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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.247 Lisboa jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023247.02 

Artigos

A (des)medicalização dos corpos intersexo: dos discursos e práticas médicas de profissionais de saúde às reivindicações de ativistas intersexo.

The (de)medicalization of intersex bodies: from the discourses and medical practices of health professionals to the demands of intersex activists.

Sara Isabel Maciel Lemos1 
http://orcid.org/0000-0001-9904-8503

Liliana Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0001-6900-9634

1. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto » Rua Alfredo Allen - 4200-135 Porto, Portugal. saramlemoss@gmail.com; frodrigues.liliana@gmail.com


Resumo

Neste artigo reflete-se sobre a forma como a intersexualidade é entendida por profissionais de saúde, sobre as perspetivas de ativistas e sobre o modo como os países têm lidado com estas questões. Percebe-se que as variações intersexo, que na maior parte dos casos não necessitam de intervenção médica, têm sido delegadas ao seio da medicina, assistindo-se a um processo de medicalização da intersexualidade e a uma tentativa de normalização dos corpos. As expectativas relacionadas com o dimorfismo sexual influenciam os discursos de profissionais de saúde, as práticas médicas e, consequentemente, as vidas das pessoas.

Palavras-chave: intersexualidade; dimorfismo sexual; (des)medicalização; profissionais de saúde

Abstract

This article reflects on how intersexuality is understood by health professionals, on the perspectives of activists and on how countries have dealt with these issues. It is perceived that intersex variations, which in most cases do not require medical intervention, have been delegated to the bosom of medicine, witnessing a process of medicalization of intersexuality and an attempt to normalize the bodies. The expectations related to sexual dimorphism influence the discourses of health professionals, medical practices and, consequently, the lives of people.

Keywords: intersexuality; sexual dimorphism; (de)medicalization; health care professionals

Introdução

As sociedades, na sua generalidade, assumem uma visão dicotómica relativamente ao sexo e, por isso, reconhecem e categorizam as pessoas como sendo do sexo feminino ou do sexo masculino. No entanto, essas categorizações verificam-se muito limitadas, pois não têm em consideração as 40 variações das características sexuais existentes (Randelovic, 2018).

Neste sentido, pessoas que aparentemente divergem de uma norma socialmente construída, e não se enquadram nas categorias de sexo existentes, são tratadas como tendo anomalias e como necessitando de correções e normalizações, mesmo que as suas variações não se constituam, de todo, como uma ameaça à sua saúde. Estas pessoas encontram inúmeras dificuldades, obstáculos e preconceitos (Cannoot, 2021) e passam por experiências discriminatórias decorrentes de uma organização da sociedade em que o género é pensado de forma rígida e binária e, por isso, excludente (Nogueira e Oliveira, 2010). Veem os seus corpos mutilados e alterados em consequência de procedimentos médicos que procuram colocá-los em conformidade com as normas sociais e reduzir o stress de pais/mães (Prandelli e Testoni, 2020).

Ao longo do tempo, e dependendo dos contextos, têm-se utilizado termos como “hermafrodita”, “intersexo”, “perturbações/desordens do desenvolvimento sexual” e “variações do desenvolvimento sexual” para fazer referência a estas pessoas e à sua condição (Chase, 1998; Reis, 2007; Cools et al., 2016; Prandelli e Testoni, 2020). Ainda que não exista consenso quanto aos termos a usar, sabe-se que estes influenciam a forma como profissionais de saúde interpretam as situações médicas, como pais/mães veem os/as/es seus filhos/as/es e como as próprias pessoas se compreendem (Reis, 2007; Machado, 2008).

Neste sentido, este artigo procura refletir sobre os termos utilizados e analisar as violações de direitos humanos a que estas pessoas, desde há muito tempo, estão sujeitas, bem como a forma como o movimento intersexo e os governos dos vários países, nomeadamente Portugal, têm lidado com estas questões. Para além disso, este trabalho procura compreender os discursos e práticas médicas de profissionais de saúde.

Importa referir que, nesta publicação, será utilizado o termo “intersexo”, por se entender que todos os outros apresentados são patologizantes, tendo associados a si a ideia de que os corpos intersexo devem ser corrigidos e normalizados. Ainda assim, há a consciência de que poderão existir pessoas intersexo que não se revejam e não optem pela utilização do mesmo. Como Brubaker e Cooper (2000) abordam, há uma diferença entre os termos quotidianos em uso nas experiências sociais das pessoas (categoria da prática) e os termos aplicados ao estudo de um determinado objeto social (categoria da análise); neste artigo, o termo “intersexo” é discutido como uma categoria de análise.

Termos utilizados e as perspetivas associadas

Durante muito tempo, pessoas que não se enquadravam nas categorias de sexo existentes eram denominadas de hermafroditas, um termo que é considerado vago, degradante e sensacionalista (Reis, 2007). Apesar de atualmente não ser tão usado, ainda pode ser encontrado em escritos médicos e até nos próprios discursos de algumas pessoas profissionais de saúde (Miller et al., 2018).

De facto, desde há muito tempo que o vocábulo “hermafrodita” é contestado, nomeadamente por ativistas intersexo. No início do século XIX, nos EUA, um conjunto de pessoas ativistas desagradadas com os termos utilizados, nomeadamente por profissionais de saúde, defendiam e autodenominavam-se como pessoas intersexo (Chase, 1998; Reis, 2007). Procuravam lutar contra o estigma perpetuado pelos rótulos negativos e apoiar as pessoas e grupos intersexo. Em simultâneo, utilizavam conscientemente o termo “hermafrodita”, apropriando-se do rótulo negativo, com o objetivo de chamar a atenção para as suas inquietações e de dissipar conotações patológicas associadas (Reis, 2007). Desta forma, o termo “intersexo” ganhou uma valência política, já que ativistas vestiam t-shirts com a expressão “Hermafroditas com Atitude”1 e protestavam em conferências médicas contra a estigmatização e as cirurgias genitais infantis desnecessárias (Chase, 1998; Reis, 2007).

