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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.244 Lisboa set. 2022  Epub 30-Set-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022244.02 

Artigos

Correndo para o topo? Socialização e percursos de vida dos jovens advogados de negócios.

Running to the top? Young business lawyers’ socialization and life trajectories.

1. Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa; Edifício ISCTE, Avenida das Forças Armadas - 1649-026, Lisboa, Portugal. pedro.abrantes@iscte-iul.pt; susanacsantos@iscte-iul.pt


Resumo

Este artigo retoma o debate entre socialização e desigualdades socioprofissionais contribuindo para a compreensão dos processos de reprodução e mobilidade sociais nas sociedades contemporâneas. Partindo do caso da inserção de jovens advogados em escritórios de grande dimensão, analisam-se os processos de recrutamento e seleção. Para tal, toma-se a ótica de análise das práticas explorando os significados a partir da recolha de histórias de vida. Os dados apontam para uma dupla dinâmica onde coexistem fenómenos de reprodução de elites, mais expectáveis, e fenómenos de mobilidade ascendente, onde a frequência de espaços educativos selecionados e a socialização entre pares assumem um papel fundamental.

Palavras-chave: socialização; histórias de vida; advocacia, desigualdades sociais

Abstract

article goes back to former discussions around socialization and socio-professional inequalities to contribute to a better understanding of reproduction and/or mobility processes in contemporary societies. Taking the case of the professional socialization of young lawyers in large law firms, we analyse recruitment and selection procedures. To accomplish it we use life stories, exploring the significances and meanings of social practices. Collected data confirms a double dynamic with coexisting and, more expected, elite reproduction phenomena, and ascendant mobility trajectories grounded on selective educational spaces and peers’ socialization.

Keywords: socialization; life stories; lawyers; social inequalities

Introdução

O presente artigo alarga uma linha de estudos sobre a relação entre a socialização e as desigualdades socioprofissionais enquanto dimensão constituinte dos processos de (re)produção das sociedades contemporâneas, focando um campo influente e que conheceu um crescimento notável nas últimas décadas: a advocacia de negócios em grande sociedade.

Esta linha de investigação procura explorar o potencial do conceito de socialização na compreensão sociológica da realidade, sendo fundamental entendermos como decorre, em diferentes contextos e etapas da vida, esse processo complexo, não linear nem mecânico, de incorporação de códigos, disposições, valores e competências que permite a participação e o reconhecimento na vida social, o qual alguns autores têm designado de formação do habitus (Elias, 1994; Bourdieu, 1997; Dubar, 2000; Abrantes, 2011). Por seu lado, entende-se o posicionamento dos indivíduos na estrutura profissional enquanto uma das dimensões centrais na produção das desigualdades sociais contemporâneas, caracterizada por processos, tanto de reprodução como de mobilidade social e estrutural (Bourdieu, 1984; Costa e Mauritti, 2018).

Dada a abrangência do tema, neste artigo focamo-nos, em particular, nas dinâmicas associadas às origens sociais, ao percurso no sistema educativo e ao processo de recrutamento profissional, contribuindo para aprofundar um debate entre, por um lado, as teorias que atribuem a primazia à socialização familiar e à reprodução intergeracional de posições no espaço social (Mills, 1957; Bourdieu, 1984; Reay, 2015) e, por outro, as que têm enfatizado a centralidade da socialização no sistema educativo e no mercado laboral para a formação das disposições individuais e recomposição das classes dominantes nas sociedades contemporâneas (Dubar, 2000; Brimeyer, Miller e Perrucci, 2006; Daenekindt e Roose, 2013). Ao nível da estrutura de classes, Portugal tem sido um país em que este debate se tem extremado, ora se afirmando a intensidade e velocidade da transformação das estruturas socioeconómicas, associada a uma expansão recente do acesso às credenciais académicas e profissionais, propiciadora de percursos de mobilidade social e estrutural, ora se enfatizando a manutenção de sistemas de fechamento das classes dominantes e transmissão intergeracional de privilégios (Louçã, Lopes e Costa, 2014; Costa e Mauritti, 2018). Estes debates são discutidos na primeira secção do artigo.

Como se detalha na segunda secção, o campo das sociedades de advogados de negócios constitui um caso relevante para estudar estes processos. O seu crescimento recente, nas últimas décadas, está fortemente vinculado a transformações da prática da advocacia e, em termos mais amplos, do capitalismo global, tornando-se um espaço privilegiado de coaptação de jovens advogados e conferindo, a alguns deles, acesso posterior a posições dirigentes, tanto na esfera pública como na privada (Santos, 2003; Santos, 2015; Abel et al., 2020). Na senda do já apontado por Chaves e Nunes (2011), valerá a pena, portanto, aprofundar os processos de socialização que permitem aos jovens ser selecionados e integrar-se nestes meios, explorando em particular a relevância da socialização, tanto nas suas famílias de origem como no sistema de ensino.

O artigo baseia-se numa investigação sobre a inserção profissional de jovens advogados em sociedades de advogados de negócios, considerando as transformações em curso no mundo do trabalho e nos sistemas de educação e formação, bem como as desigualdades de classe e de género no acesso e continuidade da profissão. A partir de entrevistas biográficas a jovens advogados de diferentes sociedades (com idades compreendidas entre os 24 e os 34 anos), o presente artigo foca-se nas origens, contextos e percursos de vida deste grupo socioprofissional, bem como nas competências, valores e disposições que foram relevantes para a sua seleção. A terceira secção do artigo apresenta de forma sintética a metodologia da investigação. Na quarta secção, identificam--se os principais resultados da pesquisa empírica. Termina com algumas notas conclusivas, incluindo uma discussão teórica dos principais resultados e pistas para futuras pesquisas neste campo.

Socialização e desigualdades sociais

A socialização - enquanto processo através do qual os indivíduos desenvolvem (ou incorporam) linguagens, disposições, valores, conhecimentos, identidades, que lhes permitem participar na vida social - é central para compreender a reprodução e transformação das estruturas sociais e, em particular, as relações de poder em que assentam as profundas desigualdades materiais e simbólicas nas sociedades contemporâneas (Elias, 1994; Dubar, 2000; Abrantes, 2011; 2013).

O estudo seminal de Wright Mills (1956) sobre a “elite do poder” explora a formação de uma “classe dominante” enquanto grupo de pessoas que não apenas ocupa as principais posições nos campos económico, político, militar e social, mas cujas famílias se conhecem entre si, fazem parte de um mesmo círculo social, com práticas educativas, culturais e de sociabilidade específicas. Esta vivência comum dá origem a códigos, valores e disposições partilhados - o autor fala mesmo de uma “entidade psíquica e social compacta” -, o que torna mais fortes e “naturais” as suas alianças e compromissos recíprocos, as suas afinidades e “atração mútua”, permitindo conservar e alargar o seu poder. Um estudo sobre a persistência, variantes e impactos desta realidade, no Portugal contemporâneo, pode encontrar-se em Louçã, Lopes e Costa (2014).

