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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.241 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021241.01 

Artigos

Quasi una fantasia: marcos autobiográficos da formação económica de Celso Furtado.

Quasi una fantasia: autobiographical milestones of Celso Furtado’s economic formation.

1 Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. jcardoso@ics.ulisboa.pt


Resumo

O artigo discute a formação de Celso Furtado como historiador e economista do desenvolvimento e subdesenvolvimento, destacando a importância das fontes autobiográficas para a análise do seu pensamento e ação. Seguindo de perto a trajetória dos seus Diários Intermitentes (1937-2002), são apresentados momentos cruciais de um percurso marcado pela vida universitária ativa, pela participação em organizações internacionais, pela ação política ao serviço de governos do seu país. Especial atenção é atribuída às permanências em ambientes universitários internacionais (designadamente nas Universidades de Paris, Cambridge e Yale), que pontuaram a sua reflexão sobre as questões do desequilíbrio económico e da desigualdade social.

Palavras-chave: Celso Furtado; Brasil; desenvolvimento; subdesenvolvimento

Abstract

The article discusses the formation of Celso Furtado as a historian and economist of development and underdevelopment, highlighting the importance of autobiographical sources for the analysis of his thought and action. Following closely the trajectory of his Diários Intermitentes (Intermittent Diaries) (1937-2002), the article presents crucial moments of a journey marked by an active university life, participation in international organizations and political action at the service of different governments of Brazil. Special attention is given to his stays in international university environments (namely at the Universities of Paris, Cambridge and Yale), which punctuated his reflection on the issues of economic imbalance and social inequalities.

Keywords: Celso Furtado; Brazil; development; underdevelopment

Prelúdio

Ocorreu em 2020 o centenário do nascimento de Celso Furtado (1920-2004). Com naturalidade e de forma consensual, pode e deve ser considerado como o mais importante e influente economista brasileiro da segunda metade do século XX e, porque não dizê-lo, o mais notável e inovador economista em toda a história do pensamento económico do Brasil.

Escreveu dezenas de livros e ensaios sobre temas quase sempre associados aos problemas do desenvolvimento e às políticas de mitigação e superação do subdesenvolvimento (especialmente nos países da América Latina), muitos deles com traduções em diversas línguas. Assumiu funções políticas de relevo no seu país em dois momentos distintos. Entre 1958 e 1964 como diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico (BNDE) e da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e como ministro do Planeamento (nos governos presididos por Juscelino Kubitschek e João Goulart); e entre 1985 e 1988 como embaixador do Brasil na Comunidade Económica Europeia (CEE) e ministro da Cultura (no governo de José Sarney). Integrou e liderou diversas organizações internacionais, com destaque para a Comissão Económica para a América Latina e Caribe das Nações Unidas (CEPAL). Desenvolveu importante carreira académica universitária, sobretudo no período do seu exílio em Paris, após o golpe militar de 1964. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.

A prova da valia e perenidade do seu legado está bem patente na multiplicidade de iniciativas que, a propósito da celebração do centenário do seu nascimento, tiveram recentemente lugar no Brasil.1 O seu acervo documental foi doado ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, esperando-se que a respetiva disponibilização ao público permita dar continuidade a estudos inovadores sobre a sua obra. As agendas e diários que registam momentos do seu trajeto biográfico foram também objeto de edição recente (Furtado, 2019), tendo sido, entretanto, publicada uma seleção da sua correspondência com economistas e políticos brasileiros e estrangeiros (Furtado, 2021).

Atendendo à diversidade e riqueza de contribuições disponíveis sobre a sua obra, optei neste artigo por centrar a atenção no livro publicado postumamente com o título de Diários Intermitentes (1937-2002), editado por Rosa Freire d’Aguiar, viúva e legatária do espólio de Celso Furtado (Furtado, 2019, que citarei abreviadamente como DI). O objetivo a prosseguir consiste na elucidação de aspetos da formação cultural e económica de Celso Furtado, através da análise desses registos e marcos autobiográficos que mereceram recente publicação póstuma.

Com efeito, os Diários Intermitentes oferecem um excelente pretexto para se revisitar o percurso intelectual de Celso Furtado. Possibilitam a fixação de momentos cruciais da sua carreira pública, também ilustrados por apontamentos e vivências de carácter pessoal. A leitura e análise dos testemunhos que deixou permitem reconstituir não apenas o seu processo de formação como economista interessado nos temas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, mas também os dilemas de quem teve de lidar com a tomada de decisões e de opções políticas sobre o modo de contribuir para o progresso económico do seu país. Neste sentido, através de um roteiro pontuado pela leitura dos Diários Intermitentes, desvenda-se a oportunidade para um balanço sobre as grandes etapas em que se inscrevem, e as principais motivações que fundamentam as contribuições de Celso Furtado enquanto figura cimeira do pensamento brasileiro da segunda metade do século XX.

As ocorrências que os Diários assinalam, os contextos da vida pessoal que balizam, fornecem novos elementos para a compreensão de que como se formam as ideias e quadros de análise na obra reflexiva de Celso Furtado. Assim, o propósito aqui inscrito é o de contribuir para elucidar esse cruzamento virtuoso entre realidades vividas e problemas pensados.

O carácter intermitente dos Diários, um registo despreocupado de notas pessoais, um abrigo de pequenas confidências e grandes desabafos, não descarta nem afasta o sentido premeditado da inscrição memorialística que se pretende ver reconhecida pela posteridade. O autor não rasgou nem queimou os seus cadernos de apontamentos onde de forma deliberada ou despreocupada deixou a marca de dias ou acontecimentos especialmente marcantes ao longo da sua vida tão preenchida - o que significa que sabia que os seus apontamentos poderiam vir a ser lidos e apropriados pelos seus leitores.