Apesar das reivindicações de ativistas face à utilização do termo “intersexo”, o Consenso de Chicago2 surgiu como oposição a essa mesma utilização. De facto, as recomendações que surgiram apontavam para o abandono de termos degradantes como “hermafrodita”, mas também de termos como “intersexo”, aconselhando-se a utilização da expressão “perturbação do desenvolvimento sexual” (Lee et al., 2006; Machado, 2008). Nessa altura, os argumentos utilizados estavam relacionados com os avanços na identificação de causas genéticas moleculares das perturbações do desenvolvimento sexual, com uma maior consciência sobre questões éticas e com questões relacionadas com a defesa das pessoas (Lee et al., 2006). Acreditava-se que os termos deviam ser descritivos, refletir, quando possível, a etiologia genética, e acomodar o espectro de variações fenotípicas (Lee et al., 2006). As pessoas que defendem a utilização da expressão “perturbação do desenvolvimento sexual” acreditam que esta não enfatiza a identidade política e as conotações sexuais associadas ao termo “intersexo” nem a degradação associada à palavra “hermafrodita” (Reis, 2007; Danon e Schweizer, 2020).

No entanto, a utilização da expressão referida enquadra as variações em causa como uma questão patológica e, portanto, “um problema” no domínio biológico/médico (em vez do social), dando, dessa forma, legitimidade às pessoas profissionais de saúde para tratarem a suposta patologia (Reis, 2007; Davis, 2015a). O rótulo de “perturbação” marca o corpo da pessoa como algo que precisa de ser reparado até que se encaixe nas categorias binárias socialmente reconhecidas - feminino e masculino (Holmes, 2002).

Neste sentido, apesar da expressão “perturbação do desenvolvimento sexual” ser amplamente aceite e usada pela comunidade médica (Lee et al., 2016; Miller, 2018), é também rejeitada por muitas pessoas, nomeadamente por ativistas3, pelas próprias pessoas intersexo e, ainda, por organizações não governamentais, que a entendem como estigmatizante e patologizante (Reis, 2007; FRA, 2015; Carpenter, 2016; Bauer, Truffer e Crocetti, 2020). Efetivamente, algumas pessoas ativistas anseiam destacar os problemas causados pelas fronteiras conservadoras de género, questionando assim o posicionamento social da pessoa intersexo (Davis, 2015a).

Violação dos direitos de pessoas intersexo

Independentemente dos termos utilizados, é inegável a existência de pessoas que não se encaixam nas categorias de sexo amplamente aceites. Estima-se que entre 0,4% e 1,7% das pessoas podem ter traços intersexo (Spencer, 2016; Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019). Os números são vagos, devido às divergências face às definições e às variações intersexo consideradas, bem como ao estigma associado às pessoas intersexo (Carpenter, 2016), que sempre foram alvo de discriminação e de violação dos seus direitos.

Como Foucault (2001 [1999]) abordou, os ditos hermafroditas constituíam um tipo de monstro na Idade Clássica. Até ao século XVI, nomeadamente em países europeus, o facto de se ser hermafrodita justificava a condenação à morte. No século XVII, o panorama alterou-se, e as pessoas não eram condenadas por serem hermafroditas; no entanto, caso fossem reconhecidas como tal, deveriam escolher o seu sexo - aquele que fosse dominante nelas -, devendo-se comportar em função dessa categoria (em relação ao vestuário, por exemplo). Caso isso não acontecesse, incorriam num erro grave contra as leis penais (Foucault, 2001 [1999]). Já no século XIX, as pessoas intersexo eram tidas como “imperfeições da natureza”, cujo comportamento poderia evoluir para determinadas condutas criminosas (Foucault, 2001 [1999]; Machado, 2008).

Neste sentido, segundo Carpenter (2016), as violações dos direitos de pessoas intersexo assumem diferentes formas, consoante o tempo histórico e os locais do mundo. Nos locais com sistemas médicos acessíveis, as violações dos direitos destas pessoas ocorrem em ambientes médicos, com o objetivo de se reconstruir os seus corpos tendo em conta as normas sociais, o que evidencia a desnecessidade de intervenção médica, a falta de consentimento válido e a violação do direito à autonomia (Carpenter, 2016). Dentro da cultura binária, naturalizada pela ciência4 e, em concreto, por profissionais de saúde ( Rodrigues, Carneiro e Nogueira, 2021), as pessoas com características não binárias são tidas como erros da natureza, que devem ser corrigidos para que os seus corpos se encaixem numa das categorias, com o objetivo de facilitar as suas vidas dentro dos padrões atuais (Fernández-Garrido e Medina- Domenech, 2020).

A política médica tradicional sobre os corpos intersexo, estabelecida em 1950 na Universidade Johns Hopkins, foi o protocolo dominante até 2006 e ficou conhecida como o modelo do género ideal de criação: segundo este modelo, as crianças seriam psicossexualmente neutras à nascença, e o género seria apenas o produto da educação/socialização (Dreger e Herndon, 2009; Hemesath et al., 2019). Assim, os processos de socialização durante os primeiros anos, bem como as cirurgias de normalização genital - que deveriam acontecer antes dos 18 meses de idade -, eram necessários para o bem-estar das crianças intersexo, para a sua aceitação social e para uma identidade de género estável (Carpenter, 2016; Danon, 2019; Karkazis, Tamar-Mattis e Kon, 2010; Vieira et al., 2021). Desse modo, todas as crianças sexualmente ambíguas deveriam ser transformadas em crianças do sexo feminino ou masculino, com uma aparência inequívoca e educadas como tal (segundo os papéis/expectativas de género estabelecidas socialmente), para garantir identidades de género igualmente inequívocas (Dreger e Herndon, 2009). Para além disso, o ideal era que as pessoas visadas nunca descobrissem o seu historial médico, pois tal descoberta poderia interferir na sua identidade de género (Spinola- Castro, 2005; Intersexuelle Menschen e.V. / XY-Frauen e Humboldt Law Clinic, 2011). Quando a criança atingia a puberdade, eram administradas determinadas hormonas com o objetivo de instigar o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, em conformidade com o sexo que lhe tivesse sido atribuído ( Dreger e Herndon, 2009).