Nas últimas décadas esta questão tem voltado ao âmago do projeto sociológico, a partir dos influentes trabalhos de Pierre Bourdieu (1984; 1997) sobre a formação do habitus ao longo da vida, processo através do qual se desenvolvem estruturas de disposições internas, ajustadas à posição social dos indivíduos, em grande medida de carácter prático e inconsciente, que orientam a ação dos indivíduos de interpretação e participação na vida social, desde os grandes ideais até aos mais ínfimos gestos. Nesta aceção, as desigualdades na sociedade resultam de os indivíduos herdarem e acumularem não apenas capitais económicos, mas também capitais sociais, entendidos como redes de interconhecimento e de reciprocidade, e, ainda, capitais culturais, no sentido de recursos simbólicos mobilizáveis no quadro das relações de poder. As disposições incluem competências operativas (“saber-fazer”), mas também códigos, papéis, modos disciplinados de estar e de se apresentar (“saber-estar”), associados a representações (morais) sobre o mundo que legitimam essas mesmas práticas. Mesmo no seio de organizações produtivas, onde aprendizagens mais técnicas tendem a ser privilegiadas para garantir a produtividade, estas tendem a entrelaçar-se com aspetos propriamente simbólicos e que pretendem estabelecer um compromisso dos trabalhadores com a organização (Coffey, 1994).

O estudo de Schleef (2006) sobre os estudantes de Direito e de Gestão numa universidade norte-americana de alto prestígio é paradigmático. Os estudantes acedem a estes cursos através de práticas estudantis específicas, motivados pela possibilidade de alcançarem uma posição na elite. Assumem a justiça dessa posição, devido à exigência que a faculdade lhes impõe, em comparação com outras, no quadro de uma ideologia meritocrática. Em contrapartida, fazem parte de práticas de resistência, relativizando o projeto educativo da instituição e negando que estejam a aprender algo realmente importante. À la longue, esta resistência contribui para o desenvolvimento de uma postura cínica, arrogante e desencantada com o mundo que, em última instância, limita a busca por outras inserções profissionais e prepara-os para as disposições que são hoje valorizadas nas grandes empresas e sociedades de advogados. Collier (2019), num estudo desenvolvido no Reino Unido, alerta para os riscos de saúde mental (ansiedade e depressão) e bem-estar social a que os estudantes de Direito e jovens advogados estão sujeitos, fruto da imposição da ideologia meritocrática realizada através de mecanismos de competição constantes que resultam em longas horas de trabalho diário e total desvalorização do descanso e lazer.

Importa destacar aqui o carácter, não apenas estruturado, mas também estruturante das práticas. Estas não se limitam a reproduzir-se e a conservar--se no tempo. Estabelecem um “sentido do jogo”, dentro do qual os agentes procuram formas criativas de agir, utilizando recursos obtidos noutros contextos e práticas, explorando as margens de possibilidades. As próprias práticas transformam-se (ou reinventam-se) continuamente, seja pela sua dinâmica interna seja por pressões e interferências externas. Existem práticas que tendem a desaparecer, assim como outras emergem, se difundem, são apropriadas e reinterpretadas entre diferentes sociedades, grupos e campos da vida social. Esta dinâmica não apenas reproduz as estruturas sociais existentes, mas contribui também para a recomposição dessas estruturas.

No caso em estudo, parece-nos importante questionar como a prática da advocacia, quando desenvolvida no campo financeiro e por grandes sociedades, é (r)estruturada pelas relações de poder, no âmbito da globalização capitalista, mas também como esta prática, com os seus protocolos próprios e em constante evolução, tende a reproduzir ou a transformar as estruturas de desigualdades em formas que escapam à consciência e intencionalidade dos sujeitos. Aludimos às práticas de recrutamento por parte dos escritórios (e à prática da advocacia a que estas procuram ajustar-se) e, também, às práticas dos jovens, tanto no plano da educação formal como noutras atividades familiares e extracurriculares que, como veremos, são relevantes na sua socialização e no processo de seleção a que se sujeitam.

Outra área em desenvolvimento cobre a complexa relação entre socialização e emoções. A questão foi abordada por Bourdieu (1984), sobretudo ao nível do processo de formação dos gostos ajustados às experiências, necessidades e oportunidades de cada classe social, bem como a estratégias de identificação, distinção, legitimação e reprodução, a partir do contraste entre o gosto cultivado e o diletante. Este é um requisito distintivo da grande burguesia e das perturbações e inseguranças provocadas por situações de mobilidade social, geradoras de habitus clivados, nos quais as disposições formadas na socialização primária não correspondem às expectativas associadas à posição social ocupada.

Apesar das suas virtudes heurísticas inegáveis, podemos questionar-nos sobre o modo como esta teoria convive com as profundas tensões e transformações em curso, no quadro do capitalismo global, incluindo a emergência de novos protagonistas e dinâmicas, nos campos económico, político, jurídico e social.

Vários autores têm vindo a densificar este quadro teórico, com base em investigações empíricas mais recentes, não deixando de questionar alguns dos seus pressupostos. Assim, tem-se analisado como os sentimentos de classe não são apenas herdados do meio familiar, mas se negoceiam nas relações quotidianas nos espaços escolares e juvenis (Reay, 2005; 2015). Em percursos de mobilidade social, as práticas culturais tendem a ser mais orientadas pela socialização secundária, sobretudo quando ocorrem no espaço público (Daenekindt e Roose, 2013), enquanto os sentimentos de classe se vão formando continuamente, tendo em conta as origens sociais, a posição presente e as expectativas de futuro (Brimeyer, Miller e Perrucci, 2006). Os indivíduos revelam, aliás, capacidade de desenvolver (ou inibir) certas disposições de acordo com o contexto em que se encontram, por exemplo, mantendo práticas populares no seu contexto familiar e práticas eruditas no seu círculo profissional, académico ou de sociabilidade (Lahire, 2002). De resto, os avanços na área da sociologia das emoções têm revelado que a mobilidade social ascendente tende a gerar emoções positivas (Turner e Stets, 2006), o que pode compensar as angústias e inseguranças resultantes de uma clivagem entre a posição atual e a socialização primária.

Uma outra linha relevante é a que tem vindo a analisar a socialização dos indivíduos enquanto processo de construção (social) de uma identidade, tanto no plano interacional (num contexto e momento específicos) como no plano biográfico. Tal como mostra Dubar (2000), nas sociedades modernas, a construção dessa identidade está muito associada ao percurso laboral, desenrolando-se em interação com dinâmicas profissionais, organizacionais e do mercado de trabalho de grande volatilidade e que escapam ao controlo dos indivíduos (Santos, 2018). Tem-se constatado uma relativa estabilidade da narrativa autobiográfica (Kupferberg, 1998), mesmo em contextos de mudança social e económica profunda, como foi a transição das sociedades do leste europeu para o capitalismo, e que resulta da socialização dos indivíduos, mas é também orientadora dessa mesma socialização, no modo como os indivíduos interpretam as suas experiências e tomam decisões vitais.

Voltando ao caso em estudo, importa questionar em que medida esta construção identitária se inicia na infância e juventude, assente em dinâmicas familiares, escolares ou de sociabilidade, sendo relevante para o processo de seleção dos jovens advogados por parte dos escritórios.

As transformações no campo da advocacia, no ensino superior e nas estruturas de classe: o caso português

A constituição do campo socioprofissional da advocacia tem sido um tema pouco explorado na sociologia portuguesa, inclusive entre os poucos académicos que se têm dedicado à sociologia do direito (Branco, Casaleiro e Pedroso, 2018; Guibentif, 2017). Em todo o caso, valerá a pena cruzar os estudos internacionais sobre o crescimento das sociedades de advogados enquanto organizações globais, assentes na diversificação de serviços e na eficácia dos desempenhos, em tensão com os regimes regulatórios tradicionais da profissão (Brock, Yaffe e Dembovsky, 2006; Flood, 2011) e originando novos modelos de profissionalismo (Faulconbridge e Muzio, 2008), com os contributos de Boaventura de Sousa Santos (e. g. 2003) sobre a transformação do direito decorrente da complexa relação entre Estado, sociedade e mercado. As transformações na profissão podem ser observadas em várias geografias, tal como atesta a obra seminal de Abel et al. (2020).