É pena que não tenha encontrado “tempo e motivo” (DI, 43) para outros relatos e testemunhos sobre longos períodos em que a intensidade da sua entrega a missões públicas não deixava instantes de sobra para inconfidências subjetivas ou exibição de estados de alma. Por isso, a leitura dos Diários Intermitentes tem de ser acompanhada da leitura de outras três outras obras de natureza autobiográfica que em vida publicou com os sugestivos títulos de A Fantasia Organizada (Furtado, 1985), A Fantasia Desfeita (Furtado, 1989) e Os Ares do Mundo (Furtado, 1991). São textos de reminiscência intelectual e política autenticados pelo próprio, intencionalmente escritos para servirem de prova do legado que ao longo da sua carreira foi construindo. Deste modo, são complemento obrigatório para uma incursão na obra de Celso Furtado através das suas próprias memórias.

São estas as fontes primárias que aqui convoco, procurando prolongar a fantasia que o autor construiu em diversos momentos da sua obra.2 Só ocasionalmente serão referenciados outros escritos de sua autoria, com o propósito de elucidar linhas de força essenciais do pensamento e ação de Celso Furtado.3

Pensar o Brasil, entre a história e a economia

Uma das recorrentes expressões que encontramos nos seus diários e memórias é o projeto de pensar o Brasil e a sua história enquanto história de uma civilização. Tal é o propósito enunciado aos 18 anos, de “escrever uma História da Civilização Brasileira” (DI, 48), declaração que não ignora o impacto da publicação de outras obras que se revelariam fundamentais para a concretização do mesmo propósito.4 Olhando para a sua trajetória intelectual e para a obra que primeiramente o celebrizou - refiro-me, obviamente, à Formação Económica do Brasil, publicada em 1959 - dir-se-ia que a economia serviu como instrumento de análise a uma adequada compreensão da história. A economia entendida como realidade sujeita a mudanças ao longo da história, mas também a economia (política) enquanto disciplina científica capacitada para entender os processos de transformação e mudança que ocorrem no tempo. Porém, a relação instrumental inversa acaba igualmente por se aplicar, ou seja: também a história é para Furtado um instrumento essencial para se compreender a evolução económica, sendo o métier do historiador fundamental para se encontrarem as razões que explicam níveis diferenciados de desenvolvimento económico e relações de dependência estrutural.

História e economia estabelecem um compromisso na agenda de Celso Furtado, com vista ao estudo dos processos de desenvolvimento e mudança, com o firme propósito político de contribuir para a atenuação das desigualdades na distribuição do rendimento, no acesso ao poder, na partilha de informação e conhecimento, no usufruto de bens culturais. O seguinte excerto dos Diários, datado de junho de 1959, é bem revelador dessa ambivalência na sua abordagem:

Não sou exatamente o que se chama um economista. Por mais que eu haja estudado economia, é fundamental em mim o fato de que busquei nessa ciência, desde o início, um instrumento de análise a mais para compreender a história. Eu parto da observação do processo histórico e metodicamente vou introduzindo a análise económica. O subdesenvolvimento desta metade do século é fenómeno intimamente ligado à forma de crescer da economia capitalista, com seus ciclos e com sua tendência inexorável à concentração geográfica da renda [DI, 167].

Uma das preocupações mais prementes para quem se interessa pelo modo como as ideias são adquiridas, apropriadas, assimiladas, difundidas, consiste em conhecer os sinais, as marcas, os vestígios de livros e autores que mais contribuíram para a formação intelectual do autor em estudo, nessa sua qualidade de historiador-cum-economista.

Sabemos que não foi forte a sua inclinação e gosto pelo direito, a área inicial de formação que completou na Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro em 1943. Sabemos também que o primeiro emprego público que exerceu (no Departamento Administrativo do Serviço Público) o obrigou a explorar as vias do autodidatismo para se familiarizar com princípios e metodologias de planificação económica e social e técnicas de organização e gestão orçamental. Esta forma de aprendizagem por moto próprio manteve-se ao longo das fases seguintes da sua formação universitária.

O serviço militar em Itália no primeiro semestre de 1945 (fazendo parte da Força Expedicionária Brasileira integrada na 5.ª divisão do exército americano), a escassos meses do final da II Guerra Mundial, foi “pouco mais do que uma viagem de turismo” (DI, 85), conforme escreveu no seu diário. Mas a curta passagem de triunfo por Paris, a oportunidade de conhecer o ambiente da vida europeia (ainda que muito marcada pelos traumas recentes da guerra), a admiração e fascínio pela fruição da cultura e arte italianas, criaram uma forte expectativa de regresso à Europa como porto seguro para outras deambulações. No seu espírito, nesse ano veloz de 1945, ganhou forma a renúncia de um emprego de tarimba burocrática, acalentando a aspiração de escrever sobre política, história e ciências sociais e formulando o desejo mais íntimo de vir a escrever obras de ficção (DI, 88).5 A decisão de voltar à Europa foi, por isso, motivada pela vontade de prosseguir uma formação universitária que alargasse os seus horizontes intelectuais.

Ao fixar-se em Paris em dezembro de 1946, Celso Furtado estabeleceu as primeiras raízes no meio académico em que ciclicamente viria a reencontrar grande felicidade. Os seminários que frequentou como estudante de doutoramento (no Instituto de Estudos Políticos e na Sorbonne) constituíram sólido alicerce formativo em áreas disciplinares nas fronteiras da economia, da história e das ciências sociais, conforme bem testemunha o percurso curricular dos seus professores - Maurice Byé (orientador de tese), Jean Baby, Auguste Cornu, Charles Morazé, Jacques Rueff, Louis Baudin, Bertrand Nogaro, François Perroux. A lacuna sociológica-filosófica que reconhecia existir no cenário intelectual parisiense (DI, 93) foi preenchida pela leitura, diversas vezes evocada nos seus escritos, da obra de Karl Manheim publicada em 1940 (Man and Society in an age of reconstruction).