Segundo as ideias de Money, esperava-se, ainda, que os rapazes tivessem um pénis de tamanho razoável e funcional e que as raparigas tivessem um orifício grande o suficiente para serem penetradas por um pénis de dimensões consideradas, socialmente, normais (Dreger, 1998; Greenberg, 2003). Na maioria dos casos, construíam-se corpos femininos, pois seria mais fácil criar corpos passivos, aos quais se exige pouca atividade e sensibilidade (Pino, 2007). Neste sentido, importa recordar o caso de David Reimer que, não sendo uma pessoa intersexo, foi alvo de procedimentos baseados no modelo de Money. Para este, se Reimer, que ficou com graves complicações no pénis após uma circuncisão mal-sucedida, fosse submetido a cirurgias de construção de uma vagina e fosse educado como uma mulher desde cedo, teria uma vida normal e estável - o que, efetivamente, acabou por não acontecer (Dreger e Herndon, 2009).

Movimento intersexo e a reação às violações de direitos humanos

Tendo em conta as práticas médicas vigentes, baseadas essencialmente no modelo de Money e outras pessoas colaboradoras, a partir do final da década de 1980, várias organizações e grupos foram surgindo, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos (Vieira et al., 2021). Estas organizações enquadravam certos aspetos do tratamento médico como abusos dos direitos humanos e davam visibilidade a muitas pessoas intersexo, que partilhavam histórias e experiências semelhantes (Crocetti et al., 2020). As pessoas abordavam a forma como as cirurgias genitais e/ou a remoção de órgãos sexuais internos a que tinham sido sujeitas mutilavam e patologizavam os seus corpos e comprometiam as suas sensações sexuais e relações íntimas, e falavam ainda da vergonha, do secretismo e da alienação social decorrente das mesmas (Danon, 2019).

Paralelamente ao surgimento e crescimento de várias organizações intersexo, surgiram, por parte de várias disciplinas científicas, questionamentos e críticas ao trabalho de Money, pondo em causa as ideias sexistas e heterossexistas de várias pessoas profissionais de saúde sobre o que era considerado normal (Dreger e Herndon, 2009; Vieira et al., 2021).

Assim, o crescente debate e consequente visibilidade destas questões contribuíram para o surgimento do termo Mutilação Genital Intersexo (MGI), que faz referência a aspetos específicos do tratamento médico que se constituem como violações dos direitos humanos (Bauer, Truffer e Crocetti, 2020; Vieira et al., 2021). As práticas de MGI podem ser agrupadas em quatro categorias: cirurgias de masculinização; procedimentos de feminização; procedimentos de esterilização; e outras práticas médicas e não médicas desnecessárias e prejudiciais, como a toma de hormonas, os exames genitais forçados e repetitivos, as dilatações vaginais e a captação de imagens dos genitais sem justificação (Bauer e Truffer, 2019; Bauer, Truffer e Crocetti, 2020).

A visibilidade e a reflexão sobre as questões intersexo proliferaram noutras partes do mundo, nomeadamente no Canadá, Austrália, México, Argentina e Costa Rica, essencialmente a partir do início do seculo XXI, levando ao descentramento do ativismo intersexo, que até então tinha mais evidência e influência a partir do contexto americano (Vieira et al., 2021).

Assim, o direito à autonomia corporal e à autodeterminação e o fim da estigmatização foram, e continuam a ser, os principais objetivos dos vários grupos ativistas que foram surgindo (Carpenter, 2016). Muitas dessas organizações defendem que as cirurgias em pessoas intersexo devem ser adiadas, exceto aquelas que sejam estritamente necessárias, até que as crianças atinjam a idade em já que têm a capacidade de decidir por si mesmas (Greenberg, 2003; Greenberg, 2012). Esta posição sustenta-se na ideia de que essas cirurgias: não são medicamente necessárias; não devem ser usadas como alívio da ansiedade de pais/mães; podem interferir na satisfação sexual das pessoas; frequentemente resultam em cicatrizes e dores severas; são invasivas; provocam estigmas e traumas; violam o direito à autonomia corporal destas pessoas (Greenberg, 2003; Greenberg, 2012).

Tentativa de mudança das práticas médicas - consenso de chicago e suas consequências

A prática comum no seio médico, relativamente a pessoas intersexo, baseou-se, durante muito tempo, no modelo desenvolvido pela Universidade de Johns Hopkins. No entanto, aparentemente, com o Consenso de Chicago, em 2006, surgiram novas recomendações. Os participantes desta reunião chegaram às seguintes conclusões: todas as pessoas deveriam receber uma atribuição binária de género, mas apenas após a avaliação de um especialista; a cirurgia de feminização só deveria ser considerada em casos de virilização grave; a intervenção cirúrgica deveria basear-se nos resultados funcionais e não na aparência estética da genitália; deveria existir uma equipa multidisciplinar (incluindo pessoas profissionais relacionadas com a saúde mental) para lidar com pessoas intersexo e suas famílias; apenas profissionais com treino e experiência específicos deveriam realizar procedimentos cirúrgicos; deveria existir uma comunicação aberta com as pessoas, bem como a sua participação na tomada de decisões (Lee et al., 2006; Pasterski, Prentice e Hughes, 2010).