Se a dimensão e a posição semiperiférica de Portugal no quadro da globalização neoliberal, impuseram, num primeiro momento, algumas limitações à participação neste processo, essas mesmas dimensão e posição, sobretudo pela sua afirmação como interface entre a Europa e o resto do mundo, onde o país mantém ainda relações e competências herdadas do passado colonial, têm vindo a ser apontados como mais-valias num período mais recente.

Nas últimas três décadas, observa-se o estabelecimento e crescimento de um núcleo restrito de sociedades - através de fusões de escritórios - com uma forte ligação ao ensino, ao tecido económico e político e à Ordem dos Advogados. Empregam um elevado número de advogados e de consultores (entre 100 e 300), concentram-se geograficamente em Lisboa, oferecem serviços jurídicos em várias línguas e têm uma clara estratégia de internacionalização através do networking e do estabelecimento de escritórios em vários países, com destaque para os países onde se fala português (Santos, 2015). A constituição societária é maioritariamente nacional com algumas sociedades/filiais internacionais.

As implicações na profissão e na estrutura de classes são complexas, contribuindo para um alargamento, diversificação e segmentação interna do campo. Por um lado, é possível observar uma perda de autonomia resultante do desenvolvimento de atividades enquadradas hierarquicamente e sob forte controlo de gestão (Santos, 2020). Por outro lado, existe uma expansão da área de influência e do poder, uma vez que associa o estatuto de profissional liberal à administração de uma sociedade de advocacia (incluindo cada vez mais profissionais também de áreas como a Gestão, as Relações Públicas, as Finanças e a Engenharia), através da qual pode prestar serviços muito mais completos e diferenciados ao Estado e às grandes empresas. Aliás, é comum que os advogados mais conceituados transitem (ou acumulem funções, com algumas limitações legais) entre escritórios, gabinetes governamentais e conselhos de administração de empresas. É de notar que, mesmo para aqueles que não almejam chegar ao topo da carreira, a experiência numa sociedade de negócios pode comportar outro tipo de gratificações, seja pelos contactos empresariais ou da administração pública nacional e/ou internacional seja pelo tipo de atividades e soluções jurídicas desenvolvidas ou pelo reconhecimento no currículo dessa passagem.

Segundo Flood (2011), as grandes sociedades de advogados inglesas, cujos departamentos de recursos humanos recebem milhares de candidaturas, desenvolvem práticas sofisticadas de recrutamento, formação interna, mentoria e avaliação de desempenho, moldando a “identidade corporativa” dos seus novos membros, incluindo a socialização em novas prioridades, tais como o foco na satisfação dos clientes, na abordagem comercial, no trabalho de equipa e na eficiência.

Por seu lado, não deixa de ser importante compreender os percursos (e narrativas) dos jovens advogados na transformação profunda e transversal da sociedade portuguesa nas últimas décadas, e em particular no modo como a mesma reconfigurou radicalmente os contextos e experiências de juventude e de transição para a vida adulta, num sentido em que se alargaram notavelmente as oportunidades e a diversidade, mas se mantiveram importantes padrões de reprodução, desigualdade e precariedade (Guerreiro e Abrantes, 2005).

A este propósito, merece destaque o trabalho de Chaves e Sedas Nunes (2011), sobre a inserção laboral dos jovens advogados. Segundo estes, o aumento acentuado do número de licenciados em Direito e de membros na Ordem dos Advogados não é sinónimo de uma democratização do acesso a esta profissão, por dois motivos: 1) as origens sociais destes jovens continuam a ser maioritariamente das classes mais escolarizadas e mais capitalizadas, em termos económicos e culturais; 2) observa-se uma segmentação interna na transição para o mercado de trabalho. Os autores identificam quatro diferentes percursos, sendo o mais favorecido - os advogados nas médias e grandes sociedades - aquele em que a origem de classe é mais pronunciada, o que explicam quer pela mobilização direta de redes e capitais exclusivos das elites quer pela função reprodutora do sistema educativo que, sob uma aparência meritocrática, continua a promover o acesso privilegiado das classes dominantes ao ensino superior e, principalmente, a instituições, cursos, classificações e competências (incluindo aspetos como a linguagem, a hexis corporal e o sentido de humor) que são definidos como requisitos de acesso aos escritórios de advogados mais prestigiados.

Estratégia metodológica

A investigação que se apresenta faz parte de um projeto mais vasto dedicado às transformações da profissão de advogado nas últimas décadas e à inserção profissional de jovens em sociedades de grandes dimensões, incidindo sobre a formação nas universidades, na Ordem dos Advogados e nos processos de profissionalização. Com este objetivo, desenhou-se uma estratégia metodológica mista com recurso a vários instrumentos de recolha de informação: consulta de perfis de LinkedIn, páginas de sociedades de advogados e de faculdades de Direito, imprensa especializada nas áreas jurídicas e económicas e entrevistas biográficas. Estas entrevistas, enquadradas pela restante informação recolhida, permitiram assim a elaboração de “histórias de vida” (Bertaux, 2020).

A seleção dos entrevistados partiu da informação recolhida através de observação dos portais de sociedades de grande dimensão1 analisadas num momento anterior da pesquisa (Santos, 2015). De forma complementar, utilizou-se o LinkedIn para criar uma rede de contactos entre os investigadores e os advogados. De forma aleatória, foram enviados pedidos de entrevista a advogados em fase de estágio ou até dez anos de profissão, usando a referida rede social e as plataformas de contacto das sociedades. De cerca de 200 pedidos enviados, foi possível prosseguir os contactos e realizar as entrevistas com 19 advogados.

O guião de entrevista foi desenhado em torno de cinco eixos temáticos: i) família e sociabilidades; ii) percurso educativo; iii) inserção e experiência laboral; iv) estilos de vida e v) associativismo. As entrevistas decorreram nos espaços de trabalho ou noutros locais próximos dos escritórios, foram gravadas com o consentimento dos entrevistados e posteriormente transcritas. Os estagiários optaram por encontros fora do escritório, com exceção de uma advogada estagiária que preferiu que a entrevista se realizasse no escritório em ambiente “fora de horas”. Entre os associados, cinco marcaram a entrevista fora do escritório, em locais próximos, aproveitando as horas de almoço, tendo sido por vezes interrompidos para responder a mensagens telefónicas ou a email. As entrevistas nos escritórios foram marcadas como reuniões de trabalho, e os investigadores identificados como potenciais clientes junto dos secretariados de apoio e receção. Apesar da duração, em média, de duas horas e meia, não houve interrupções e foi possível conhecer vários espaços de reunião e vários locais de passagem e de encontro nos halls e elevadores. O domínio da sala e a inserção dos investigadores na agenda de contactos pode ser entendido como um sinal de integração destes jovens advogados.

Em geral, as entrevistas assumiram um tom de conversa informal e procurou-se criar um espaço de empatia, deixando à vontade os entrevistados para voltarem a temas já falados ou para irem introduzindo novos temas.

