SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número239Recensão: Lisboa e a memória do império: património, museus e espaço público, de Elsa Peralta, por Jonas PrinzleveObituário: Pedro Lains (1959-2021), por Álvaro Ferreira da Silva índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.239 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021239.13 

Resensão

Recensão: Asilo político em tempos de Salazar. Os casos de Humberto Delgado e Henrique Galvão, de Luís Bigotte Chorão, por Pedro Aires Oliveira

1 Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH). Av. Berna, 26 - 1069-061 Lisboa, Portugal. mpoliveira@fcsh.unl.pt

Chorão, Luís Bigotte. ., Asilo político em tempos de Salazar. Os casos de Humberto Delgado e Henrique Galvão. ,, Lisboa: ,, Edições 70, ,, 2019. ,, 339p. pp. ISBN, ISBN: 9789724422640.


A concessão de asilo político é uma questão com um enorme potencial desestabilizador nas relações entre Estados. Como tem sido notado, esse reconhecimento corresponde de alguma forma à formulação de um juízo político sobre as práticas do Estado de onde é oriundo o asilado. Entre as razões mais comummente invocadas para alguém pedir santuário num outro país, ou em instalações diplomáticas ou militares que beneficiem de um estatuto de imunidade, estão a ausência de garantias relativamente a um tratamento judicial justo, ou mesmo as ameaças à sua integridade física. O Estado que acreditou as imunidades diplomáticas tem de aceitar os limites da sua própria soberania, mas nem sempre daqui resulta uma transferência sem sobressaltos do refugiado para o país que lhe concedeu refúgio político. Ainda recentemente pudemos assistir ao episódio do asilo de Julian Assange, o fundador da WikiLeaks, na embaixada da República do Equador em Londres, e à sua posterior entrega, ao fim de sete anos, às autoridades britânicas, uma decisão que dividiu profundamente a opinião pública no Equador e noutras partes do mundo.

Por razões que em parte se prendem com a sua instabilidade política endémica, os países da América do Sul são dos que historicamente têm levado mais a sério a instituição do asilo político e diplomático. Ela tem sido uma espécie de seguro de vida para todos os governantes que temem a volatilidade das condições políticas locais e estão cientes dos benefícios de um reconhecimento recíproco do direito de asilo.

Num plano regional, um tratado de direito penal internacional celebrado em Montevideu, em 1889, contemplava algumas garantias relativas ao refúgio político, mas estas foram vistas como insuficientes. No século seguinte, outros tratados e convenções, subscritas por número significativo de Estados latino-americanos, vieram então codificar com maior rigor a questão do asilo político e diplomático (Havana 1928, Montevideu 1933 e 1939, Caracas 1954). Casos controversos onde um governo alegava existir um manifesto abuso das imunidades diplomáticas nunca faltaram. Mas esta é uma prática humanitária que se tem revelado notavelmente resiliente ao longo da história, dela beneficiando não apenas cidadãos latino-americanos - veja-se, por exemplo, o acolhimento dispensado pelas autoridades mexicanas a milhares de indivíduos que se encontraram no campo derrotado no termo da Guerra Civil de Espanha, já para não falar de algumas das vítimas mais célebres das purgas estalinistas, de Victor Serge a Leon Trotsky.

Luís Bigotte Chorão, jurista de formação, e conhecido bibliófilo, tem desenvolvido um trajeto paralelo enquanto investigador em temas de história contemporânea. Doutorado pela Universidade de Coimbra, é já autor de uma bibliografia extensa onde avultam títulos como A Crise da República e a Ditadura Militar (Sextante, 2009), e Política e Justiça na I República (Letra Livre, 2 volumes, 2011-2018), nas quais a sua erudição histórica e jurídica sobressai de forma evidente. Situar as questões da justiça e do direito no seu contexto político tem sido uma das motivações principais de Bigotte Chorão. Um dos seus trabalhos mais inovadores, por exemplo, é uma monografia intitulada Para uma História da Repressão do Anarquismo em Portugal no século XIX (Letra Livre, 2015), na qual o autor estudou a defesa de militantes anarquistas, acusados ao abrigo da lei de 13 de fevereiro de 1896, pelo advogado Bernardo Lucas, seguindo também o rasto às modalidades de cooperação que vários Estados europeus encetaram naquele período para lidar com um movimento que viam como especialmente ameaçador. Recorrendo a documentação diplomática inédita, o livro mostra-nos como os dilemas então colocados ao Estado de direito pelas exigências do combate ao terrorismo permanecem largamente inalterados.

Asilo Político em Tempos de Salazar levou o autor regressar a arquivos que lhe eram familiares (Negócios Estrangeiros, Justiça e Torre do Tombo) para reconstituir os meandros de dois episódios que envolveram os dois dissidentes mais temidos pelo Estado Novo em 1959: Humberto Delgado e Henrique Galvão.

As duas personalidades foram recentemente objeto de biografias sustentadas em significativa investigação histórica, curiosamente todas elas assinadas por praticantes de outros ofícios: um antropólogo (Frederico Delgado, Humberto Delgado. Biografia do General sem Medo, Esfera dos Livros, 2008), um jornalista (Pedro Jorge Castro, O Inimigo N.º 1 de Salazar, Esfera dos Livros, 2010), e um advogado (Francisco Teixeira da Mota, Henrique Galvão. Um Herói Português, Oficina do Livro, 2011). Pela sua parte, Bigote Chorão tratou de mobilizar o seu saber e competências para colocar a lupa sobre dois episódios que, não tendo sido singulares nesta fase conturbada da história do regime (houve outros pedidos de asilo em embaixadas latino-americanas, motivados principalmente pelo malogro das revoltas da Sé, em março de 1959, e de Beja, em janeiro de 1962), revestiram--se, contudo, de um impacto incomparavelmente maior devido à notoriedade dos dois asilados.