Para Prandelli e Testoni (2020), o Consenso de Chicago refletiu um distanciamento das abordagens anteriores, que insistiam fortemente na normalização da genitália, representando, por isso, um importante marco para quem defendia e lutava para transformar as práticas médicas até então (Jenkins e Short, 2017). No entanto, para autores como Machado (2008), as orientações relativas às questões intersexo mantiveram-se praticamente as mesmas, sobretudo no que diz respeito à intervenção hormonal e cirúrgica, bem como à questão da funcionalidade sexual e reprodutiva, bem presente na época de Money. É possível identificar somente algumas mudanças, como a recomendação de que as cirurgias para redução do clitóris em crianças com hiperplasia adrenal congénita5 só deveriam ser consideradas em graus de virilização grave dos órgãos genitais (Prader III a V)6, bem como a ênfase na importância das equipas multidisciplinares e da participação da família e dos grupos de apoio - embora, no que diz respeito à família, esta tenha sido posicionada em lugares muito circunscritos, não havendo recomendações específicas que tratem da sua participação em todo o processo (Machado, 2008).

De facto, em 2016, foi publicada uma atualização do Consenso de Chicago, que revelou que o debate ético em torno da nomenclatura e das cirurgias precoces ainda não estava resolvido (Lee et al., 2016; Hegarty et al., 2020). As cirurgias continuam a levantar questões e dilemas relativos às indicações, timings e procedimentos (Lee et al., 2016). Neste sentido, e ainda que não existam dados sólidos sobre a prevalência das intervenções de normalização de corpos (FRA, 2015; Carpenter, 2016), parece haver evidências de que estas continuam a ocorrer de forma rotineira e central (Lossie e Green, 2015; Carpenter, 2016; Prandelli e Testoni, 2020).

A este respeito, sabe-se, por exemplo, que embora o conjunto de especialistas de Chicago reconhecesse os danos resultantes das cirurgias clitorianas infantis, apenas algumas equipas hospitalares de países da União Europeia relataram uma redução nas taxas de realização dessas cirurgias (Pasterski, Prentice e Hughes, 2010), e as estatísticas nacionais em países como o Reino Unido mostram até um aumento desde 2006 (Creighton et al., 2014).

Ademais, num estudo publicado em 2018, em que se comparavam as práticas médicas em Israel e na Alemanha, verificou-se que nos hospitais de Israel ocorrem com frequência cirurgias precoces irreversíveis em crianças com órgãos genitais ambíguos, bem como a remoção de órgãos sexuais internos (Danon, 2019). Na Alemanha, o panorama seria diferente, havendo, nomeadamente, uma tentativa de tomada de decisões conjuntas e uma comunicação aberta entre todas as pessoas profissionais de saúde e pais/mães (Danon, 2019). No entanto, parecem existir complicações ao nível dessa comunicação e da tomada de decisões conjuntas, sobretudo quando há conflitos com pais e mães que discordam dos pontos de vista dos profissionais (Danon, 2019). Além disso, verifica-se que muitos hospitais alemães ainda mantêm políticas de tratamento que privilegiam a urgente normalização dos corpos intersexo (Danon, 2019).

Em Itália, também se verificam problemas ao nível do apoio através de equipas multidisciplinares, do treino adequado para profissionais de saúde e do fornecimento de informações e apoio para as famílias visadas (Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019). Mais ainda, os procedimentos cirúrgicos em bebés e crianças muito jovens parecem continuar a acontecer, nomeadamente em Itália, na Alemanha, na Dinamarca e no Reino Unido (International, 2017; Monro et al., 2017; Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019).

Knight (2017) sublinha que algumas pessoas profissionais de saúde, nomeadamente na Califórnia, continuam a recomendar e a conduzir cirurgias desnecessárias do ponto de vista médico, de alto risco e sem benefícios comprovados. Não há, atualmente, nenhuma evidência de que as recomendações do Consenso de Chicago ou de outros organismos tenham tido um impacto significativo na prática médica, que sempre se baseou no sigilo e na cirurgia genital precoce (Hegarty et al., 2020). As taxas de realização de cirurgias não diminuíram de modo significativo (Creighton et al., 2014), e os grupos de apoio e as ONG ainda ouvem famílias e pessoas intersexo queixarem-se de que não tiveram um entendimento completo das informações antes de concordarem com o tratamento (Lossie e Green, 2015). Parece haver dificuldade em passar de um antigo modelo de gestão clínica da intersexualidade, um modelo paternalista unilateral - em que profissionais de saúde impõem de forma autoritária e unilateral as suas perspetivas -, para um novo modelo de cuidado centrado na pessoa intersexo (Flor, Dauder e García, 2018).

Importa deixar claro que as violações dos direitos das pessoas intersexo não se restringem a cirurgias precoces não consensuais. O uso de terapia hormonal, os testes de sensibilidade nos órgãos genitais, os exames médicos inadequados, as fotografias médicas dos órgãos genitais e os cuidados posteriores às cirurgias (como a dilatação vaginal), constituem-se como problemas graves. No caso da dilatação vaginal, sabe-se que ainda continua a acontecer em bebés e crianças, apesar de o grupo de especialistas de Chicago afirmar que não deve ocorrer antes da puberdade (Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019).

Apesar de tudo, e ainda que em pequena escala, algumas pessoas profissionais de saúde parecem começar a adotar uma posição diferente em relação às recomendações que se fazem acerca das cirurgias medicamente desnecessárias, mostrando uma maior preocupação e desconforto relativamente ao paradigma vigente (Creighton et al., 2014; Knight, 2017).

Discursos de profissionais de saúde face a cirurgias precoces em pessoas intersexo

Não se consegue conceber um padrão relativamente à forma como profissionais de saúde atuam quando estão perante pessoas intersexo. Em diferentes locais do mundo, sobretudo em países da Europa e nos EUA, há profissionais de saúde que privilegiam intervenções precoces e outros que apoiam procedimentos posteriores (Knight, 2017; Hegarty et al., 2020).