As questões relativas às origens familiares não foram feitas diretamente. Partiu-se de experiências anteriores de entrevista (Barroso e Santos, 2017) em que o questionamento direto causou uma situação de quebra de relação de empatia. Optou-se, assim, por, no decurso da conversa, ir direcionando para a importância da família na vida do indivíduo. Esperava-se que cada entrevistado se preparasse para o momento em que lhe faria sentido falar da família e da sua vida pessoal. Em termos práticos não foi possível recolher o mesmo nível de detalhe para cada uma das narrativas biográficas. Esta fragilidade foi colmatada, na nossa opinião, pela possibilidade de aceder à construção discursiva dos indivíduos sobre as suas vidas.

A análise das entrevistas biográficas seguiu o método proposto por Bertaux (2020): extrair, a partir de cada narrativa, a construção social da realidade de cada um dos entrevistados, cruzando-a com outros dados secundários (LinkedIn, imprensa especializada, DGES). Foi possível, deste modo, traçar um mapa que, embora centrado nas singularidades individuais, ilumina um conjunto de regularidades sociais quanto à socialização primária e secundária de jovens advogados de negócios a exercer em Portugal no primeiro quartel do século XXI.

O grupo de entrevistados foi composto por dez homens e nove mulheres; cinco estagiários, dois associados juniores, um associado principal, um advogado de suporte e os restantes associados; com idades entre os 24 e os 34 anos. Todos são licenciados em Direito: nove pela Universidade Nova de Lisboa, quatro pela Universidade de Lisboa, cinco pela Universidade Católica (quatro do polo de Lisboa e um do polo do Porto) e um pela Universidade de Coimbra. Na sua vida académica, cinco desempenharam cargos nas associações e federações de estudantes em lugares de direção e de coordenação de saídas profissionais.

Quanto aos seus percursos na academia, os entrevistados podem ser divididos em dois grupos: o primeiro, composto por indivíduos que estudaram antes e durante o período de transição de Bolonha - licenciatura de cinco anos (9), e um segundo grupo (10) de indivíduos que iniciou os estudos após a aprovação do novo plano de estudos de quatro anos. A opção pela prossecução para o mestrado é variável e foi tomada antes ou após o ingresso na sociedade em que exercem advocacia, sendo de realçar que, entre os licenciados de quatro anos, foi mais notória a ideia da importância do mestrado como forma de valorização curricular antes de iniciarem a atividade profissional. Catorze possuem mestrado, dos quais quatro em formato LLM em universidades internacionais. As especializações académicas estão enquadradas com os interesses e as posições que ocupam nos escritórios e das quais destacamos a arbitragem, o bancário e financeiro, o direito público e o direito do trabalho, o que lhes permite exercer nas áreas comerciais e de concorrência.

Quanto à situação familiar, sete estão numa relação amorosa e de coabitação com juristas, num caso com outro advogado da mesma sociedade. Três têm filhos, dois foram pais recentemente. Aqueles que não vivem conjugalmente partilham casa com amigos, com a exceção de um entrevistado que vive com os pais. A independência habitacional da família de origem é uma marca do percurso de vida destes jovens que os distingue de outros jovens no mesmo escalão etário em Portugal. De acordo com dados do Eurostat,2 no ano de 2020, 52,3% dos jovens na faixa etária entre os 25 e os 34 anos viviam em casa dos pais.

Relativamente às origens familiares, dez têm irmãos e, destes, cinco cresceram em famílias com três ou mais filhos. As profissões dos pais são diversas, tendo em comum a conclusão do ensino superior, nalguns casos após a constituição da família, o que ajuda a traçar o cenário de mobilidade social ascendente que se prolonga no percurso de vida dos filhos.

Seis possuem dupla nacionalidade, sendo cidadãos portugueses, mas também de outros países. Esta característica, embora não tenha sido procurada no momento de seleção dos entrevistados e daí não ter sido controlada, não sendo possível uma extrapolação para a composição das sociedades de advocacia, deve ser considerada na análise. Na perspetiva dos sujeitos, revela uma exposição ao mundo globalizado com um fluxo de passagens por diversos territórios e em linha com as experiências descritas por Reich (1991) sobre os analistas simbólicos, ou de Sassen (2006) sobre a nova classe profissional transnacional. Do lado dos grandes escritórios, está em linha com uma visão de negócio orientada para clientes internacionais e para a ideia do desenvolvimento de profissionais que aliam conhecimento técnico e científico com vivências plurais e cosmopolitas que melhor podem posicionar a sociedade face às suas competidoras diretas ou indiretas.

Análise das entrevistas: um enfoque na socialização em contextos escolar e familiar

Neste capítulo, apresentamos uma análise do conteúdo das entrevistas, focando dois aspetos particularmente relevantes para o tema em estudo: (a) as origens sociais e a socialização familiar; (b) o percurso e a socialização no sistema educativo. Num futuro artigo, planeamos focar-nos no próprio estágio enquanto contexto socializador, o qual não pôde aqui ser analisado por limitações de espaço. Exemplificamos várias das afirmações com excertos das entrevistas, suficientemente longos para se estabelecer relações entre diferentes contextos, campos e/ou etapas da vida, o que constitui uma das principais potencialidades do recurso a histórias de vida.

Origens sociais e socialização primária

As entrevistas biográficas incluíram uma dimensão importante sobre as origens sociais, os percursos educativos e os projetos de vida dos jovens advogados antes da sua entrada na prática profissional, sendo estas questões frequentemente mencionadas. Noutros momentos das entrevistas, por iniciativa dos entrevistados, nomeadamente nas suas narrativas sobre o processo de seleção a que se sujeitaram, em passagens sobre os seus estágios, a sua situação presente ou as suas perspetivas de futuro.

Neste sentido, foi comum entre os entrevistados o destaque ao facto de não serem provenientes de famílias de juristas. É certo que muitos reconhecem a existência de “cunhas” e, em termos mais genéricos, vantagens relativas àqueles que são familiares de advogados conceituados ou de outras personalidades da elite política e financeira (o fator “apelido”, que por vezes cria vantagens inesperadas por associação presumida com protagonistas com quem efetivamente não se tem qualquer afinidade de parentesco). Contudo, num campo em expansão e transformação, esta parece ser uma minoria que não coloca em causa as possibilidades de quem vem de fora do meio. De acordo com os entrevistados, essa relativa diversidade é, aliás, valorizada nas sociedades de advogados, pois gera vantagens concorrenciais e contribui para o crescimento e inovação deste campo da advocacia de negócios, tanto para a sua internacionalização (face a uma tradição do Direito ainda muito fechada em cada país) como para a sua expansão e especialização em novos nichos de mercado.

O seguinte trecho de entrevista de um jovem advogado que coordena uma área emergente dedicada à consultoria a start-ups, depois de ter frequentado uma pós-graduação em Direito e Gestão em Londres, é bastante elucidativo (inclusive das ambiguidades de status da profissão que outro entrevistado também denuncia, ao referir que é a “ovelha negra” da família ao ser o único a enveredar pelo Direito):

Não havia um único jurista na minha família, a única pessoa que poderia ter sido jurista era o meu pai e o meu avô disse “nem pensar, vais para médico porque eles são uns aldrabões” […] Em minha casa, diziam sempre que nós tínhamos que adaptar sempre o discurso ao recetor, se os meus pais não percebessem a mensagem que nós tínhamos dado ao telefone, ou à mesa ou o que fosse, a culpa era nossa, e isso moldou-me muito para de fato falar a linguagem que a pessoa fala […] Se calhar eu quero uma coisa um bocadinho mais prática e Direito e Gestão fazia-me sentido pela ligação a Gestão, porque o meu irmão, o R., trabalha num investment bank. O meu irmão F. é engenheiro e são muito mais práticos e o curso de Direito é completamente desfasado da realidade. [Entrevista n.º 6, filho de médico/administrador e professora universitária]

Isto não significa, contudo, que as origens sociais sejam indiferentes. Ou seja, existem algumas regularidades evidentes e fatores reconhecidos de distinção (ou de discriminação). Um primeiro padrão, já constatado por Chaves e Sedas Nunes (2011), é que não existem praticamente jovens provenientes de famílias da classe trabalhadora que, em Portugal, representam uma grande parte da população (Costa e Mauritti, 2018). Da análise das entrevistas é possível observar que as origens sociais são relevantes em vários momentos do percurso de vida destes jovens, mas destaca-se sobretudo o seu peso nos processos de seleção dos candidatos ao estágio nas grandes sociedades de advogados. Estes processos que se iniciam, geralmente, num momento em que os jovens estão a estudar, tendem a ser longos e metódicos, envolvendo os sócios das sociedades e incluindo uma análise curricular detalhada, testes, entrevistas e ainda empresas especializadas em recrutamento de juristas.3 Ainda assim, existem evidências de que são bastante simplificados, quando se pretende não perder um candidato que apresenta alguma vantagem competitiva.

A este propósito, vale a pena compreender os relatos biográficos à luz das diferentes origens sociais dos jovens advogados. Os provenientes de famílias de juristas referem, frequentemente, que as suas escolhas pela área do Direito, assim como as várias experiências de formação neste campo e o próprio processo de seleção ocorreram de modo “natural”. Já estavam, de certa forma, inscritos no seu habitus, desde a socialização primária, pelo que se sentiram sempre cómodos e “à vontade”, tanto na universidade como no estágio, ainda que refiram que este campo profissional se tem vindo a transformar profundamente, destacando, sobretudo, uma nova organização e conceção do trabalho associada ao surgimento das grandes sociedades de advogados de negócios.

[quando decidiu ser advogado?] Não tive nenhum momento definido a partir do qual tenha decidido ser advogado. Acho que surgiu naturalmente. Tenho pessoas da minha família que são advogados, portanto estão na área, tinha algum conhecimento, muito superficial do dia-a-dia do advogado e depois quando entrei para Direito tornou-se uma opção natural, porque comecei a ver que era uma profissão que me interessaria mais do que quaisquer outras ligadas ao direito como juiz, professor, solicitador. […] [eventuais vantagens de ser filho de advogados?] Acho que me ajudou no sentido de… não ter ilusões […]. Claro que eu sempre acompanhei o trabalho dos meus pais, no sentido não dos casos que eles estavam a tratar, mas, por exemplo, quando era pequeno ia para o escritório dos meus pais, no verão via-os a trabalhar e via que é uma profissão em que se tem que trabalhar bastante e é preciso fazer sacrifícios. Esse tipo de coisas eu tinha ideia e naturalmente é preciso como qualquer outro serviço que trabalhe para o público, tenha clientes é preciso ter algum jogo de cintura e perceber o que é que os clientes querem, não é como um trabalho na faculdade em que temos que seguir o livro […]. O resto acho que só na prática é que se aprende. [Entrevistado n.º 4, filho de advogados]

Por seu lado, os jovens que documentam não ter familiares advogados refletem mais sobre as especificidades desta comunidade e os modos de integração, proporcionando testemunhos dos seus esforços para se adequar a um conjunto de práticas, disposições e valores que diferiam da sua socialização familiar. Em todo o caso, não deixam de referir que a mobilização de competências e capitais, resultantes da sua origem e percurso social, foram fundamentais para o seu reconhecimento nas sociedades de advogados. É o caso daqueles que são provenientes de famílias de engenheiros ou de economistas e que assumem que esse capital se integrou no projeto das sociedades de se alargar para áreas de atividade que antes eram pouco expressivas, tais como a consultoria junto de empresas, nomeadamente em setores em grande expansão, como as tecnologias da informação e comunicação, e que hoje se desenvolvem em contextos jurídicos complexos, seja por estarem inseridos em redes globais seja por se tratar de áreas especializadas e em processos de regulação intensos, combinando linguagens técnicas e jurídicas de alcance variável. No caso português é de realçar a profunda permeabilidade entre direito nacional e direito europeu e da concorrência com um crescente fluxo de criação e de transposição de normativas europeias para o ordenamento jurídico nacional.

O facto de ser bastante improvável que os jovens da classe trabalhadora superem estas sucessivas provas de seleção, nas quais precisam de provar a incorporação de códigos, disposições e identidades mais distantes daquelas com que cresceram, não significa, contudo, que percursos de mobilidade não sejam possíveis, sobretudo a jovens da pequena burguesia de execução, cujas ambições - as próprias e as familiares - os orientaram desde cedo para uma socialização num “grupo de referência” claramente distinto do “grupo de pertença”. Neste sentido, alguns entrevistados documentam com orgulho como, sobretudo, ao longo da universidade, desenvolveram práticas intensas de sociabilidade com os seus colegas de meios mais favorecidos, de leitura ávida das publicações periódicas dos campos jurídico e económico, de frequência de feiras de emprego e outras experiências extracurriculares, por exemplo nas associações de estudantes, nas juventudes partidárias ou na organização de eventos empresariais, de modo a realizar uma socialização antecipatória que permitisse uma “apresentação de si” de acordo com os parâmetros valorizados no campo.

Fui a uma primeira entrevista no escritório, com a advogada, uma senhora dos recursos humanos, depois passando à fase seguinte, fui a uma empresa fazer uns testes psicotécnicos… além de coisas de raciocínio, e etc., eu tive de fazer uma apresentação e eles puseram--me um caso em que eu tive de arranjar uma solução e expor, durante determinado tempo que eu já não sei quanto era, depois foi o tal teste de inglês, escrito e oral e depois fui a uma entrevista final, e no final dessa entrevista, convidaram-me, pronto, convidaram-me para fazer o estágio de Verão […] [sobre o conteúdo das entrevistas] eles perguntam-me nas entrevistas, o tipo de interesse, as coisas que fazem, que frequentam, os livros que leram… esse tipo de coisas, por exemplo […] viagens, eu também nunca fiz muitas, até começar a trabalhar, mas… eu acho que é um bocadinho o que eu estava a dizer, a postura, o nome se calhar em algumas fará mais peso do que outras, deve ser isso, classe média e média alta… fizeram-me perguntas sobre economia, quer dizer, era a privatização da BP… fizeram-me perguntas sobre isso, que era uma notícia que estava na berra na altura… para eu dar nomes de empresas que estivessem no PSI 20, administradores de empresas do PSI 20, esse tipo de coisas. [sobre a importância das origens de classe] Classe média alta, média, média alta […] Até por uma questão de postura, acho que isso… são precisas posturas diferentes para quem trabalha na Zara ou para quem trabalha num escritório de advogados […] Mesmo a maneira como fala, a maneira como está, o que é que aqueles vão pensar e eu acho bem, é que vão apresentá-los a clientes de… grandes bancos, grandes empresas, etc. e esse tipo de pessoas está à espera e lida com pessoas que têm essa outra postura, e, portanto, eles querem pessoas com posturas iguais. [Entrevista n.º 15, filha de empregados executantes]

Além disso, estes jovens tendem também a sublinhar o facto de terem origens ou mesmo vivências em territórios bastante diversos, tanto a nível nacional como internacional, sendo que alguns deles têm dupla nacionalidade. A valorização deste estatuto foi reconhecida, desde que enquadrada por universidades portuguesas de referência e, de preferência, por uma educação básica e secundária em ambiente internacional, sobretudo no caso dos escritórios que se procuram distinguir pelos seus projetos de internacionalização. Ou seja, o “capital internacional” é hoje altamente cobiçado neste campo, mas não resulta diretamente de ter um passaporte ou uma vivência noutro país. Depende, sobretudo, do facto de o país em que viveu o candidato (ou os seus pais) ser relevante no plano de negócios da sociedade e de o jovem advogado conseguir mobilizar os seus capitais culturais e sociais para reforçar a integração internacional do escritório. Por exemplo, no período em que decorreu o trabalho de campo, os jovens de origem chinesa, alemã ou angolana apresentavam vantagens evidentes, sobretudo se a sua origem social lhes permitia estabelecer um elo de ligação com as elites empresariais e as sociedades de advogados desses países. Veja-se o caso de uma candidata de origem macaense com domínio das línguas, culturas e códigos legislativos, tanto de Portugal como da China:

De facto, nós temos muita escolha, porque aqui o mercado também precisa de pessoas que falem chinês e por isso há várias propostas, mas porque trabalhava em Macau e o escritório que eu trabalhei tem uma relação de parceria com a M., e por isso também eles querem que eu fique aqui, e depois de várias ponderações, tomei uma boa opção e por isso entrei para a M. [fez um processo de recrutamento igual aos outros estagiários?] Eles passaram várias entrevistas, eu só uma […] no meu caso, porque eu tenho experiência em Macau, e aqui tenho um único sócio que trabalha para Macau, Moçambique e Angola, e por isso eles acham que é melhor para mim, porque a minha experiência está para dar assistência ao escritório de Macau. [Entrevista n.º 12, filha de pequenos comerciantes chineses]

Percurso e socialização no sistema educativo

Um aspeto importante é que estamos perante um grupo com percursos escolares relativamente heterogéneos. Entre aqueles que frequentaram escolas privadas, destaca-se um grupo de jovens que frequentou escolas internacionais, em Portugal ou noutros países (incluindo aqui não apenas os colégios que assumem um currículo internacional, mas também aqueles que estão associados à matriz curricular de um país, como é o caso das escolas inglesas, francesas ou alemãs). Estes jovens tendem a aludir às vantagens dessa experiência formativa - reconhecidas pelos próprios, bem como pelas firmas, no processo de seleção - em termos da aquisição de competências linguísticas e de trabalho em contexto internacional como aquele em que os grandes escritórios de advocacia estão hoje integrados.

[sobre a importância de ter vivido no estrangeiro e frequentado escola internacional] Aliás tenho vários amigos meus de Direito, que também tiveram uma vida… malta com quem me tinha cruzado em Bruxelas, e que agora voltámo-nos a encontrar, dá-te outro tipo de abertura às coisas, és mais… adaptas-te mais facilmente às situações do que as outras pessoas que não tiveram que se adaptar quando eram pequeninas a situações diferentes, se calhar tens uma perspetiva diferente das coisas, porque conviveste com pessoas muito diferentes de ti, eu andava numa escola que tinha todas as nacionalidades, portanto… mas é por aí, mas isso é mais pessoal do que profissional, dá mais valências a nível profissional, claro. [Entrevistada n.º 18, filha de militar destacado em diferentes países]

Contudo, a maioria é proveniente de escolas públicas e não considera esse facto um handicap.

[…] pressuposto em termos de carreira, seria sempre a carreira de magistrado, eu tinha acalentado essa ideia até chegar à faculdade e ao terceiro ano, por aí. Quanto às notas, confesso que enfim… posso dizer que fui um bom aluno do secundário, mas não fui um aluno de estudo diário, nunca fui… aproveitei a liberdade desses tempos, haviam disciplinas que eu gostava mais, português, história, filosofia, etc., que eu me identificava mais, onde investi mais, mas também se calhar não tinha essa noção exata, mas sabia que não era preciso para entrar em Direito, o mesmo que é preciso para entrar em medicina por exemplo, o compromisso que está implicado numa ou noutra decisão, é completamente diferente. Eu costumo dizer, sou um produto da escola pública, sempre estive em escolas públicas, e o meu tio, que é o único licenciado em Direito da minha família, não há mais ninguém, tirou o curso em Coimbra, e vivendo eu em Lisboa, ainda não consigo dizer exatamente porquê, mas nunca me fez sentido em nenhum sítio a não ser a Clássica. [Entrevistado n.º 8, tio juiz, pais com ensino superior]

Um segundo aspeto significativo é que a escolha pela área do Direito é explicada, na generalidade dos casos, por um “gosto pessoal”, o qual tende a associar-se a um interesse por trabalhar com pessoas, pela área da Política e das Relações Internacionais, mas ponderado pela convicção de que, dentro das Humanidades, é uma área que permite uma inserção socioprofissional alargada e privilegiada (um certo sentido de “distinção”). A escolha da universidade com base no seu prestígio e reconhecimento no mercado laboral reforça essa orientação estratégica. Isto é, numa escolha com uma carga emocional muito grande, existe uma ideia vaga de vocação, frequentemente alimentada por familiares e amigos que tendem a associar o poder de argumentação a uma carreira jurídica, temperada por uma ambição de alcançar um determinado estatuto social, seja entre aqueles que já cresceram nessa condição seja entre aqueles que cresceram num meio mais humilde.

A proveniência de uma das cinco faculdades de Direito mais prestigiadas em Portugal (4 integradas em universidades públicas e 1 numa universidade privada) constitui uma vantagem importante e, de facto, coincide com o percurso de todos os entrevistados, incluindo aqueles que têm origem estrangeira. A ideia de prestígio académico resulta da triangulação de informação entre os discursos dos entrevistados e as suas mundividências do Direito, a leitura da imprensa especializada, e o contacto com sócios das sociedades de advocacia durante a pesquisa de terreno. Foram recolhidas evidências de que as sociedades solicitam diretamente a estas instituições as listas dos “melhores alunos” aliciando aqueles que consideram mais promissores, sem aguardar as candidaturas dos próprios. Este é um facto relevante, sobretudo se considerarmos que existem em Portugal quinze instituições que conferem esta licenciatura (DGES, 2020), bem como licenciados de outros países com pedidos de inscrição na Ordem dos Advogados.

De referir que o acesso a estas universidades depende de avaliações elevadas no ensino secundário, o que já de si tende a ser frequente em jovens cujas famílias já possuem estudos superiores e que proporcionam uma socialização em disposições culturais dominantes, bem como recursos económicos para pagar, por exemplo, explicações privadas de apoio ao sucesso nas disciplinas mais seletivas.

Sendo umas mais valorizadas pela tradição e outras pela inovação, os currículos e sistemas de avaliação destas cinco universidades parecem ser os únicos confiáveis para os grandes escritórios de advogados de negócios, conferindo uma base comum de conhecimentos, linguagens e valores, indispensável à integração neste contexto profissional. A este propósito, os entrevistados aludem também à malha apertada de relações entre os sócios dos escritórios de advogados e os professores destas faculdades (em alguns casos, são as mesmas pessoas), o que reforça a socialização dentro de uma mesma comunidade e quadro de valores, bem como a um cruzamento de informações e recomendações sobre os candidatos, o que permite adensar mecanismos de seleção e controlo social. Existem narrativas que mostram como o ambiente “seletivo” e “exigente” destas instituições, assim como a afinidade e proteção de certo professor são muito relevantes no processo de escolha dos estagiários por parte dos escritórios mais conceituados.