O autor oferece-nos aqui uma reconstituição exaustiva das circunstâncias em que se processou o acolhimento dos dois opositores nas embaixadas do Brasil e da Argentina, sendo que o seu foco principal reside na análise à forma como os responsáveis políticos e os diplomatas dos três países lidaram com uma situação que possuía um enorme potencial de melindre para as relações bilaterais. O simples facto de as duas embaixadas se situarem em zonas centrais de Lisboa (a do Brasil na Rua António Maria Cardoso, paredes meias com a sede da PIDE, a da Argentina num prédio residencial na Avenida João Crisóstomo), facilmente observáveis por transeuntes, tornava o assunto ainda mais sensível para um regime tão obcecado com a aparência de estabilidade e rotina como era o regime salazarista.

Embora o pretexto para esta investigação tenha resultado de uma solicitação mais circunstancial (uma comunicação a um colóquio académico), Bigotte Chorão ter-se-á apercebido não só de que o tema do asilo de Delgado e Galvão estava ainda insuficientemente tratado na literatura, como encerrava outros motivos de interesse que pediam um trabalho histórico de maior fôlego.

Por um lado, a questão do asilo é um tema que tem estado mais na mira dos estudiosos do direito internacional do que na dos historiadores das relações internacionais - o que é uma pena, pois as complexidades que geralmente envolvem os episódios de asilo são bem reveladoras dos inúmeros paradoxos e regras não--escritas que permeiam as relações entre os Estados. Apesar das suas limitações - a pesquisa assentou essencialmente em fontes de arquivo portuguesas e em alguma correspondência na posse da família do embaixador Ernesto Mairal -,o livro de Bigotte Chorão traz também alguma luz sobre a forma como o Brasil e a Argentina lidaram com este episódio e sobre o que isso nos poderá dizer acerca da tradição de asilo na América Latina e os posicionamentos internacionais dos governos de Juscelino Kubitschek e Arturo Frondizi, duas administrações que poderíamos associar às políticas desenvolvimentistas e liberais-democráticas que antecederam os golpes militares nos respetivos países em meados da década de 1960. Bigotte Chorão dá-nos conta da apreciável autonomia que dois embaixadores de convicções democráticas, Álvaro Lins e Ernesto Mairal, evidenciaram e de como o primeiro deles teria depois de enfrentar as pressões que o Itamaraty começou a exercer para tentar “compor” as relações com o regime português. Com efeito, apesar do seu compromisso com o instituto do asilo, o governo brasileiro estava bastante dividido relativamente à gestão de toda a crise. Encontrar uma saída que permitisse ao governo de Salazar «salvar a face» tornou-se complicado, desde logo pela antipatia e hostilidade granjeada por Álvaro Lins, um diplomata que desde a sua chegada a Lisboa cultivara assiduamente figuras intelectuais dos meios oposicionistas. O Itamaraty acabaria então por enviar o seu secretário-geral, Mendes Viana, a Portugal, para negociar com o ministro Marcelo Mathias as modalidades da saída de Delgado para o Brasil. As conversações não foram fáceis e o mais ínfimo aspeto do trajeto do general da embaixada até ao aeroporto da Portela, bem como todas as formalidades legais inerentes à viagem que o levaria até ao Rio de Janeiro, foram objeto de uma negociação aturada. Para um governo tão sensível à “dignidade” do poder, e à sua imagem externa, como era o de Salazar, os termos em que o “general sem medo” abandonava o país estavam longe de ser uma questão de somenos.

O livro de Bigotte Chorão é um relato precioso sobre os meandros destes episódios e contém uma série de vinhetas interessantes sobre os contextos em que os seus principais protagonistas operavam. No entanto, é difícil evitar a impressão de que ele muito ganharia se tivesse havido algum trabalho extra de edição. Como se apresenta, é uma obra demasiado densa para um público não-especializado. Leitores menos familiarizados com a história política destes países sentir-se-ão algo perdidos nas minudências jurídicas da tradição do asilo e do direito internacional. Em particular, falta aqui um enquadramento histórico aos enjeux das relações luso-brasileiras e às tensões que atravessavam a política externa brasileira nos anos 1950, nomeadamente a clivagem entre as correntes “nacionalistas” e “ocidentalistas” (bem trabalhadas, por exemplo, na obra de William da Silva Gonçalves, O Realismo da Fraternidade. Brasil-Portugal, Imprensa de Ciências Sociais, 2002). E embora o aparato crítico seja uma dimensão que os historiadores não devam descurar, perguntamo-nos se a profusão de citações, e a extensão de certas notas de rodapé, fazem realmente sentido nos dias de hoje, quando os leitores, graças à internet, têm à sua disposição uma vastidão de referências que anteriormente estavam apenas ao alcance de um número restrito de eruditos.

Referências bibliográficas

Chorão, Luís Bigotte (2019). Asilo político em tempos de Salazar. Os casos de Humberto Delgado e Henrique Galvão, Lisboa, Edições 70. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons