por vezes, proporcionando projetos comuns de investigação. Encontrar a articulação entre as ciências é de facto um desafio, sem dúvida central, e, aqui, o convite deve evitar tanto o ensimesmamento disciplinar como a diluição das matrizes disciplinares; o convite deve ser ao conhecimento, em movimento, um conhecimento em vaivém, que progride “indo das partes ao todo e do todo às partes” (Morin, 2002 [1999], p. 116).

Já por seu lado, um campo por natureza multidisciplinar, como o da Economia Política, não é nem o mundo estrito da economia, nem o equivalente da política, pois a economia política é a “negação da economia isolada como dominante ou da política também isolada como prevalente” (Antunes e Pinto, 2017, p. 11). É, sem dúvida, um prisma de análise em que encontramos uma totalidade, prenhe em processos determinantes e determinados, que nos auxilia a encontrar uma tão necessária inteligibilidade do nosso devir contemporâneo - o qual se tem de considerar associado a temas e problemas da própria dinâmica histórica, e não tanto a assuntos disciplinares.

Um dos aspetos fundacionais da economia política na contemporaneidade é sem dúvida o (re)conhecimento de uma matriz de autores de referência, desde os clássicos, de Adam Smith (1723-1790) e Karl Marx (1818-1883) a Karl Polanyi (1886-1964) e Joseph A. Schumpeter (1883-1950), a autores mais recentes, como Gunnar Myrdal (1898-1987) ou Albert Hirschman (1915-2012) e Celso Furtado (1920-2004). Porventura, no quadro complexo e rico de uma tradição hoje bem viva, a que genericamente se pode chamar institucionalista, e que se constitui em pais-fundadores como Thorstein Veblen (1857-1929) (a economia trata do “processo da vida”) e John Commons (1862-1945). Uma tradição que deve admitir um diálogo crítico e mesmo conflitual (relembrando o tema da “conflitualidade interna das ciências sociais”, pioneiramente introduzido entre nós por Adérito Sedas Nunes, 1928-1991) com os mais formatados “novos institucionalistas”, celebrados em Estocolmo com o “Nobel”, como Ronald Coase (1910-2013), Douglass North (1920-2015) e mesmo Oliver Williamson (1932-2020) e Elinor Ostrom (1933-2012), que introduziram na discussão os problemas da coordenação e da organização, do tempo histórico e da governação policêntrica. Isto é, gente que persiste em olhar para a “economia impura” (Reis, 2009). É por isso que, hoje em dia, além do resgate de autores clássicos, incluindo ibero-americanos, importa revisitarmos temas centrais para uma melhor compreensão das realidades contemporâneas. São os temas prementes da economia do desenvolvimento, em que permanece a urgência de desenvolver regiões historicamente desfavorecidas, como a África e a América Latina.

Evocamos, assim, todo um conjunto de aspetos que amparam essa “cultura de entendimento”. Desde logo, quanto à questão do desenvolvimento e à utilidade de revisitar (e atualizar) a framework centro-periferia, introduzida por autores como Raúl Prebisch (1901-1986) ou Celso Furtado (1920-2004), dentre outros, atualmente marginalizados pelo pensamento dominante. Entre os quais, em Portugal, se podem nomear Adérito Sedas Nunes (1928-1991), Francisco Pereira de Moura (1925-1998), Manuela Silva (1932-2019) ou Mário Murteira (1933-2013). Ou, então, instituições dentro da administração pública, como o GEBEI - Grupo de Estudos Básicos de Economia Industrial, criado por João Cravinho (n. 1936), em 1973, que prolongou a sua atividade até 1986 - e que tem sido matéria de estudo (Reis, 2019) -, no quadro de uma investigação sobre a ciência económica em Portugal nas décadas mais recentes e sobre as ideias do debate económico (Neves e Reis, 2019; Neves, 2022).5