O meu contacto [com o Direito, antes de entrar na Universidade] era nulo para saber qual era a [melhor] faculdade na altura. Lembro-me que tive uma professora de Português que falou comigo porque tinha alguém que estava na X. Mas basicamente o que eu fiz foi ver qual é que tinha a média [classificação de acesso] mais alta e acho que na altura era a X […] [sobre o processo de recrutamento na sociedade de advogados] aqui tive uma entrevista com uma advogada que passou naquela altura a ser o meu ídolo, que veio a ser a minha patrona […]. Ela estava também com o Professor Y da X que era o meu orientador e com quem eu estava à vontade. Então foi uma conversa tão sincera, lembro-me que uma das perguntas que me colocou foi “onde é que a M. se vê daqui a 16 anos” e eu respondi: como sócia. [Entrevista nº 3, filha de pequenos empresários]

Esta situação complexificou-se, no período mais recente, com a adequação do ensino superior ao Processo de Bolonha4 e o crescimento do número de jovens que concorre ao estágio já com um mestrado (concluído ou em curso). Frequentemente, a realização deste segundo grau numa universidade estrangeira de prestígio (nos Estados Unidos, Inglaterra ou no centro da Europa) é uma mais-valia. Ainda assim, mantém-se o peso da licenciatura numa das cinco faculdades referidas e, aliás, uma grande parte destes jovens opta por realizar o mestrado na mesma instituição (ou numa das outras). Além disso, as pós-graduações - seja em Portugal ou noutros países - apresentam hoje custos elevados, o que, por si só, tende a constituir um obstáculo económico aos jovens provenientes de contextos mais desfavorecidos, a não ser que tenham acesso a bolsas de mérito académico. Alguns conseguiram-no com recurso a empréstimos ou trabalhando em simultâneo, no próprio escritório de advogados ou em atividades temporárias e menos qualificadas. Outra forma de ingresso passa pelo convite/seleção no escritório que é, assim, responsável pelo custeamento total ou parcial dos custos da formação pós-graduada. Estes têm por regra acordos com as faculdades de Direito, seja de forma indireta pelos seus advogados que exercem funções de professores ou através do financiamento de formações especializadas.

A par das instituições frequentadas, as avaliações no ensino superior são também consideradas na análise destas sociedades. Esse foi, aliás, um dos aspetos que um entrevistado de origem brasileira reconheceu ser diferente do seu país. A classificação de 14 valores, representando um valor mediano no sistema português do ensino superior, é apontada geralmente como a “fasquia” para se ser aceite, representando um nível mínimo de competência técnica. Vários entrevistados referem que, acima dessa classificação, a nota é pouco relevante e que, aliás, nas sociedades de advogados de negócios se tende a considerar que a formação universitária confere, pela sua vertente eminentemente teórica, uma preparação muito ténue para o desempenho laboral neste campo. Todos coincidem que a análise curricular realizada pelos escritórios valoriza igualmente outros fatores, tais como as vivências noutros países, a educação internacional, as experiências laborais e extracurriculares, as pertenças a associações de estudantes e juventudes partidárias. Segundo os entrevistados, essas experiências indiciam disposições e competências que podem ser muito importantes na prática profissional (nomeadamente, autonomia, iniciativa, maturidade, etc.), bem como um capital social que pode trazer benefícios aos escritórios.

Eu diria que, para um grande escritório, a perceção que eu tive é que o limite [classificação mínima de licenciatura admitida] era ali o 14, digamos […] e depois é tudo o resto do currículo, são as atividades extracurriculares e depois como a pessoa se porta também na entrevista […]. O advogado não é, não pode ser apenas um bom profissional, juridicamente falando. A verdade é que a perceção que a maioria da população tem - e eu vejo isso pelas pessoas com quem eu falo - é que o advogado é aquela pessoa que vai ao tribunal. Não, nós fazemos muito mais do que isso. A minha área, apesar der ter algum contencioso, maioritariamente é dedicado aos negócios e análises de negócios, memorandos, notas jurídicas e uma pessoa também tem que ser uma pessoa sociável, diplomata, que saiba comunicar, que saiba trabalhar sob pressão e responder sob pressão e controlar a situação, um advogado é e muitas vezes em grandes negócios, é um bom asset para resolver esses negócios e resolver impasses entre os clientes, tem que ser um bom negociador. Portanto, a nota só por si não diz nada, se uma pessoa não tiver estas social skills associadas e um bom background de experiência extracurricular, pode não ser necessariamente um bom advogado, pode ser um excelente jurista a escrever coisas, a resolver problemas jurídicos, mas depois falta-lhe toda a componente… Portanto, interessa a nota, interessa as social skills que são avaliadas obviamente numa entrevista em que se percebe, interessa bastante o currículo… atividades extracurriculares, olham bastante para isso e também demonstra que a pessoa teve exatamente aqueles social skills, o que é que andou a fazer ao longo da faculdade. [sobre as atividades valorizadas] O elenco pode ser muito grande, não lhe saberia dizer quais é que são… que algumas são mais valorizadas que outras. Fazer um Erasmus, participar em estruturas académicas, liderar estruturas académicas, participar em concursos de Direito, que há vários, Direito Internacional, tem uma valorização extra, se calhar se falarmos, se uma pessoa tiver lá assim no currículo que é federado nalgum desporto, em conjunto com outras atividades, há de ser valorizado também, não terá tanta preponderância como outro, acho que existe distinção, claro. [Entrevista n.º 7, filho de imigrantes russos]

Estas experiências são, depois, abordadas com detalhe durante a sequência de entrevistas de seleção, quer com os sócios quer com especialistas de recursos humanos, as quais decorrem, geralmente, em português e em inglês, o que implica que os jovens tenham desenvolvido fluência linguística e algum domínio do jargão. As entrevistas incluem questões, não tanto de competência técnica (as instituições e as classificações são consideradas como principal indicador), mas sobre várias dimensões da vida dos candidatos, aferindo se este se adequa ao perfil da sociedade e, ao mesmo tempo, funcionando como espaço de socialização antecipatória dos jovens advogados que venham a ser selecionados nas disposições e identidades que se pretende que os seus profissionais revelem.

Muitos entrevistados referiram que, nestas entrevistas, se exploram aspetos como as origens sociais, o capital social acumulado, as práticas culturais, os valores e expectativas de vida. Foram recorrentes as alusões a que as entrevistas constituem momentos em que os sócios avaliam as formas de “apresentação de si”, os códigos linguísticos e corporais, as perspetivas políticas e projetos familiares, os gostos, a mundividência dos candidatos. Foi também recorrente a referência a que estas entrevistas incluem questões direcionadas para os conhecimentos dos jovens sobre economia e o mundo dos negócios, bem como as suas disposições e ambições neste campo. Além disso, as narrativas destas entrevistas salientam momentos com uma grande carga emocional, em que a avaliação é mútua e resulta, sobretudo, da construção (ou não) de um sentimento de afinidade e identificação, entre candidato/a e entrevistadores, sobretudo quando é conduzida por um dos sócios da sociedade. Se as sociedades devem selecionar alguns estagiários entre centenas de candidatos, também os candidatos com mais capitais participam em processos paralelos de seleção e são admitidos em vários escritórios, exercendo a sua própria escolha.