Mas as leituras que viriam a revelar-se mais ajustadas à sua forma de pensar o mundo contemporâneo do pós-guerra, foram, sem dúvida, as obras clássicas da doutrina marxista e de seus intérpretes em língua francesa. Foi nestes anos parisienses que se iniciou e aprimorou no cultivo de uma linguagem conceptual que, a bem dizer, jamais abandonaria, ainda que ajustasse o tom crítico em relação às limitações do marxismo enquanto campo de investigação nas ciências sociais (DI, 94 a 98).6

Curiosamente, a dissertação que lhe conferiu o grau de doutor pouco reflete a influência de tais leituras, situando-se num domínio muito marcado pela historiografia portuguesa relativa à economia colonial brasileira nos séculos XVI e XVII e sua integração no império português.7 Furtado retomava, deste modo, o propósito enunciado dez anos antes de pensar o Brasil e a sua história civilizacional.

Quando regressou ao Brasil, em julho de 1948, Celso Furtado não trouxe apenas um doutoramento na bagagem. Aprofundou enormemente a sua cultura literária (destacando nos Diários o prazer da leitura de Herman Hesse, Thomas Mann e Rainer Maria Rilke), e vibrou com o ambiente artístico parisiense, como de forma entusiástica relata a propósito das suas idas ao teatro, ao cinema, a recitais e concertos de música clássica, ou à audição de programas de rádio (DI, 95-114). Para além disso, integrou missões e brigadas humanitárias envolvidas em tarefas de reconstrução do pós-guerra, em países do leste europeu, e ganhou consciência cívica em relação aos problemas da desigualdade social. O sentimento que expressa na descrição que faz do tombadilho de 3.ª classe do navio em que fez a viagem de retorno é disso prova insofismável:

Sinto-me de alguma forma irmão de toda essa gente que vai enfrentar o desconhecido: seja no sofrimento, seja na coragem, descubro neles um resto de dignidade humana que é completamente alheia aos pobres de espírito permanentemente em busca de prazeres fáceis que povoam o salão da primeira [classe] [DI, 119].

É esta temática da distinção ou diferenciação social, associada à preocupação com a desigualdade na distribuição do rendimento e à crença numa tomada de consciência da situação de inferioridade de grupos sociais desfavorecidos, que Furtado mobiliza para um projeto de romance, conforme nos revela nos Diários. Apesar da minúcia com que esboçou o perfil social e psicológico dos personagens, essa trama idealizada nunca chegou a ter sequência literária (DI, 117). Celso Furtado optou, se calhar com benefício do leitor, por tratar do tema em ensaios académicos desprovidos de tensão romanesca.

Pensar o desenvolvimento: da Cepal à Sudene, passando pelos EUA e por Cambridge (uk)

Após uma curta passagem pela Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, Celso Furtado deixou-se seduzir pelo projeto da CEPAL, instalando-se em Santiago do Chile em fevereiro de 1949. Ao lado de Raul Prebisch, com quem acabaria por travar discreta disputa em torno da liderança da organização, assumiu grande protagonismo na realização de missões de trabalho e de estudos económicos sobre os principais países da América Latina (Argentina, México, Venezuela, Equador, Peru, Costa Rica e, naturalmente, Brasil).

Muito já se disse e escreveu sobre a importância destes anos na trajetória profissional e política de Celso Furtado. Foi na CEPAL que adquiriu grande experiência como consultor político de âmbito internacional, contribuindo de forma original para a formação de linhas de pensamento e diretrizes políticas que deixaram marcas no estudo dos processos de desenvolvimento na América Latina.8

Essa será, porventura, a sua contribuição mais inovadora, merecendo, por isso, uma breve nota explicativa. Para Celso Furtado (e Raul Prebisch), existia uma relação desigual e assimétrica entre os países do centro industrializado e os países da periferia fornecedora de matérias-primas. Tal relação era em todo semelhante ao modo de relacionamento das metrópoles imperiais com as suas colónias, ou seja, revestia natureza histórica e estrutural. Para se quebrar a relação de desigualdade existente, era indispensável acelerar o processo de inovação e progresso técnico mediante políticas de industrialização nos países periféricos, sobretudo através da substituição de importações de produtos que pudessem ser fabricados internamente sem agravamento das relações de dependência tecnológica. O Estado deveria exercer um papel motor na criação de um ambiente propício ao uso dos habituais instrumentos de política económica (apoio a novos sectores de “indústria nascente” e fixação de tarifas aduaneiras protecionistas) favoráveis ao arranque e consolidação dos sectores industriais. Para os economistas da CEPAL, o uso adequado deste tipo de instrumentos de política económica em países da América Latina era condição indispensável para se garantir a atenuação das desigualdades de níveis e ritmos de desenvolvimento entre países do centro e da periferia.

Esta opção fundamentava-se num posicionamento crítico em relação aos princípios da teoria económica das vantagens comparativas, inicialmente expostos por David Ricardo (em 1817), e das suas revisões e aprofundamentos pela teoria neoclássica do comércio internacional. Segundo tal perspetiva, o estabelecimento de relações comerciais abertas entre países com diferentes níveis de desenvolvimento traria vantagens mútuas e recíprocas, permitindo ganhos de especialização e uma realocação setorial de recursos e atividades que seria, para todos, um jogo de soma positiva.

Prebisch, Furtado e os seus seguidores demonstraram de forma convincente que a constante e progressiva deterioração dos termos de troca nos países periféricos não permitia manter a ilusão de que todos os países poderiam simultaneamente beneficiar da expansão do comércio à escala internacional. Os países subdesenvolvidos continuariam a ser, pelo contrário, as principais vítimas da globalização. Independentemente da validade teórica, comprovação empírica ou realismo político desta visão, o peso desta componente doutrinal, assim como a pressão institucional da agenda da CEPAL, criaram condições favoráveis à aceitação de orientações de política económica que permitissem cumprir os objetivos que estiveram na origem desta comissão das Nações Unidas: eliminar os fatores que favoreciam o desenvolvimento desigual entre países do centro e da periferia.