Um dos argumentos mais utilizados para a defesa da realização de cirurgias precoces em pessoas intersexo assenta na premissa de que esses procedimentos irão tranquilizar e diminuir o sofrimento de pais e mães (Mouriquand et al., 2014; Hemesath et al., 2019; Hegarty et al., 2020; Prandelli e Testoni, 2020). Nota-se uma tentativa de sustentar esta posição com recurso a teorias e aspetos psicológicos (Dayrell, 2008; Hemesath et al., 2019). Há uma tendência para justificar a necessidade de cirurgias precoces tendo em conta, por um lado, o sofrimento psicológico de pais e mães e, por outro, o sofrimento e o estigma que poderá recair sobre as crianças (Hegarty, Smith e Bogan, 2019; Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019; Hegarty et al., 2020; Prandelli e Testoni, 2020). Para Hemesath e seus colaboradores (2019), a ausência de uma definição inicial do sexo da criança pode causar um impacto emocional nos pais e mães e, além disso, o meio social pode não respeitar condições raras. A falta de conhecimento sobre as variações intersexo por parte da sociedade pode provocar reações preconceituosas contra as crianças e as suas famílias. Ademais, as pessoas defensores desta posição afirmam, tendo em conta perspetivas binárias e discriminatórias, que a consciência de ter uma genitália atípica causa uma perceção corporal negativa e gera confusão em relação aos sentidos de masculinidade e feminilidade, podendo, por isso, levar a comportamentos inconsistentes com os esperados para o sexo definido no nascimento (Zucker, 2006). Assim, a cirurgia precoce, segundo essas pessoas, permite desencadear a construção do género da pessoa intersexo (Hemesath et al., 2019).

Argumentos baseados em especialidades como a endocrinologia são também recorrentes, numa tentativa clara de relegar os corpos das pessoas intersexo à esfera das decisões médicas (Alm, 2020; Hegarty et al., 2020). Outro tipo de argumento utilizado para defender as cirurgias precoces, nomeadamente a remoção das gónadas, assenta no hipotético risco de cancro no tecido testicular, ainda que esse risco não esteja comprovado (Intersexuelle Menschen e.V. / XY-Frauen e Humboldt Law Clinic, 2011). Além disso, as pessoas defensoras desta opção afirmam que a cirurgia é, do ponto de vista dos procedimentos técnicos, mais fácil numa fase inicial da vida (Mouriquand et al., 2014).

Ainda assim, enquanto determinados/as/es profissionais de saúde se mostram favoráveis à cirurgia precoce para restaurar a anatomia visível e evitar a ambiguidade, outros/as/es apoiam um procedimento posterior, afirmando que as pessoas devem ser intervencionadas, se assim o desejarem, quando tiverem desenvolvido a capacidade de participação na tomada de decisões e quando tiverem idade suficiente para conseguirem entender a sua própria identidade sexual (Chau e Herring, 2002). Para quem defende o adiamento, a maioria das cirurgias não são medicamente necessárias e assentam, essencialmente, em critérios estético-culturais (Knight, 2017; Tjalma, 2017). Estas pessoas lembram, também, os resultados negativos das cirurgias genitais reconstrutivas a longo prazo em termos estéticos e funcionais, o desconforto físico associado a procedimentos cirúrgicos repetidos e invasivos, as cicatrizes e dores severas, a diminuição da resposta sexual e do prazer, a infertilidade, a incapacidade de produção de hormonas vitais, resultando em condições secundárias graves, bem como a irreversibilidade da reconstrução e a alta prevalência de sofrimento, tanto físico como psicológico (Frader et al., 2004; Intersexuelle Menschen e.V. / XY-Frauen e Humboldt Law Clinic, 2011; Greenberg, 2012; Mouriquand et al., 2014).

Comunicação entre profissionais de saúde e pessoas intersexo/famílias

Estes discursos e visões de profissionais de saúde, que são, também, partilhados com as pessoas intersexo e as suas famílias, têm uma grande influência na forma como estas percecionam as situações e tomam decisões (Streuli et al., 2013; Roen et al., 2018). No caso das cirurgias precoces, por exemplo, sabe-se que as decisões de pais/mães dependem, em larga medida, do aconselhamento recebido (Streuli et al., 2013).

Neste sentido, e como já referido, um dos argumentos utilizados por profissionais de saúde para legitimar a realização de cirurgias precoces é o sofrimento de pais/mães e também a pressão que estes fazem sobre profissionais (Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019). A maioria dos pais e mães tende a desconsiderar o adiamento da cirurgia até que a criança tenha idade suficiente para dar consentimento (Streuli et al., 2013). Isto pode ser explicado, por um lado, devido ao facto destas pessoas serem confrontadas com informação enviesada e com expectativas sociais e de género que orientam as crenças de profissionais de saúde, que lhes apontam o caminho para a normalização dos corpos dos/as/es filhos/as/es (Prandelli e Testoni, 2020). Desta forma, profissionais de saúde podem usar os pais e mães como “peões do tratamento médico” ao transferirem para eles as responsabilidades das suas próprias ações, quando, por exemplo, lhes revelam a intersexualidade como uma emergência médica (Davis, 2015b). Por outro lado, a preferência de pais/mães pelas cirurgias precoces pode estar relacionada com a forma como compreendem o sexo e com as expetativas que têm, influenciados pela visão dicotómica do sexo que prevalece na sociedade, pelo binarismo (Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019). Portanto, os processos de influência de profissionais sobre a perceção de pais/mães podem não ser unilaterais, uma vez que estes últimos possuem igualmente expectativas e crenças enraizadas no sistema binário e dicotómico, que formata as possibilidades corporais existentes.

Um outro ponto que levanta muitas questões, nomeadamente acerca do direito que os pais e mães têm e da forma como a informação lhes é transmitida, está relacionado com a interrupção da gravidez. Na conferência Intersex Social Sciences: Activism, Human Rights, and Citizenship, realizada em 2018, na Itália, houve um consenso entre ativistas de que os pais e mães devem ter o direito de escolher se querem ter filhos/as/es, mas que o facto de esses serem intersexo não deveria constituir, em si mesmo, um motivo para abortar (Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019).

No entanto, a literatura dá conta de países com altas taxas de aborto em casos de existência de variações intersexo. Um desses países é Israel, com uma das taxas mais elevadas do Ocidente, onde existem testes pré-natais intensos durante a gravidez e onde as variações intersexo podem ser detetadas por ecografias obstétricas e outros métodos (Danon, 2019). Na Europa, o panorama não parece ser muito diferente: na Inglaterra, Escócia e País de Gales, a legislação existente permite o aborto de fetos que tenham variações intersexo até uma determinada data, uma vez que essas variações podem ser classificadas como uma anormalidade física; na Suíça, a interrupção da gravidez está também disponível, até às 12 semanas, ficando ao critério dos profissionais de saúde e dos/as pais/mães os abortos posteriores a essa data; na Itália, o aborto é fortemente sugerido quando se detetam variações intersexo (Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019); na Alemanha, sabe-se que profissionais de saúde também recomendam a interrupção da gravidez quando variações intersexo estão presentes, e essas recomendações acabam por se concretizar (Danon, 2019). Apesar de tudo, importa reconhecer a dificuldade de obtenção de dados exatos sobre a questão da interrupção de gravidez neste contexto, até por questões de privacidade das pessoas grávidas, sendo esses dados publicados, muitas vezes, na categoria geral de “fetos mal formados”, sem outras especificações (Danon, 2019).

Perante tudo isto, percebe-se claramente que as decisões de pais e mães podem ser influenciadas pelas visões de profissionais de saúde, que muitas vezes estão assentes em preconceitos culturais e de género (Prandelli e Testoni, 2020). E, de facto, profissionais de saúde de alguns países, como por exemplo, de Israel e da Alemanha, reconhecem que os seus preconceitos e perceções em relação aos corpos intersexo, ao sexo e ao género podem influenciar a sua comunicação, as suas interações e as práticas médicas (Danon e Schweizer, 2020). No caso concreto das interrupções de gravidez, verifica-se que as pessoas não entendem que uma criança que nasça com uma variação intersexo pode ser saudável e feliz, porque a informação que lhes é transmitida vai no sentido oposto (Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019). Portanto, uma ideia que prevalece na literatura e que é apontada como uma grande crítica por parte de ativistas é que, efetivamente, pais e mães, de modo geral, não dão um consentimento totalmente informado antes de que os/as/es filhos/as/es sejam submetidos/as/es a tratamentos, dado que este é baseado em informação parcial e enviesada (Borges, Souza e Lima, 2016; Roen et al., 2018).

Não há dúvidas de que a forma como profissionais comunicam e interagem com as pessoas influencia em muito a perceção, sensações e sentimentos que estas têm. Além de todos os aspetos já enunciados, sabe-se também que pessoas intersexo se sentem maltratadas no seio da comunidade médica: muitas pessoas intersexo lembram-se, por exemplo, de terem experimentado reações não-verbais e verbais adversas por parte de pessoas médicas que não estavam familiarizadas com as suas variações, além de terem vivenciado a sujeição a exames genitais na infância e na adolescência como eventos adversos e estigmatizantes (Meyer-Bahlburg et al., 2017). As evidências sugerem mesmo que pessoas intersexo, de vários países do mundo, são mais propensas do que a população em geral a relatar experiências negativas de acesso à saúde, incluindo comunicação inapropriada da parte das pessoas profissionais de saúde e insatisfação com os cuidados recebidos (Brinkmann, Schuetzmann e Richter-Appelt, 2007; Zeeman e Aranda, 2020).

Proteção das pessoas intersexo: legislação internacional e regional

Na última década, organizações que protegem os direitos humanos, como agências das Nações Unidas, o Conselho da Europa e a União Europeia, apelaram a que os países, de todo o mundo proibissem intervenções médicas não consensuais em crianças intersexo, sempre que essas fossem destinadas a normalizar os seus corpos de acordo com as construções da sociedade (Garland e Slokenberga, 2018). Os apelos de reformulação das estruturas jurídicas dos países, tanto para prevenir as violações de direitos como para repará-las, surgiram como resposta a pedidos de intervenção de organizações não governamentais. As exigências unânimes do movimento internacional intersexo foram expostas na Declaração de Malta, no 3.º Fórum Internacional Intersexo, em 2013. Nesta declaração - em que estiveram presentes 30 organizações intersexo, de todos os continentes, exigiu-se o fim das práticas mutilantes e normalizantes, tais como cirurgias genitais, intervenções psicológicas e outras práticas médicas (Ghattas, 2015).

Neste sentido, as organizações defensoras de direitos humanos antes mencionadas reconheceram a natureza altamente invasiva e pessoalmente violadora das cirurgias, que estabelecem de forma irreversível uma atribuição de género às crianças, sem levar em conta as suas possíveis identidades de género afirmadas e com risco significativo de trauma, dor, perda de fertilidade e perda de sensibilidade sexual (Garland e Slokenberga, 2018).

No entanto, apesar das recomendações, o que se tem verificado é que se continua a confiar numa narrativa médica que prioriza a intervenção para normalizar os corpos intersexo, tornando essas pessoas invisíveis a nível institucional e político, bem como perpetrando danos corporais (Garland e Travis, 2018; Garland e Slokenberga, 2018). Países como a Letónia e a Suécia autorizam expressamente as cirurgias em crianças intersexo (Garland e Slokenberga, 2018). As próprias pessoas que lideram a Sociedade Europeia de Urologia Pediátrica reivindicaram abertamente a sua autoridade para realizar intervenções de género com base no consentimento de pais e mães, mostraram-se perplexos e repudiaram as críticas e os apelos feitos pelas organizações defensoras dos direitos humanos (Mouriquand et al., 2014; Garland e Slokenberga, 2018).

Segundo Garland e Travis (2018), o método dominante utilizado pelos países para atender às necessidades das pessoas intersexo é o da igualdade formal (por exemplo, através da elaboração de leis antidiscriminação), não havendo um foco na igualdade substantiva nem um desafio direto à autoridade da comunidade médica. As políticas baseadas na igualdade formal reconhecem a existência de pessoas intersexo - países como a Alemanha permitem até uma terceira opção na certidão de nascimento -, mas não atuam nas desigualdades substanciais existentes (Garland e Travis, 2018). Assim, o reconhecimento formal de pessoas intersexo não deve ser visto como o ponto final na luta pelos direitos destas pessoas; o adiamento das intervenções em crianças intersexo, até que as mesmas possam participar no processo de decisão, é o ponto chave para alcançar a igualdade substantiva (Garland e Travis, 2018). Poucos são os países que adotam posições com o objetivo de alcançar esta igualdade. Destaca-se Malta, que adota uma posição mais holística, tendo inclusive legislado sobre restrições de intervenções de conformidade de género, concentrando-se na proteção da integridade corporal das crianças intersexo e proibindo, por isso, cirurgias desnecessárias (Garland e Slokenberga, 2018).

Portugal, a par de Malta, tem sido apontado como um bom exemplo em relação à proteção das pessoas intersexo, devido à aprovação da Lei n.º 38/2018, que desaconselha intervenções médicas em pessoas intersexo menores até à manifestação da identidade de género das mesmas. Ainda assim, ambos os países têm sido alvo de críticas, nomeadamente por parte da StopIGM.org, uma ONG internacional de direitos humanos. Segundo a organização, Portugal tem graves lacunas na legislação e fica aquém dos requisitos mínimos das recomendações da Convenção sobre os Direitos da Criança: não tem nenhuma proteção legal efetiva ou outra proteção em vigor para impedir todas as práticas de mutilação genital intersexo, e também não tem qualquer medida legal em vigor para garantir o acesso à reparação e à justiça para pessoas intersexo adultas, a responsabilização das pessoas perpetradoras ou a recolha de dados e a monitorização das práticas (Bauer e Truffer, 2019). A organização afirma que, apesar da proibição formal introduzida, todas as formas típicas de mutilação genital intersexo ainda são praticadas em Portugal, facilitadas e pagas pelo Estado (Bauer e Truffer, 2019; Truffer, 2020). Neste sentido, Portugal foi alvo de duas reprimendas, uma em 2019, pelo Comité dos Direitos da Criança, e outra em 2020, pelo Comité dos Direitos Humanos (United Nations, 2020).

Destacam-se, ainda, os casos da Islândia e da Alemanha, que, em 2019 e 2021, respetivamente, aprovaram leis que proíbem intervenções em crianças intersexo. No entanto, à semelhança de Portugal e Malta, também a estes países são apontadas críticas, uma vez que se considera que existem lacunas nas legislações (Mestre, 2022).

Considerações críticas sobre a intersexualidade

Enquanto o modelo biomédico considera as variações intersexo como uma anomalia, pessoas com perspetivas críticas compreendem-nas como variações da norma socialmente construída e reivindicam a possibilidade de existirem como tal sem serem patologizadas (Machado, 2005). Como Cabral (2003) defende, a intersexualidade não é uma doença, mas uma situação de não conformidade física com os critérios culturalmente definidos de normalidade corporal. De facto, segundo o construcionismo social, as categorias, os termos e as formas pelas quais se consegue compreender o mundo são artefactos sociais, produtos de inter-relações entre pessoas, com especificidade histórica e cultural. Ou seja, o conhecimento e aquilo que se pensa ser verdade são apenas um produto do processo social e das interações nas quais as pessoas estão envolvidas, sendo relativos e dependentes do tempo e da cultura em que se vive (Nogueira, 2001; Ferrari et al., 2021). No entanto, este conhecimento tem consequências reais para as vidas das pessoas intersexo, impondo alternativas que estão, em si mesmas, formatadas e constrangidas pelas convenções e critérios da “verdade”.

Além disso, a forma de entender como o mundo funciona assenta em grande parte no uso de dualismos, sejam pares de conceitos, objetivos ou sistemas de crenças opostos, e, em relação ao sexo, há uma tendência dimórfica de o categorizar, restringindo o espaço de existência para apenas duas categorias: feminino e masculino (Nogueira, 2001). Historicamente, a categoria social e psicológica de género, bem como a dimensão física do sexo, foram construídas em dicotomias mutuamente exclusivas, e cada cultura foi caracterizando as diferenças biológicas com atributos psicológicos, emocionais, sociais e relacionais específicos, que, por sua vez, se tornaram determinantes nas definições e no que é esperado de homens e mulheres na sociedade (Prandelli e Testoni, 2020).

Segundo Fausto-Sterling (2002), a escolha dos critérios a utilizar pelos médicos na determinação do sexo parece ter por base decisões sociais; são critérios que a ciência se mostra incapaz de precisar de forma absoluta. De facto, os conhecimentos e as práticas médicas não podem ser compreendidos como um tipo de conhecimento autónomo e neutro, separado da realidade social. O conhecimento científico pode ajudar a decidir, mas são as normas sociais e as crenças relacionadas com o género que definem o sexo (Pino, 2007). Portanto, torna-se evidente que as crenças e valores de quem observa e classifica os genitais de uma criança quando esta nasce interferem naquilo que a pessoa que observa vê e, consequentemente, na denominação do que vê (Machado, 2005). Estas decisões ocorrem no âmbito de um sistema que está, na maior parte dos países, totalmente ancorado a duas categorias discretas de sexo.