O “ambiente universitário” é muito referido como uma experiência socializadora decisiva, mas as aprendizagens académicas, sobretudo as mais teóricas e clássicas do Direito, tendem a ser pouco valorizadas por estes jovens, exceto aquelas que são ministradas por professores específicos, com grande reconhecimento nas sociedades de advogados, ou que envolvem um contacto direto com as práticas destas sociedades, hoje, sobretudo, ao nível das pós-graduações. É significativo, aliás, que os jovens advogados são incentivados pelas sociedades a publicar artigos, a frequentar seminários e a realizar estudos pós-graduados, sobretudo em áreas que combinem a advocacia e os negócios, desenvolvendo assim nichos específicos - e mais elitistas - dentro da própria academia, na qual legitimam, alargam e aperfeiçoam as suas competências e as suas redes de interconhecimento.

Notas conclusivas

As entrevistas biográficas aos jovens advogados em grandes sociedades de advogados de negócios proporcionam-nos alguns contributos relevantes para analisar a relação entre socialização e desigualdades socioprofissionais no quadro da transformação das sociedades contemporâneas.

Por um lado, a socialização familiar pesa fortemente na formação inicial dos juristas e na seleção dos candidatos por parte das sociedades de advogados, no sentido de promover a reprodução social, ainda que sob uma cobertura meritocrática, conferida por um conjunto de competências, referências e habilitações que, não por acaso, são muito mais comuns entre os jovens das classes mais favorecidas. Isso é evidente, desde logo, entre os filhos de advogados, cuja participação em práticas familiares os dotou de um conhecimento incorporado e profundo (em grande parte, inconsciente) sobre os códigos de linguagem, pensamento, conduta e apresentação de si, valorizados nestes escritórios. Mas também entre os filhos de empresários, dirigentes e profissionais liberais, formados em medicina, engenharia ou economia, frequentemente com algum advogado na família, e que, embora com menor contacto direto com a profissão, dominam códigos também reconhecidos e mais rapidamente adquirem, através da prática, sobretudo nas universidades, através da identificação e aproximação a professores que circulam entre a esfera académica e a esfera da advocacia, e de um “trabalho sobre si”, orientado por um projeto identitário mais consciente.

Por outro lado, este processo reprodutivo é hoje intersetado por dinâmicas de mobilidade social, no âmbito das quais as sociedades de advogados, na sua busca por manter e aumentar a sua posição, desenvolvem estratégias de seleção de jovens que possuam outro tipo de competências e disposições que lhes permitam uma maior penetração no mundo empresarial, o acompanhamento das transformações tecnológicas, uma inserção em redes globais de negócios. Neste sentido, observa-se, por exemplo, uma exigência cada vez maior dos percursos formativos, nomeadamente em áreas que cruzem as competências do Direito com outros campos, com especial ênfase na Gestão, mas também nas Línguas ou na Engenharia. Para além da educação formal, são muito relevantes as atividades extracurriculares, entre as quais a participação em associações de estudantes, em atividades desportivas ou religiosas, entre outras, enquanto espaços de desenvolvimento de redes, competências e disposições (capital social). Desta forma, existem canais abertos de mobilidade horizontal e vertical que, inclusivamente, estabelecem um perfil de advogado que se afasta do profissional liberal tout court, mas que se aproxima das atividades dos dirigentes e dos empresários, reforçando a coesão entre estes diferentes “ lugares de classe”. Ainda assim, no sentido em que o acesso a estes percursos formativos compósitos como a estas atividades informais é mais fácil aos jovens das classes dominantes, este tipo de variações não coloca em causa o processo genérico de reprodução (ou “fechamento das elites”).

Podemos, aliás, estabelecer aqui uma homologia com a perspetiva de Klüger (2018), que sublinha a coexistência, nas sociedades modernas, de duas modalidades de legitimação da ascensão aos grupos dirigentes, uma assente na reprodução de um status familiar e outra forjada num percurso académico e profissional de mobilidade, com efeitos nas formas de agir e de exercer o poder, sendo ainda assim dois “tipos-ideais” que compreendem um continuum de situações em que se mobilizam e se combinam recursos operativos e simbólicos adquiridos, frequentemente, em diversos contextos de socialização, sendo o familiar, o escolar e o profissional dos mais relevantes, mas não os únicos.

Um aspeto complexo e relevante destes processos, bem patente nas entrevistas, tem a ver com a sua forte ancoragem emocional. Os jovens justificam a sua escolha pelo Direito por um gosto, frequentemente sentido desde uma idade precoce. Mencionam, também, o papel fundamental de certos familiares, professores e/ou advogados, com os quais sentiram uma profunda admiração e/ou afinidade, no seu encaminhamento para a área da advocacia de negócios. Em parte, esse processo deriva de uma certa “homologia do habitus”, ainda que nem sempre seja esse o caso, pois existe, efetivamente, um movimento de desenvolvimento de competências e disposições que decorre - não só deriva - de uma relação de proximidade com alguém com uma posição dominante no campo.

É ainda relevante uma nota sobre a questão da construção identitária, visto ter-se observado que a inserção enquanto advogado nestas sociedades implica um compromisso assumido, não apenas com disposições, posturas e éticas profissionais, mas também com determinados modos e estilos de vida, de corte mais tradicional e conservador, ou, pelo menos, com a adoção de estratégias de discrição e ocultação quando não se partilham os mesmos. Ou seja, o acesso a estas posições enquadra-se num “projeto socializador total” e que não deixa de gerar tensões com outros processos de socialização e construção identitária dos jovens envolvidos. Trata-se de uma questão complexa e que não foi possível abordar no presente artigo, mas que merece uma análise mais detalhada em futuros trabalhos.

Uma nota final para o carácter exploratório desta pesquisa e que, portanto, carece de aprofundamentos em vários sentidos. Por um lado, será relevante acompanhar estes processos ao longo da vida e em sucessivas gerações, compreendendo como os processos de socialização e seleção vão criando novas integrações e exclusões, reconfigurando assim a estrutura socioprofissional. Por outro lado, será útil cruzar estas pesquisas com o observado noutros campos socioprofissionais, de forma a construir uma perspetiva mais ampla sobre os processos que, simultaneamente, reproduzem e transformam a estrutura social, no quadro das metamorfoses do capitalismo global.

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1 A classificação “sociedade de grande dimensão” resulta da combinação de vários fatores: existência de várias áreas de prática, número de advogados superior a 100, carreira estruturada em categorias, etc.

2 Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/statisticsexplained/index.php?title=Age_of_young_people_leaving_their_parental_household&stable=0&redirect=no.

3 De forma a apoiar os candidatos existem disponíveis para consulta várias brochuras disponibilizadas pelas sociedades de advogados, bem como feiras de emprego nas faculdades de Direito e informação na imprensa especializada.

4 O processo de Bolonha foi implementado pelos Estados-membros da União Europeia de forma a criar um espaço europeu de ensino superior uniformizado. Em Portugal, as universidades adotaram o modelo de Bolonha nos anos letivos de 2006/2007 e 2007/2008. Mais informação pode ser encontrada na página da Comissão Europeia. Vide: https://ec.europa.eu/education/policies/higher-education/bologna-process-and-european-higher-education-area_pt. Consultado pela última vez a 15-12-2020.

Recebido: 18 de Janeiro de 2021; Aceito: 09 de Maio de 2022

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