Regressando aos Diários Intermitentes, refira-se que não registam, para este período do trajeto autobiográfico de Celso Furtado, nenhuma novidade ou curiosidade digna de nota. Saliente-se apenas o modo subtil como critica o comportamento arrogante e incompetente de diplomatas e funcionários brasileiros no exterior (DI, 140), os comentários que tece sobre o controlo da geopolítica latino-americana pelas grandes companhias petrolíferas e a denúncia que faz da corrupção e contrabando na Venezuela e Panamá (DI, 146-47).

Paralelamente ao trabalho técnico e político na CEPAL, Furtado manteve ativas as suas posições críticas em relação ao ambiente de discussão teórica promovido pela Fundação Getúlio Vargas, que em 1950 e 1951 acolheu ciclos de conferências proferidas, respetivamente, por Jacob Viner (da Universidade de Princeton) e Ragnar Nurske (da Universidade de Columbia). Sobre as conferências de Viner, Celso Furtado não perdeu a oportunidade de criticar a teoria neoclássica do comércio internacional assente em modelos teoricamente elegantes, mas desprovidos de sentido histórico real. E relativamente a Nurske demonstrou alguma sintonia com as teses do ciclo vicioso da pobreza e da estagnação automática provocada pelas reduzidas taxas de poupança nos países subdesenvolvidos (Furtado, 1985, pp. 249 e 259).9

Foi com esse mesmo espírito de vontade de enriquecimento intelectual, ultrapassando as margens do pensamento estruturalista e desenvolvimentista da CEPAL, que na primavera de 1951 Furtado visitou algumas universidades americanas (Harvard, MIT, Northwestern, Chicago), estabelecendo contactos diversos com a nata dos economistas mundiais. Destaque-se a impressão causada por Leontief, que considera ter sido dos poucos a ouvir e a interessar-se por aquilo que lhe dizia, designadamente em torno do conceito de produtividade social (Furtado, 1985, p. 192). Certamente que tal simpatia terá sido proporcionada pelo interesse do economista brasileiro numa das temáticas em que Leontief foi pioneiro: o quadro teórico das matrizes intersectoriais e a análise input-output. Menor impacto tiveram Rostow, Kindleberger, Hoselitz, Schulz e Hamilton, não obstante a proximidade destes autores com a abordagem temática do desenvolvimento e crescimento económico.

Mas o mais profícuo e desafiante contacto terá sido com o antropólogo Melville Herskovitz que na altura consolidava na Northwestern University um dos mais importantes centros de investigação em African Studies. Para o autor do livro The Myth of the Negro Past, as influências culturais africanas estavam bem presentes na comunidade negra americana que tinha sido objeto de um processo histórico de escravização. Por conseguinte, as semelhanças com o Brasil tornavam aconselhável a utilização de um mesmo dispositivo de abordagem antropológica.

Para Celso Furtado, o tema da mudança cultural surgia como questão prioritária para compreender a realidade brasileira, o que implicava uma atenção particular às abordagens que Herskovitz tinha pioneiramente elaborado sobre a emergência da criatividade tecnológica e sobre os processos de difusão de ideias e valores. Dele colheu plena recetividade para a compreensão da base cultural que permite a absorção da inovação e da mudança:

Esse diálogo com o professor Herskovits fez-me pensar que a criatividade religiosa das populações brasileiras de origem africana, estimulada em luta secular pela sobrevivência, constitui elemento fundamental na formação da nossa cultura [Furtado, 1985, p. 195].

Em 1957, após um encontro com Nicholas Kaldor na Cidade do México, Furtado aceitou a sugestão e desafio daquele influente economista da Universidade de Cambridge para passar um ano sabático nesta universidade. Assim, aproveitou a circunstância de algum desencanto com o trabalho que levava a cabo na CEPAL para solicitar uma licença sem vencimento e concorrer a uma bolsa da Fundação Rockefeller que lhe permitiu franquear as portas desse templo de criação da ciência económica.

O interesse de Furtado pela obra de Kaldor era recíproco, uma vez que ambos se interessavam, ainda que por vias diferentes, pelos temas da teoria da distribuição do rendimento numa ótica de longo prazo, o que significava um foco de atenção sobre o tema da dinâmica económica e, no caso de Furtado, pela consideração da problemática do subdesenvolvimento como consequência do processo evolutivo da economia à escala internacional.10

Foi durante a estadia em Cambridge que Celso Furtado escreveu aquela que viria a ser, porventura, a sua obra-charneira, a Formação Económica do Brasil (Furtado, 1959).11 Poder-se-á questionar se terá sido realmente importante o contacto regular com autores que hoje reconhecemos como marcantes na formação do pensamento económico contemporâneo (Nicholas Kaldor, Joan Robinson, Piero Sraffa, Amartya Sen, Richard Kahn) para o livro que Furtado ia escrevendo. Sobretudo se tivermos em atenção os seus reparos sobre o carácter árido e abstrato de modelos teóricos pouco convidativos ao estudo de realidades económicas concretas, assim como a sua exigência de considerar o desenvolvimento económico como um fenómeno histórico cuja compreensão não dispensava o diálogo interdisciplinar. Mas não há dúvida de que o ambiente intelectual distendido de uma universidade com imensos recursos bibliográficos, com uma vida académica intensa, com o acolhedor enquadramento social dos colleges e clubs de Cambridge (DI, 149), fez Celso Furtado esquecer a CEPAL e alimentar o sonho de uma fantasia organizada que se poderia tornar realidade.

Ao sair de Cambridge, em 1958, Furtado sabia que regressava ao Brasil com o propósito de “meter as mãos na massa”, de contribuir com a sua ação política direta para tentar “deter o processo de crescentes disparidades regionais” (Furtado, 1985, p. 359).

A primeira missão como diretor do BNDE foi assumida com grande confiança e entusiasmo, conforme relatou numa entrevista em que procede a um balanço da sua passagem por esta instituição (Furtado, 1982). A sua anterior colaboração com o BNDE, enquanto técnico da CEPAL, permitia-lhe formar expetativas animadoras sobre o êxito de uma ação talhada para o desenvolvimento do Nordeste, que encarava com forte sentido pragmático e executivo:

Tenho muita satisfação e muita honra de participar da diretoria se o Banco criar uma área especializada. Não é para eu vir aqui preparar projetos, discutir coisas, porque tem muita gente boa para fazer isso. Aceito se o Banco quiser criar uma área especializada, um diretor para se preocupar com os problemas do Nordeste [Furtado, 1982, p. 111].

Todavia, a fantasia seria gradualmente desfeita, à medida que empalidecia a crença nas virtudes transformadoras da ação política, conforme tão bem elucida a leitura dos posteriores registos autobiográficos em que descreve a experiência na SUDENE e no Ministério do Planejamento, nos anos em que ativamente colaborou com os presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart (Furtado, 1989).12

Os Diários Intermitentes relativos a este período são ricos em mensagens que atestam alguma contradição ou tensão interior: por um lado, o sentido de serviço público que o anima a pôr em movimento meios e instrumentos destinados a promover uma política consistente de desenvolvimento do Nordeste, acima de quaisquer interesses ou compromissos partidários (DI, 156). Foi a competência com que se entregou a essa causa que permitiu granjear manifestações de apoio e confiança (DI, 172). Por outro lado, o incómodo causado por acusações políticas, insinuações veladas, falsidades movidas pelos opositores à sua ação política (DI, 184).

Em momentos de passagem ocasional e fugaz por Paris, no ano de 1960, Celso Furtado recordou o tempo em que se dedicava inteiramente ao estudo, em que “a vida no plano das ideias era extraordinariamente intensa”, e confessou que “muitas vezes penso em abandonar a minha luta e organizar uma vida ‘espiritual’ em Paris” (DI, 198 e 200).

Parecia pressentir que o ciclo político desenvolvimentista estava perto do seu termo. O que viria a consumar-se com o golpe militar de abril de 1964, que viria a ditar, no plano pessoal, a perda de direitos políticos e a inevitável saída forçada do país.

Intelectual exilado e engagé

No início do exílio, após alguns meses em Santiago do Chile de reencontro com o ambiente da CEPAL, Furtado concretiza o desejo de compreender melhor a vanguarda da civilização industrial e o modelo de sociedade que tendia a disseminar-se à escala universal. A escolha dos Estados Unidos obedeceu a esse propósito (Furtado, 1991, p. 140). Mas o modo como foi acolhido na Universidade de Yale, não obstante as excelentes condições logísticas de que dispunha no Centro de Estudos de Crescimento Económico, fizeram-no reconsiderar a intenção de uma estadia prolongada. É certo que os episódios relacionados com a renovação do seu passaporte, com a confirmação do visto de residência e com as dificuldades de circulação internacional (habilmente orquestradas pelas autoridades brasileiras) não tornavam fácil a permanência nos Estados Unidos (Furtado, 1991, pp. 167-170). Porém, a questão de fundo do seu desencanto com o país-mostruário da civilização industrial decorreu da ausência de empatia intelectual com o ambiente característico dos departamentos de economia das universidades americanas de topo mundial, como era o caso de Yale.

O fascínio exercido pela riqueza das bibliotecas, pela vivacidade e espírito criativo das aulas e seminários - “estou levando a vida que sempre desejei: estudando, pensando, escrevendo” (DI, 227) - não escondiam a existência de bloqueios à aceitação do tipo de trabalho que mais interessava a Celso Furtado desenvolver. Os professores de Yale à época mais famosos e que poderiam ter alguma familiaridade com as áreas de investigação do seu interesse (entre os quais merecem destaque, James Tobin e Robert Triffin) revelavam pouca ou nenhuma apetência pelo quadro mental das teorias e políticas de desenvolvimento económico em que Furtado se movimentava. Conforme claramente expressa:

Até então, não me apercebera do verdadeiro terrorismo que exerce na economia a escola do pensamento dominante. Trabalhar fora do paradigma do equilíbrio geral era autodesqualificar-se. Aqueles que tentavam recuperar o conceito clássico de excedente deviam aceitar a etiqueta de marxista, com as implicações que isso trazia, porquanto o marxismo não era tido como uma forma de conhecimento científico [Furtado, 1991, pp. 153-154].

Furtado não obedecia ao cânone ortodoxo vigente.13 Aos colegas de Departamento que poderiam ser seus interlocutores não interessava o que lhes pudesse querer dizer. E também se sentia incomodado pelas reações que obtinha às suas apresentações em seminários, evitando confrontos metodológicos e ideológicos em que o seu posicionamento normativo em favor da luta contra o subdesenvolvimento não colhia nenhuma aceitação. Ao confessar que “o mundo universitário norte-americano me parecia dominado por um pensamento legitimador do status quo social” (Furtado, 1991, p. 163), Celso Furtado reconhecia que aquele não era o lugar para prosseguir a sua demanda intelectual. O estalar da Guerra do Vietname, em fevereiro de 1965, retirou-lhe qualquer motivação para continuar a tentar conviver com o ambiente universitário americano, no qual o clima geral era “de pouca simpatia por alguém que se fizera notório por atividades ditas ‘subversivas’ na América Latina” (Furtado, 1991, p. 173).

E foi assim que em julho de 1965 rumou para novos “anos de peregrinação” no continente europeu, tendo Paris como residência de suporte. A alusão aos “années de pèlerinage” do seu tão admirado Franz Liszt, denota uma permanente vocação para a viagem e peregrinação interior, em busca de um tempo que nunca se julga perdido.14

Neste regresso a Paris-Sorbonne, a sua Alma Mater e o lugar onde se sentia bem, procurou alargar o âmbito da agenda de investigação sobre teorias e políticas de desenvolvimento económico, com um enfoque específico sobre problemas das economias e políticas económicas da América Latina. Pouco mudava em termos temáticos, ainda que fossem agora mais frutíferos e de muito maior impacto os resultados do seu magistério, prolongado em inúmeros livros publicados e traduzidos e em múltiplas orientações de alunos de mestrado e doutoramento. Entre esses alunos, justifica-se uma referência particular a Alfredo de Sousa, que viria a ter importante papel na divulgação da obra de Celso Furtado entre os economistas portugueses.15

Ao fim de cinco anos em Paris (em abril de 1970), escreveu no seu diário: “Dedico cada vez mais tempo à Universidade (…). Espero que esse banho de erudição não me destrua a capacidade para comunicar com outras pessoas e perceber as coisas sensíveis” (DI, 230). Era um alerta lúcido sobre as limitações, do trabalho académico puro e duro, sem ligações ao mundo real.

Para Celso Furtado, Paris funcionava também como uma plataforma onde se cruzavam as múltiplas redes de contactos que ao longo da carreira profissional, política e universitária foi acumulando. Daí resultaram as frequentes saídas para lecionar cursos breves ou realizar conferências e seminários, especialmente em países da América Latina (incluindo o Brasil, a partir de 1976, com os sinais de abertura política que começaram a ser dados). Neste sentido se enquadra o ano sabático que passou na Universidade de Cambridge em 1973-1974, onde lecionou um curso sobre desenvolvimento económico e organizou materiais que dariam origem a novos livros publicados alguns mais tarde (aos quais me referirei em breve). Ao contrário do que sucedera com a desconfortável estadia como professor visitante nos Estados Unidos, Cambridge permanecia como templo académico aberto a confissões heterodoxas, para além do mainstream keynesiano que no passado conhecera dias mais promissores. Kahn, Kaldor, Robinson, Sraffa continuavam por perto, oferecendo a Furtado a tranquilidade e o respeito de aceitarem as suas ideias livremente expressas. Todavia, os requisitos matemáticos e a formulação abstrata dos economistas heterodoxos de Cambridge não exerciam o fascínio que na juventude sentira, confidenciando Furtado o seu desencanto pelas limitações explicativas da ciência económica, incapaz de fazer uma leitura da realidade e de identificar os problemas e as soluções mais prementes (DI, 253).

Uma nova fantasia: a história cultural da civilização industrial

Perante a reserva mental atrás referida, não é de estranhar que um dos resultados da sua estadia em Cambridge tenha sido a preparação de materiais para a organização de uma nova fantasia, para a construção de uma visão global da história da civilização industrial.

Ao longo dos seus livros, a temática recorrente do estudo do desenvolvimento e subdesenvolvimento (assim como das políticas destinadas a atenuar as diferenças entre países do centro desenvolvido e das periferias subdesenvolvidas) é enquadrada num modelo teórico qualitativo mediante recurso a alguns conceitos e expressões que se repetem de forma coerente, que apenas surpreende pela consistência intertemporal do uso que deles faz.

Nalguns livros mais do que noutros - mas sobretudo na coletânea de ensaios Criatividade e dependência na civilização industrial (Furtado 1978) - nota-se um certo fascínio pela quadratura de um círculo que se encerra em si próprio através da utilização de uma terminologia obsessivamente repetida: a criação, absorção e apropriação do excedente; a revolução burguesa; a dinâmica de um processo de acumulação de capital que acarreta a inevitável situação de domínio e hegemonia de grupos sociais e de alguns países sobre outros, criando situações duradouras de dependência estrutural; a difusão da cultura da civilização industrial que implica processos de assimilação de estilos de vida e hábitos de consumo que intensificam as relações e vínculos de dependência; a perpetuação dos fenómenos de concentração do rendimento, de extrema desigualdade na distribuição da riqueza, de destruição de recursos naturais.

Deste modo, os processos de inovação e criatividade do capitalismo industrial não se reproduzem beneficamente à escala global, prolongando as fragilidades, desequilíbrios e assimetrias que Furtado não se cansou de denunciar e de tentar minorar na sua análise sobre mudança social e desenvolvimento.

O estilo ensaístico, solto e descomprometido, como é próprio de “um antilivro académico” (Furtado, 1978, p. 33), é bem revelador do ambiente intelectual parisiense em que estava imerso. Provocador e algo diletante, mas irremediavelmente sedutor para um público leigo interessado em grandes interpretações sobre problemas do mundo contemporâneo.16 Furtado defende-se dizendo que a sua preocupação é “dialogar com as sombras” e, em metáfora musical tão ao seu jeito, sugere uma composição atonal livre sem elemento dominante. Por entre as sombras recortam-se os perfis indisfarçáveis da literatura marxista, com adereços fornecidos pela escola de Frankfurt, mas também os improváveis vestígios de Kant, Nietzsche e Weber.17

O leitor pode ficar inquieto com alguma complacência revelada por Furtado em relação ao significado e ensinamentos da chamada revolução cultural chinesa, que voltará a reiterar em passagens de Os Ares do Mundo em que relata as impressões de viagem à China no início da década de 1980 (Furtado, 1991). Mas esse mesmo leitor retoma a sintonia e a empatia interpretativa naquele que será, em minha opinião, o ensaio mais conseguido, o andamento mais luminoso, a tonalidade mais vibrante de todo o livro. No texto que intitula “Ensaio de visão retrospetiva”, Celso Furtado regressa ao tema inicial da sua tese de doutoramento, agora enquadrado pela visão holística do processo de produção e acumulação do excedente que preside à formação da civilização industrial e suas repercussões globais. A renovação dos quadros mentais europeus no período do Renascimento e da expansão comercial marítima (em que Portugal foi protagonista primordial) faz Furtado reencontrar-se com Braudel e com a escola dos Annales, proporcionando uma explicação integrada de como a extensão dos horizontes geográficos e o aprofundamento do conhecimento científico operaram uma mudança crucial no panorama económico, cultural, político e civilizacional à escala global.18

O retorno às origens e o desfazer das fantasias político-partidárias

Após a amnistia de 1979, as pressões para que Celso Furtado regressasse à vida política ativa no Brasil tocaram na tecla sensível de seus sentimentos patrióticos (DI, 271). Os Diários Intermitentes oferecem uma grande riqueza de testemunhos pessoais sobre o período da sua ação como embaixador do Brasil junto da Comunidade Económica Europeia e como Ministro da Cultura do governo de José Sarney, descrevendo personagens em cena, as disputas intra e interpartidárias, os enganos e desenganos do PMDB, os assuntos discutidos em almoços e jantares com os lideres em palco e na ribalta (nomeadamente, para além de Sarney, Ulisses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Bresser Pereira, Renato Archer, José Serra). O seu olhar crítico sobra a própria experiência política em que estava envolvido não deixa margem para dúvidas:

A cena política brasileira é uma mescla de ballet e de happening: dezenas de líderes se esforçando para ter um papel num drama que carece de sentido para todos [DI, p. 281].

Nas linhas e entrelinhas dos Diários, transparece a mesma sensação de déjà vu, a reafirmação da vontade de pensar, ler, escrever, ouvir música, viajar, estar com os amigos, regressar à vida intelectual, sem vinculação partidária (DI, 321). Conforme escreveu numa altura em que preparava a retirada estratégica do Ministério da Cultura:

A vida partidária em si não me interessa pois não pretendo disputar cargo eletivo. Fora de uma razão maior, como foi a luta pela democratização do país, não tem sentido fazer vida partidária [DI, p. 390].

Para além do acentuado desencanto com a vida político-partidária, revela também a sua amargura sobre a situação geral do país, com o agravamento do desemprego, a criminalidade organizada, “condições de vida calamitosas” de grande parte da população (DI, 363). Afinal, tudo parecia voltar à estaca zero:

O desenvolvimento de nosso país é certamente o mais antissocial que se conhece. Em nenhuma parte [do mundo] a renda é tão concentrada e tão grande a população na pobreza absoluta relativamente ao nível de renda média [DI, p. 403].

Nos anos finais a que os Diários se reportam (1988 a 2002) merece destaque o modo como se refere à sua participação nos trabalhos da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, presidida por Perez de Cuellar, que integrou a partir de 1993. De novo em Paris, Furtado regressa à sua paixão mais duradoura e persistente: a análise das consequências dos processos de desenvolvimento e globalização, na perspetiva dos países e das camadas sociais da população que sofrem perdas devido à desigual distribuição de renda, ao desemprego, à exclusão social. Celso Furtado reescreve em linguagem modernizada o seu desígnio e fantasia, a agenda a prosseguir nos tempos vindouros:

Conciliar o processo de globalização com uma política de emprego que anule os efeitos do processo de exclusão social exige uma ação complementar do Estado em colaboração com a sociedade civil. Trata-se de privilegiar o bem-estar das maiorias [DI, p. 423].

Num memorando em que regista as questões-chave a discutir na referida Comissão, Furtado retoma os grandes temas que sempre o preocuparam, designadamente a fragmentação da identidade cultural decorrente do processo de globalização, as tendências de agravamento da desigualdade no acesso à riqueza e ao conhecimento e informação e o risco de crescentes conflitos étnicos, religiosos e interculturais.

E aponta também as questões prioritárias que exigiam solução à escala global: a redução dos custos ecológicos e a redefinição de prioridades sociais nos países desenvolvidos; a satisfação de necessidades vitais e o estímulo à iniciativa e criatividade nos países subdesenvolvidos; a exigência de “um quadro institucional adequado e uma classe política apta a captar os anseios da população e a administrar os conflitos inerentes ao próprio processo de desenvolvimento” [DI, p. 419].

Trata-se, afinal, da reafirmação de uma vontade política determinada em mobilizar todos os meios ao seu alcance para lutar com sucesso pela causa planetária e inadiável da superação do subdesenvolvimento. Num dos últimos textos de sua autoria (por ocasião da reunião da UNCTAD em São Paulo em junho de 2004) escreveu Celso Furtado, recordando o lema de toda a sua vida:

Só haverá verdadeiro desenvolvimento - que não se deve confundir com “crescimento económico”, no mais das vezes resultado da mera modernização das elites - ali onde existir um projeto social subjacente. É só quando prevalecem as forças que lutam pela efetiva melhoria das condições de vida da população que o crescimento se transforma em desenvolvimento [Furtado, 2013, p. 108].19

Furtado e os ODS: prelúdio para uma nova fantasia

É sem esforço que encontramos, nestas e noutras formulações da sua agenda cívica em prol do desenvolvimento, os grandes temas que hoje associamos aos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) definidos pelas Nações Unidas no ambicioso programa de prioridades e aspirações globais para 2030. Com efeito, para cada um dos 17 ODS constantes dessa agenda, será possível associar um pensamento, uma frase proferida, uma ação desencadeada por Celso Furtado que demonstrou avant la lettre uma grande propensão para diagnosticar os problemas urgentes do planeta. Entre todos, vale a pena destacar os ODS 16 (“Instituições fortes”) e 17 (“Parcerias para o desenvolvimento”) para evocar o testemunho veemente que Furtado procurou transmitir às gerações que hoje discutem problemas que soube antecipar.20

A interrogação que a obra de Celso Furtado deixa para a posteridade pode ser formulada nos seguintes termos: como lidar com a mudança, como inventar e criar a modernidade? Ou, fazendo alusão simbólica a uma expressão tanto do seu agrado, como continuar a construir fantasias?

Na resposta a essa questão quase-filosófica, perfila-se o sentido reflexivo e rigoroso do seu diagnóstico dos problemas resultantes do subdesenvolvimento económico, da desigualdade na distribuição da riqueza. E também a enunciação ponderada de soluções programadas para que as metas definidas pudessem ser alcançadas com sucesso.