No mesmo sentido, Butler (1990) desconstrói, na sua obra, a ideia de que o sexo é natural, um dado biológico e imutável e de que o género é consequência, ou elaboração cultural do sexo. A autora critica a crença no dimorfismo sexual, que supõe uma dicotomia da anatomia sexual, salientando que é indispensável repensar a naturalidade do sexo, uma vez que os critérios de classificação do sexo como masculino ou feminino também são culturais, e as atitudes dos médicos são orientadas para manter as características e as funções corporais socialmente destinadas a cada categoria (Butler, 1990; Pino, 2007). O corpo masculino ou feminino é compreendido como tal por convenção cultural, que propõe os parâmetros para o identificar como pertencente a um ou outro sexo (Dayrell, 2008; Ekins e King, 2006).

A intersexualidade demonstra, a níveis extremados, o controlo social e a normalização compulsória dos corpos e das identidades, pois realça a restrição das identidades de género à divisão homem-mulher e a restrição das identidades sexuais a uma presumível coerência necessária entre corpo sexuado, práticas e desejos (Pino, 2007).

Considerações finais

O tema da intersexualidade permite análises e reflexões acerca da construção do corpo sexuado e dos seus significados sociais e políticos, bem como dos processos de normalização e controlo social, não apenas das pessoas intersexo, mas de todos os corpos (Pino, 2007).

Assim, considera-se que o debate sobre este tema deve continuar a acontecer nas várias esferas da sociedade, mas com especial enfoque na comunidade médica. Na verdade, a intersexualidade parece lançar desafios à medicina, que procura enquadrar as doenças em categorias diagnósticas cujos protocolos de avaliação e ação possam ser estabelecidos de forma estável e homogénea (Machado, 2008), e, tal como ficou evidente no Consenso de Chicago, no que diz respeito à intersexualidade não existe um protocolo de avaliação que possa ser aplicado a todas as circunstâncias, dado o espectro de variações e questões envolvidas (Lee et al., 2006).

Em relação aos aspetos práticos e à forma como as pessoas intersexo são tratadas, salienta-se a importância da existência de equipas multidisciplinares, que sejam capazes de partilhar toda a informação com as pessoas intersexo e as suas famílias, sem secretismos e com transparência, empatia e abertura para uma comunicação bem-sucedida, envolvendo-as no processo de tomada de decisão. É particularmente urgente que os cuidados de saúde se afastem das abordagens estigmatizantes e medicalizadas, que podem levar a sofrimento grave das pessoas (Roen, Carlquist e Prøitz, 2021). Profissionais de saúde não se devem basear em expetativas e normas sociais (Reis e McCarthy, 2016). De facto, algumas das causas apontadas para a manutenção de certas práticas são o tradicionalismo, a heteronormatividade, os preconceitos culturais e de género de muitas pessoas profissionais de saúde, o fanatismo religioso, os conhecimentos desatualizados e a falta de treino e de protocolos nacionais, bem como as práticas descoordenadas entre os hospitais (Clune‐Taylor, 2019; Monro, Crocetti e Yeadon-Lee, 2019; Prandelli e Testoni, 2020). Tal como Tjalma (2017) afirma, a prática atual é como um ritual e não se baseia em nenhuma evidência científica, pelo que parece haver uma clara necessidade de formar e informar a sociedade, em geral, e profissionais de saúde, em particular, bem como de desconstruir crenças de forma efetiva quanto aos constructos de sexo e género e quanto à intersexualidade. Efetivamente, as evidências científicas, vindas de diferentes áreas, demonstram que o sexo não é binário (Balocchi, 2022).

Neste sentido, importa, também, relembrar a importância da integração de psicólogos/as/es nas equipas multidisciplinares de forma efetiva, pois o que parece acontecer é uma marginalização destes profissionais nas equipas (Hegarty et al., 2020) e uma incompleta compreensão sobre o seu papel, uma vez que se considera que o acompanhamento psicológico apenas é relevante quando há algo a tratar, como a depressão (Creighton et al., 2004; Karkazis et al., 2010). Por outro lado, é igualmente necessário que as pessoas psicólogas, quando incluídas, não se assumam como agentes de normalização ao serviço de uma sociedade heteronormativa e binária.

Por fim, é fundamental que os países adotem uma postura diferente face a estas questões, reformulando as suas políticas de prevenção e monitorização das intervenções médicas realizadas em pessoas intersexo. Salienta-se também a importância da realização de estudos e investigações nesta área, nomeadamente de estudos longitudinais.

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Notas

1“Hermafroditas com atitude” foi, também, a designação de uma newsletter, criada em 1994, que tinha como objetivo visibilizar as histórias de vida de pessoas intersexo (Chase, 1998).

2Em 2005, em Chicago, um grupo de cinquenta especialistas no tema (pessoas médicas de diversos países e duas pessoas ativistas, tendo estas últimas participado na discussão de apenas alguns aspetos) reuniu-se com o objetivo de discutir vários aspetos relacionados com a intersexualidade (Machado, 2008). A partir dessa reunião, foi elaborado um documento que viria a ser publicado em 2006 (Lee et al., 2006), tendo sido feita uma atualização em 2016 (Lee et al., 2016).

3Importa referir que algumas pessoas ativistas intersexo tiveram um impacto considerável na recomendação da terminologia difundida pelo Consenso de Chicago; por isso, inicialmente, esta recomendação tratava-se de uma aliança entre a medicina e o ativismo, para tornar mais neutros, objetivos e técnicos os termos diagnósticos estigmatizantes. No entanto, a adesão posterior por parte de ativistas e académicos foi pouca (Vieira et al., 2021).

4Note-se que a naturalização do sistema binário, na medicina, é cada vez mais questionada, uma vez que as evidências científicas, vindas de áreas como as neurociências, a endocrinologia e a psicologia, sugerem que o sexo não é dicotómico (Balocchi, 2022).

5A hiperplasia adrenal congénita é uma das variações intersexo mais comum, em que se considera que há a produção de testosterona e outras hormonas em excesso.

6A escala de Prader é um sistema de classificação usado na medicina para a medição do grau de virilização da genitália.

Recebido: 07 de Dezembro de 2021; Aceito: 12 de Janeiro de 2023

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