Tudo isto com a consciência de que as condicionantes da periferia se renovam. Neste aspeto, dependência gera dependência, tendo sido já observados e analisados, historicamente, os momentos6 em que se exacerbaram as condições de dependência nas periferias globais e, inclusive, no atual paradigma de desenvolvimento da tecnociência contemporânea - como assinalou Marini, um quadro em que a tecnologia (res)surge como o “novo anel” dessa situação de dependência nas periferias7 (Marini, 1991 [1973] p. 143). Assim mesmo, a cíclica atualização dos fatores de desenvolvimento vem sem dúvida colocar novos (e renovados) limites à periferia, tão mais relevantes quanto a discutimos em diferentes contextos - e, deste modo, os próprios conceitos de periferia e de dependência mantêm uma óbvia atualidade na Europa (Reis, 2023).

Pretendemos então, aqui, colocar (e recolocar) a atualidade de temas como a divisão internacional do trabalho, a “comoditização” da estrutura produtiva das periferias e semiperiferias, a estratégia do desenvolvimento histórico de substituição de importações, a sobrexploração (e espoliação) do trabalho,8 compaginando-os com temas mais recentes como a financeirização (cuja natureza poderá ser entendida de modo mais adequado - ex. crematística aristotélica, economia política clássica, etc.), a globalização ou a própria crise de confiança na autoridade e neutralidade da ciência e da tecnologia, bandeiras do modelo globalista de desenvolvimento, mas igualmente significando um potencial acelerador das desigualdades.

São temas que caracterizam o capitalismo contemporâneo e nos ajudam a compreender processos recentes da reorganização do sistema internacional, vivendo cada vez mais em regime de “autorreferenciamento”. Entre estes processos recentes temos a desregulação dos mercados e demais processos radicais de liberalização, com impactos de descolamento entre rendimento e riqueza real, visível na realidade das economias financeiras de crescimento lento, das empresas de reduzido fluxo de caixa, sintomas de um capitalismo em falência, que abdica inclusive da acumulação de divisas, naquilo que Ricardo Carneiro (2019), inspirando-se em K. Marx, tratou como o paradigma da “acumulação fictícia”: um conjunto de processos que tendem a reforçar as assimetrias globais, vincando geografias económicas e sociais, colocando com acuidade o debate sobre a divergência e a convergência, nos mais diferentes planos de análise das realidades normativas e performativas do mundo ocidental.

Com efeito, além das dinâmicas menosprezadas da economia real, há ainda as implicações no mundo do trabalho, em particular, a precarização das relações laborais. É, digamos assim, um hipertexto pautado pelos discursos de uma hierarquia monetária rígida, de interesses e de lobbies pouco claros, que conformam uma visão globalista, manifestamente performativa ao nível dos grandes fora (internacionais e nacionais) e do establishment político e corporativo dominante. O efeito ideológico deste globalismo - distinto dos fenómenos materiais da globalização - sobre o pensamento crítico é vigente não apenas entre as ciências sociais, mas condiciona ainda as orientações e as próprias possibilidades da ação política.

A economia política, como a própria economia do desenvolvimento, apresenta-se, assim, como um reduto de inteligibilidade, o outro lado da visão globalista, desejosa, por seu lado, de nos convencer das inevitabilidades do processo de globalização em curso. Perante esse discurso, importa, assim, não apenas buscar nas tradições e contributos do passado, mas igualmente conhecer as alternativas. É nesta perspetiva que se procura inserir, por exemplo, o novo desenvolvimentismo, ainda inspirado numa ideia de desenvolvimento em voga num passado não muito distante. A busca de um modelo alternativo está sem dúvida em aberto: algo que supere o modelo de uma industrialização (e crescimento) sem emprego, ancorado em teorias da modernização, como tivemos nos anos 1950 e 1960, e que igualmente resgate uma ideia de republicanismo que logre posicionar-se como contrapeso do ultraliberalismo económico.

Continua a ser, hoje, inegavelmente, um momento histórico de reflexão, para o qual devemos considerar todos os contributos possíveis, sem enviesamentos disciplinares, mas antes em permanente diálogo, entre tradições de pensamento diversas, ainda que em tensão. É dentro deste espírito que congregamos neste dossiê temático um conjunto de contributos, com autores de diversas proveniências, disciplinares, interdisciplinares, de Portugal e do Brasil. Perpassam temas clássicos da Economia Política, desde leituras clássicas à análise das próprias dinâmicas do Trabalho e não esquecendo os crescentes papéis da Ciência e da Tecnologia, atualmente moldadas pelo discurso “inovacionista”, i. e., a assunção (quasi-)hegemónica da Inovação enquanto mantra discursivo e princípio organizador de empresas e mesmo políticas e instituições republicanas e democratas, que, nas suas implicações sociais e económicas, participam hoje para prefigurar uma alegada Economia do Imaterial - cujo alcance é hoje cada vez mais sentido na aceleração do nosso quotidiano, e do próprio lazer, com impactos particularmente visíveis no mundo do trabalho objecto de uma reestruturação produtiva em curso (ex. capitalismo de plataforma e novo proletariado emergente), desmaterializando relações produtivas e os determinantes sociais e económicos do nosso tempo.

Com o primeiro artigo, de Castro Caldas, entendemos desde logo a capilaridade histórica de elementos estruturantes da economia política contemporânea, tais como os relativos aos processos de financeirização e de acumulação, enquanto componentes dissolventes da economia real, das dinâmicas produtivas e mais materiais de nossas sociedades, atualmente negligenciadas pela limitada compreensão da economia política, dos autores clássicos aos marcos teórico-ideológicos do próprio devir contemporâneo. O contributo de Zahluth Bastos relembra-nos precisamente a riqueza de olhar para autores e nomes excêntricos ao mainstream anglófilo e/ou de recorte mais eurocêntrico, ao resgatar a obra e contributo de Maria da Conceição Tavares, portuguesa com trajetória académica no Brasil e representatividade no panteão do pensamento económico latino-americano, cujo contributo é decisivo para pensarmos os desdobramentos da dependência nos mais diferentes contextos. O artigo de Invernizzi, por seu lado, aborda, sob um ponto de vista das relações da ciência e tecnologia com a sociedade, algumas tensões em torno do projeto globalista da tecnociência, registando os atuais limites da participação pública e do ativismo social em influenciar a produção e consumo de C&T, ao mesmo tempo que considera a promessa de efeitos democratizantes fruto desses momentos de mobilização coletiva, ameaçados todavia pelas relações de poder fundamentais que atravessam o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no capitalismo contemporâneo. Em Antunes, encontramos um relato das características do chamado trabalho uberizado e as lógicas depredadoras da dignidade humana com a expansão das plataformas digitais, consumando na atualidade o papel das tecnologias informacionais e digitais como elo de uma dependência renovada das periferias na atual divisão internacional do trabalho. Já Mira Godinho proporciona uma comparação entre Brasil e Portugal face ao crescimento da produção científica e tecnológica mundial, registando a permanência de assimetrias internacionais, um atraso não tanto verificado na produção de conhecimento científico (espelho de um absoluto produtivismo académico que contamina o nosso tempo), como em indicadores proxies do desenvolvimento tecnológico, ainda bastante singelo em relação às expectativas da política de inovação. Por fim, Brandão demonstra a presença na nossa contemporaneidade de um discurso entusiasta (quando não mesmo caricato) em torno da inovação aberta, proveniente dos meios gerencialistas e atualmente veiculado de forma crescente em meios políticos, espaços públicos e instituições tradicionais à própria cultura científica. Questionando a sua própria originalidade, enquanto novo mantra do inovacionismo que prefigura a economia política contemporânea, ficamos a conhecer alguns aspetos do lado obscuro da inovação aberta no que respeita à organização (social) da produção e disseminação do conhecimento.

O culminar destas temáticas, e da relevância de revisitar a economia política e de resgatar inclusive autores e teorias variadas para um debate amplo neste campo multidisciplinar, é a constatação de que o conhecimento mainstream das realidades periféricas é limitado e frequentemente mediado pela hegemonia cultural e intelectual anglófila. Cremos, em suma, que a tendência de subordinação do nosso pensamento aos modismos globais não deve afastar-nos das tradições do pensamento ibérico e latino-americano. Urge deste modo relembrar que as trajetórias das várias periferias são determinadas por condicionantes diversas, cujas características são hoje (como já antes o eram) centrais para compreender os problemas do desenvolvimento e do capitalismo ocidental e os desafios das sociedades contemporâneas nos mais diversos contextos.

Referências bibliográficas

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Notas

1 Trabalho realizado no âmbito da Unidade de I&D Centre for Functional Ecology - Science for People & the Planet (CFE), com a referência UIDB/04004/2020, com apoio financeiro da FCT/MCTES através de fundos nacionais (PIDDAC).

2 https://dialogoslusobrasileiros.wordpress.com/ [consultado em 22 de fevereiro de 2023].

3 No Brasil, a disposição para os debates de economia política tem a sua tradição, inclusive numa perspetiva multidisciplinar, desde a corrente histórico-estruturalista (cepalinos) e das teorias da dependência dos anos 60, hoje na terceira geração e envolvendo economistas, sociólogos, cientistas políticos e historiadores. Em 1996, foi instituída a Sociedade Brasileira de Economia Política - SBEP, que conta com uma revista. Disponível em: https://www.sep.org.br/01_sites/01/index.php [consultado em 30 de janeiro de 2023].

4 O excerto de Luxemburgo (1925, p. 35) continua nos seguintes termos: “O operário comum, com uma vaga ideia sobre o que a economia política ensina, atribuirá a sua incerteza à insuficiência da sua própria cultura geral. Contudo, neste domínio, partilha de certa maneira o seu infortúnio com muitos sábios e intelectuais que escrevem obras volumosas e que dão cursos de economia política nas universidades. No entanto, por mais incrível que possa parecer, é um facto que a maior parte dos especialistas em economia política apenas têm noções confusas sobre o verdadeiro objeto do seu saber”.

5 Hoje, para lá do que acontece no âmbito de programas de doutoramento de reconhecido êxito, é muito significativa a produção académica por parte de autores do meio universitário português, numa lógica interdisciplinar em que se discutem as relações de poder, a formação da decisão, o contexto histórico, institucional e social, numa perspetiva em que se procura entender a economia através das suas formas organizativas e das relações entre produção e reprodução social. Um inventário cuidado destes trabalhos não cabe no âmbito deste texto.

6 Sendo um conceito suscetível de controvérsia na ciência económica mainstream (marcada por um viés ocidental e anglófilo), por ser inclusive contra-hegemónico às narrativas globalistas, o conceito de dependência é, todavia, um consenso (irrefutável) na tradição latino-americana, desde as correntes marxistas, histórico-estruturalistas (cepalinos) e mesmo nos (neo)desenvolvimentistas de pendor mais liberal: i. e., a dependência é a situação de dominação dentro do sistema mundial capitalista e um conceito que, de um ponto de vista analítico, é útil para descrever as relações económicas entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, em cujas relações, portanto, se verifica, inequivocamente, a “existência de dependência num nível essencial e fundamental” (Dussel, 1988, p. 349). Existe, inclusive, uma periodização da dependência em cinco momentos: i) séculos XVI-XVII, a época da conquista pelos povos europeus e de extração de produtos coloniais, em que se regista extração de riqueza (seguindo inclusive Immanuel Wallerstein, 1930-2019); ii) séculos XVIII-XIX/1880, o desenvolvimento do imperialismo propriamente dito com o intercâmbio desigual de matérias-primas por produtos industriais, produzindo-se o começo estrutural da transferência de “mais-valor”, com o centro explorando as periferias; iii) 1880-1929, um ciclo de exacerbamento do imperialismo, em que se acentuam os mecanismos anteriores; iv) 1930-1950, o chamado ciclo populista, em que o capitalismo periférico entra em competição com o capitalismo central e em que se viveu a ilusão monopolista do capital nacionalista, ficando cada vez mais clara que a superação da situação colonial não superara a condição de dependência (i. e., prenúncio do subimperialismo e/ou neocolonialismo);v) os anos 1950 em diante, com a integração do desenvolvimentismo à competição internacional, tendo-se registado a interpenetração de capitais financeiros e produtivos, verificado o crescimento dos grupos transnacionais a transpor os tecidos produtivos nacionais e o endividamento crescente do estado nacional, uma etapa consolidada desde os anos 1980, oscilando entre figurinos democráticos e/ou militares (Dussel, 1988, pp. 358 e segs.). De realçar, ainda, os níveis ou mecanismos pelos quais se exerce/u a dependência: (1) um tipo de intercâmbio desigual concreto, em que a competição entre mercadorias de países desenvolvidos e menos desenvolvidos se reflete na queda dos preços das nações periféricas; (2) mercadorias produzidas exclusiva ou especificamente pelo capital menos desenvolvido no país periférico, e. g. café, soja, cobre, salitre, etc.; (3) mercadorias produzidas exclusivamente pelo capital mais desenvolvido (monopólio tecnológico); (4) por meio de créditos/financiamento internacional a países periféricos; (5) a crescente presença de corporações transnacionais (i. e., a presença direta de capital global operando com capital produtivo local, e. g., re-/des-/localização de fábricas) (Dussel, 1988, pp. 353 e segs.).

7 No que respeita às raízes da dependência, pode resumir-se, sob uma perspetiva histórica (de acordo, por exemplo, com Santos, [1972, 1977] 2021, p. 14): primeiro, o passado colonial; segundo, as atualizações subimperialista e neocolonial, nomeadamente sob égide das políticas de importação de tecnologia e capital estrangeiros, assim como, por meio da adoção de padrões de consumo que acentuam o divórcio entre a estrutura produtiva e as necessidades de consumo de massas - ou seja, uma atualização da divisão internacional do trabalho sob um paradigma de subordinação que mantém as seguintes características: i) produção especializada para o mercado internacional; ii) exploração intensiva de mão de obra; iii) e baixa remuneração; i. e., o “trio da dependência”. Por fim, terceira etapa de atualização dessas condicionantes sucede-se com os impactos da política de acesso e desenvolvimento da tecnologia, o terceiro anel da dependência, cf. Marini (1991 [1973]), e porventura o elo que permite a cíclica renovação da dependência estrutural.

8 Ruy Mauro Marini (1932-1997) avançou sobretudo com o conceito de superexploração do trabalho, no sentido de “aumento da intensidade do trabalho” que aparece, nessa perspetiva, como “um aumento da mais-valia, obtido através de uma maior exploração do trabalhador e não do incremento de sua capacidade produtiva”; uma originalidade da escola marxista latino-americana, ao teorizar este fenómeno do capitalismo moderno, Marini identifica mesmo os três mecanismos pelos quais o capitalismo força o trabalhador à condição de oprimido: i. e., “a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho, e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho” (Marini, [1973], pp. 124--126). Dussel (1988), por seu lado, interpreta essa superexploração do trabalho mariniana em termos de “compensação da transferência de mais-valor”, espécie de contrapartida que redunda em “roubo de vida humana”, “trabalho vivo extraído aos países pobres”, países espoliados para manutenção da taxa de lucro dos mercados internacionais. Para Dussel, a superexploração é a consequência da transferência de mais-valia, algo que é apresentando pela teoria marxista como intrínseca da dinâmica internacional do capital, i. e., para que haja transferência de mais-valia é necessário que o capital dependente sobreexplore o seu trabalho assalariado. Em suma, pontua a atualidade deste paradigma de análise, em que, observando-se um padrão de relações económicas, os países periféricos tendem a adquirir traços socioeconómicos comuns, que ainda hoje caracterizam grosso modo o subdesenvolvimento na periferia: (1) desemprego estrutural; (2) desequilíbrios externos (vulnerabilidade face às crises internacionais); e (3) tendência à deterioração dos termos de troca (incluindo dificuldades/limitações face à depreciação da moeda e no combate à inflação).

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