Nem tudo o que idealizou se concretizou da forma esperada. Mas não perdeu a esperança de tentar de novo o que outrora se revelara impossível. Porque, como escreveu numa das últimas páginas dos seus Diários, em 2002: “Nada traduz tão bem a face criadora de uma sociedade como sua capacidade de inventar utopias” (DI, 427). É essa vontade incessante em inventar e construir utopias a partir da realidade que transforma a obra de Celso Furtado em quasi una fantasia.21

Referências bibliográficas

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1 Merecem destaque os números especiais da Revista de Ciências Sociais (Universidade do Ceará), Fortaleza, 51(1), mar./jun., 2020, e de Estudos Avançados, USP, n.º 100 de 2020. Veja-se também o ciclo de conferências organizado pelo Centro Internacional Celso Furtado entre 26 e 30 de julho (http://www.centrocelsofurtado.org.br/interna.php?ID_M=1924) e o colóquio internacional organizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro entre 3 e 7 de novembro (http://www.anocomemorativo.uerj.br/). E ainda a coletânea de 3 volumes de ensaios sobre a vida e obra de Celso Furtado (Sousa, Theis e Barbosa, 2020).

2 O título escolhido para este texto - Quasi una fantasia - evoca, simultaneamente, os títulos das suas obras autobiográficas e o gosto musical de que dá mostras nos seus Diários.

3 Está fora do âmbito deste artigo uma apresentação das suas contribuições mais relevantes no âmbito das teorias e políticas de desenvolvimento e sua aplicação aos países da América Latina, com destaque para o Brasil. Para uma visão sintética sobre o conjunto da sua obra, cf. Bresser- Pereira (2001) e Szmrecsányi (2005).

4 Nomeadamente, Gilberto Freyre, Casa Grande e Sanzala (1933), Caio Prado, Evolução Política do Brasil (1933), Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1936) e Roberto Simonsen, História Económica do Brasil (1937).

5 Os Contos da Vida Expedicionária (1945), com evocações da sua passagem por diversas regiões de Itália, retratam bem essa pulsão ficcionista, que não voltaria a conhecer sequelas, ainda que a vontade de deixar obra literária voltasse a ser declarada alguns anos mais tarde. Esta aproximação à novela de viagens foi publicada in Furtado (1985).

6 O diálogo crítico de Celso Furtado com a doutrina marxista é um dos tópicos mais interessantes para a abordagem global do seu pensamento. A vastidão do tema não permite análise no âmbito deste artigo. Sobre o conceito de história, sobre a importação de algumas ideias fundadas no materialismo histórico e o seu afastamento em relação a uma visão estritamente marxista da história, cf. Paula (2015). Para uma introdução ao tema da presença da obra de Marx na teoria do desenvolvimento económico de Celso Furtado, cf. Coutinho (2001).

7 A tese manteve-se longos anos inédita, sendo apenas traduzida e publicada em língua portuguesa passados mais de 50 anos após a sua escrita (Furtado, 2001). Sobre esta fase inicial da carreira de Celso Furtado, cf. Silva (2011).

8 É vastíssima a bibliografia sobre Furtado e a CEPAL. Para uma visão sintética cf. Moraes (1995) e Bielschowsky (2000).

9 A discussão das teses de Nurske viria a ser publicada pela revista Econômica Brasileira, da qual Celso Furtado foi grande impulsionador e animador, entre 1955 e 1964. Sobre o assunto cf. Andrada, Boianovsky e Cabello (2018).

10 Sobre a contextualização dos escritos de Furtado à luz das teorias do crescimento e desenvolvimento económico do período, cf. Boianovsky (2010).

11 Recorde-se que a escrita desta obra ocorre em sequência da publicação de duas outras obras matriciais do pensamento brasileiro: Raymundo Faoro, Os Donos do Poder (1957) e António Cândido, A Formação da Literatura Brasileira (1958).

12 Sobre esta ação política em defesa do desenvolvimento da região do Nordeste brasileiro, cf. Barbosa (2020).

13 As suas principais fontes de inspiração e diálogo teórico eram as obras de Gunnar Myrdal, Albert O. Hirschman, Hans Singer e Paul Rosenstein-Rodan, cujo acolhimento em Yale era muito reduzido.

14 E denota também a força das suas preferências musicais. Liszt mereceu referência nas primeiras páginas dos DI, quando aos 17 anos, no liceu de João Pessoa, procurava lenitivo para a solidão (DI, 42).

15 Recorde-se que tal influência foi extensiva a um conjunto de outros autores (nomeadamente Adérito Sedas Nunes, Mário Murteira, Maria Manuela Silva, Luís Teixeira Pinto, Francisco Pereira de Moura e Xavier Pintado), como fica demonstrado pela publicação de artigos e resenhas bibliográficas sobre Furtado e a CEPAL nas páginas da Análise Social nos anos de 1967 a 1969. Sobre o assunto cf. Cardoso (2015).

16 Recorde-se que os assuntos em análise neste conjunto de ensaios dados à estampa em 1978 tinham já sido objeto de exposição também ensaística, mas respeitadora dos cânones académicos convencionais, no livro que intitulou de Prefácio a Nova Economia Política (Furtado, 1976).

17 Sobre o manuseamento do conceito de cultura na obra de Furtado, revelando influências de escolas marxistas, cf. Bolaño (2015, pp. 41-58).

18 Sobre a ligação com Braudel, a quem sempre se refere em tom de respeitoso elogio (DI, 328), cf. d’Aguiar (2020).

19 Celso Furtado escreveu diversos ensaios e capítulos de livros sobre esta distinção entre crescimento e desenvolvimento. Destaque-se o texto “O desenvolvimento do ponto de vista interdisciplinar”, de 1979 (Furtado, 2013, pp. 197-235).

20 Sobre a relevância do pensamento de Furtado para a compreensão de problemas atuais relativos ao desenvolvimento e subdesenvolvimento, cf. o conjunto de ensaios reunidos em Lima e David Lima (2008).

21 Agradeço a dois relatores anónimos da Análise Social os comentários e recomendações que permitiram melhorar a apresentação deste artigo.

Recebido: 16 de Novembro de 2020; Aceito: 02 de Junho de 2021

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